Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2476/10.9TJCBR-M.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRESUNÇÃO
DEVEDOR
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
FALTA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 490º, Nº1 DO CPC; 17º; 20º, Nº 1, AL. E); E 30º, NºS 3 E 4 DO CIRE
Sumário: I – Face a um pedido de declaração de insolvência instruído com a documentação de um crédito sobre o devedor, em cuja execução, comprovadamente, não foi possível encontrar bens disponíveis (passíveis de penhora) para satisfação desse crédito, por sobreposição de diversas outras execuções anteriormente instauradas e que, igualmente, não conduziram à satisfação dos respectivos créditos, face a este requerimento de insolvência, uma oposição do devedor por simples negação geral – do tipo, “não devo nada a ninguém!” –, não vale como preenchimento do ónus de tomada de posição definida, previsto no nº 1 do artigo 490º do CPC, aplicável à insolvência ex vi do disposto no artigo 17º do CIRE.

II – Esta negação genérica não evita, pois, que sejam considerados admitidos, por falta de uma impugnação relevante, os factos indicados no requerimento de insolvência.

III – A impossibilidade de alcançar, num processo executivo instaurado contra o devedor, bens aptos a satisfazer o crédito aí executado, integra a situação prevista na alínea e) do nº 1 do artigo 20º do CIRE, enquanto facto-índice da situação de insolvência do devedor.

IV – A presença de qualquer dos factos-índice elencados no nº 1 do artigo 20º do CIRE conduz à presunção de que o devedor em causa se encontra em situação de insolvência, nos termos do nº 1 do artigo 3º do CIRE, competindo-lhe alegar e provar a inexistência da situação de insolvência (cfr. artigo 30º, nºs 3 e 4 do CIRE).

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação Coimbra

I – A Causa


            1. Em 17/07/2010[1], V… (Requerente e no contexto deste recurso Apelado) requereu a insolvência – a insolvência de pessoa singular – de C… (Insolvente ou Devedor e Apelante neste recurso[2]), invocando dever-lhe este €12.000,00 (mais juros e cláusula penal), sendo que, na execução que intentou para cobrança deste crédito[3] não logrou alcançar, por não existirem, bens aptos a propiciar a satisfação desse mesmo crédito[4], constatando, nesse particular contexto processual, relativamente a diversos outros créditos, a impossibilidade do Requerido satisfazer a generalidade das suas dívidas vencidas[5].

            1.1. Citado o Requerido (depois das sucessivas frustrações desse acto documentadas a fls. 24/51 deste apenso) deduziu este como oposição o que consta de fls. 52/54, onde, em substância, declara nada dever ao Requerente nem a ninguém, afirmação que manteve, reiteradamente e sem mais, quando instado pelo Tribunal (v. fls. 64, referência nº 2475670 no histórico do Citius) a esclarecer as suas afirmações genéricas – do tipo “nada devo!” – e a dar cumprimento ao disposto no nº 2 do artigo 30º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE)[6], continuou a afirmar, tão-só, “nada dever” e que, por isso, “não existem cinco grandes credores!” (v. fls. 66). Posição que manteve inflexível, depois de lhe ser concedido novo prazo a fls. 60 (cfr. fls. 79/80).

            1.2. Surge então, sem produção de prova ou realização de audiência de discussão e julgamento, em 20 de Dezembro de 2010, a Sentença aqui certificada a fls. 82/90 (referência nº 2519904 no histórico do Citius) – constitui esta a decisão objecto do presente recurso – declarando a insolvência do Requerido.

É, como dissemos, o que está em causa na apelação ora apreciada.

            1.3. Com efeito, inconformado com tal decisão, dela apelou o Insolvente – o recurso veio, como já se mencionou na nota 3, a ser admitido nesta Relação em sede de reclamação nos termos do artigo 688º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[7] –, apelou o Insolvente, dizíamos, concluindo a respectiva motivação (está ela certificada a fls. 39/57 do apenso K e correspondeu a fls. 450/468 do processo principal, cfr. fls. 437 da certidão que instruiu o presente recurso), nos seguintes termos:
“[…]
[1] – A sentença recorrida é injusta, é ilegal, é cruel, é inconstitucional.
[2] – É ilegal porque viola os artigos 3º, 7º, 11º, 12º, 35º do CIRE.
[3] – É ilegal porque viola o disposto no artigo 493º, nº 3 do CPC, conjugado com aquele artigo 3º do CIRE.
[4] – É inconstitucional porque viola o artigo 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, bem como os mais elementares e universais princípios e direitos probatórios da equidade, do contraditório.
[5] – É inconstitucional porque se recusou a dar cumprimento ao artigo 35º do CIRE, tomando partido por uma das partes em litígio e, consequentemente, não conferindo às mesmas os mesmos direitos, garantias e possibilidades probatórias.
[6] – É inconstitucional porque não foi isenta.
[7] – É incompetente porque violou de forma grosseira o artigo 7º do CIRE.
[8] – Por tudo isto deve a presente Sentença ser revogada na totalidade e, em consequência, deve ser ordenada a marcação da audiência de discussão e julgamento para prova da existência da dívida peticionada. Só depois se poderá o Tribunal pronunciar acerca da solvabilidade ou insolvabilidade do ora recorrente! 
[…]”
[transcrição de fls. 57 do apenso K, numeração sequencial aqui introduzida]


II – Fundamentação

            2. Apreciando a presente apelação – dirige-se ela, convém ter presente, tão-só, à Sentença que declarou a insolvência do Apelante –, sublinhamos que a incidência temática da impugnação resulta do teor das conclusões, transcritas no item anterior, com as quais o Apelante rematou a respectiva alegação. É o que resulta, relativamente a qualquer recurso, do disposto nos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC[8].

