Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
86/11.2TBVZL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
RECONVENÇÃO
COMPENSAÇÃO DE DÍVIDA
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 03/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1052º, Nº 1 E 1053º DO CPC.
Sumário: I – A acção de divisão de coisa comum, conforme decorre do n.º 1 do art.º 1052º do C. P. Civil, tem como objectivo pôr termo à contitularidade de direitos reais, sendo o meio processual que dá expressão ao direito consagrado nos art.º 1412º, n.º 1, e 1413º, n.º 1, ambos do C. Civil, segundo o qual nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão.

II – Processualmente, a tramitação desta acção encontra-se regulada nos artºs 1053º e segs. do C. P. Civil.

III - A fase declarativa do processo de divisão, havendo contestação ou a revelia não for operante, processa-se, em regra, segundo as regras aplicáveis aos incidentes da instância. Apenas nas situações em que, atenta a complexidade das questões colocadas, o juiz entenda que as mesmas não podem ser sumariamente decididas, segundo o modelo incidental, deve ter lugar os termos do processo comum adequados ao valor da causa.

IV - Pretendendo os Autores tão só pôr termo à indivisão do prédio de que são co-proprietários com a Ré, situação que não tem fundamento na existência de qualquer direito de crédito, não é admissível a dedução de pedido reconvencional baseado na compensação.

V - A reconvenção só é admissível nos casos expressamente menciona­dos no art.º 274º, n.º 2 do C. P. Civil.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Os Autores intentaram acção especial de divisão de coisa comum, pedindo a divisão de um prédio rústico que identificam, alegando:
 - Por escritura pública de compra e venda datada 27 de Dezembro de 2001 Autores e Ré compraram, pelo preço de 1.500.000$00, o prédio rústico denominado Vinhas, terreno culto, destinado à construção urbano, no limite do lugar da ...
- O preço foi pago de comum acordo e em partes iguais, conforme consta da respectiva escritura pública.
- Os Autores pretendem pôr termo à indivisão.
- O bem não é divisível em substância, devendo ser adjudicado a um dos co-proprietários ou vendido a terceiros.

