Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1511/14.6TBCLD-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTADO
IVA
CRÉDITO
IMPENHORABILIDADE
TERCEIROS
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – ALCOBAÇA – INST. CENTRAL – 1ª SEC. EXECUÇÃO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL Nº 122/88, DE 20/04
Sumário: I – O art. 8º do DL 122/88, de 20/4, e a impenhorabilidade dos créditos de IVA nele consagrada não foram revogados pelo DL 329-A/95, de 12/12.

II – O art. 8º do DL 122/88, de 20/4, não é inconstitucional, seja por violação do princípio da igualdade, seja por violação do direito à propriedade privada no segmento em que dele deriva o direito à cobrança de créditos, seja ainda por violação do direito de acesso à justiça.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

Nos autos de execução supra identificados a exequente nomeou à penhora o crédito de IVA que os executados possuem sobre os Serviços de Administração do IVA, Direcção Geral das Contribuições e Impostos, Ministério da Finanças.

O tribunal recorrido indeferiu o assim requerido, invocando para o efeito a impenhorabilidade dos créditos de IVA consagrada no art. 8º do DL 122/88, de 20/4.

Não se conformando com o assim decidido, agravou a exequente, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...

Não se vislumbra dos autos que tenham sido produzidas contra-alegações.

O tribunal recorrido sustentou tabelarmente o despacho recorrido.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) se o art. 8º do DL 122/88, de 20/4, foi revogado pelo DL 329-A/95, de 12/12 (Velho Código do Processo Civil – VCPC);

2ª) se padece de inconstitucionalidade a norma do art. 8º do DL 122/88, de 20/4.

III – Fundamentação

A) De facto

Os factos provados

Os factos provados e com relevo para a presente decisão são os que emergem do antecedente relatório.

B) De direito

Primeira questão: se o art. 8º do DL 122/88, de 20/4, foi revogado pelo DL 329-A/95, de 12/12 (Velho Código do Processo Civil – VCPC).

A resposta a esta questão não pode deixar de ser negativa.

Em primeiro lugar porque no DL 329-A/95, de 12/12, não se detecta qualquer referência à revogação expressa do referenciado art. 8º, que é uma norma especial, tendo por referência o regime geral instituído por aquele DL 329-A/95.

Ora, é sabido que a lei geral não derroga lei especial que já exista, a não ser que o faça inequivocamente (art. 7º/3 do CC).

Como ensina Oliveira Ascensão (O Direito, Introdução e Teoria Geral, 13ª edição, p. 528) “A afirmação, aparentemente lógica de que a lei geral, por ser mais extensa, incluirá no seu âmbito a matéria da lei especial, ficando esta revogada, não se sobrepõe à consideração substancial de que o regime geral não toma em conta as circunstâncias particulares que justificaram justamente a emissão da lei especial. Por isso não será afectada em razão de o regime geral ter sido modificado.”.

Em sentido concordante com o acabado de explicitar ensinam Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão (Introdução ao Estudo do Direito, LEX, 2000, p.133) que “…a lei especial quis consagrar um regime específico para determinado número de situações de facto. Do que resultam duas consequências: I) Quando se altera a lei geral, em princípio, não se pensa já em afectar aquele domínio especial que se tem por destacado. II) A lei especial não pode ver o seu próprio espaço ameaçado por eventuais mudanças de valoração e perspectiva em relação ao universo geral.”.

A sobrevigência, como regra, da lei especial não acontecerá, no entanto, se se retirar da lei nova a pretensão de regular totalmente a matéria anteriormente regida por leis especiais que aquela pretende que deixem de subsistir.