            Assim, com correspondência nas conclusões, podemos isolar, enquanto fundamentos do recurso, primeiramente, (a) o modo pelo qual o Tribunal a quo deu por integrados os factos que conduziram à declaração de insolvência, abrangendo este fundamento o preenchimento, no caso, da situação de insolvência e os supostos argumentos de inconstitucionalidade da decisão recorrida na afirmação de integração desse conceito de devedor insolvente. Reconhecemos estar em causa, na construção deste fundamento tão genérico do recurso, quase nenhuma particularização de questões (trata-se, no essencial, de apreciar e controlar todos os fundamentos da decisão recorrida). Todavia, não vemos, face a uma linha expositiva tão sui generis quanto a seguida pelo Advogado em causa própria ora Apelante (basta ler a motivação e as conclusões acima transcritas), não vemos, dizíamos, como com essa base tão peculiar será possível isolar com distinta minúcia questões concretas colocadas pelo recurso. A isto só constituirá excepção a afirmação (v. a conclusão [7] acima transcrita) da incompetência territorial do Tribunal, por referência ao artigo 7º do CIRE. Este (a competência territorial dos Juízos Cíveis de Coimbra para o processo de insolvência do Apelante) constituirá, pois, um (o) segundo fundamento do recurso (b).

            2.1. Interessam ao recurso, desde logo, os factos elencados na decisão. Aqui os transcrevemos a partir do texto da Sentença:
“[…]
Em face dos documentos juntos aos autos pela requerente, que não foram impugnados, e da posição assumida pelo requerido na sua oposição, estão assentes os seguintes factos:
1. O requerido subscreveu um documento denominado «Acordo de pagamento e confissão de dívida», mediante o qual declarou acordar e confessar-se devedor para com o requerente nos seguintes termos e condições:
«O Declarante signatário recebeu nesta data, em cheque e numerário, de V…, a importância de €12.000,00 (Doze mil euros), de que desde já se confessa devedor. A referida importância será paga pelo ora confesso devedor no prazo máximo de 60 dias a partir da presente data.
A partir do prazo estipulado de 60 dias o Declarante: C…, confessa-se devedor de juros de mora à taxa mais elevada legalmente permitida até efectivo e integral pagamento.
Fica com a obrigação do Declarante: C…, a título de cláusula penal e em caso de incumprimento no pagamento da quantia em dívida na data acordada, o pagamento ao credor V… da quantia de €1.000,00 (Mil euros).
O não pagamento na data prevista da presente confissão de dívida dará o direito ao credor, V…, de a executar.
As partes reconhecem que esta confissão de dívida constitui um título executivo, que vai ser assinada pelo confesso devedor bem ciente e conhecer do conteúdo da obrigação aqui assumida».
2. O requerente intentou contra o requerido acção executiva, que corre termos no 5.º Juízo Cível de Coimbra sob o n.º 1992/10.7TJCBR.
3. O requerente constatou na execução n.º 1992/10.7TJCBR que o requerido não tem quaisquer bens, livres de ónus e encargos, que possam responder pelo pagamento da dívida.
4. No âmbito deste processo a solicitadora de execução nomeada informou que o executado tinha a correr contra ele diversos outros processos judiciais sem cobrabilidade.
5. Contra o requerido foram instaurados os seguintes processos executivos:
- processo n.º 325-A/2002 da 1.ª secção da Vara Mista de Coimbra, em que é exequente M…, com o valor de €39.783,88;
- processo n.º 2137/03.5TJCBR-B do 2.º Juízo Cível de Coimbra, em que é exequente T…, Lda., com o valor de €6.476,13;
- processo n.º 1792/2002 do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Oeiras, em que é exequente B…, S.A., com o valor de €34.175,02;
- processo n.º 643/03.0TBCBR da 2.ª secção da Vara Mista de Coimbra, em que é exequente J…, Lda., com o valor de €15.413,88;
- processo n.º 90-A/2002 da 1.ª secção da Vara Mista de Coimbra, em que é exequente Á…, S.A., com o valor de €38.099,41.
[…]”
[transcrição de fls. 84/85 da certidão que instrui este recurso]

            2.2. (a) Importa compreender – na dilucidação deste primeiro e genérico fundamento do recurso – o modo pelo qual o Tribunal a quo alcançou, desde logo, este elenco de factos.

            Numa primeira aproximação, importa precisar que, determinada que foi a citação pessoal do Devedor (despacho certificado a fls. 23, correspondente ao nº 2393153 no histórico do Citius) – à qual ele, aliás, procurou furtar-se até à exaustão, como os autos ilustram –, apresentou ele, a título de oposição ao requerimento de insolvência, o que consta de fls. 52/54 (já caracterizámos, acima no item 1.1. deste Acórdão, o conteúdo dessa peça). Ora, estando essa ocorrência processual – a dedução de oposição do devedor – sujeita, entre outros, ao requisito do artigo 30º, nº 2 do CIRE (tem de vir acompanhada da lista dos cinco maiores credores), omitindo o Devedor essa indicação, adoptou o Tribunal, muito correctamente (v. nota 7, supra), o procedimento de o notificar, por duas vezes, para suprir essa deficiência da oposição, persistindo ele – e sublinhamos que se trata de um Advogado –, a coberto da afirmação genérica e não explicitada de não dever nada a ninguém, a subtrair-se ao cumprimento desse requisito de dedução de oposição ao pedido de insolvência.