A Ré contestou, não impugnando a indivisibilidade do bem mas alegando, em síntese:
- Na altura da arrematação o quinhão a adjudicar à Ré deve ser definido com o montante do crédito de que dispõe sobre os Autores, correspondente a uma dívida para consigo contraída pelo Autor em proveito comum do casal.
Assim,
- Paralelamente à escritura de compra do prédio cuja divisão agora os Autores pretendem, a Ré adquiriu com recurso a crédito bancário a vivenda onde reside, e também obteve financiamento bancário para na mesma levar a efeito obras de beneficiação, tendo para este efeito o seu pai contratado o Autor.
 - Na execução do acordado o Autor foi depositando à porta da vivenda materiais, sendo que cada vez que o fazia a Ré lhe entregava dinheiro para o fim acordado, atingindo um total de € 14.305,22.
- O Autor nunca realizou na vivenda qualquer trabalho, detendo a Ré sobre o casal um crédito igual ao montante entregou.
- Os Autores por documento de 31.7.2012 reconheceram o crédito da Autora.
Concluiu, pedindo que a acção siga a sua normal tramitação e que no final seja levado em conta esse seu crédito sobre os Autores, acrescido de juros desde 31.7.2012 até integral reembolso.
Em 14.7.2011 foi proferido despacho com o seguinte conteúdo:
Com vista à produção de prova pericial para apurar da divisibilidade do prédio objecto dos autos, notifique as partes para, querendo, e em 10 dias, indicarem os respectivos peritos.
Em 22.9.2011 foi proferido o seguinte despacho:
Uma vez que a requerida não indicou qualquer perito e os requerentes indicaram perito, sem prejuízo do que vier a ser indicado pelo Tribunal, a perícia realizar-se-á por um único perito, indicado pelo Tribunal, nos termos do disposto no art. 1054.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Civil.
Assim, para realização de perícia destinada à formação dos quinhões, nomeia-se como perito:
- Eng. …, indicado pelo Tribunal.
*
Notifique, sendo o Sr. perito agora nomeado para proceder à realização da perícia no prazo de trinta dias, advertindo-o de que o compromisso de cumpri­mento consciencioso do desempenho das suas funções deverá ser prestado por escrito, juntamente com a apresentação do relatório pericial.
  Apresentado o relatório pericial foram as partes dele notificadas em 31.10.2011.
Com data de 23.11.2011 foi proferido o seguinte despacho:
Analisado o relatório pericial apresentado, verifica-se que o Sr. perito não se pronuncia quanto à divisibilidade ou indivisibilidade do prédio em causa.
Assim, pese embora não ter sido suscitada pela requerida a questão da divisibilidade do prédio, o certo é que tal questão será relevante, para além do mais, para afastar quaisquer dúvidas que possam subsistir sobre esta matéria, bem como contribuir para que as partes estejam melhor esclarecidas em sede de conferência de interessados.
Deste modo, notifique o Sr. perito para complementar o seu relatório, pronunciando-se sobre a questão da divisibilidade do prédio.
Apresentado o esclarecimento solicitado, foi por despacho de 6.2.2012 ordenada a notificação dos Autores para se pronunciarem quanto à alegada compen­sação que a requerida pretende fazer operar nestes autos.
Os Autores pronunciam-se alegando que o acordo invocado pela Ré ape­nas se encontra assinado pelo Autor e que esta acção não permite a invocação da excepção peremptória da compensação, não devendo a mesma ser, neste momento apreciada.
A Ré, invocando razões de economia processual, conclui como na contes­tação.
Veio a ser proferido em 9.3.2012 o seguinte despacho:
No âmbito dos presentes autos de divisão de coisa comum veio a reque­rida A… deduzir contestação alegando sinteticamente não ter nada a opor à divisão da coisa, mas invocando a existência de um crédito detido sobre os autores que deverá ser reconhecido e considerado na composição do quinhão a que vier a ter direito.
Notificados os autores vieram os mesmos alegar, para alem do mais, não poder ser considerado o requerido pela R. atendendo à natureza da acção interposta.
Não obstante tenha já sido decidida a realização de perícia, assim resul­tando a consideração de que a revelia da R. operou, o certo é que se impõe seja proferida decisão que concretamente conheça da matéria invocada na contestação por forma a saber se os factos alegados na contestação podem ser sumariamente decididos ou se, pelo contrário, deverão os autos seguir a forma de processo comum. O que não se pode, tendo sido deduzida contestação, é fazer prosseguir os autos sem previamente se conhecer da mesma.
E aqui, temos de concluir que a questão pode ser sumariamente decidida e sem a necessidade de produção de prova.
Com efeito, a própria ré, na contestação apresentada refere nada ter a opor à divisão da coisa requerida pelos autores e nada ter a opor à indivisibilidade da mesma.
