Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
201/10.3TBTBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
CRITÉRIOS
DANO
MORTE
Data do Acordão: 03/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: PORTARIAS NºS 377/2008, DE 26/05, E 679/2009, DE 25/06.
Sumário: I – Os critérios regulativos do valor da indemnização dispostos nas Portarias nºs 377/2008, de 26 de Maio e 679/2009, de 25 de Junho – de harmonia com o princípio tempus regit factum, segundo o qual o facto lesivo passado e os seus efeitos são regulados pela lei vigente à data da sua ocorrência – não são aplicáveis aos acidentes ocorridos antes da data da sua entrada em vigor.

II - A aplicabilidade de tais critérios esgota-se na fase extrajudicial de contratualização do valor da indemnização.

III - O bem atingido pelo dano morte é a vida em si mesma – e não a esperança de vida.

IV - Os princípios da igualdade e da unidade do direito e o valor da previsibilidade da decisão judicial vinculam à padronização e à normalização do valor da indemnização.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

O Fundo de Garantia Automóvel impugna, por recurso ordinário de apelação, a sentença do Sr. Juiz de Círculo de Coimbra, que julgando parcialmente procedendo a acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário pelo valor, proposta por J… e M…, o condenou a pagar aos últimos a quantia de € 14.000,96, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal em vigor desde a citação até integral pagamento, bem como a quantia de € 85.000,00, a pagar conjuntamente aos autores e ainda a quantia de € 7.500,00, a ser paga a cada um dos autores, quantias estas acrescidas de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a presente data até integral pagamento.

O recorrente condensou a alegação nestas conclusões:

Na resposta, os apelados, depois de fazerem notar que por ser compatível com o critério de razoabilidade inscrito no Anexo II-A, Grupo II, devem fixar-se os danos não patrimoniais dos AA no valor de € 10.260,00 para cada um, constante dessa tabela, que se aceita, concluíram pela improcedência do recurso quanto às conclusões 1, 2 e 4 formuladas pelo recorrente, acolhendo-se a inscrita sob o nº 3.

2. Factos provados.

O Tribunal de que provém o recurso julgou provados os factos seguintes:

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

O âmbito objectivo do recurso é delimitado, desde logo, pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao recorrente (artº 684 nº 2, 2ª parte do CPC). A restrição objectiva do âmbito do recurso pode, no entanto, ainda ser feita pelo próprio recorrente, tanto no requerimento de interposição do recurso, como nas conclusões da alegação (artº 684 nº 2, 1ª parte, e 684 nº 3 do CPC).

A decisão impugnada é constituída pela sentença que, com fundamento numa responsabilidade delitual, vinculou o recorrente ao dever de indemnizar o dano patrimonial e não patrimonial suportado por A…, mãe dos autores, e o dano não patrimonial sofrido pelos últimos, eles mesmos, com a morte daquela.

A sentença impugnada achou para os diversos danos não patrimoniais os valores seguintes:

- Perda do direito à vida de A…: € 50.000,00;

- Dano sofrido pela vítima antes de morrer: € 10.000,00;

- Dano sofrido pelos autores com a morte da vítima: € 7.500,00, para cada um deles.

A discordância do recorrente relativamente à sentença impugnada limita-se, justamente, ao quantum da indemnização do dano morte, do dano não patrimonial suportado por A… antes da sua morte e do dano, da mesma espécie, sofrido pelos apelados com o facto da morte de A…: no ver do recorrente, a indemnização daqueles danos deve ser fixada em € 41.000,00, € 7.182,00 e, por último, em € 10.260,00, para cada um dos apelados, respectivamente.

Ainda segundo o apelante, ao fixar a indemnização daqueles danos, a sentença impugnada incorreu em violação de lei, por erro na previsão, na modalidade de erro na qualificação: o tribunal recorrido seleccionou mal a norma aplicável ao caso concreto, i.e., ao procurar a lei reguladora do caso, escolheu a norma errada.

Realmente, o decisor da 1ª instância elegeu, para resolver o espinhoso problema do quantum da indemnização dos apontados danos, as normas gerais relativas à obrigação de indemnização contidas no Código Civil. Na perspectiva do recorrente, as normas aplicáveis à delicada questão do cômputo da indemnização são as contidas na Portaria nº 377/2008, de 28/05, já revista pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho – embora logo reconheça que os valores fixados na Portaria nº 679/2009 são valores de referência, que não vinculam o Tribunal.

Todavia, a verdade é que as normas contidas nestas Portarias não são elegíveis para enquadrar juridicamente o caso do recurso.

Por duas razões, de resto.

Diz-se, correntemente, que nos acidentes de viação, a causa petendi é o próprio acidente, mais rigorosamente, o conjunto de factos exigidos pela lei para que o dever de indemnizar – e o correspondente direito à indemnização – se tenha por constituído[1].

Na espécie sujeita, o acidente ocorreu no já longínquo dia 24 de Outubro de 2003, embora parte dos danos compensáveis – maxime o dano morte – tenha ocorrido em momento muito posterior. O acidente deu-se, portanto, no domínio de vigência do regime jurídico do seguro automóvel de responsabilidade civil construído pelo Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, de resto, objecto, já naquela data, de sucessivas alterações através dos Decretos-Lei nºs 122-A/86, de 30 de Maio, 436/86, de 31 de Dezembro, 81/87, de 20 de Fevereiro, 394/87, de 31 de Dezembro, 415/89 de 30 de Novembro, 122/92, de 2 de Julho, 18/93, de 23 de Janeiro, 358/93, de 14 de Outubro, 130/94, de 19 de Maio, 3/96, de 25 de Janeiro, 68/97, de 3 de Abril, 368/97, de 23 de Dezembro, 301/201, de 23 de Novembro, e 72-A/2003, de 14 de Abril. O mesmo diploma foi posteriormente modificado pelos Decretos-Lei nºs 44/2005, de 23 de Fevereiro, 122/2005, de 29 de Julho e 83/2006, de 3 de Maio.

O Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro foi, entretanto, objecto de revogação expressa pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, que entrou em vigor 60 dias após a sua publicação (artºs 94 nº 1 a) e 95 deste último diploma legal).

