Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2346/04.0TJCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
RECONVENÇÃO
EXEQUENTE
ADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 357º, NºS 1 E 2, DO CPC
Sumário: I – Após a revisão de 1995/96 do CPC, os embargos de terceiro, que passaram a poder fundar-se, para além da posse, em qualquer direito que se revele incompatível com alguma diligência de cariz executivo judicialmente ordenada, mantiveram, não obstante terem-se visto classificados como incidente da instância, a estrutura de uma acção declarativa, seguindo, após serem recebidos, os termos do processo ordinário ou sumário de declaração, consoante o respectivo valor (artº 357º, nº 1, do CPC).

II – E foi mantida a possibilidade de o embargado, na contestação – enquanto “parte primitiva”- pedir o reconhecimento …”quer do seu direito de propriedade sobre os bens, quer de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida” – artº 357º, nº 2, CPC.

III – Ora, assumindo-se os embargos de terceiro, após a referida revisão do CPC, como uma verdadeira acção declarativa com o escopo de verificar a existência de um direito ou duma posse, não se vê que obstáculo haja, “a priori”, à dedução de reconvenção por parte do embargado.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1) - A..., em 27/06/2006, veio, por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa, que, no 1º Juízo Cível de Coimbra, em 05/07/2004, “B..., LDA.” instaurou contra “C..., LDA.”, deduzir embargos de terceiro à penhora do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o art.° ...., da Freguesia de ...., descrito na Conservatória do Registo Predial de ....sob o n.° .....

Alegou, para tanto, em síntese, que adquiriu o direito de propriedade sobre o dito prédio por compra à ora executada, formalizada por escritura de 11/12/2003, ou seja, em data anterior ao do registo da penhora, que ocorreu em 08/11/2005, sendo que, não obstante apenas haja registado essa aquisição em 05/04/2006, só teve conhecimento da penhora em 22/05/2006. Alegou, ainda, a prática, desde a data da respectiva aquisição, de actos de posse sobre o referido prédio.

Com tais fundamentos concluiu que a penhora ofende a sua posse e o seu direito de propriedade sobre o referido prédio urbano, requerendo que, em consequência, na procedência dos embargos, fosse ordenado o levantamento dessa penhora.

2) - Recebidos que foram os embargos, com a consequente suspensão da execução em relação ao aludido prédio, veio a embargada/exequente oferecer contestação onde pugnou pela respectiva improcedência, tendo alegado, para além da caducidade do direito a embargar, factos integradores da impugnação pauliana da compra e venda invocada pela embargante, bem assim como a nulidade, por simulação, dessa compra e venda.

Concluiu pedindo, para além da improcedência da acção por efeito do atendimento da excepção da caducidade, que a reconvenção fosse julgada procedente e, consequentemente, que se declarasse a ineficácia da compra e venda celebrada entre a executada e a embargante, ou, caso assim se não entendesse, que se declarasse a nulidade dessa compra e venda, por simulação.

3) - Constatado que a executada havia sido objecto de declaração de insolvência já transitada em julgado, suspenderam-se os termos do processo, tendo-se, posteriormente, contudo, em face da informação de que a insolvência fora declarada com “carácter limitado”, determinado o prosseguimento dos termos da execução (despacho de 16/09/2009).

4) - Foi proferido despacho saneador, consignou-se a matéria que se considerava já assente e elaborou-se a base instrutória.

Nesse despacho saneador, proferido em 15/01/2010, para além de ser ter fixado o valor da causa em € 14.714,54, indeferiu-se liminarmente a reconvenção, considerando-se “…não escrito o(s) pedido(s) reconvencional(ais)”.

5) - A embargada, inconformada com o decidido quanto à reconvenção, além de ter requerido, ao abrigo do art.º 669º do CPC, a reforma do despacho saneador, o que foi indeferido, veio interpor recurso daquela decisão, recurso este que foi recebido como agravo, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

B) - É esse agravo que ora cumpre decidir e que a recorrente, na respectiva Alegação, remata com as seguintes conclusões:

[…]

Na 1.ª Instância proferiu-se despacho tabelar a sustentar a decisão agravada.

II - Em face do disposto nos art.ºs 684º, nºs. 3 e 4, 690º, nº 1 do CPC[1] (aplicáveis ao agravo, “ex vi” do art.º 749º do mesmo Código), o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2., “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Por outro lado, não que haverá que apreciar questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja decidido.

A questão a resolver resume-se a saber se, em embargos de terceiro é possível ao embargado/exequente deduzir reconvenção para, designadamente, pedir a declaração de ineficácia, por efeito de impugnação pauliana dirigida ao negócio translativo de onde emerge o direito de propriedade invocado pelo terceiro embargante, bem como, para pedir, subsidiariamente, a declaração de nulidade desse negócio, por simulação.

 Sendo esta a questão que importa decidir, com ela não se confundem os argumentos constantes das alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586)[2].