Por outro lado, se é certo que o vocábulo “inequívoco”, utilizado no art. 7º/3 do CC não implica o “expresso” da intenção revogatória do legislador, podendo assim haver revogação tácita da lei especial pela lei geral (Marcelo Rebelo de Sousa e Sofia Galvão, Introdução ao Estudo do Direito, LEX, 2000, p.134), menos certo não é que: i) o intérprete deve procurar apurar um sentido objectivo da lei, qual seja o de regular exaustivamente um sector, não deixando subsistir fontes especiais, sendo que o sentido objectivo haverá de revelar-se por indícios traduzidos na premência da solução da lei geral, igualmente sentida no sector em que vigorava a lei especial, ou resultantes do facto de a solução constante da lei “especial” não se justificar afinal por necessidades próprias desse sector, pelo que não merece subsistir como lei especial (Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 13ª edição, pp. 534/535); ii) sendo a intenção inequívoca e a declaração expressa coisas diferentes, não podemos tomar a atitude de considerar que “…tudo é questão de interpretação da nova lei, pois assim supriríamos arbitrariamente a palavra inequívoca, que exige uma posição qualificada por parte da lei. Não basta que da nova lei se retire uma intenção, é necessário que essa intenção seja inequívoca. Tudo somado, supomos que o art.º 7º, n.º 3, impõe uma presunção no sentido da subsistência da lei especial. Se não houver uma interpretação segura no sentido da revogação, ou se uma conclusão neste sentido não for isenta de dúvidas, intervém a presunção do art.º 7º, n.º 3, e a lei especial não é revogada.” (Oliveira Ascensão, Introdução ao Estudo do Direito, Ano Lectivo de 1970/71, Revisão parcial em 1972/73, 1º ano – 1ª turma, edição dos Serviços Sociais da Universidade de Lisboa, pp. 480/481.

Em face de quanto antecede, importa começar por recordar que do DL 329-A/95 não emerge qualquer referência explícita ao DL 122/88, nem ao regime fiscal de impenhorabilidade dos créditos de IVA.

É certo que nos termos do art. 12º desse DL 329-A/95 “Não são invocáveis em processo civil as disposições constantes de legislação especial que estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no artigo 824.º do Código de Processo Civil.”.

Simplesmente, desse artigo não se extrai de forma inequívoca qualquer intenção legislativa de derrogar a impenhorabilidade dos créditos em IVA em análise.

Em primeiro lugar porque, no rigor, os créditos de IVA não são rendimentos do tipo daqueles a que se refere o referenciado art. 12º.

Em segundo lugar, porque aquela norma revogatória genérica foi instituída para os diplomas avulsos que previssem impenhorabilidades absolutas de rendimentos não condicionadas pelo respectivo montante, não sendo desse tipo a impenhorabilidade dos créditos de IVA em apreço que constituiu um tipo especial de impenhorabilidade relativa em função do sujeito – neste sentido, acórdão do TCA do Sul de 8/6/2004, proferido no processo 00728/03.

Como assim, regimes diferentes para espécies de impenhorabilidades diferentes, sendo que, por isso, a revogação genérica das primeiras não implica a revogação, mesmo que tácita, da segunda.

Tudo para concluir, assim, no sentido da apontada resposta negativa.

Segunda questão: se padece de inconstitucionalidade a norma do art. 8º do DL 122/88, de 20/4.

Nos termos da norma em análise, “São impenhoráveis os créditos de IVA, a menos que estes sejam oferecidos à penhora pelo próprio sujeito passivo.”.

Do ponto de vista material, o que justifica a impenhorabilidade sob apreciação radica nos seguintes fundamentos:

Ø  o Estado procura incentivar os sujeitos tributários passivos a cumprirem os seus deveres em matéria de tributação de IVA, oferecendo-lhe a garantia de que os créditos para os mesmos advenientes da relação tributária de IVA ficam isentos de agressão executiva por parte de credores estranhos à própria administração tributária, a não ser que os próprios sujeitos passivos de IVA os ofereçam à penhora;

Ø o Estado procura reforçar unilateralmente as garantias de satisfação mais rápida e eficaz dos seus créditos de IVA, subtraindo à agressão executiva de terceiros estranhos à administração tributária, os créditos de IVA de que seja sujeito passivo e que pode compensar no âmbito de uma relação permanente de “deve e haver” em que se traduz a relação tributária de IVA;

Ø o Estado procura compatibilizar o regime de geral penhorabilidade de créditos previsto, designadamente, na legislação processual civil, com o regime geral do IVA.

No que toca aos primeiros dois fundamentos, o Estado procura maximizar a receita fiscal de IVA e garantir a cobrança dos créditos de IVA de que porventura venha a ser sujeito activo sobre sujeitos passivos que se venham a revelar credores desse imposto, colocando os credores terceiros numa situação de real impossibilidade de agredir executivamente os créditos de IVA a não ser nos casos em que os seus titulares os ofereçam à penhora, de tudo emergindo, pois, uma situação de privilégio do Estado no que toca à cobrança dos seus créditos de IVA, no confronto da posição dispensada aos demais credores comuns no que toca à satisfação dos seus créditos mediante cobrança coerciva dos créditos de IVA dos respectivos devedores.