O Decreto-Lei nº 83/2006, de 29 de Julho, introduziu, no regime jurídico do seguro de responsabilidade civil resultante da circulação automóvel, vinculações das empresas de seguros a deveres de diligência e prontidão na regularização de sinistros e organizou um procedimento obrigatório de proposta razoável para a regularização do dano material (artºs 20-F) e 20-G) do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro). O diploma que recodificou aquele regime jurídico do seguro de responsabilidade civil resultante da circulação automóvel manteve a vinculação das empresas de seguros àqueles deveres de diligência e prontidão na regularização de sinistros, ao mesmo tempo que alargou o procedimento obrigatório de proposta razoável aos sinistros que envolvam danos corporais (artºs 37 e 39 do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto).

O regime relativo aos prazos e regras da proposta razoável – cujo incumprimento dá lugar ao agravamento da indemnização moratória devida pelo retardamento da obrigação primária de indemnização – exigia, naturalmente, sob pena de ser meramente semântico, o estabelecimento dos respectivos critérios, particularmente no tocante à valorização do dano morte e dos danos não patrimoniais sofridos quer pela pessoa vitimizada pela morte como pelos seus herdeiros, o mesmo é dizer, relativamente ao quantum da indemnização devida para reparar os dano que revistam uma tal natureza (artºs 38 nºs 2 e 3 e 39 nº 5 do DL 291/2007, de 21 de Agosto).

É neste contexto e declaradamente com esse escopo que é publicada a Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio – logo alterada pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho - que iniciou a sua vigência no dia imediatamente seguinte ao da publicação. Este não é, naturalmente, local adequado para discutir a bondade de algumas das soluções encontradas pelo decisor político, justificadas ou centradas, segundo o próprio legislador, na defesa dos interesses das vítimas dos acidentes de viação. Mas não deixa de se notar que doutrina de indiscutível autoridade científica qualifica a Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho, como lamentável, e que a iniciativa da sua publicação – que visou respaldar as companhias de seguros - merece um juízo de censura absoluta[2].

Como quer que seja, para o universo das nossas preocupações, importa, apenas reter um ponto e clarificar um outro.

O ponto a reter é que a Portaria não tem por objectivo a fixação de valores indemnizatórios máximos definitivos do dano que tem por objecto e, portanto, não impede a fixação de valores superiores (artº 1 nº 2).

O ponto que logo deve ser convenientemente esclarecido é o da aplicação no tempo de qualquer daqueles actos normativos.

O princípio geral da lei civil em matéria de aplicação da lei no tempo é, sabidamente, o da aplicação prospectiva, que assume duas faces, distintas mas complementares (artº 12 nºs 1 e 2 do Código Civil)[3].

A primeira é que contempla os simples factos: quanto a estes, na falta de disposição em contrário, a lei só se aplica aos factos futuros, entendendo-se como tais os factos que se produzem após a entrada em vigor da norma (artº 12 nº 1 do Código Civil). Portanto, os factos e os seus efeitos são regulados pela lei revogada ou pela lei revogatória conforme os factos tenham ocorrido na vigência da primeira ou da segunda.

A segunda face do princípio é a que se refere às relações jurídicas que emergem desses factos. Neste domínio, o princípio da aplicação prospectiva da lei é já diferente: a lei nova aplica-se não só às relações jurídicas constituídas na sua vigência - mas também às relações que, constituídas antes, protelem a sua vida para além da entrada em vigor da norma nova (artº 12 nº 2 do Código Civil). Fala-se, neste caso, de retrospectividade ou de retroactividade imprópria ou inautêntica: uma norma retrospectiva não é uma norma retroactiva, mas antes uma norma que prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantém nessa data[4].

Da submissão às regras expostas exceptua-se, evidentemente, o caso de a lei nova ser acompanhada de normas de direito transitório ou de para ela valer uma norma transitória.

Assim, de harmonia com o princípio, já explanado, da aplicação prospectiva, a solução exacta do problema da aplicação da lei no tempo no tocante ao caso é esta: a lei aplicável aos factos dos quais os autores fazem derivar o direito de crédito de indemnização que pela acção se propõe fazer declarar e valer contra o réu, e à determinação da espécie e do valor dessa indemnização, é a vigente ao tempo da sua ocorrência.

Em absoluto remate: o facto lesivo passado, e os seus efeitos, são regulados pela lei vigente à data da sua ocorrência. Tempus regit factum.

Assim, os pressupostos da constituição do recorrente no dever de reparar o dano patrimonial e não patrimonial, suportado quer por A… quer pelos autores com o facto lesivo e os parâmetros de determinação da espécie e do valor da reparação e correspondentes, são regulados pela lei do tempo da sua verificação – o Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na versão anterior àquela que, por último, lhe imprimiu o Decreto-Lei nº 83/2006, de 3 Maio.

Na verdade, este último diploma iniciou a sua vigência no dia 3 de Setembro de 2006 e, de resto, de harmonia com a regra de direito transitório de que se fez acompanhar, só é aplicável aos acidentes ocorridos depois dessa data (artºs 5 e 7º). Ergo, aquele diploma tal como, aliás, aquele que recodificou o regime jurídico da responsabilidade resultante da circulação automóvel não é aplicável, no caso, ao facto constitutivo do dever de indemnizar nem à determinação da espécie e do conteúdo da obrigação correspondente.

A esta razão de direito intertemporal, acresce ainda uma outra razão material.

Os critérios para o procedimento obrigatório de proposta razoável têm nitidamente por escopo a obtenção de uma decisão negociada extrajudicial, ou a composição, contratualizada, não judicial, do litígio relativo à natureza e extensão do dever de indemnizar (artº 1248 nº 1 do Código Civil). O seu escopo é, em definitivo, a agilização do acertamento extrajudicial da responsabilidade, de modo a poupar o lesado, às demoras, despesas e incertezas inerentes a um litígio judicial.

Por essa razão, esses critérios esgotam-se na formulação da proposta razoável. Frustrada, a composição, por via negociada, da controvérsia relativamente a obrigação de indemnização e pedida, em juízo, a resolução do litígio, esses critérios, deixam, naturalmente, de ter aplicação, passando a determinação da espécie e do quantum da indemnização a ser regulados pelos regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, entre os quais avultam, de um lado, o princípio da reparação in natura e, de outro, o princípio da reparação integral do dano[5].

