Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
788/13.9TYVNG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: CASO JULGADO
FORÇA DE CASO JULGADO
QUESTÕES
ÂMBITO
Data do Acordão: 10/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – ALCOBAÇA – INST. CENTRAL – 2ª SEC. COMÉRCIO – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 621º/1/1ª DO NCPC.
Sumário: I – A força do caso julgado abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam decididas na fundamentação como antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.

II) Se a decisão de absolvição de um réu constante do dispositivo da sentença decorreu da solução dada na fundamentação a uma dada questão preliminar, e se a solução dada a essa questão preliminar não consta entre as que se mostrem impugnadas nas conclusões do recurso, então aquela decisão absolutória com esse concreto fundamento transita em julgado, independentemente de nas conclusões serem abordados adicionais questões e fundamentos no sentido da revogação da absolvição contida no dispositivo da sentença.

III) Julgada improcedente uma ação de insolvência com fundamento em falta de legitimidade substantiva do requerente para a peticionar com o duplo fundamento de que (i) está em causa um crédito litigioso a carecer de mais ampla e complexa indagação em acção autónoma própria para afirmar a sua (in)existência e de que (ii) realmente não se demonstrou a titularidade efectiva desse crédito por parte da requerente, a decisão de improcedência poderá transitar em julgado autonomamente em relação a cada um desses fundamentos absolutórios.

IV) Se na apelação não se impugnou a absolvição com base no primeiro desses fundamentos, o caso em julgado que se forma em torno da decisão absolutória assim proferida constitui obstáculo a que se prossiga na apelação com a discussão em torno da absolvição radicada no segundo dos aludidos fundamentos, pois que em qualquer caso sempre teria de prevalecer intra-processualmente o caso julgado formado em torno da absolvição decorrente do acolhimento, não impugnado, do primeiro dos referenciados fundamentos de absolvição.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A autora propôs contra a ré a presente acção especial para declaração de insolvência da ré, que peticionou com base e em resumo nos seguintes fundamentos: detém sobre a ré dois créditos, um no valor de 750.000 euros e emergente do incumprimento definitivo pela ré de um contrato-promessa, outro no valor de 1.600 euros e decorrente do incumprimento pela ré de um contrato de comodato, acrescido de 40 euros por cada novo dia de incumprimento; o único bem que a requerente conhece à ré é o que lhe foi dado em garantia do pagamento de €350.000, sobre o qual se encontra registada a hipoteca a seu favor; desconhece qual o demais activo da ré e qual o seu valor; a ré não tem disponibilidades financeiras para pagar os créditos da requerente; a falta de pagamento do crédito à requerente revela a impossibilidade da ré satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações; há mais de 6 meses que a ré deve ao Fisco e à Segurança Social mais de €400.000, devendo à L..., SARL e ao Banco C... mais de €3.900.000; estão preenchidos, assim, os factos indício constantes das alíneas b) e g) – i), ii) e iv) – do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE.

Citada, a ré deduziu oposição, pugnando pela improcedência da acção.

Alegou, em resumo, que não existe o crédito alegadamente decorrente do contrato-promessa que está descrito na petição, por se tratar de contrato simulado e, por isso, nulo, não tendo sido constituído qualquer sinal; relativamente ao incumprimento do contrato de comodato foi celebrada uma transacção judicial que está a ser cumprida; estando em causa créditos litigiosos, não podem os mesmos constituir fundamento de declaração de insolvência; tem património e activos mais do que suficientes para pagar os créditos alegados pela requerente, sendo que só o imóvel referenciado pela requerente tem o valor de €5.820.000; é dona de outro imóvel cujo valor é no mínimo de €1.100.000; tem créditos sobre a D... de cerca de €500.000.

Prosseguiu a acção os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguidamente transcrito:

Face a todo o exposto, ao abrigo das disposições legais supra citadas, julgo a acção improcedente, por não provada e, consequentemente, absolvo a requerida «F..., S.A.» do pedido de declaração de insolvência contra si formulado.

Valor da causa: €30.000,00, equivalente ao da alçada da Relação, visto que a insolvência não chegou a ser declarada e na petição inicial não foi indicado o valor do activo da requerida (artigos 306.º, n.º 2 do Código do Processo Civil ex vi artigo 17.º do CIRE e 15.º e 301.º deste último Código).