            Tenha-se em conta que o nº 2 do artigo 30º do CIRE coloca o recebimento – rectius, a admissibilidade – do articulado de oposição sob reserva de entrega dessa lista dos cinco maiores credores: “[s]em prejuízo do disposto no número seguinte, o devedor junta com a oposição, sob pena de não recebimento, lista dos seus cinco maiores credores, com exclusão do requerente, com indicação do respectivo domicílio”, determinando o nº 3 desse artigo 30º (o “número seguinte”, na terminologia do nº 2) que “[a] oposição do devedor […] pode basear-se na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência”.

            Renovando-se aqui o qualificativo de inteiramente correcta quanto à opção do Tribunal a quo de, reiteradamente, procurar obter o cumprimento pelo Devedor do requisito previsto no nº 2 do artigo 30º do CIRE (entrega da listagem dos cinco maiores credores) – opção escrupulosamente conforme ao sentido da nossa jurisprudência constitucional (v. nota 7, supra) –, não deixamos de também compreender, paralelamente, que o Tribunal não tenha determinado, face à persistência do Devedor em não cumprir esse requisito, o desentranhamento da oposição (do que o Devedor apresentou como articulado de oposição)[9]. É que, podendo a oposição basear-se na inexistência do facto (dos factos) em que se fundamenta o pedido de declaração de insolvência (nº 3 do artigo 30º do CIRE), poderemos ver na negação genérica, mesmo não devidamente justificada, de dever o que quer que seja a quem quer que fosse, alguma forma de preenchimento da condicionante do desentranhamento da oposição incluída no trecho inicial do nº 2 do mesmo artigo 30º (“[s]em prejuízo do disposto no número seguinte […]”). Cremos ter sido este o entendimento da primeira instância e, como referimos, aceitamo-lo neste particular contexto argumentativo.

            Todavia, coisa diversa é – seria – aceitar que essa negação genérica e não particularizada, como a que reiteradamente encontramos por parte do Devedor a fls. 52/54, em que o tom, inflamado na forma (“NADA lhe deve!”, “NADA!”, “NÃO EXISTEM cinco grandes credores!”) mas desacompanhado de dados concretos, mais não faz que esconder a ausência de um real conteúdo significativo. De facto, coisa diversa seria aceitar – e bem andou o Tribunal a quo ao não aceitar – que este tipo de afirmações correspondessem a uma tomada de “posição definida”, relevante nos termos do artigo 490º, nº 1 do CPC, aqui aplicável ex vi do artigo 17º do CIRE, sobre os factos articulados e devidamente explicitados pelo Requerente no pedido de insolvência. 

Note-se que o Requerente da insolvência identificou e particularizou, para além do seu crédito[10] e da sua execução, outros créditos e outras execuções[11], sendo que também indicou que no quadro daquela e destas (execuções) se determinou a insuficiência de bens penhoráveis (a impossibilidade de alcançar bens penhoráveis) aptos a propiciar a satisfação dos diversos créditos, tudo isto como afirmação, clara inequívoca e suficientemente particularizada, de integração da facti species da alínea e) do nº 1 do artigo 20º do CIRE.

Aliás, não deixamos de reter aqui, porque constitui um dado relevante, a circunstância de não ter o Devedor ora Apelante negado, na suposta oposição à insolvência, a sua assinatura no documento de confissão de dívida (em rigor também não afirma tê-la pago e até se veio a perceber que não pagou mesmo). Porém, seja como for, não vale a mencionada negação geral, desacompanhada de factos e sem o assumir claro de uma posição referida ao concreto da realidade pretendida infirmar (a realidade afirmada pelo Requerente), como uma tomada de posição definida, não ambígua, que traduza um desempenho aceitável do ónus de impugnação previsto no artigo 490º, nº 1 do CPC.

Vale a este respeito a caracterização que vem sendo feita deste ónus, na evolução, decorrente da reforma de 1995 do Processo Civil, do “ónus da impugnação especificada”, próprio do regime pregresso, para o – chamemos-lhe assim – “ónus da tomada de posição definida” introduzido pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro[12]. Ora, neste caso concreto, face aos factos objectivos alegados pelo Requerente, o tipo de negação genérica adoptada pelo Devedor, totalmente indefinida e que procura explorar a ambiguidade[13], não pode ser considerada como impugnação relevante das circunstâncias de facto que o Requerente particularizou (definiu) no seu requerimento de insolvência: a efectiva existência da confissão de dívida e a circunstância de a mesma não ter sido satisfeita[14]; a instauração da execução e a incapacidade de nela serem alcançados bens do Devedor aptos a satisfazer aquela dívida[15]; a existência das outras execuções indicadas no requerimento inicial. Tudo isto são factos – são factos que o Requerente documentou no requerimento inicial – e, aliás, para não transformarmos o processo num mero jogo de palavras à margem da realidade (maxime, que só procura esconder ao processo a realidade), até sabemos – não podemos ignorar – que tudo o que foi alegado no requerimento inicial e veio a ser considerado assente na Sentença, foi demonstrado à saciedade nos subsequentes passos do processo.