III - A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I - supra.

B) - Abordemos, então, a questão que constitui o objecto deste recurso.

A Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, para indeferir a reconvenção invocou estas duas ordens de razões:

- A natureza incidental dos embargos de terceiro não permite o “cruzamento de acções” consequente à admissão da instância reconvencional;

- A simulação no negócio translativo do direito de propriedade, putativamente ofendido pela penhora, pode ser invocado por via de excepção, pelo que não se apresenta como necessário à embargante, para esse efeito, deduzir reconvenção.

Vejamos.

Na redacção do CPC anterior à revisão de 1995/1996, os embargos de terceiro constituíam, então, uma acção especial, prevista e regulada nos artº 1037º e ss.

Embora nesse processo especial se previsse a hipótese de ser suscitada, pelo embargado, a questão da propriedade dos bens em causa, tais embargos tinham como fundamento exclusivo a posse de terceiro relativamente aos bens atingidos pela diligência (v.g., pela penhora).

Esta configuração restritiva dos embargos de terceiro, como se explica no Acórdão desta Relação de 11/09/2005 (Agravo nº 4314/04)[3], tinha “…origem na doutrina medieval italiana que conjugava as vantagens de um procedimento célere, com a aparência do direito resultante duma situação possessória, reservando para uma acção comum de reivindicação (…) a oposição desse terceiro baseada na titularidade do direito real de fundo”.

Todavia, embora a posse (e sua ofensa) fosse o fundamento exclusivo dos embargos de terceiro, nada obstava a que o embargante alegasse na petição a propriedade da coisa para explicar a posse invocada, valendo esta alegação da propriedade (como causa da posse), conforme se diz no aludido Acórdão de 11/09/2005, “…como impugnação antecipada da eventual alegação do direito de propriedade do executado na contestação dos embargos, nos termos do artº 1035º, nº 2, aplicável “ex vi” do artº 1042º, do C.P.C….”.

Já quanto ao embargado, permitindo-se, expressamente, que, na contestação aos embargos de terceiro, (1042 b), do CPC), alegasse que o direito de propriedade sobre os bens pertencia à pessoa contra quem a diligência (v.g., a penhora) fora promovida, tal não obstava a que também lhe fosse consentido alegar, sendo caso disso, o circunstancialismo que se encontrava especificado no nº 1 do art.º 1041 do CPC e que, se detectado pelo tribunal no momento azado justificaria a rejeição dos embargos.

Esse circunstancialismo, previsto como causa de rejeição dos embargos, configurava, como também se explicou no Acórdão de 11/09/2005, uma situação jurídica constituída pela prática do acto de transmissão com a intenção do transmitente se subtrair às suas responsabilidades, que, apesar de poder ser considerada parente da impugnação pauliana, não se podia identificar com esta, pois que não exigia a prova de que esse acto provocara a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade do credor obter a satisfação do seu crédito, através do património do devedor transmitente.

Mas, embora lhe fosse facultado esse fundamento de defesa previsto no art.º 1041º, nº 1, nada obstava a que o embargado se defendesse excepcionando a própria impugnação pauliana. Disso dá conta, embora focando os preceitos equivalentes do CPC de 39, o Prof. Alberto dos Reis, nos «Processos Especiais», vol. I - Reimpressão, Coimbra - 1982, pág. 452.

Saliente-se que, no âmbito deste regime dos embargos de terceiro que temos vindo a focar, anterior à reforma de 95/96, se chegou a defender, não só ser admissível a reconvenção, deduzida pelo embargado, para efeito de pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a coisa ou para suscitar a questão da invalidade de qualquer negócio jurídico de transmissão da propriedade, como se sustentou que tal reconvenção não estava sujeita à verificação dos requisitos previstos no art.º 274º do CPC.[4]

Após a revisão de 1995/96 do CPC, os embargos de terceiro, que passaram a poder fundar-se, para além da posse, em qualquer direito que se revele incompatível com alguma diligência de cariz executivo judicialmente ordenada, mantiveram, não obstante terem-se visto classificados como incidente da instância, a estrutura de uma acção declarativa, seguindo, após serem recebidos, os termos do processo ordinário ou sumário de declaração, consoante o respectivo valor (art.º 357º, nº 1, do CPC).

E foi mantida a possibilidade de o embargado, na contestação - enquanto “parte primitiva” - pedir o reconhecimento, “…quer do seu direito de propriedade sobre os bens, quer de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida” (357º, nº 2).

Ora, assumindo-se os embargos de terceiro, após a referida revisão do CPC, como uma verdadeira acção declarativa com o escopo de verificar a existência de um direito ou duma posse (Lebre de Freitas, “A Acção Executiva à luz do Código Revisto”, 2.ª edição, pág. 242) não se vê que obstáculo haja, “a priori”, à dedução de reconvenção por parte do embargado.

