Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
753/14.9T9CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: CONSTITUIÇÃO COMO ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
OFENDIDO
Data do Acordão: 09/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 283.º, ALS. B) E C), E 309.º, DO CPP
Sumário: I - Para efeitos do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas unicamente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime relativamente ao qual se põe a questão da constituição de assistente.

II - No conceito estrito de ofendido, consagrado na nossa lei, não cabem o titular de interesses mediata ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de interesses morais, os quais podem eventualmente ser lesados e, nessa qualidade, sujeitos processuais como partes civis mas não constituir-se assistentes.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. Nos autos de inquérito (Actos Jurisdicionais) n.º 753/14.9T9CBR que correm termos no Tribunal da Comarca de Coimbra – Coimbra – Instância Central – Secção de Instrução Criminal – J3, de que os presentes constituem apenso, foi proferido despacho que indeferiu o pedido de constituição como assistente da Associação A....

2. Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a referida Associação, concluindo a sua motivação nos termos seguintes (transcrição):

«I - O presente recurso vem interposto do douto Despacho que indeferiu o pedido de constituição de Assistente apresentado pela ofendida, aqui recorrente.

II - A recorrente apresentou, tempestivamente, no DIAP de Coimbra, uma queixa-crime por difamação.

III - Na queixa-crime apresentada, a recorrente referiu que a arguida B... , difamou o bom nome da instituição junto da comunidade,

IV - Pois, abordou as mães de algumas crianças que frequentam a Instituição, dizendo-lhes que na mesma trabalhava uma Educadora - E... - que “exercia comportamentos agressivos nas crianças, salientando que esta apertava o pescoço às crianças”

V - Mais, referiu que as mães deveriam estar atentas para o aparecimento de marcas no corpo das crianças

VI - As mães das crianças, a quem a arguida se dirigiu, foram ouvidas durante o inquérito, tendo as mesmas afirmado que a arguida se referiu não só à Educadora, mas também a Instituição.

VII - A Testemunha F... , (a folhas 67) referiu que a arguida lhe disse que tinha “encontrado uma rapariga no Centro de saúde de Eiras, e que esta rapariga tinha dito que tinha-se vindo embora da Creche do centro A... porque não gostava da maneira como tratavam as crianças, e disse a depoente para dizer a G... para estar atenta. ”

VIII - A Testemunha D... (a folhas 60) referiu que a arguida lhe disse: “tens que ter atenção que eles podem maltratar a menina, porque fizeram o mesmo ao meu, e não sei porque o meu filho tinha tanto medo de ir para lá, e depois continuou, olha que ate a mão lhe puseram no pescoço”

IX – Não restando quaisquer dúvidas de que a arguida ofendeu não só o seu bom nome, honra e dignidade da Educadora, como também da Instituição.

X - Pois, a Educadora, sendo funcionária da Instituição, estará sempre ligada à mesma e por isso ao fazer afirmações sobre o trabalho da Educadora, a arguida atingiria, como atingiu, o bom nome e a reputação da Instituição.

XI - Sendo a ora recorrente ofendida nos presentes autos, tem por isso, legitimidade para se constituir assistente, nos termos do disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 68º do Código de Processo Penal.

TERMOS EM QUE:

Com o suprimento de Vossas Excelências deve o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente ser revogado o despacho proferido pela Exma Senhora Dra Juiz de Instrução, devendo ser substituído por outro que admita o pedido de constituição de assistente apresentado pela ora recorrente

Vossas Excelências, porém, farão a costumada e esperada

                                                                                                       JUSTIÇA»

3. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, acompanhando a resposta à motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de o presente recurso ser julgado improcedente.

5. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, não houve resposta.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

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II - Fundamentação

1. É o seguinte o teor do despacho recorrido:

«A Associação A... veio requerer a sua constituição como assistente.

O Ministério Publico promoveu que se indeferisse o requerido pelos motivos constantes do despacho de fls. 69.

                                                        *

Cumpre decidir

Nos termos do artigo 68º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal “podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais confiram esse direito: os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (...)” - sublinhado nosso.

No entanto, o legislador não estabeleceu qualquer definição sobre o que sejam esses interesses, sendo defendido pela doutrina que um dos indícios reveladores é a sistematização da parte especial do Código Penal, que está organizada de acordo com um critério ligado aos interesses protegidos. Portanto, é pela norma incriminadora que se alcança o interesse que a lei quis proteger ao tipificar a conduta como ilícita. Determinado esse interesse, há que determinar o titular desse mesmo interesse - pessoa física ou entidade.

Assim, os titulares dos interesses que só mediata ou indiretamente podem ser afetados, não são abrangidos pela norma do nº 1 do artigo 68º do Código Penal. O que significa que não é ofendido qualquer pessoa prejudicada pela prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato do crime.