Trata-se, aliás, do sentido para que orienta, de forma firme, a jurisprudência do Supremo, que tem reiterado a afirmação de que o critério fundamental para a determinação judicial da indemnização por danos não patrimoniais é fixado pelo Código Civil e que os que são definidos pelas Portarias nºs 377/2008, de 26 de Maio e 679/2009, de 25 de Junho, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extrajudicial e, se podem ser ponderados pelo julgador, não se sobrepõem aquele[6].

Todavia, ainda que seja admissível a ponderação dos critérios contidos nas apontadas Portarias, como instrumentos de apoio na procura de uma concretização indemnizatória capaz de superar o dano[7], tem-se, por certo, que essa ponderação não deve redundar na aplicação, pura e simples, de tais critérios, ainda que, dissimuladamente, sob a capa de meros parâmetros orientadores.

                Entendimento oposto levaria precisamente à consequência contrária àquela, que, aberta e declaradamente foi visada pelo legislador com a adopção do procedimento de proposta razoável: a defesa dos interesses das vítimas de acidentes de viação.

 Numa palavra: a lei nova – maxime a resultante das Portarias nº 377/2008, de 26 de Maio e 679/2009, de 25 de Junho – quer por razões de direito intertemporal quer por razões materiais, não é aplicável ao caso objecto do recurso.

Um outro ponto da impugnação do recorrente que fere a atenção – e que constitui consequência do enquadramento jurídico que propõe para o objecto da causa - respeita ao quantum do dano não patrimonial suportado pelos recorrentes com o facto lamentável da morte da mãe. A decisão recorrida fixou a compensação devida por aquele dano em € 7.500,00 para cada um dos apelados. O impugnante sustenta no recurso que essa compensação deve ser fixada em € 10.260,00, para cada um dos autores. Quer dizer: o recorrente acha que, quanto a esta questão, a sentença deve ser modificada em seu desfavor e, portanto, em benefício dos apelados, razão que explica que estes, na resposta, se tenham apressado a declarar a sua concordância quanto a este ponto - e só quanto a ele – da impugnação.

A dúvida que logo acode ao nosso espírito é a de saber se, quanto a este segmento da impugnação, o recorrente é dotado de legitimidade ad recursum, seja qual for o critério – formal ou material – que se deva utilizar para aferir dessa legitimidade. Mas a dúvida não é fundada.

Os limites da condenação, ditados pelo princípio da disponibilidade objectiva, entendem-se referidos ao pedido global e não às parcelas em que, para a determinação do quantum indemnizatório, há que desdobrar o cálculo do dano (artº 661 nº 1 do CPC)[8]. Da mesma maneira não viola a proibição da reformatio in mellius – que é um simples consequência da vinculação do tribunal ad quem à impugnação do recorrente, que vincula a que esse tribunal não pode conceder a essa parte mais do que ela pede no recurso interposto – a circunstância de o tribunal de recurso confirmar a procedência do quantitativo total do pedido do autor, ainda que com diferentes montantes de cada uma das parcelas. Se, por exemplo, o autor pede uma determinada indemnização para pagamento dos vários prejuízos decorrentes de um acidente de viação, o tribunal de recurso pode considerar a acção totalmente procedente, ainda que faça uma diferente avaliação de cada um desses prejuízos. Identicamente, o tribunal ad quem pode julgar o recurso procedente, quantificando diferentemente os diversos danos que devem ser reparados ou compensados.

Isto mostra que, neste contexto, a legitimidade do recorrente se afere pelo pedido global que formula no recurso – e não pelas diversas parcelas em que se desdobra o cômputo global da indemnização.

Maneira que, em face do conteúdo da decisão impugnada e da alegação de ambas as partes, o problema que esta Relação deve resolver consiste em saber se a compensação pelo dano da morte de A…, o dano não patrimonial sofrido por esta antes desse facto funesto e o dano suportado pelos recorridos com esse mesmo facto deve ser fixada em € 41.040,00, € 7.182,00 e € 10.260,00 – para cada um dos apelados – respectivamente.

A resolução deste problema reclama, naturalmente, à ponderação ainda que breve, dos parâmetros de cômputo da compensação do dano não patrimonial.

3.2. Parâmetros de determinação da indemnização do dano não patrimonial.

Qualquer que seja o escopo preciso que, em definitivo, se deva assinalar á responsabilidade civil[9], é inquestionável que esta visa, fundamentalmente, a reparação do dano, juridicamente entendido como a diminuição duma situação favorável que estava protegido pelo Direito[10]. A responsabilidade civil depende tenazmente da existência de dano: a supressão deste assume-se, por isso, como o seu escopo primordial[11].

É ao lesado que cumpre a prova do dano (artº 342 nº 1 do Código Civil). Caso não consiga libertar-se do encargo dessa prova, intervém a regra de julgamento representada pelas normas sobre a distribuição do ónus da prova: a questão de facto correspondente é resolvida contra o lesado (artºs 516 do CPC e 346, in fine, do Código Civil).

Já se adiantou a noção jurídica de dano que se tem por exacta: a diminuição duma situação favorável protegida pelo Direito.

O dano não tem, porém, uma natureza unitária, podendo separar-se em duas grandes categorias: o dano patrimonial e o dano não patrimonial.

A lei não define o dano não patrimonial. Doutrinariamente o conceito é recortado pela negativa. O dano diz-se não patrimonial quando a situação vantajosa lesada tenha natureza espiritual[12]; o dano não patrimonial é o dano insusceptível de avaliação pecuniária, reportado a valores de ordem espiritual, ideal ou moral[13]; é o prejuízo que não atinge em si o património, não o fazendo diminuir nem frustrando o seu acréscimo. Há uma ofensa a bens de carácter imaterial – desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro[14]; é o prejuízo que, sendo insusceptível de avaliação pecuniária, porque atinge bens que não integram o património do lesado que apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária[15].

A distinção entre o dano patrimonial e não patrimonial assenta na natureza do interesse afectado. É, por isso, possível que da violação de direitos patrimoniais resultem danos não patrimoniais, da mesma maneira que da violação de direitos ou bens de personalidade podem derivar danos patrimoniais.