Seja como for, interessando-nos aqui a consideração na Sentença de um determinado acervo de factos como provados, sem realização da audiência prevista no artigo 35º do CIRE, não podemos deixar de confirmar essa opção, com base no que antes referimos, no quadro processual gerado pela posição do Devedor, nos termos em que essa opção do Tribunal a quo foi explicitada na Sentença:
“[…]
Revela-se inútil a marcação de audiência de discussão e julgamento, porquanto os factos que fundamentam a pretensão deduzida se encontram assentes documentalmente e por acordo das partes, nos termos do art. 490.º do Código de Processo Civil (aplicável ex vi do art. 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa), e o requerido não alegou quaisquer factos concretos que demonstrem a respectiva solvência.
[…]
            [transcrição de fls. 83]

            Com efeito, constituindo esta asserção uma evidência emergente da análise, superficial que ela seja, do processo, não podemos deixar aqui de a confirmar inteiramente.

            2.2.1. (a) Assentes os factos (são eles os elencados no item 2.1.) – e a conformidade legal do processo que à determinação deles conduziu –, Interessa-nos agora, tendo presente o quadro argumentativo em que a Sentença alicerçou a declaração de insolvência do Apelante, a questão da integração do facto-índice correspondente à alínea e) do nº 1 do artigo 20º do CIRE (“[i]nsuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor”), articulando a verificação deste elemento (do facto-índice) com a incidência fulcral, definida pela lei, atinente à situação de insolvência: encontrar-se o devedor impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artigo 3º, nº 1 do CIRE).

Em termos gerais, quanto ao sentido operante, na dialéctica processual do direito adjectivo concursal, da técnica dos factos-índice que subjaz ao nosso CIRE – e seguimos aqui a exposição constante do Acórdão de 20/11/2007 desta Relação[16] –, entendemos que o estabelecimento destes, dos chamados factos-índice (correspondentes às oito situações elencadas nas alíneas do nº 1 do artigo 20º do CIRE) assenta numa técnica legal específica, habitualmente designada como estabelecimento de “exemplos-padrão”[17].

Actua esta técnica, no caso dos factos-índice do artigo 20º, nº 1 do CIRE, através da explicitação de ocorrências prototípicas de uma situação de insolvência, ou seja de situações por via das quais, normalmente, se manifesta essa situação, por corresponderem elas, tendencialmente pelo menos, a uma situação de impossibilidade do devedor cumprir as suas obrigações vencidas, ou seja, por corresponderem ao “conceito-base” – chamemos-lhe assim – contido no artigo 3º, nº 1 do CIRE. Significa isto – e isto constitui a essência da técnica dos “exemplos-padrão” –, por um lado, que a “[…] impossibilidade de [o devedor] cumprir as suas obrigações vencidas” pode ocorrer totalmente fora das facti species elencadas no nº 1 do artigo 20º do CIRE, tal como pode ocorrer, por outro lado, que a verificação de qualquer destas  facti species não corresponda em concreto à impossibilidade mencionada no nº1 daquele artigo 3º, rectius que não corresponda a uma situação de insolvência.

É neste sentido que se afirma, caracterizando o sentido interpretativo geral das diversas alíneas do nº 1 do artigo 20º do CIRE, “[…] constitu[irem elas] meros índices da situação de insolvência, tal como definida no artigo 3º […]” acrescentando-se que, “[…] perante a alegação de qualquer facto-índice, o devedor pode opor-se à declaração de insolvência, não apenas com base na inexistência do facto-índice, mas também com base na inexistência da própria situação de insolvência (artigo 30º, nº 3). A lei refere que cabe ao devedor a prova da sua solvência (no artigo 30º, nº 4), mas do que se trata é de elidir a presunção de insolvência”[18]. Aliás, e esta constitui outra incidência particularmente relevante dos factos-índice subjacentes ao mencionado artigo 20º, nº 1, através da alegação destes opera-se a legitimação, fora do caso da apresentação pelo próprio devedor, para requerer a insolvência[19]. Acresce que, desta feita indirectamente, por conjugação com o artigo 30º do CIRE, procede-se desta forma à distribuição, tanto numa perspectiva subjectiva como objectiva, do ónus da prova no processo de insolvência, na fase inicial deste, respeitante à declaração do devedor na situação de insolvência[20].

2.2.1.1. (a) Ora, tendo isto presente, verifica-se ter o Requerente alegado (e documentado) a situação descrita na alínea e) do nº 1 do artigo 20º do CIRE, que esta se estabilizou como facto assente no processo, nos termos acima caracterizados, e que, enfim, face à prova desse facto, o Devedor não alegou ou contrapôs factos concretos que permitissem uma ulterior exploração probatória da sua solvência em sede de audiência de julgamento. Aliás, a realidade da sua situação de insolvência – a efectiva impossibilidade de cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas –, que resultou em si mesma da globalidade dos factos provados (por não impugnação factual definida e por não impugnação de documentos juntos pelo Requerente), acabou por ser profusamente confirmada no ulterior desenvolvimento do processo concursal, como se constata amplamente pelo teor da certidão que instruiu esta apelação.

Vale tudo isto pela constatação da correcção da declaração de insolvência do Apelante, nos termos constantes da Sentença apelada.