Com efeito, pretende sim a ré que se reconheça a existência de um direito de credito sobre os autores, resultante, segundo alega, de obras que o autor se comprometeu a fazer na residência da R. que foram pagas por esta e não realizadas por aquele, por forma a poder vir a considerar-se o mesmo no momento da fixação dos quinhões.
A este propósito entende-se que não pode ser admitida a invocação da compensação, porquanto nenhum fundamento foi invocado para contestar a divisão da coisa. Na verdade, não sendo contestada a própria acção de divisão, o processo passa a seguir uma tramitação incompatível com o conhecimento da questão invocada. Ou seja, a mesma apenas poderia ser conhecida caso a acção houvesse que prosseguir sob a forma de processo comum nos termos do artigo 1053º, nº3 do CPC. Não sendo esse o caso nunca poderia ser esta questão acessória e estranha à coisa que se pretende dividir a determinar que a acção passe a seguir a forma de processo comum.
Assim sendo, julga-se improcedente a contestação deduzida, devendo os autos prosseguir 1055º do CPC.
Notifique.
Após trânsito conclua a fim de ser designada data para a realização de conferência de interessados a que se refere o artigo 1056º, nº2 do CPC.
Inconformada com este despacho a Ré interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
...
Os Autores defendem a confirmação da decisão.
O recurso foi admitido com subida imediata e em separado dos autos prin­cipais, tendo sido após despacho da relatora corrigido para subida imediata nos autos principais, tendo sido o processo requisitado à 1ª instância.
1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações da Recorrente cumpre apreciar a seguintes questão:
Deve ser ordenado o prosseguimento da acção para apuramento da exis­tência de um crédito da Ré sobre os Autores?
2. Os factos
Com interesse para a decisão da causa são de considerar todos os factos acima enumerados.
3. O direito aplicável
Os Autores, com a presente acção especial de divisão de coisa comum, pretendem pôr termo à situação de compropriedade sobre um prédio, invocando a indivisibilidade do mesmo.
A Ré na sua contestação, sem colocar em crise a pretensão dos Autores nem a indivisibilidade do bem, veio alegar a existência de um crédito no valor de €14.305,22 sobre os Autores e requerer que o mesmo seja considerado na determina­ção do seu quinhão sobre o bem objecto da divisão.
Os Autores opuseram-se a tal pretensão com o fundamento em que a acção em causa, sendo uma acção especial, não comporta a dedução da compensação como excepção peremptória.
Por sua vez, a decisão recorrida considerou que, não tendo sido contestada a indivisibilidade do prédio, não pode ser admitida a compensação requerida pela Ré, uma vez que a acção tem uma tramitação incompatível com o conhecimento desta pretensão.
Neste recurso a Ré, invocando o princípio da adequação processual, defende, com vista à revogação daquela decisão, que deve ser ordenado o prossegui­mento da acção sob a forma comum, a fim de se apurar a existência do crédito e o mesmo “ser levado em linha de conta na conferência final de interessados na divisão de coisa comum”.
A acção de divisão de coisa comum, conforme decorre do n.º 1 do art.º 1052º do C. P. Civil, tem como objectivo pôr termo à contitularidade de direitos reais, sendo o meio processual que dá expressão ao direito consagrado nos art.º 1412º, n.º 1, e 1413º, n.º 1, ambos do C. Civil, segundo o qual nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão.
Processualmente a tramitação desta acção encontra-se regulada nos artºs 1053º, nºs 2 e 3, e segs. do C. P. Civil, onde se dispõe:
2 – Se houver contestação ou a revelia não for operante, o juiz, produzi­das as provas necessárias, profere logo decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão, aplicando-se o disposto no art.º 304º; da decisão proferida cabe apelação, que subirá imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
3 – Se, porém, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, conforme o preceituado no número anterior, mandará seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum, adequados ao valor da causa.
Assim, a fase declarativa do processo de divisão, havendo contestação ou a revelia não for operante, processa-se, em regra, segundo as regras aplicáveis aos incidentes da instância. Apenas nas situações em que, atenta a complexidade das questões colocadas, o juiz entenda que as mesmas não podem ser sumariamente decididas, segundo o modelo incidental, deve ter lugar os termos do processo comum adequados ao valor da causa.
No caso que nos ocupa, a Ré deduziu contestação ao pedido dos Autores, não o impugnando, mas reclamando a titularidade de um direito de crédito sobre estes, o qual, sendo considerado, influenciará a composição do seu quinhão, devendo integrá-lo.
A pretensão da Ré do reconhecimento do seu crédito sobre os Autores configura a dedução de um pedido e não a dedução de uma defesa, visando com o mesmo obter o pagamento de um crédito sobre os Autores, aproveitando o desfecho da acção de divisão de coisa comum para proceder a um eventual “encontro de contas”.