A indemnização visa reparar danos não patrimoniais quando tem por objecto um interesse não patrimonial, i.e., um interesse não avaliável em dinheiro[16]. Diferentemente do que acontece com a indemnização do dano patrimonial, a do dano não patrimonial não é uma verdadeira indemnização, pois não coloca o lesado na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse tido lugar, mediante a concessão de bens com valor equivalente ao dos ofendidos em consequência do facto. Por isso, melhor se lhe tem chamado satisfação ou compensação[17]. Trata-se, apenas de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo não patrimonial, não é susceptível de equivalente, e, por isso, possível é apenas uma espécie de reparação, na forma de uma indemnização pecuniária, a determinar, por indicação expressa da lei, segundo juízos de equidade.

Na verdade, no tocante à determinação do quantum da indemnização do dano não patrimonial, a lei aponta nitidamente para uma valoração casuística, orientada por critérios de equidade (artº 494, ex-vi artº 493, 1ª parte, do Código Civil). O critério de determinação da indemnização do dano não patrimonial não obedece, portanto, à teoria da diferença que, de resto, se mostra para essa finalidade, imprestável[18]. Mas esta circunstância não obsta à aplicação àquele dano de um princípio orientador do cômputo do dano patrimonial: o princípio da reparação integral do dano.

A lei é terminante na declaração de que o montante da indemnização do dano não patrimonial será fixado equitativamente (artº 496 nº 3, 1ª parte do Código Civil). Neste contexto, a equidade visa determinar aspectos quantitativos de uma prestação: a indemnização. Mas seria errado pensar-se que a fixação da indemnização, a que a equidade é chamada, está no livre arbítrio do juiz; a leitura da lei evidencia a existência de critérios a que o juiz, nessa tarefa delicada, deve atender.

A actividade do juiz na determinação do montante da indemnização, não se traduz num juízo silogístico-formal de subsunção - dado que o obriga a converter a sua valoração de critérios jurídicos de determinação numa quantificação numérica; trata-se, porém, de uma actividade juridicamente vinculada que constitui estruturalmente autêntica aplicação do direito. Desta constatação faz-se, naturalmente, decorrer a consequência da controlabilidade por via de recurso do procedimento de determinação da indemnização.

No tocante ao processo de determinação do valor da indemnização não se deve reconhecer um espaço de discricionariedade diverso daquele que sempre se encontra presente em qualquer decisão verdadeiramente jurídica, antes se devendo qualificar a actividade correspondente como aplicação do direito, susceptível de controlo por via do recurso.

Mas também aqui se deve reconhecer que os instrumentos dispostos para orientação e racionalização da decisão judicial cobrem apenas parte das variáveis de que o juiz é portador. Se se introduzirem conceitos como basic rules ou second codes, aludindo ao complexo de regras e de mecanismos reguladores que determinam efectivamente a aplicação que o juiz faz da lei, pode dizer-se que os princípios regulativos de determinação do valor da indemnização cobrem apenas uma parte do processo decisório.

Esta constatação decorre da circunstância de a lei se limitar disponibilizar proposições indeterminadas que apenas se materializam no caso concreto. A indeterminação é de resto dupla: ela resulta quer da possibilidade de introduzir, na aplicação, novos factores atendíveis quer da intermutabilidade dos especificados na lei, cujo peso relativo, também se não encontra determinado. Existe, portanto, uma ilimitada variedade dos factores relevantes para o processo de individualização da medida da indemnização, a que soma a ausência de explicitação do seu peso relativo, tudo apontando para uma valoração casuística infindável, que vinca, também por esta via, a natureza móvel ou aberta do sistema.

Tudo inculca, pois, a conclusão de que a determinação da prestação da indemnização não está na dependência de um liberum arbitrium indifferantiae, de uma discricionariedade livre ou desvinculada do juiz – que implicaria conferir a nota de irrecorribilidade à decisão correspondente – e, consequentemente, que o processo de determinação do quantum da indemnização deve, em concreto, ser reconduzível a critérios objectivos, e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo. Mas seria imprudente não reconhecer a importância de elementos racionalmente não explicitáveis e mesmo puramente emocionais, e, portanto, uma margem inescapável de subjectividade.

Serve isto para dizer que a remissão no caso para a equidade é aparente, visto que esta só ocorre, não quando haja uma qualquer indeterminação que o juiz tenha de resolver no caso concreto – mas quando se verifique uma decisão tomada à revelia do ius strictum, no sentido de sistemático[19]. De resto, um modelo de decisão ex aequo e bono tem ainda a particularidade de não ter preocupações generalizantes, característica que é abertamente contrariada por um dos parâmetros sob cujo signo deve decorrer a actividade de fixação da indemnização: o da uniformização ou padronização do seu valor.

Seja como for, a verdade é que o sistema de ressarcimento do dano não patrimonial é móvel ou aberto, indicando a lei, de forma inteiramente exemplificativa, para determinar o dano de cálculo – i.e., a expressão monetária do dano não patrimonial real – o grau de culpa do lesante a situação económica do lesante e do lesado e outras circunstâncias do caso (artº 494 do Código Civil).

O parâmetro representado pela culpa do agente – melhor se diria a forma dolosa ou negligente da imputação - mostra a permeabilidade da lei à ideia de que a indemnização do dano não patrimonial reveste uma certa função punitiva ou sancionatória, à semelhança, de resto, de qualquer indemnização[20].

O critério relativo à situação económica do lesante e do lesado pode, com vantagem, ser reconduzido a uma ideia de proporcionalidade, funcionado como factor da correcção da extensão indemnizatória que se mostre concretamente desproporcionada em face da situação patrimonial dos sujeitos, passivo e activo, da indemnização. No caso de existir seguro da responsabilidade, maxime, tratando-se de seguro obrigatório, fica, no entanto, sem sentido a consideração da situação económica do lesante[21].

Entre as outras circunstâncias do caso, devem indicar-se o carácter do bem jurídico atingido e a natureza e a intensidade do dano causado[22], o género e a idade da vítima – excepto, talvez, no tocante ao cômputo do dano morte stricto sensu[23] - etc. Em qualquer caso, a ponderação sobre a gravidade do dano não patrimonial e, correspondentemente, do valor da sua reparação deve ocorrer sob o signo do princípio regulativo da proporcionalidade – de harmonia com o qual a danos mais graves deve corresponder uma indemnização mais generosa – e numa perspectiva de uniformidade: a indemnização deve ser fixada tendo em conta os parâmetros jurisprudenciais geralmente adoptados para casos análogos (artº 8 nº 3 do Código Civil)[24].