2.2.2. (a) Fazendo incidir, agora, a nossa análise sobre os pretensos argumentos de inconstitucionalidade – todos eles referidos à própria Sentença apelada e não a qualquer questão de inconstitucionalidade normativa –, sublinharemos a notória conformidade constitucional das normas adjectivas (tanto do CPC como do CIRE) aplicadas pela decisão recorrida.

Não obstante a veemência dos protestos de inconstitucionalidade do Apelante, desacompanhados da explicitação de fundamentos jurídicos perceptíveis ou consistentes, dificultarem a discussão (jurídica) do assunto, tenha-se presente – e isto vale, por exemplo, para o ónus da tomada de posição definida, nos termos aqui feitos actuar, e para a incidência da técnica dos factos-índice no CIRE – que toda “[a] tramitação do processo civil está naturalmente dependente, em larga medida, de uma muito ampla discricionariedade legislativa, que permite ao legislador infra-constitucional, segundo critérios de conveniência, oportunidade e celeridade, definir quais os requisitos de forma dos actos das partes, estabelecer quais os ónus que sobre estas incidem e prever quais as cominações ou preclusões que resultam de as partes, na sua actuação processual, se não conformarem inteiramente com as regras formais ou de tramitação que regem o curso do processo”[21].

E o mesmo poderemos afirmar – repete-se: a inteira conformidade constitucional – relativamente à consideração da situação de insolvência como elemento desencadeador de um procedimento de execução universal, visando a liquidação do património de um devedor insolvente, com repartição do produto obtido pelos credores (artigo 1º do CIRE). Lembra-se aqui a referenciação constitucional do princípio da responsabilidade patrimonial, respeitante à garantia dos direitos de crédito, enquanto dimensão na estruturação do direito de propriedade privada previsto no artigo 62º, nº 1 da Constituição[22].

É este o sentido da adjectivação concursal, sendo que a forma pela qual esta actuou neste caso, através da declaração do Apelante na situação de insolvência, se mostra absolutamente conforme com um processo inteiramente justo e aberto a uma efectiva intervenção actuante do visado. Como, aliás, exuberantemente tem sucedido.

Nada se nos oferece dizer, pois, em termos desvaliosos, sobre a dimensão constitucional do desenvolvimento deste processo, para além da constatação de que tudo ocorreu aqui em conformidade com a lei, designadamente com a lei constitucional expressa na garantia de um processo justo e equitativo (artigo 20º, nº 4 da Constituição).

2.3. (b) E resta-nos, enfim, por referência ao segundo fundamento do recurso indicado no item 2., supra, observar ser notória a competência territorial dos Juízos Cíveis da Comarca de Coimbra para o presente processo, nos termos do artigo 7º, nº 1 do CIRE (“[é] competente para o processo de insolvência o tribunal da sede do domicílio  do devedor […]”), tendo em conta os dados relevantes decorrentes do requerimento inicial de insolvência, sendo em Coimbra a morada do Devedor indicada no documento de confissão de dívida de fls. 14, com base no qual o Requerente desencadeou a insolvência. Era esse (ao tempo da interposição da acção) o único elemento que permitia determinar qual o Tribunal competente, sendo não consistente a afirmação de ter ocorrido uma “violação grosseira” (é neste tom que se expressa o Apelante) do referido artigo 7º[23].

Improcede, pois, este fundamento do recurso.

2.4. Aqui chegados, esgotada que está a apreciação das questões suscitadas no recurso, resta-nos confirmar a Sentença apelada, sumariando antes, como resulta do disposto no nº 7 do artigo 713º do CPC, os aspectos fundamentais do percurso expositivo deste Acórdão:


I – Face a um pedido de declaração de insolvência instruído com a documentação de um crédito sobre o devedor, em cuja execução, comprovadamente, não foi possível encontrar bens disponíveis (passíveis de penhora) para satisfação desse crédito, por sobreposição de diversas outras execuções anteriormente instauradas e que, igualmente, não conduziram à satisfação dos respectivos créditos, face a este requerimento de insolvência, uma oposição do devedor por simples negação geral – do tipo, “não devo nada a ninguém!” –, não vale como preenchimento do ónus de tomada de posição definida, previsto no nº 1 do artigo 490º do CPC, aplicável à insolvência ex vi do disposto no artigo 17º do CIRE;
II – Esta negação genérica não evita, pois, que sejam considerados admitidos, por falta de uma impugnação relevante, os factos indicados no requerimento de insolvência;
III – A impossibilidade de alcançar, num processo executivo instaurado contra o devedor, bens aptos a satisfazer o crédito aí executado, integra a situação prevista na alínea e) do nº 1 do artigo 20º do CIRE, enquanto facto-índice da situação de insolvência do devedor;
IV – A presença de qualquer dos factos-índice elencados no nº 1 do artigo 20º do CIRE conduz à presunção de que o devedor em causa se encontra em situação de insolvência, nos termos do nº 1 do artigo 3º do CIRE, competindo-lhe alegar e provar a inexistência da situação de insolvência (cfr. artigo 30º, nºs 3 e 4 do CIRE).       


III – Decisão

            3. Face ao exposto, acordamos julgar improcedente a apelação, confirmando a Sentença recorrida.

            Custas pela massa insolvente (artigo 304º do CIRE).