Ora, o interesse no Estado na maximização das suas receitas fiscais e na efectivação da cobrança dos impostos que lhe sejam devidos são objecto de tutela constitucional (art. 103º/1 da CRP), sabido que as necessidades financeiras de um Estado Social de Direito, como é o caso de Portugal (art. 2º da CRP), para acorrer aos seus diversos encargos em sectores tão relevantes quantos, por exemplo, os da saúde, segurança social, educação, justiça, segurança interna e outros, cuja satisfação é decisiva para a garantia de consecução de diferentes direitos individuais e colectivos, devem ser essencialmente cobertas pelas receitas oriundas dos impostos, o que confere aos actuais Estados Sociais de Direito a natureza de Estados Fiscais.

Na verdade, como escreve Casalta Nabais, “O Estado moderno apresenta-se por toda a parte como um “Estado fiscal”, ou seja, como um Estado que tem por suporte financeiro determinante ou típico a figura dos impostos.” - O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo, Coimbra, 1998, pp. 129/130.

A tributação não constitui, em si mesma, um objectivo (isto é, um objectivo originário ou primário) do Estado, mas sim o meio que possibilita a este cumprir os seus objectivos (originários ou primários), actualmente consubstanciados em tarefas de Estado de Direito e tarefas de Estado Social, ou seja, em tarefas do estado de direito social.” – Casalta Nabais, obra citada, p. 185; sobre esta temática poderá consultar-se, também, Da sustentabilidade do Estado fiscal, in Sustentabilidade Fiscal em Tempos de Crise, coordenado por José Casalta Nabais e Suzana Tavares da Silva, Coimbra, 2011, pp. 12/13.

Ou seja, como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, a par de uma finalidade estritamente financeira do sistema fiscal - obtenção de receitas para financiamento das despesas públicas - subsiste uma finalidade social, que se traduz na vinculação à ideia de justiça social, reflectida na atenuação da desigualdade da distribuição dos rendimentos e da riqueza (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., pp. 1088-1089).

Por outro lado, é sabido que o princípio da igualdade (art. 13º da CRP) não impede o legislador ordinário de distinguir situações, apenas proíbe o arbítrio legislativo, sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais.

A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controle.

Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.

Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada.

Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão constitucionalmente imprópria – acórdãos do Tribunal Constitucional 44/84, 425/87, 186/90, 301/01; Jorge Miranda, O regime dos direitos liberdades e garantias, Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 50 e segs., Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., pp. 149 e segs.

Ora, o relevantíssimo interesse público associado à maximização e efectivação da receita fiscal do Estado é só por si suficiente para que ao Estado seja deferido um tratamento particularizado, ou mesmo especial, no que concerne à realização dos seus interesses de maximização e cobrança efectiva dos seus créditos fiscais, os do IVA incluídos, interesses esses que, como visto, também são tutelados pela norma que prescreve a impenhorabilidade dos créditos de IVA.

Ponderando agora o terceiro fundamento supra identificado da impenhorabilidade dos créditos de IVA, o mesmo justifica-se, no que concerne à generalidade dos sujeitos passivos de IVA[1] entre os quais se contam os aqui executados, pela própria natureza do imposto em questão e pelas propriedades que lhe subjazem de que, por regra: i) será o consumidor final que suporta economicamente todo o imposto; ii) no termo da mesma cadeia de transacções e no respectivo termo, os sujeitos passivos de IVA intermédios não adquirem a posição de credores do Estado; iii) mesmo quando no âmbito mais genérico de toda a relação global tributária de IVA entre o Estado e cada um dos seus contribuintes que ocupam posições intermédias na cadeia de IVA algum destes adquire a posição de credor, este crédito não é convertível em dinheiro que o Estado deva desembolsar no termo de cada período tributário relevante (mensal ou trimestral, consoante o regime mensal ou trimestral de periodicidade das declarações de IVA a que o sujeito passivo esteja obrigado em função do seu volume de negócios – art. 41º/1/2 do CIVA).

No que respeita a essas duas primeiras propriedades do IVA e do respectivo regime jurídico e numa tentativa de as demonstrar, ficcionemos um exemplo de uma única cadeia de transacções sujeita a uma taxa constante de IVA de 10%, aplicando-se-lhe o regime dos arts. 16º/1, 19º/1/a e 20º do CIVA.