Custas pela requerente (artigo 304.º do CIRE).

Registe e notifique.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou a requerente, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

...

Contra alegou a ré, pugnando pela improcedência da apelação.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 - NCPC), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) se a decisão recorrida transitou em julgado, total ou parcialmente, e, na afirmativa, qual o âmbito objectivo do caso julgado que assim se formou e que consequências tem o mesmo quanto à cognoscibilidade da presente apelação;

2ª) se a matéria fáctica se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada;

3ª) se a apelada deve ser declarada insolvente.

III – Fundamentação

A) De facto

Os factos provados

O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos:

1) A requerida «F..., S.A.», pessoa colectiva n.º ..., tem sede na Rua da ... e por objecto social o fabrico, compra, venda de conservas de peixe, litografia, embalagens metálicas e a prática de actividades congéneres ou complementares daquelas (certidão do registo comercial de fls. 184 e ss, consultada a 27/10/2014).

2) No âmbito do processo n.º ... foi revogada a sentença aí proferida a 27/04/2015 de declaração de insolvência da requerida (certidão de fls. 377 e ss).

3) Da certidão de matrícula da requerida constam registados como membros do seu Conselho de Administração: ...

4) T... renunciou ao cargo de administrador da requerida, facto levado ao registo a 23/04/2009.

5) R... faleceu a 17/11/2007 (certidão do assento de nascimento, com averbamento do óbito, a fls. 210 e ss).

6) G... foi declarado insolvente a 03/02/2015, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º ... (certidão do assento de nascimento a fls. 215 e ss e rosto de certidões judiciais a fls. 253, 267, 268 e 269).

7) Nas pesquisas efectuadas tendentes a apurar o paradeiro de G... apurou-se que o mesmo, a 17/11/2014, não constava inscrito na Ordem dos Engenheiros, nem na Ordem dos Engenheiros Técnicos, não podendo assim, nos termos legais, usar o título ou exercer a profissão de engenheiro (fls. 202 e 204).

8) Entre a aqui requerida, a aqui requerente e G... (1.º, 2.º e 3.º contraentes, respectivamente) foi celebrado um acordo escrito, intitulado «Contrato de promessa de compra e venda com permuta e revogação de contrato-promessa», datado de 28/11/2012, no qual as partes declararam, além do mais, o seguinte (documento junto a fls. 12-5, cujo teor, no mais, aqui se dá por integralmente reproduzido):

Considerandos:

a) Por contrato celebrado em 26/03/2009 a 1.ª contraente prometeu vender à 2.ª contraente o prédio urbano sito na Rua ..., sendo que à época era do inteiro e pleno conhecimento de todos a incidência dos ónus existentes sobre o aludido prédio.

b) Essa promessa de compra e venda não foi cumprida por, nomeadamente, a 1.ª contraente não ter logrado, em tempo útil, cancelar na Conservatória do Registo Predial o registo de uma acção interposta pela «B..., Lda.» onde peticionava o direito de propriedade por via da usucapião e o registo de uma compra e venda do citado prédio a favor dessa «B... – Sociedade de Construções, Lda.» que com esta realizou para ser cancelado caso se obtivesse ganho da causa naquela acção, hipótese em que a transmissão seria concretizada através da usucapião e não de compra e venda.

c) A acção interposta pela «B... – Sociedade de Construções, Lda.» foi julgada improcedente, pelo que se manteve em vigor a inscrição de compra e venda e a titularidade desta no direito de propriedade do referido prédio urbano.

d) Perante esta circunstância de não poder vender aquilo que não lhe pertencia, o contrato mencionado na alínea a) foi revogado, tendo a 1.ª contraente e o 3.º contraente, como principal pagador, solidariamente, assumido que devem €300.000,00 à 2.ª contraente, ou seja, o valor correspondente ao sinal prestado que não foi devolvido.

e) Pretendem, agora, as 1.ª e 3.º contraentes extinguir essa obrigação de restituição dos €300.000,00 fazendo novo contrato-promessa de compra e venda com pagamento de parte do preço através de permuta, tendo por objecto o mesmo prédio urbano, onde afectassem aquele valor a parte do sinal a prestar.

f) Para tal, as 1.ª e 3.º outorgantes entendem que na data da escritura pública do negócio permutado estão aptas para transferir o direito de propriedade do citado prédio, livre de ónus ou encargos, seja a 1.ª contraente a vendedora ou a citada «B... – Sociedade de Construções, Lda.».