 J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Tratando-se de processo iniciado posteriormente à entrada em vigor (01/01/2008) do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aplica-se o regime dos recursos introduzido por este último Diploma (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida, cujo texto tenha sido alterado pelo indicado DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.
[2] A admissão do recurso resultou do deferimento da reclamação consubstanciada no apenso K (v. despacho constante de fls. 85/87 deste).
[3] Baseada essa execução no documento de confissão de dívida certificado a fls. 14 deste apenso, aí apresentado como título executivo.
[4] Diz o Requerente a tal respeito:
“[…]

9.º

O requerente intentou contra o requerido acção executiva, que corre termos no 5º juízo cível de Coimbra, sob o nº 1992/10.7TJCBR, e,

10.º

Constatou então que o requerido não tem quaisquer bens, livres de ónus e encargos que possam responder pelo pagamento da dívida do requerente,
[…]”
      [transcrição de fls. 6].
[5] Diz o Requerente a tal respeito:
“[…]

11.º

No âmbito do processo referido em 9º deste requerimento, a solicitadora de execução nomeada, informou um colega agente de execução, que o executado ora requerido, tinha a correr contra ele diversos outros processos judiciais, sem cobrabilidade, conforme se pode ver do documento que se junta e se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos (doc. 2).

12.º

Do exposto decorre que o requerido se encontra em situação de insolvência, e isto porque,

13.º

Cessou pagamentos aos seus credores, em que se incluem não só o ora requerente, mas também,

- M…, exequente no processo 325-A/2002, pendente na 1ª secção da Vara Mista de Coimbra, cujo pedido é de €39.783,88;

- T…, Ldª, exequente no processo nº 2137/03.5TJCBR-B, pendente no 2º Juízo Cível de Coimbra, cujo pedido é de €6.476,13;

- B…, SA, exequente no processo nº 1729/2002, pendente no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Oeiras, cujo pedido é de €34.175,02.

- J…, Ldª, exequente no processo 643/03.0TBCBR, pendente na 2ª Secção da Vara Mista de Coimbra, cujo pedido é de €15.413,38;

- Á…, SA, exequente no processo nº 90-A/2002, pendente na 1ª Secção da Vara Mista de Coimbra, cujo pedido é de €38.099,41;

Os processos executivos vindos de enumerar, e a data de instauração dos mesmos, evidenciam a total impossibilidade por parte do requerido de cumprir com as suas obrigações, já há muito vencidas, sendo pois,

15.º

Manifesto que o requerido se encontra em situação de insolvência – cfr artigo 3º do CIRE.

16.º

O requerente tem legitimidade para a presente acção, nos termos do disposto no artigo 20º, nº 1 do CIRE.
[…]”
      [transcrição de fls. 6/7].
[6] O Tribunal ao proceder desta forma – e estamos a sublinhar um aspecto relevante na economia decisória deste recurso –, sendo que ela não é inteiramente coincidente com a letra do nº 2 do artigo 30º do CIRE (“[…] o devedor junta com a oposição, sob pena de não recebimento, lista dos seus cinco maiores credores […]”), ao proceder desta forma, dizíamos, interpretou o Tribunal a referida norma em conformidade com a jurisprudência do Tribunal Constitucional expressa no Acórdão nº 556/2008 (Cura Mariano), disponível na base do Tribunal Constitucional em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080556.html:
“[…]

Nestes termos decide-se:

a) Julgar inconstitucional, por violação do direito a um processo equita­tivo, consagrado no n.º 4, do artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 30.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na interpretação segundo a qual deve ser desentranhada a oposição que não se mostra acompanhada de informação sobre a identidade dos cinco maiores credores do requerido, sem que a este seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência.
[…]”.
[7] Remetemos para a decisão do ora relator a fls. 85/87 do apenso K, na qual se observou, quanto à admissibilidade/tempestividade do recurso, o seguinte:
“[…]

1. A Sentença que declarou o ora Reclamante, C…, na situação de insolvente (está essa decisão certificada a fls. 59/67) foi proferida no dia 20/12/2010, sendo notificada ao destinatário no subsequente dia 21/12/2010.
Dessa Sentença, 13 dias contínuos após a respectiva notificação, interpôs o Reclamante um recurso de inconstitucionalidade dirigido ao Tribunal Constitucional, em 03/01/2011 (fls. 23 e 24 e 72/74), sendo que esta incidência produziu a interrupção do prazo de interposição de outros recursos ordinários que, como sucede com a apelação aqui em causa, coubessem da mesma Sentença. É o que resulta do trecho final do nº 1 do artigo 75º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), sendo que isso significa que ‘[…] tais recursos ordinários só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção – ou seja, por força do preceituado no nº 4 do artigo 80º [da LTC], quando transitar em julgado a decisão que não admitiu o recurso de fiscalização concreta ou lhe negou provimento, momento em que começam a correr os prazos (interrompidos) para utilização dos normais meios impugnatórios’.

Note-se que esse recurso de inconstitucionalidade não foi admitido no Tribunal recorrido (pelo despacho de fls. 77/78 de 04/01/2011), não admissão esta que se veio a consolidar, sucessivamente, através dos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 153/2011 de 23/03/2011 e 241/2011 de 10/05/2011. Basta ponderar esta data, tendo presente a interrupção legal acima indicada, para compreender que a interposição da apelação em 05/04/2011 (fls. 39 da reclamação e 450 do processo principal), anterior à própria cessação da interrupção, induziu atempadamente o recurso de apelação reportado à Sentença que decretou a insolvência.