Uma primeira empresa adquire 100 euros de mercadorias, aos quais acrescem 10 euros de IVA[2], para fabrico de matéria-prima que vende a uma segunda empresa, por 200 euros, aos quais acrescem 20 euros de IVA.

Esta primeira empresa deveria entregar ao Estado 20 euros de IVA, aos quais deduz os 10 euros que entregou à sua fornecedora, entregando efectivamente os remanescentes 10 euros que representam, precisamente, a parte de imposto sobre o que ela acrescentou na cadeia de valor.

A segunda empresa que adquiriu por 200 euros (20 euros de IVA acrescidos[3]) vende o bem ao consumidor final  por 500 euros, 50 euros de IVA acrescidos, sendo que deste apenas tem que entregar ao Estado 30 euros por via da dedução dos 20 euros que pagou no âmbito da aquisição, representando aqueles  30 euros, precisamente, a parte de imposto sobre o que ela acrescentou na cadeia de valor.

O consumidor final paga 50 de IVA e nada pode deduzir.

Como emerge deste exemplo: i) o Estado cobra 50 euros de IVA ao consumidor final sem que este os possa repercutir em terceiros, sendo que naqueles 50 euros estão integrados os 40 euros de IVA que representam o imposto sobre o "valor acrescentado" devidos pelos dois sujeitos intermédios de IVA na cadeia em que os mesmos intervieram de 100 a 500 euros; ii) numa mesma cadeia de transacções e no respectivo termo, os sujeitos intermédios da cadeia de IVA não adquirem a qualidade de credores de IVA, pois que o imposto por eles devido pelo valor por eles acrescentado na cadeia é superior ao que podem deduzir pela aquisição de produtos sujeitos a IVA.

O IVA é, por isso, geralmente caracterizado como um imposto: i) geral sobre o consumo (porque, em regra, é suportado economicamente pelo consumidor); ii) plurifásico (porque incide sobre todas as fases do circuito económico); iii) não cumulativo (porque permite a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços); iv) garantindo a igualdade tributária (é proporcional e permite que dois produtos vendidos a retalho pelo mesmo preço suportem igual imposto); e v) com pagamentos fraccionados (porque a soma do imposto entregue ao Estado em cada fase do circuito económico é igual àquela que se cobraria se incidisse de uma só vez na última fase) - para algumas consequências destes aspectos de regime ver, designadamente, os acórdãos do STJ de 4/6/2013, proferido no processo 137/09.0TBPNH.C1.S1, do TCA Norte de 12/6/2014, proferido no processo 00345/06.6BEVIS, e do TCA Sul de 31/1/2012, proferido no processo 05144/11.

Como assim, se no termo da mesma cadeia de transacções o sujeito passivo intermédio de IVA fica devedor desse imposto ao Estado, não faria qualquer sentido e seria mesmo caótico do ponto de vista da actuação burocrática da administração tributária permitir aos credores comuns a penhora daqueles créditos de IVA de que aqueles sujeitos passivos ficam titulares em cada momento da respectiva actividade aquisitiva de bens e serviços, sem cuidar de considerar da sua subsequente actividade alienativa de que resulta a extinção daquela posição credora.

Por outro lado, tendo presente o específico regime de dedução de IVA por parte dos sujeitos passivos intermédios na correspondente cadeia, facilmente se percebe que, por regra, jamais se apurará um crédito de IVA por parte dos sujeitos passivos que o Estado seja obrigado a satisfazer em dinheiro.

Com efeito, a dedução faz-se por subtracção ao montante global do imposto devido pelas operações tributáveis do sujeito passivo, durante um período de declaração que pode ser mensal ou trimestral (art. 41º/1/2 do CIVA), do montante do imposto dedutível, exigível durante o mesmo período (art. 22º/1 do CIVA), sendo certo que a dedução deve ser feita na declaração do período ou de período posterior àquele em que se tiver verificado a recepção das facturas ou de recibo de pagamento do IVA que fizer parte das declarações de importação (art. 22º/2 do CIVA) – no exemplo apontado de uma única cadeia de transacção, a primeira empresa ainda ficaria devedora de 10 euros de IVA e a segunda de 30 euros de IVA, a significar que no termo daquela cadeia nenhuma delas ficou credora do Estado.