g) A 2.ª contraente aceita que aqueles €300.000,00 sejam afectados ao aludido novo contrato-promessa de compra e venda desde que a restituição deste valor acrescido do restante sinal tenha garantia idónea.

h) Para este efeito, os 1.ª e 3.º contraentes comprometem-se a declarar a dívida de €350.000,00 à 2.ª contraente e a restituir-lhe esse valor até 31/01/2012, constituindo a favor desta uma hipoteca tendo por objecto esse ou outro prédio urbano.

i) Caso a garantia incida sobre o prédio prometido vender, a 2.ª contraente aceita que a constituição de hipoteca seja prestada pela «B... – Sociedade de Construções, Lda.», como terceiro garante.

j) Em consequência, os direitos e obrigações que de seguida se expressam ficam condicionados à realização da referida hipoteca, pelo que, até lá, não produzem qualquer efeito.

Vínculos:

1. A 1.ª ou 3.º contraente prometem adquirir à «B... – Sociedade de Construções, Lda.» o prédio identificado na alínea a) dos considerandos.

2. A 1.ª e o 3.º contraente prometem vender esse prédio urbano directamente à 2.ª contraente, ou a nomeá-la para o adquirir à «B... – Sociedade de Construções, Lda.».

3. O preço convencionado é de €3.477.500,00, correspondendo €1.402.500,00 ao valor dos bens dados em permuta.

4. A 1.ª e o 3.º contraente dão por recebido, a título de sinal do preço convencionado €300.000,00, sendo que recebem, no dia em que a presente promessa produza efeito, ou seja, no dia da realização da hipoteca referida na alínea j) dos considerandos, a quantia de €50.000,00, através de cheque datado de 07/12/2012, com o compromisso de não ser movimentado em data anterior.

5. A 2.ª contraente compromete-se a pagar a quem a 1.ª ou 3.º contraentes determinarem €1.000.000,00 na data de outorga da escritura de compra e venda, €700.000,00 em 31/01/2014 e €25.000,00 em 31/07/2013.

6. O pagamento destas quantias de €700.000,00 e €25.000,00 ficam caucionadas através de garantia bancária à primeira interpelação, que a 2.ª contraente entrega no acto da citada escritura pública de compra e venda, sendo que quanto a €25.000,00 pode ser substituída por cheque post datado.

7. A 2.ª contraente compromete-se a transmitir na referida escritura de compra e venda, a favor de quem a 1.ª e 3.º contraentes determinarem, pelo referido valor global de €1.402.500,00, os seguintes prédios:

- Fracção autónoma designada pela letra «A» sita na Rua ...;

- 3 fracções autónomas, designadas pelas letras «U», «O» e «B», do prédio urbano sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ..., freguesia de Matosinhos.

8. A 1.ª e 3.º contraentes comprometem-se a cancelar todos os ónus que recaiam sobre o prédio prometido vender à 2.ª contraente, que constam da informação não certificada da Conservatória do Registo Predial que constitui o anexo I do presente contrato e que vai ser rubricado por todos os intervenientes.

9. Incumbe aos 1.ª e 3.º contraentes a marcação da escritura pública do prometido negócio, em Cartório Notarial de Matosinhos, em dia e hora que escolherem, entre 15 e 31 de Janeiro de 2013, e a comunicação da data e local à 2.ª contraente com 10 dias de antecedência, através de fax ou e-mail.

10. A não realização da escritura pública por os 1.º e 3.º contraentes não conseguirem que o direito seja transferido para a 2.ª contraente ou por não cancelarem todos os ónus ou encargos constantes do anexo I e os que eventualmente venham a ser posteriormente registados até àquele acto notarial, implica a imediata revogação das presentes promessa e a exigibilidade da restituição de €350.000,00 a partir de 31/01/2013.

11. A 2.ª contraente promete adquirir o citado prédio nas referidas condições, sendo que todos os contraentes aceitam o presente contrato nos prévios termos nele exarados, incluindo o consignado nos considerandos.