No caso dos autos está denunciada a prática de um crime de difamação, pp. no artigo 180.º do Código Penal.

Todavia, concordamos com a posição da Digna Magistrada do Ministério Publico quando afirma que a requerente não é ofendida nos presentes autos mas sim E... . Com efeito, verificamos que nunca é colocada em causa o nome da requerente. Os factos alegadamente difamatórios foram praticados por E... , na medida em que lhe são imputados comportamentos agressivos relativamente às crianças, salientando-se que lhes apertava o pescoço.

Assim, por a requerente não ser ofendida nos presentes autos, indefiro o seu pedido de constituição de assistente.

Notifique.»

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2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Atenta a conformação das conclusões formuladas, a única questão a decidir consiste em saber se a recorrente tem legitimidade para se constituir assistente relativamente a um eventual crime de difamação previsto no artigo 180.º do Código Penal.

Atendendo a que se mostra, à partida, afastada a verificação de qualquer das hipóteses de legitimação à constituição de assistente por parte da recorrente previstas nas restantes alíneas do n.º 1 do artigo 68.º do Código de Processo Penal, importa, para efeitos da alínea a) do n.º 1 do mesmo preceito, ajuizar se a recorrente deve ou não ser considerada ofendida no sentido técnico-jurídico relativamente ao crime em apreço.

Dispõe o artigo 68.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal que se podem constituir assistentes em processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos.

Como escreve o Prof. Figueiredo Dias – em perfeita consonância com o actual CPP – a nossa lei parte do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas que têm legitimidade para intervirem como assistentes em processo penal – cfr. Direito Processual Penal, Primeiro Volume, página 512.

Para efeitos do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime mas unicamente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime relativamente ao qual se põe a questão da constituição de assistente.

Os titulares de interesses mediata ou indiretamente protegidos não podem ser englobados na abrangência do conceito de ofendido para os efeitos consignados no artigo 68º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.

No caso em apreço está em causa a eventual prática do crime de difamação previsto no artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal, o qual dispõe “[q]uem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ele um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido (…)”.

É o objecto da queixa que define o objecto da investigação a levar a cabo pelo Ministério Público, por obediência ao princípio da vinculação temática, e que definirá o possível objecto da acusação, não podendo a instrução ir além desse objecto processual, uma vez que, nos termos do artigo 286.º do Código de Processo Penal, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem ou não a submeter ou não a causa a julgamento”.

A recorrente apresentou queixa-crime, em 19.11.2014, contra B... por, no seu entender, esta ter difamado o bom nome da instituição junto da comunidade.

No requerimento de queixa são participados os seguintes factos:

«- No dia 30/09/2014, a progenitora G... , residente na Rua (...) Coimbra solicitou uma reunião com o objetivo de relatar-nos fatos sobre situações que se passariam na nossa creche e, para as quais fora alertada, nomeadamente que a nossa Educadora (aquela data) E... , exercia comportamentos agressivos nas crianças, salientando mesmo que esta “apertava o pescoço às crianças, e prevenindo-a para que estivesse desperta para o aparecimento de marcas no corpo da mesma;

- No dia 22/10/2014 a progenitora C... , residente na rua (...) Coimbra, informou-nos no sentido de que B... abordou-a na rua para a alertar “que deveria ter atenção para o aparecimento de marcas na filha, dizendo que a Educadora E... apertava o pescoço das crianças”».

A descrição factual feita na queixa apresentada define claramente que, desde o início do inquérito, a participação dos factos ao Ministério Público e o pedido que os mesmos fossem investigados dirigia-se a factos praticados pela educadora E... .

A descrição fáctica resultante da queixa, que tem como papel definir o objecto sobre que incidirá a investigação a levar a cabo ao longo do inquérito, não deixa dúvidas que a imputação feita pela denunciada não é dirigida à instituição mas apenas e tão só à educadora E... , no sentido de esta exercer comportamentos agressivos em relação às crianças, salientando-se que lhes apertava o pescoço.

A circunstância de a educadora ser, à data da imputação dos factos, funcionária da recorrente não releva para aferição da legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos, pois os titulares de interesses mediata ou indiretamente protegidos não são englobados na abrangência do conceito de ofendido para os efeitos consignados no artigo 68º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.

No conceito estrito de ofendido, consagrado na nossa lei, não cabem o titular de interesses mediata ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de interesses morais, os quais podem eventualmente ser lesados e, nessa qualidade, sujeitos processuais como partes civis mas não constituir-se assistentes. 

Por conseguinte, não merecendo censura o despacho recorrido, improcede o presente recurso.

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III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pela Associação A... e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)

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Coimbra, 9 de Setembro de 2015

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)