Obviamente que por força da dinâmica temporalmente dessincronizada das actividades aquisitivas e alienativas dos sujeitos passivos, bem assim como do carácter intercomunicacional dessas actividades que obsta, na prática, a uma individualização estanque de cada acto alienativo por reporte ao respectivo acto aquisitivo, é possível que num dado período tributariamente relevante (mensal ou trimestral), o montante do imposto a deduzir por referência a esse período exceda o montante do imposto devido pelas operações tributáveis desse mesmo período, razão pela qual o sujeito passivo intermédio na cadeia de IVA ficará, aí sim, titular de uma posição de credor na conta-corrente de IVA.

Porém, mesmo nessas circunstâncias e agora por força da terceira propriedade do regime do IVA acima aludida, o Estado não é obrigado a devolver em dinheiro esse saldo credor, pois que “Sempre que a dedução de imposto a que haja lugar supere o montante devido pelas operações tributáveis, no período correspondente, o excesso é deduzido nos períodos de imposto seguintes.” (art. 22º/4 do CIVA).

Só nas circunstâncias excepcionais em que passados 12 meses ao período em que se iniciou o excesso, persistir crédito a favor do sujeito passivo superior a (euro) 250, este pode solicitar o seu reembolso (art. 22º/5 do CIVA), podendo igualmente fazê-lo nas outras circunstâncias ainda mais excepcionais previstas, por exemplo, nos nº 6 e 9º desse art. 22º, ficando o pedido de reembolso sujeito ao regime do DL 229/95, de 11/9, e do Despacho Normativo 18-A/2010, de 01-07, e  a toda a actividade burocrática prevista nestes diplomas legais.

Em qualquer circunstância, a obrigação de reembolso do IVA por parte do Estado, mesmo nos casos a ela possa haver lugar, estará sempre dependente da vontade do sujeito passivo em ver efectivado tal reembolso.

Tudo a significar, assim, que: i) no regime regra do IVA e fora daquelas circunstâncias excepcionais, o Estado não tem que restituir aos sujeitos passivos de IVA, em dinheiro, os eventuais saldos credores que em cada período tributário relevante os mesmos ostentem no âmbito da relação de conta-corrente de IVA estabelecida entre eles e o Estado; ii) em qualquer circunstância, o reembolso de IVA estará sempre dependente da formulação de um juízo de vontade do sujeito passivo nesse sentido.

Sendo assim, bem se compreende que esses saldos credores de IVA em conta-corrente sejam impenhoráveis se não forem indicados à penhora pelo sujeito passivo, pois que a penhorabilidade dos mesmos sem manifestação de vontade do sujeito passivo e as obrigações decorrentes do art. 860º do VCPC para o Estado, implicariam para este e no âmbito do regime regra que temos vindo a enunciar, a obrigação de disponibilizar a favor de terceiros determinadas quantias em dinheiro que não era legalmente obrigado a disponibilizar ao próprio sujeito passivo de IVA, seja porque não estivessem preenchidos os pressupostos substantivos e processuais de que o CIVA e legislação complementar fazem depender o reembolso de IVA, seja porque o sujeito passivo  titular daquele saldo credor não manifestou vontade de ver efectivado o reembolso, manifestação essa sem a qual o mesmo nunca é devido.

Em face de quanto vem de referir-se, o regime de impenhorabilidade dos créditos de IVA não ofende o princípio da igualdade, posto que não assenta em qualquer critério constitucionalmente vedado, antes lhe subjaz uma materialidade fundante à luz de critérios de segurança jurídica, de praticabilidade, de justiça e de solidariedade.

No que concerne à garantia constitucional dos direitos dos credores à satisfação dos correspondentes créditos, a mesma deve extrair-se da garantia constitucional do direito à propriedade privada (art. 62º/1 da CRP) – v.g. acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 494/94, 49/91, 516/94, 128/95, 451/95, 374/03, 273/04, 620/04, 178/07, 235/2011, 339/2011.

 Porém, como insistentemente tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional, no âmbito de protecção dos direitos de crédito ao abrigo do artigo 62º/1 da CRP, só entram os instrumentos essenciais à sua subsistência, não bastando para que ocorra afectação substancial dessa garantia, um acréscimo, ainda que significativo, do risco de satisfação do crédito (acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 235/2011 e 339/2011; Sousa Ribeiro, O direito de propriedade na jurisprudência do Tribunal Constitucional Português, relatório apresentado na Conferência Trilateral Espanha/Itália/Portugal, de 2009, acessível no site www.tribunalconstitucional.pt).