A formulação de pedido reconvencional está sujeita às formalidades exigi­das para a p. inicial, exigências essas constantes do art.º 467º do C. P. Civil, nomea­damente no que respeita à formulação do pedido, indicação do valor e junção de documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça, requisitos estes que a Ré não cumpriu no seu articulado.
Contudo, e independentemente da inobservância destas exigências formais no caso concreto, a reconvenção só é admissível nos casos expressamente menciona­dos no art.º 274º, n.º 2, do C. P. Civil, ou seja:
a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de funda­mento à acção ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe obter a compensação ou tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
Analisando a pretensão da Ré é evidente a conclusão que a mesma não se enquadra nas situações previstas nas alíneas a) e c) e parte final da b), deste artigo, restando-nos apreciar se caberá na alínea b), na parte referente à compensação.
A compensação traduz-se fundamentalmente na extinção de duas obriga­ções, sendo o credor de uma delas devedor na outra, e o credor desta última devedor na primeira. Representa um encontro de contas, que se justifica pela conveniência de evitar pagamentos recíprocos.[1]
 Como forma de extinção das obrigações exige-se, deste modo, para poder operar a compensação, a qualidade recíproca de credor e devedor, que o crédito seja exigível e que as obrigações tenham por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade – art.º 847º do C. Civil.
Pretendendo os Autores tão só pôr termo à indivisão do prédio de que são co-proprietários com a Ré, situação que não tem fundamento na existência de qualquer direito de crédito, não é admissível a dedução de pedido reconvencional baseado na compensação.
É certo que das operações de divisão da coisa comum poderá, eventual­mente, vir a resultar um crédito dos Autores sobre a Ré, para preenchimento da sua quota, em resultado de adjudicação do bem a esta última. Mas esta hipótese é apenas isso mesmo, uma mera hipótese, pelo que não sendo reclamada nesta acção a satisfa­ção de um direito de crédito sobre a Ré, a pretensão desta ver reconhecido um direito de crédito sobre os Autores não é abrangida pela previsão da 1.ª parte da alínea b) do art.º 274º do C. P. Civil.
Além disso, correspondendo ao pedido formulado pela Ré uma forma processual diversa (processo comum) da do pedido formulado pela Autora (acção especial de divisão de coisa comum), o juiz só poderia admitir o pedido reconvencional quando a tramitação das duas formas não fosse absolutamente incompatível e a apreciação conjunta daquelas pretensões se revelasse indispensável para a justa composição do litígio ou a ela presidisse um interesse relevante (art.º 274º, n.º 3, e 31º, n.º 2, do C. P. Civil).
A dedução de pedido reconvencional em acções de divisão de coisa comum tem vindo a ser admitida em moldes restritos. Tem-se entendido que, se para apreciar o pedido reconvencional for necessário a observância de um formalismo mais exigente do que aquele que se mostra necessário para apreciar as restantes questões colocadas na contestação, não deve o pedido ser admitido[2].
Acrescentamos nós que o pedido reconvencional deve também ser admi­tido quando a decisão do mesmo se mostre imprescindível à boa decisão do litígio.
Ora, neste caso, a única questão que a Ré colocou foi precisamente a pre­tensão de reconhecimento do seu direito de crédito, nada tendo oposto ao pedido de divisão formulado pelos Autores e à indivisibilidade do bem, pelo que a apreciação da sua pretensão sempre exigiria a observância de uma tramitação típica de uma acção comum declarativa que não era necessária para o conhecimento do pedido formulado pelos Autores, atento o disposto no art.º 1054º do C. P. Civil. Por outro lado, não se revela imprescindível para a justa composição do litígio o conhecimento conjunto das duas questões, pelo que a decisão recorrida sempre se revelaria justifi­cada.
Por estas razões deve o recurso ser julgado improcedente.
Decisão
Pelo exposto julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pela Recorrente.
                                                                         

***
Sílvia Pires (Relatora)
Henrique Antunes
José Avelino


[1] Almeida Costa, in Direito das Obrigações, pág. 1099, 12ª ed. revista e actualizada, Almedina.
[2] Luís Filipe Pires de Sousa, em Acções especiais de divisão de coisa comum e prestação de contas, pág. 98, ed. 2011, Coimbra Editora, Marco Aço Borges, em A demanda reconvencional, pág. 386-387, ed. 2008, Quid iuris, Manuel Tomé Soares Gomes, em Acção de divisão de coisa comum após a Revisão do CPC de 1995, pág. 7, ed. pol. do CEJ de 1997, e os seguintes acórdãos, acessíveis em www.dgsi.pt:
- do T. R. C., de 21.10.2003, relatado por Coelho de Matos;
- do T. R. L., de 4.3.2010, relatado por Fátima Galante.