Valem estas considerações pelo afastamento dos fundamentos de não admissão do recurso indicados no despacho certificado a fls. 68 aqui reclamado (respectivo trecho inicial).

2. Assim, nos termos do nº 5 do artigo 688º do CPC, admite-se o presente recurso de apelação (vale quanto a ele o requerimento aqui certificado a fls. 39 com a motivação de fls. 40/57), com o regime de subida e efeito decorrente dos nºs 5 e 6 do CIRE: subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.

[…]”

                [transcrição de fls. 85/86 do apenso K, notas de rodapé no original aqui omitidas].
[8] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[9] Seguindo a jurisprudência constitucional expressa no já indicado Acórdão nº 556/2008, até poderia o Tribunal, em aplicação do nº 2 do artigo 30º do CIRE, depois de facultar, como efectivamente facultou ao devedor, oportunidade de suprir essa deficiência, determinar o não recebimento da oposição e, consequentemente, o respectivo desentranhamento, com as consequências processuais daí decorrentes.
[10] Relativamente ao qual juntou documento de confissão ou reconhecimento de dívida, ritualmente correcto (v. artigo 458º do Código Civil), com notória aptidão executiva (artigo 46º, nº 1, alínea c) do CPC, cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol I, 4ª ed., Coimbra, 2005, p. 263).
[11] Note-se que a existência de todas elas – e de outras mais – veio a ser positivamente determinada no ulterior desenvolvimento do processo concursal; e o Requerente juntou prova, logo com o seu requerimento inicial, relativamente à sua própria execução, sendo que o Devedor também não impugnou a existência desta execução e as incidências da mesma referidas pelo Requerente.
[12] “Um ponto particularmente sensível nesta matéria é o que se relaciona com o quantum da impugnação, ou seja, com a suficiência da impugnação. Esse quantum exige a exposição pelo réu dos motivos da sua oposição ao autor e das razões da controvérsia entre as partes […]” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, p. 290).
“Preceitua o artigo 490º/1 do CPC que o réu deve tomar posição definida perante os factos articulados na petição; deve ele pronunciar-se sobre os factos articulados pelo autor.
Para tal, não nos parece suficiente que ele possa negá-los, pura e simplesmente, não fundamentando minimamente essa negação. Apesar da alteração do disposto no artigo 490º do CPC por ocasião da reforma processual de 1995/1996, não cremos que seja admitida a defesa por negação genérica. Mas também não vigora o sistema, de harmonia com o qual a impugnação tem que ser feita facto por facto, individualizante.
O tomar posição definida sobre os factos alegados na petição significa, na verdade, que é preciso que o réu torne explícita a controvérsia […].
O réu deve tomar uma posição clara, frontal e concludente (não ambígua, vaga, inconcludente, prolixa) sobre os factos alegados pelo autor.” (J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª ed., Coimbra, 2011, p. 498/499).
[13] Através do que poderíamos definir como afirmações propositadamente “ao lado”: por exemplo, não se diz que a execução, que está documentada, não existe, diz-se que não se foi notificado para ela, como se isso afastasse a realidade da dívida exequenda e a circunstância de não ser possível penhorar bens nessa execução e esquecendo até – e repetimos que se trata o Devedor de um Advogado – que a citação do Executado ocorreria posteriormente à efectivação da penhora (v. artigo 812º-F, nº 1, ex vi do artigo 812º-C do CPC).
[14] Dizer que não o interpelaram para a pagar é uma forma de fugir à questão e de não tomar uma posição definida, como bem sabe, como Advogado que é, o Apelante.
[15] Dizer que não chega o solicitador da execução dizê-lo, traduz uma mera opinião e, o que seria relevante é que a essa afirmação do solicitador (que até chega e foi documentada) não contrapôs o Devedor a negação da realidade subjacente à própria afirmação.
[16] Proferido pelo ora relator no processo nº 1124/07.9TJCBR-B.C1, disponível no sítio do ITIJ em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/463569572d1e35cf8025739f00432b9a, de cujo sumário consta:
“[…]

I – É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas – artigo 3º, nº 1 do CIRE.

II – As oito situações elencadas nas alíneas do nº 1 do artigo 20º do CIRE constituem os chamados ‘factos-índice’ ou ‘exemplos padrão’ de uma situação de insolvência, isto é, trata-se de ocorrências prototípicas de uma situação de insolvência, ou seja, de situações através das quais, normalmente, se manifesta essa situação.

III – A sua relevância, porém, depende da circunstância deles corresponderem, em concreto, ao ‘conceito-base’ de insolvência constante do artigo 3º, nº 1, do CIRE: impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas.

IV – Esta impossibilidade, enquanto pressuposto da situação de insolvência, não tem de se referir a todas as obrigações vencidas, bastando que se refira à generalidade das obrigações vencidas.

V – A existência de um activo contabilisticamente superior ao passivo, enquanto elemento de exclusão da situação de insolvência, só releva se ilustrar uma situação de viabilidade económica, passando esta pela capacidade de gerar excedentes aptos a assegurar o cumprimento da generalidade das obrigações no momento do seu vencimento.

VI – Perante a alegação de qualquer facto-índice, o devedor pode opor-se à declaração de insolvência, não apenas com base na inexistência do facto-índice, mas também com base na inexistência da própria situação de insolvência (artigo 30º, nºs 3 e 4).