E já posteriormente a essa revisão, pronunciou-se esta Relação pela possibilidade de, alegando o terceiro embargante o direito de propriedade sobre o bem penhorado, os embargados invocarem a nulidade da transmissão do bem, por simulação, ou deduzirem impugnação pauliana.[5]

Do exposto parece resultar claro que, sendo certo que a simulação do negócio translativo de que emerge o direito invocado pelo terceiro embargante pode ser excepcionada pelo embargado, tal como o pode a impugnação pauliana, não se segue, por isso, que este não tenha o direito de formular pedidos reconvencionais fundados numa ou noutra, desde que, é claro, tais pedidos se apresentem em via subsidiária entre si (como é o caso)[6] e que, verificando-se alguma das circunstâncias previstas nas diversas alíneas do nº 2 do artº 274º, do CPC, não haja quaisquer obstáculos processuais a isso (v.g., os previstos no nº 3 deste artigo).

E o exposto evidencia, também, que a circunstância de os embargos de terceiro estarem inseridos, formalmente, nos incidentes de instância, não obsta, atenta a natureza de acção declarativa que assumem e os termos que seguem após serem recebidos, à dedução de pedido reconvencional por parte do embargado.

Já no Acórdão da Relação do Porto de 16/12/2009 (Agravo nº 6092/06.1TBVFR-B.P1)[7], embora respeitando a embargos de terceiro a arresto, se admitiu ser permitida a invocação, em sede de contestação dos embargos de terceiro, por via reconvencional, quer da declaração de nulidade dos actos praticados pelo devedor, quer da impugnação pauliana, quando o terceiro embargante alega ter adquirido ao requerido/devedor o direito de propriedade dos bens apreendidos. Efectivamente, nas hipóteses compreendidas nessas situações, salienta-se nesse aresto, justificando o entendimento defendido: «…o objecto dos embargos de terceiro contém um âmbito que vai além da mera desoneração dos bens do acto ofensivo. Permitindo que se aproveite a mesma instância para também decidir, com carácter definitivo, a questão da propriedade dos bens apreendidos, da (in)validade do acto de alienação desses bens do devedor para o terceiro embargante e da sua (in)eficácia em relação ao credor. O que decorre do art. 358.º do Código de Processo Civil, que dispõe, quanto ao âmbito do caso julgado material, que "a sentença de mérito proferida nos embargos constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pelo embargante ou por algum dos embargados, nos termos do nº 2 do artigo anterior". E assim se assegurando os direitos dos interessados a verem apreciado o litígio com as mesmas garantias de que beneficiariam em acção autónoma, como refere o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95.».

No caso “sub judice”, emergindo, o peticionado reconvencionalmente, de factos jurídicos que servem de fundamento à defesa do embargante, (art.º 274, nº 2, a), do CPC), não se descortina, assim, qualquer óbice à admissibilidade da reconvenção.

Do que ficou explanado resulta ser admissível a reconvenção que o despacho da 1ª Instância indeferiu, pelo que o recurso merece provimento, havendo que substituir tal a decisão impugnada por uma outra que, admitindo a reconvenção, determine o prosseguimento do processo de embargos para que apreciado seja, também, o peticionado por essa via.

IV - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao Agravo e, revogando o despacho de 15/01/2010, na parte recorrida, admitir a reconvenção deduzida pela embargante “ B...., LDA.”, e determinar que se dê seguimento aos termos consequentes a esta admissão.

Sem custas (Art. 2.º, n.º 1, al. g), do Código das Custas Judiciais).


Falcão de Magalhães (Relator)
Regina Rosa
Artur Dias

[1] Sendo aplicável o regime de recurso vigente anteriormente à alteração introduzida ao CPC pelo DL nº 303/2007, de 24/08, aplica-se, por outro lado, por respeitar a apenso de processo executivo instaurado posteriormente a 15/09/2003, mas anterior à publicação do DL n.º 226/2008, de 20/11, a tramitação da acção executiva decorrente da reforma consubstanciada no Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março.
[2] Consultáveis na Internet, através do endereço http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/ .
[3] Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase”.
[4] Cfr., embora versando o arresto, enquanto diligência ofensiva da posse, o Acórdão da Relação do Porto de 05/04/1993, processo nº 9210858, com sumário disponível em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/”.
[5] Acórdão de 28/03/2007, Apelação nº 208-A/2002.C1, consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase”.
[6] A não ser assim, ou seja, não havendo essa relação de subsidiariedade entre tais pedidos - de declaração de nulidade do negócio, com fundamento em simulação absoluta, e de declaração de ineficácia, com base na impugnação pauliana -, ter-se-ia de concluir pela respectiva incompatibilidade substancial, geradora de ineptidão (Cfr., Acórdão desta Relação de 14/12/2010, Apelação nº 2604/08.4TBAGD.C1).
[7] Consultável em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/.