A definição e a valoração do dano não patrimonial são, portanto, tarefas irremediavelmente carecidas de concretização jurisprudencial. O modo como essa actividade concretizadora tem sido desempenhada pela jurisprudência, mesmo no tocante ao dano de natureza máxima – o dano morte - tem merecido, por parte da doutrina, um juízo severo. Em face da exiguidade do valor das indemnizações por danos não patrimoniais comummente fixadas, fala-se, com acrimónia, em página negra da nossa jurisprudência[25], em indemnizações de miséria[26] e em extrema parcimónia[27].

O reparo é justo. Mas seria injusto, de um aspecto, não partilhar a censura com o legislador, que se mostra mais sensível aos danos patrimoniais que aos danos não patrimoniais[28] e aos termos um tanto deprimidos[29] com que se consagrou a ressarcibilidade dos danos desta última espécie e, de outro, não admitir uma evolução, ainda que paulatina, no reforço das indemnizações desse tipo de dano, consequente ao reconhecimento da sua especificidade e alteralidade relativamente ao dano patrimonial e à consciência da necessidade de uma tutela acrescida dos direitos de personalidade[30].

A única condição de ressarcibilidade do dano não patrimonial é a sua gravidade (artº 496 nº 1 do Código Civil). Na impossibilidade de concretizar um critério geral, porque nesta matéria o casuísmo é infindável, apenas importa acentuar que danos consequentes a lesões a direitos de personalidade devem ser considerados mais graves do que os resultantes de violação de direitos referidos a coisas. De resto, tratando-se de lesão de bens e direitos de personalidade, essa gravidade deve ter-se, por regra, como consubstanciada: deve exigir-se para bens pessoais um tratamento diferente do reservado para as coisas[31].

È uma evidência que a vida é de todos os bens de personalidade o mais precioso[32] (artºs 34 da Constituição da República Portuguesa e 70 do Código Civil). Cada pessoa é um ser único e irrepetível e, portanto, todas as pessoas têm igual dignidade (artº 1 da Constituição da República Portuguesa). A dignidade da pessoa humana está na base do princípio personicêntrico inerente a muitos direitos fundamentais – v.g. o direito a vida e o direito à integridade física e psíquica – e alimenta materialmente o princípio da igualdade proibindo qualquer diferenciação ou qualquer pesagem de dignidade. A perda da vida, enquanto bem jurídico absoluto, é igual para todas as pessoas; pensamento contrário, assente no valor funcional da vida, levaria, por exemplo, a admitir a existência de vidas com menos valor ou mesmo sem valor, o que, seja qual o parâmetro considerado é, de todo, inadmissível[33].

Face à nossa ordem jurídica deve ter-se hoje por definitivamente adquirida – não sem alguma resistência[34] - a conclusão de que a violação do direito à vida e, portanto, a morte de uma pessoa, constitui de per se um dano não patrimonial que deve ser reparado[35].

A supressão do bem vida causa dano desde logo ao seu titular: este é privado do direito máximo – a própria vida. O facto da morte não é muitas vezes um facto instantâneo e indolor: a vítima pode permanecer agónica e consciente, em sofrimento atroz, durante dias ou semanas ou mesmo meses ou anos. Trata-se notoriamente de um dano não patrimonial grave que deve ser objecto de compensação adequada[36].

Cada pessoa só o é com outras. A morte de uma pessoa é, por isso, susceptível de causar danos às pessoas a quem se mostre ligado por vínculos familiares, em especial ao cônjuge e aos filhos (artº 496 nº 2 do Código Civil)[37]. Esses danos tanto podem ser não patrimoniais – como por exemplo o sofrimento que experimentam quer com a morte da vítima quer a dor que sentiram ao presenciar o padecimento, longo e doloroso, suportado pelo próprio morto – como puramente patrimoniais, como, v.g., os lucros cessantes representados pela supressão da capacidade de ganho da vítima e pela perda da fonte de rendimento correspondente de que beneficiariam durante um período de tempo mais ou menos longo.

A vida representa um bem com nítidas vertentes morais e patrimoniais, objecto de ampla tutela pelo direito: a lesão ilícita de que resulte a morte tem, por isso, uma valência pluriofensiva. Apesar do carácter pessoalíssimo do bem vida, a sua supressão dá origem a danos, quer na própria pessoa da vítima quer nas pessoas que a rodeiam, de bem diversa natureza: danos patrimoniais e danos não patrimoniais.

Este viaticum habilita-nos a proceder à reponderação da solução de direito do caso encontrada na sentença impugnada, pedida pelo recorrente por via do recurso.

3.3. Dano não patrimonial suportado por A… antes da sua morte.

Já sabemos que em caso de morte a lei manda atender aos danos não patrimoniais sofridos pela vítima (artº 496 nº 3, 2ª parte, proémio, do Código Civil). Esta previsão refere-se nitidamente a todos os danos não patrimoniais que emergem da morte de uma pessoa – que não directamente a própria morte. A supressão do bem vida resulta de uma complexidade de eventos que não se limitam a destruir irremediavelmente a vida da vítima, repercutindo-se noutros bens de personalidade desta. Estão nessas condições os danos não patrimoniais suportados directamente pela vítima resultantes do sofrimento de todo o processo que conduz à morte, maxime, a consciência do próprio avanço da morte e a angústia causada pela premonição da sua eminência[38].

O sofrimento experimentado pela vítima antes e até à própria morte resolve-se, por isso, num dano não patrimonial que, pela sua gravidade, justifica inteiramente a tutela do direito, e correspondentemente, uma indemnização autónoma.

Mas – por mais cru que isto pareça - há que atender ao tipo de morte. A observação empírica mostra que a morte pode ser mais lenta ou mais rápida, mais ou menos dolorosa. A morte pode ser instantânea ou resultar de uma agonia longa e penosa; a morte pode ter sido indolor ou ser antecedida de um sofrimento excruciante; a vítima pode ter pressentido o avanço da morte ou não ter tido a mínima consciência da sua aproximação, v.g., por estar em coma. Qualquer destes factos não pode, simplesmente, ser deduzido da morte de uma pessoa; para que se deva assentar na sua realidade é necessário considerar outros parâmetros.