Neste enquadramento, embora potencialmente apta a incrementar um risco de insatisfação dos créditos de credores alheios à administração fiscal, não se divisa que a impenhorabilidade relativa dos créditos de IVA que está em apreço implique, em si mesma, uma lesão substancial da garantia constitucional que está em equação, sabido que tais créditos representam apenas uma parcela dos direitos patrimoniais (imobiliários, mobiliários, imateriais, creditícios …) dos devedores susceptíveis se serem processualmente agredidos com vista à satisfação coerciva dos direitos dos correspondentes credores, tanto mais quanto é certo, de resto, que essa impenhorabilidade pode cessar por razões integralmente alheias à “vontade” do Estado e por mera declaração de vontade do credor que pode optar por uma satisfação dos seus débitos perante terceiros oferecendo à penhora os seus créditos de IVA.

Neste enquadramento e também por consequência do que vem de referir-se, não acompanhamos igualmente a recorrente no seu entendimento de que a impenhorabilidade relativa em apreço lhe retira a tutela judiciária assegurada pela acção executiva, com ofensa, que não divisamos, do direito fundamental de acesso à Justiça consagrado no art. 20º da CRP.

Acresce dizer que, como flui do exposto, estamos na situação em apreço perante uma situação de colisão entre dois direitos tutelados constitucionalmente, a saber: o direito à cobrança de impostos por parte do Estado, com vista à realização de uma justiça fiscal distributiva, por um lado, e o direito à cobrança de créditos emergente do direito à propriedade privada, por outro lado.

Ora, “Um dos pontos mais complexos da dogmática jurídica dos direitos fundamentais prende-se com o problema das relações entre as normas constitucionais garantidoras de direitos fundamentais e as normas legais que, a vários títulos, com elas se relacionam.” - Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ª edição, p. 1247.

De um modo geral, considera-se existir uma colisão autêntica de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.” - Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ª edição, p. 1255.

Para Vieira de Andrade haverá “…colisão ou conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição numa determinada situação concreta (real ou hipotética). A esfera de protecção de um direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma ou princípio constitucional.”, acrescentando o mesmo autor que “A solução dos conflitos e colisões entre direitos, liberdades e garantias ou entre direitos e valores comunitários não pode, porém, ser resolvida através de uma preferência abstracta, com o mero recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais.”, não devendo erigir-se o princípio da harmonização ou da concordância prática enquanto critério ou solução dos conflitos ou pelo menos “…ser aceite ou entendido como um regulador automático.” - Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2001, pp. 311, 312 e 314.

Na metodologia para a resolução de conflitos entre direitos deve “… atender-se, desde logo, ao âmbito e graduação do conteúdo dos preceitos constitucionais em conflito, para avaliar em que medida e com que peso cada um dos direitos está presente na situação de conflito – trata-se de uma avaliação fundamentalmente jurídica, para saber se estão em causa aspectos nucleares de ambos os direitos ou, de um ou de ambos, aspectos de maior ou menor intensidade valorativa em função da respectiva protecção constitucional.

Deve ter-se em consideração, obviamente, a natureza do caso, apreciando o tipo, o conteúdo, a forma e as demais circunstâncias objectivas do facto conflitual, isto é, os aspectos relevantes da situação concreta em que se tem de tomar uma decisão jurídica – em vista da finalidade e a função dessa mesma decisão.

Deve ainda ter-se em atenção, porque estão em jogo bens pessoais, a condição e o comportamento das pessoas envolvidas, que podem ditar soluções específicas, sobretudo quando o conflito respeite a conflitos entre direitos sobre bens e liberdades.” - Vieira de Andrade, Os Direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2001, pp. 316 e 317.

Ora, no caso que nos ocupa e tendo sempre presentes as exigências, em que se desdobra o princípio da proporcionalidade, de adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos), de exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato), e de justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos) que devem ser sempre ponderadas na aferição de situações de colisão de direitos e de restrições introduzidas nuns em confronto de outros, dúvidas não podem subsistir que o interesse do Estado na cobrança coerciva de impostos goza de uma intensidade valorativa superior à que deve associar-se ao direito à cobrança dos créditos emergente do direito à propriedade privada.