VII – O novo paradigma da insolvência, assentando na primazia do interesse dos credores, e assumindo constituir ‘custo’ destes a recuperação da insolvente, coloca nas mãos dos devedores a opção entre a recuperação e a liquidação.
[…]”.
[17] Na nossa ordem jurídica constitui paradigma desta técnica – e indicamos aqui este elemento a título de ilustração da afirmação aqui feita –, constitui paradigma desta técnica, dizíamos, o artigo 132º do Código Penal respeitante ao homicídio qualificado: as diversas situações indicadas nas alíneas do nº 2 do referido artigo 132º, constituem protótipos de homicídios cujas circunstâncias revelam, em princípio, especial censurabilidade ou perversidade (mesmo artigo 132º, nº 1), sendo que tanto pode ocorrer que na apreciação concreta se conclua que a presença de elementos contidos no exemplo não signifique esse preenchimento, por não revelar uma “especial censurabilidade ou perversidade”, tal como, simetricamente, podem existir situações, totalmente exteriores aos exemplos, que revelem, não obstante, essa mesma “especial censurabilidade ou perversidade” e que, por isso, integrem o tipo do homicídio qualificado.
Esta constitui a interpretação corrente do artigo 132º do Código Penal: “[o] legislador português de 1982 seguiu, em matéria de qualificação do homicídio, um método muito particular […]: a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão […]. Por outras palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente referida no nº 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos […] exemplarmente elencados no nº 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos […] aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador” [Jorge de Figueiredo Dias, anotação ao artigo 132º do Código Penal, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial (Dir. Jorge de Figueiredo Dias), Tomo I, Coimbra, 1999, pp. 25/26].
[18] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª ed., Coimbra, 2006, pp. 61/62.
Caracterizando a mesma realidade refere Pedro de Albuquerque: “[o]s factos enunciados no artigo 20º/1 do CIRE […] são meros indícios ou presunções de insolvência, podendo demonstrar-se que não obstante a respectiva verificação se não está perante uma hipótese de insolvência (artigo 3º/3 do CIRE)” (“Declaração da situação de insolvência”, in O Direito, 2005/III, p. 514).
No mesmo sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, anotando o artigo 20º do CIRE, indicam estarem em causa o “[…] que, correntemente, se designa por factos-índice ou presuntivos da insolvência, tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, reimpressão, Lisboa, 2006, p. 131).
[19] É com este sentido que Isabel Alexandre indica que a causa de pedir do processo de insolvência, “[…] que […] consiste no facto do qual decorre a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas […], só poderá ser indiciada por certos factos”, sendo eles, obviamente, os elencados no nº 1 do artigo 20º (“O processo de insolvência: pressupostos processuais, tramitação, medidas cautelares e impugnação da sentença”, in Revista do Ministério Público, Julho-Setembro/2005, Nº 103, p. 128). Note-se que esta asserção se refere à insolvência desencadeada por interessado diverso do próprio insolvente, como resulta da leitura conjugada dos artigos 18º e 20º do CIRE.
[20] Pressupomos aqui a dicotomia ónus objectivo – ónus subjectivo da prova, nos termos em que esta dicotomia é enunciada, no quadro da chamada “teoria das normas”, por Pedro Ferreira Múrias: “[…] o ónus da prova objectivo é o instituto que determina segundo qual das versões disputadas deve decidir-se quando é incerta a verificação de algum facto pertinente. O instituto do ónus subjectivo ou ónus da produção de prova prescreve a qual das partes processuais incumbe alguma actividade probatória, sob pena de ver a sua pretensão desatendida” (Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 20/21). Daí que – e continuamos a citar Pedro Ferreira Múrias: “[…]as normas do ónus da prova, em cuja facti species se encontra a incerteza processual sobre um elemento que preenchesse a previsão da norma material […,] [sejam] normas de decisão […], são «quanto à questão da [sua] eficácia», apenas um meio auxiliar da decisão de mérito que autoriza o juiz a decidir como se tivesse obtido um resultado positivo ou negativo quanto à verificação de certo facto, i.e., através da ficção […]” (ob. cit., pp. 62/63).


[21] Carlos Lopes do Rego, “Os Princípios Constitucionais da Proibição da Indefesa, da Proporcionalidade dos Ónus e Cominações e o Regime da Citação em Processo Civil”, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, p. 839.
[22] Tenha-se presente, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, anotando o artigo 62º da Constituição, que “[o] objecto do direito de propriedade não se limita ao universo das coisas. Parece seguro que ele não coincide com o conceito civilístico tradicional, abrangendo, não apenas a propriedade de coisas (mobiliárias e imobiliárias), mas também […] outros direitos de valor patrimonial (direitos de autor, direitos de crédito, partes sociais), etc. O alargamento do conceito de propriedade a outros bens, para além da proprietas rerum, representa uma extensão da garantia constitucional e traduz, por um lado, uma diversificação do objecto do direito de propriedade para fora do seu paradigma oitocentista e, por outro lado, a descaracterização do seu figurino originário de garantia absoluta de livre utilização e disposição exclusiva de um determinado bem” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2007, p. 800).
[23] De que dados dispunha o Tribunal (e o Requerente) para determinar qual o centro da vida pessoal do Devedor, quanto este nos documentos que assina se dá como residente em Coimbra?