Serve isto para dizer que não existe qualquer regra de experiência ou critério ou standard social que justifique a ilação de que a morte é sempre intuída, pressentida ou dolorosamente vivenciada pela vítima, tudo dependendo das circunstâncias em que aquele facto nefasto, lamentável e irreversível se verificou. Assim, dado que o tribunal não dispõe de qualquer regra de experiência que lhe permita concluir, sem deixar dúvidas, que a vítima experimentou um sofrimento antes do facto derradeiro e fatídico da morte e intuiu ou pressentiu a aproximação desta, deve exigir-se, de harmonia com as regras gerais de repartição do encargo da prova, daquele que reclama a reparação do dano corresponde, a demonstração da verificação dele (artº 342 nº 1 do Código Civil).

Todavia, na espécie sujeita, é patente que A… sofreu as dores, decerto excruciantes, das múltiplas fracturas ósseas e dos ferimentos provocadas pela violência do embate, e experimentou o sofrimento das diversas complicações clínicas, dos sucessivos internamentos, da perda da sua autonomia, e da degradação progressiva e inexorável do seu estado de saúde que culminou na sua morte. Via crucis, que se prolongou durante quatro anos, marcados por uma notória falta de qualidade de vida.

Nestas condições, se alguma coisa se pode censurar à fixação do quantum da compensação por este sofrimento em € 10.000,00 é a sua parcimónia.

Quanto a esta parcela do quantum da indemnização o recurso não dispõe, pois, de bom fundamento.

3.4. Determinação do quantum da indemnização do dano morte.

O facto de que resulta a morte de uma pessoa atinge-a em toda a sua concreta dimensão. A lesão do bem vida é, portanto, o dano máximo e inexcedível: a morte não se limita a lesar bens de personalidade; a morte suprime, por inteiro, a personalidade mesmo. A reparação desse dano não opera, pois, por definição, na esfera jurídica da pessoa que sofreu a morte – mas de terceiros. A reversão da compensação, não a favor do titular atingido mas de terceiros – seja iure proprio, seja iure hereditatis – não pode, naturalmente, deixar de ser ponderada, em sentido limitativo, no cômputo da reparação[39].

Um bosquejo ainda que breve pela jurisprudência do Supremo – com o qual se procura dar expressão à preocupação da normalização ou padronização quantitativa da compensação devida pelo dano morte, e, por essa via, ao princípios da igualdade e da unidade do direito e ao valor eminente da previsibilidade da decisão judicial – mostra que o equivalente monetário do dano morte é, actualmente, fixado, nos seus limites inferior e superior em € 50.000,00 e € 80.000,00, respectivamente[40].

A sentença impugnada achou como valor da compensação do dano morte o correspondente ao limite mínimo com que é actualmente mensurado pela jurisprudência, ponderando, para esse fim, a idade da vítima à data da morte – argumento que não é inteiramente probante dado que o bem atingido é a vida em si mesma, e não a esperança de vida: no limite, o argumento excluiria a compensação daquele dano no caso da morte de uma pessoa que, comprovadamente morreria, em qualquer caso, no minuto seguinte.

Seja como for, tendo em conta, de um aspecto, a ignorância sobre o carácter negligente ou doloso do delito, e de outro a sua indiscutível e exclusiva imputabilidade ao lesante, a causa remota do dano morte, e o standard da compensação pelo qual é, na actualidade, jurisprudencialmente mensurado esse facto trágico, julga-se adequado fixar a compensação devida pela morte de A… em € 50.000.00.

3.5. Determinação do quantum da indemnização do dano não patrimonial sofrido pelos recorrentes com o facto da morte de A...

O recorrente diverge igualmente da decisão impugnada no tocante ao dano do luto, quer dizer, ao dano não patrimonial suportado pelos autores por virtude da morte da mãe.

A sentença apelada mensurou esse dano, no tocante a cada um dos recorrentes, em € 7.500,00. Razão: o facto de para além da relação de parentesco, nada mais se ter provado quanto ao relacionamento da vítima com estes seus familiares.

O argumento é inteiramente exacto. Realmente, a única coisa que a matéria de facto disponibiliza é o vínculo puramente formal do parentesco, nada nos dizendo, v.g., sobre a existência de uma relação de grande proximidade entre os recorrentes e vítima, de uma relação familiar estável e harmoniosa, caracterizada pela forte vinculação afectiva de todos os membros da família.

Neste contexto, o dano não patrimonial suportado pelos recorridos com a morte da vítima não poder ter-se – de acordo com os factos apurados - como terrível e particularmente grave, aspecto que, de harmonia com o princípio regulativo da proporcionalidade, não pode deixar de se reflectir no valor da sua compensação. E à luz desse princípio, a quantia achada pela sentença apelada para compensar aquele dano julga-se adequada.

Em absoluto remate: a impugnação não tem bom fundamento e, portanto, o recurso não deve proceder.

O conjunto da argumentação expendida pode condensar-se nas seguintes proposições conclusivas:

- Os critérios regulativos do valor da indemnização dispostos nas Portarias nºs 377/2008, de 26 de Maio e 679/2009, de 25 de Junho – de harmonia com o princípio tempus regit factum, segundo o qual o facto lesivo passado e os seus efeitos são regulados pela lei vigente à data da sua ocorrência – não são aplicáveis aos acidentes ocorridos antes da data da sua entrada em vigor;

- A aplicabilidade de tais critérios esgota-se na fase extrajudicial de contratualização do valor da indemnização;

- O bem atingido pelo dano morte é a vida em si mesma – e não a esperança de vida;

- Os princípios da igualdade e da unidade do direito e o valor da previsibilidade da decisão judicial vinculam à padronização e à normalização do valor da indemnização.

O recorrente deverá suportar, por virtude da sucumbência, as custas do recurso (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

                Custas do recurso pelo recorrente, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos na Tabela I-B, integrante do RCP.