Basta pensar em que através da cobrança de impostos o Estado procura dar satisfação a relevantes direitos sociais de toda a comunidade que o integra e de que fazem também parte alguns dos titulares do direito de propriedade e de satisfação de créditos, entre os quais o direito à subsistência condigna, o direito à protecção no desemprego, na doença e na velhice, o direito à saúde, o direito à educação, o direito de acesso à justiça, o direito à segurança; ou seja, de um lado relevantes e colectivos interesses de dimensão pessoal – ou também pessoal – e de outro interesses de índole primacialmente patrimonial, não podendo deixar de reconhecer-se aos primeiros uma intensidade valorativa superior à dos segundos.

Por outro lado, como visto, não está aqui em causa uma limitação absoluta ao direito de cobrança coerciva de créditos por via de uma penhora dos créditos de IVA, mas antes uma limitação relativa que pode ceder por simples declaração de vontade do próprio credor, não sendo mesmo de excluir que este prefira, por regra e em face das públicos e reconhecidas delongas do Estado em satisfazer os seus débitos tributários, oferecer para penhora os seus créditos de IVA de satisfação temporalmente incerta em contrapartida de manter a total disponibilidade de outros bens e/ou direitos cuja indisponibilidade imediata podem acarretar consequências maiores para a sua vida pessoal e profissional.

Em terceiro lugar, não está aqui em causa uma impenhorabilidade generalizada de créditos tributários sobre o Estado, mas apenas de uma impenhorabilidade relativa de créditos decorrente de uma única e específica relação tributária, a do IVA.

Acresce dizer que na situação concreta em análise: i) a exequente é uma instituição bancária, não estando sequer indiciado que a impenhorabilidade relativa do crédito de IVA tenha gerado ou fosse concretamente apta a gerar a impossibilidade de cobrança efectiva e coerciva do crédito exequendo através de outros bens ou direitos integrantes da esfera jurídica dos devedores; ii) não se sabe, em face dos elementos disponibilizados no presente apenso, se à data da nomeação do crédito à penhora (3/11/2009) efectivamente existia algum crédito de IVA por parte dos executados e, na afirmativa, de que montante; iii)  não se sabe, em face dos elementos disponibilizados no presente apenso, qual o valor do crédito exequendo e as concretas repercussões que a não cobrança desse crédito decorrente da impenhorabilidade em análise poderiam ter na esfera jurídico-patrimonial da exequente.

Tudo para dizer que na situação em análise, a impenhorabilidade relativa dos créditos de IVA e a prevalência dela decorrente, em sede de concordância prática dos direitos em colisão, dos interesses do Estado na cobrança maximizada de impostos sobre os interesses de terceiros na cobrança de créditos associados ao direito à propriedade privada respeita, no seu essencial, as exigências de proporcionalidade, de razoabilidade e de adequação que devem ser ponderadas na aferição de situações de colisão de direitos.

O que supra se referiu para ser ter por não verificada qualquer violação do princípio da igualdade e do direito à propriedade privada, bem como o acabado de enunciar em sede concordância prática dos direitos em confronto permite também, conjugadamente, sustentar que a impenhorabilidade relativa dos créditos de IVA de que cuidamos não viola o direito de acesso à justiça por parte da exequente e consagrado no art. 20º da CRP, por daquela não decorrer, a nosso ver, a retirada à exequente a tutela judiciária assegurada pela acção executiva.

Não se divisa, pois, a inconstitucionalidade pela qual pugna a recorrente, que, aliás, não foi igualmente divisada no acórdão do STJ de 20/3/1999, proferido no âmbito do processo 99B465.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar improcedente o agravo, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 15/12/2016.


(Jorge Manuel Loureiro)

(Maria Domingas Simões)

(Jaime Carlos Ferreira)


Sumário:

I – O art. 8º do DL 122/88, de 20/4, e a impenhorabilidade dos créditos de IVA nele consagrada não foram revogados pelo DL 329-A/95, de 12/12.

II – O art. 8º do DL 122/88, de 20/4, não é inconstitucional, seja por violação do princípio da igualdade, seja por violação do direito à propriedade privada no segmento em que dele deriva o direito à cobrança de créditos, seja ainda por violação do direito de acesso à justiça.


(Jorge Manuel Loureiro)

***



[1]Nestes não se incluindo aqui regimes excepcionais que geram créditos efectivos de IVA, como sucede com algumas IPSS e empresas exportadoras, regimes esses que os executados não integram.
[2] Dos quais e de modo meramente transitório figura como credor na conta-corrente de IVA, por não ser o consumidor final.
[3] Dos quais e de modo meramente transitório figura como credor na conta-corrente de IVA, por não ser o consumidor final.