                                                                                                                            

Henrique Antunes (Relator)

José Avelino Gonçalves

Regina Rosa


[1] Ac. da RC de 23.10.90, CJ, 93, IV, pág. 150 e Assento do STJ nº 6/94, DR 30 de Março.
[2] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, 2010, Almedina, Coimbra, págs.752 e 753.
[3] Antunes Varela, RLJ, Ano 120, pág. 150.
[4] Acs. do TC nºs 156/95, 745/96, 486/97 e 467/03, www.tc.pt.
[5] Ac. da RC de 11.03.08, www.dgsi.pt. No sentido de que as tabelas da 679/2009, de 25 de Junho não se aplicam aos tribunais, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Direito das Obrigações, Tomo III, cit. pág. 753.
[6] Acs. do STJ de 07.07.09, 14.09.10, 01.06.11 e de 17.05.12, www.dgsi.pt. Cfr., também o Ac. da RE de 08.01.13, www.dgsi.pt. De resto, no que toca à celeridade, admite-se que os prazos previstos nos artºs 31 e 22 do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto – diploma que a Portaria regulamenta – aumentem a protecção de vítimas de acidentes de viação. Mas quanto à razoabilidade e justiça das propostas, duvida-se seriamente que os objectivos pretendidos tenham sido alcançados, dado que o cidadão comum geralmente desconhecerá que os valores propostos não possuem carácter vinculativo e, quanto mais necessitado estiver, mais depressa tenderá a aceitar a quantia proposta pelo segurador. O facto de os valores em causa estarem estabelecidos em tabelas oficiais, publicadas no DR, faz com que apenas quem tenha conhecimentos jurídicos ou a possibilidade de solicitar ajuda especializada se aperceba de que poderia exigir mais do que lhe foi proposto. A protecção das vítimas mais fracas exige que os montantes consagrados nos anexos desta Portaria, sejam tidos como montantes mínimos a respeitar pelas seguradoras para que as respectivas propostas sejam consideradas razoáveis. De resto, todo articulado suscita fundadas dúvidas quanto às opções substanciais e às soluções técnicas adoptadas. Cfr., para as razões justificativas deste regime, José Alvarez Quintero/Paulo Figueiredo, “A avaliação do dano corporal e os seguros, “Aspectos práticos da avaliação do dano corporal em Direito Civil, coord. de Duarte Nuno Vieira e José Alvarez Quintero, Biblioteca Seguros, Julho 2008, pág. 28 e J. J. Sousa Dinis, “Avaliação e reparação do dano patrimonial e não patrimonial (no domínio do Direito Civil), RPDC, nº 19, pág. 5. Procurando explicar o conteúdo da Portaria, cf. J. Alvarez Quintero/Maria João Sales Luís, “A actualização do sistema de indemnização nos acidentes de viação. Uma reforma necessária? RPDC, nº 18, pág. 7.
[7] Ac. da RP de 07.01.13, www.dgsi.pt.
[8] Acs. do STJ de 25.03.10, www.dgsi.pt, da RL de 26.05.92, BMJ nº 417, pág. 812 e do STJ de 15.06.93, BMJ nº 428, pág. 531.
[9] Cfr. Paula Meira Lourenço, A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 2006, págs. 228 a 293.
[10] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, AAFDL, 1980, vol. 2º Volume, pág. 283.
[11] Pereira Coelho, o nexo de causalidade na responsabilidade civil, Boletim da Faculdade de Direito, Suplemento IX, Coimbra, 1951, pág. 107 e ss. Tratando-se de danos não patrimoniais, só são atendíveis os que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (artº 496 nº 1 do Código Civil). À luz desta exigência, a jurisprudência sustenta que não compensáveis dos danos não patrimoniais que se traduzam em meros incómodos. Cfr., v.g., Acs. do STJ de 2.10.73, BMJ nº 230, pág. 107, de 26.6.91, BMJ nº 408, pág. 438 e de 10.11.03, CJ, STJ, I, III, pág. 132.
[12] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, Lisboa, AFDDL, 1980, págs. 285 e 286.
[13] Maria Júlio de Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., Almedina, Coimbra, 1998, págs. 514 e 515.
[14] Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª ed., Coimbra Editora, 1989, pág. 370.
[15] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, pág. 601.
[16] Vaz Serra, Reparação do Dano Não Patrimonial, BMJ nº 83, págs. 65 e ss.
[17] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª ed. Almedina, Coimbra, 1986, pág. 566.
[18] Ac. do STJ de 26.02.04, www.dgsi.pt.
[19] António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 1984, pág. 1202 e 1203 e A Decisão Segundo a Equidade, O Direito, Ano 122, II, 1990, pág. 261 e ss.
[20] António Pinto Monteiro, Sobre a Reparação dos Danos Morais, Revista Portuguesa do Dano Corporal, 1992, Ano 1º, I, pág. 21 e Paula Meira Lourenço, A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 2005, pág. 251 e ss. e Ac. da RL de 15.12.94, CJ, 94, V, pág. 135 e José Carlos Brandão Proença, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 167.
[21] Sinde Monteiro, Dano Corporal (Um roteiro do direito português), RDE, 1989, nº 15, pág. 372 e Reparação dos Danos Pessoais em Portugal – A lei o Futuro (Considerações de lege ferenda a propósito da discussão da “alternativa sueca”), CJ, XI, IV, pág. 12, e José Carlos Brandão Proença, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 168, nota 518, e Acs. do STJ de 26.05.02 e de 17.11.05, www.dgsi.pt. No limite, a disposição do artº 494 do Código Civil pode ser julgada constitucionalmente imprópria, por violação do princípio da igualdade. Cfr. o Ac. do STJ de 11.01.07, www.dgsi.pt.
[22] Vaz Serra, RLJ Ano 103, pág. 179 e Ac. da RP de 20.04.06, www.dgsi.pt.
[23] O bem atingido por aquele dano não é a esperança de vida – mas a vida em si mesma: cfr., o Ac. do STJ de 17.02.00, www.dgsi.pt. Em qualquer caso, a relevância da idade da vítima, enquanto parâmetro concretizador do valor da reparação, deve, no tocante a este dano, ser relativizada. Ainda que não se deva absolutizar o valor do bem vida, considerando a sua valência idêntica para todas as pessoas, a idade deve, para o efeito apontado, ter um peso muito reduzido. Cfr. Acs. do STJ de 07.02.06 e da RP de 08.11.06, www.dgsi.pt.
[24] Maria Manuel Veloso, Danos não Patrimoniais, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. III, Coimbra Editora, 2007, págs. 543 e 544 e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, pág. 629; Acs. do STJ de 27.09.07, www.dgsi.pt. e de 30.10.96, BMJ nº 460, pág. 444.
[25] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2ª ed., 2007, Almedina Coimbra, pág. 169 e António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, II, volume, indemnização dos danos reflexos, Coimbra, Almedina, 2005, pág. 23.
[26] João António Álvaro Dias, Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Coimbra, Almedina, 2001, pág. 357, nota 795.
[27] Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 2ª edição, Coimbra, Almedina, pág. 318, nota 660.
[28] O paradigma da responsabilidade civil é o da patrimonialidade do dano, e, por isso, a reparação do dano não patrimonial, escapa, em larga medida, às coordenadas daquele sistema: cfr. Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 1995, pág. 376.
[29] António Menezes Cordeiro, Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedade Comerciais, Lex, Lisboa, 1997, pág. 478.
[30] Cfr., v.g., Ac. do STJ de 05.07.07, www.dgsi.pt.
[31] Jorge Sinde Monteiro, Reparação dos Danos Pessoais em Portugal, CJ, 86, IV, pág. 11.
[32] Acs. do STJ de 13-05.96, BMJ nº 357, pág. 398 e da RC de 02.11.93, BMJ nº 431, pág. 567.
[33] É, portanto, de verberar a doutrina estabelecida nos Acs. da RP de 08.02.01, www.dgsi.pt – que distingue o valor de natureza da vida, igual para toda a gente, e um valor social, a função normal que desempenha na família e na sociedade em geral – e do STJ de 27.02.02, www.dgsi.pt – que invocando a função social da vítima e a circunstância de não trabalhar e não ter agregado familiar constituído e se mostrar adito ao consumo de estupefacientes, atribuiu ao dano morte uma valor inferior ao comummente fixado. Em face do carácter absoluto da vida humana e da igual dignidade de todas as pessoas, na mensuração do dano resultante da sua supressão não há que ter por decisivo, por exemplo, o parâmetro da idade da idade da vítima. Cfr. Acs. do STJ de 20.06.06 e 08.06.06, www.dgsi.pt.
[34] V.g., o Ac. do STJ de 12.02.69, BMJ nº 184, pág. 151 – anotado desfavoravelmente por Vaz Serra na RLJ, Ano 103, pág. 174 – votos de vencido no Ac. do STJ de 17.03.71, BMJ nº 205, pág. 150 – RLJ Ano 105, pág. 63, Ac. da RL de 04.02.77, CJ, 1977, pág. 197 e Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, Coimbra, 2000, pág. 245, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10 ed., Coimbra, Almedina, pág. 615 e Ribeiro de Faria, volume I, Coimbra, Almedina, págs. 493 e 494.
[35] Diogo J. Leite de Campos, A indemnização do dano morte, 1975, pág. 34 e ss., Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Coimbra, 1992, pág. 176, Vaz Serra, RLJ, Anos, 63, 76, 98, 103, 105 e 174 e Galvão Telles, Lições de Direito das Sucessões, 1991, págs. 95 e ss. Ac. do STJ de 17.03.71 – tirado em reunião conjunta das secções – BMJ nº 205, pág. 150
[36] Discute-se, porém, se o direito à reparação dos danos não patrimoniais suportados pela propria vítima seja a morte em si mesma seja o sofrimento que eventualmente a antecede – sofrimento pré-mortal - se transmite, iure hereditario, aos seus sucessores ou antes é atribuído iure proprio às pessoas colocadas numa relação de proximidade comunitária e afectiva (artº 2034 do Código Civil). No primeiro sentido, António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol., AAFDL, Lisboa, 1980, págs. 292 e 293 e Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2ª ed., 2007, Almedina Coimbra, pág. 174 e Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 2ª edição, Coimbra, Almedina, pág.321; em sentido diverso, Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 4ª ed. renovada, Coimbra Editora, 2000, págs. 322 a 325 e Jorge Arcanjo, Notas sobre Responsabilidade Civil e Acidentes de Viação, Revista do CEJ, 2º semestre de 2005, nº 3, págs 60 a 62. O segundo dos sentidos assinalados corresponde à jurisprudência dominante: cfr. v.g. os Acs. da RC de 27.01.04 e 16.01.07 e do STJ de 24.05.07, www.dgsi.pt.
[37] O recorte dos titulares à reparação não atendeu à ordem de sucessão – mas aos vínculos de afeição que se supõe existir entre pessoas ligadas entre si por relações de família. A este propósito fala-se numa presunção de afectos – Rabindranath Capelo de Sousa, Direito das Sucessões, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, 1993, pág. 300 – ou de dor e luto – Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, pág. 423. Sobre o problema da compensação do dano não patrimonial suportado por pessoa que vivia em união de facto com a vítima, cfr. o Ac. do TC nº 275/02, DR, II, Série, de 24.07.02 e Maria Manuel Veloso, Danos não Patrimoniais, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. III, Coimbra Editora, 2007, págs. 529 a 536.
[38] Ac. do STJ de 18.12.07, www.dgsi.pt.
[39] Jorge Arcanjo, Notas sobre a Responsabilidade Civil e Acidentes de Viação, pág. 60.
[40] Acs. do STJ de 31.01.12 e de 31.05.12, www.dgsi.pt. Anteriormente, esses limites, máximo e mínimo eram fixados em € 40 e 50 000,00, respectivamente: Cfr., v.g., Acs. de 13.07.07, 27.09.07, 11.01.07, 18.12.07, 27.11.07, 18.06.03 e 08.06.06. Maria Manuel Veloso, no estudo Danos não patrimoniais, cit., datado de 2006, pág. 545, situava o intervalo em € 40 e 60 000.00, respectivamente. Mais generosa se mostrava já então, porém, a jurisprudência desta Relação, que fazia situar o limite superior dessa compensação em € 75 000.00: Ac. da RC de 26.06.07, www.dgsi.pt; os Acs. da RE de 23.03.04 e 06.12.06, www.dgsi.pt., fixaram esse valor em € 60 000.00.