9) Mediante escritura pública outorgada a 28/11/2012, no Cartório Notarial de Matosinhos a cargo do notário ..., intitulada «Hipoteca e Fiança», G..., por si e em representação da sociedade aqui requerida, declarou que: a sua representada é devedora à sociedade aqui requerente da quantia de €350.000,00, resultante da não restituição do sinal de um contrato-promessa que não chegou a ser cumprido; que esta quantia não vence juros; que esta quantia será paga mediante interpelação da sociedade aqui requerente, com aviso prévio de 6 meses; que em garantia do pagamento desta quantia e de todas as obrigações inerentes, constitui segunda hipoteca sobre o prédio urbano sito na Rua do ..., a que atribuem o valor de €350.000,00;

G... mais declarou, em seu próprio nome, que se constitui fiador e principal pagador de todas as obrigações da sua representada, decorrentes da referida dívida de €350.000,00, renunciando desde já ao benefício da excussão prévia; D..., em representação da sociedade aqui requerente, declarou aceitar a presente hipoteca e fiança, nos termos exarados; os outorgantes foram advertidos que a presente hipoteca é ineficaz em relação aos referidos exequentes e à referida autora, titulares de ónus e encargos nessa data registados (certidão junta a fls. 38 e ss).

10) No dia 15/03/2013, compareceram perante o notário ..., no seu Cartório Notarial sito em Matosinhos, G..., em representação da sociedade aqui requerida, e D..., em representação da sociedade aqui requerente, e por eles foi dito (declaração junta a fls. 17 e ss, cujo teor, no mais, aqui se dá por integralmente reproduzido):

Que o 2.º outorgante agendou, nesse cartório, para as 15h00 de hoje, uma escritura de compra e venda em que a sociedade representada pelo 1.º outorgante venderia à sociedade por si representada o prédio urbano sito na Rua ... em Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ..., freguesia de Matosinhos.

Que por motivos imputáveis ao 1.º outorgante e à sua representada não foi por estes marcada a dita escritura pública de transmissão do direito de propriedade do prédio acima identificado, especialmente por não terem apresentado certidão do registo predial sem quaisquer ónus ou encargos.

Que ainda por motivos imputáveis somente ao 1.º outorgante e à sua representada não se pode realizar no dia de hoje esta escritura pública.

Que, assim, a «F... – Indústrias Transformadoras, S.A.» e o 1.º outorgante reconhecem que se encontram em mora desde 31/01/2013 quanto ao cumprimento da obrigação de transmitir o direito de propriedade do citado prédio à sociedade «D..., Lda.» e aceitam como razoável o prazo fixado por esta, até 29/04/2013, para poderem outorgar a citada escritura pública.

Que, consequentemente, fica desde já marcada para o dia 29/04/2013, pelas 15h00, a realização, neste cartório, da escritura pública de transmissão do direito de propriedade do citado prédio, em cumprimento do contrato-promessa celebrado entre as representadas pelo 1.º e 2.º outorgantes em 28/11/2012, sendo que a sua não realização determina à parte faltosa o incumprimento absoluto e definitivo da obrigação assumida naquele contrato-promessa, e à parte não faltosa o direito de resolver o referido contrato-promessa e à indemnização correspondente.

11) No dia 29/04/2013 compareceram perante o notário ..., no seu Cartório Notarial sito em Matosinhos, G..., em representação da sociedade aqui requerida, e D..., em representação da sociedade aqui requerente, e por eles foi dito (declaração junta a fls. 21 e ss, cujo teor, no mais, aqui se dá por integralmente reproduzido):

Que ambos os outorgantes agendaram, nesse cartório, para as 15h00 de hoje, uma escritura de compra e venda em que a sociedade representada pelo 1.º outorgante venderia à sociedade representada pelo 2.º outorgante o prédio urbano sito na Rua ..., em Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ..., freguesia de Matosinhos.

Pelo 1.º outorgante foi dito:

Que, em 26/03/2009, «D..., Lda.» outorgou com a «F..., S.A.» um contrato-promessa de compra e venda do prédio sito na Rua ..., em Matosinhos.

Que, no contrato supra, estavam referidos todos os ónus incidentes sobre o prédio, do inteiro conhecimento do promitente-comprador.

Que, não obstante a acção de usucapião registada, em que eram partes a sociedade «B..., Lda.» e a «F..., S.A.», o prédio era propriedade desta.

Que em 28/11/2012 foi assinado um contrato-promessa de compra e venda com permuta, onde, uma vez mais, constam as condições e todos os ónus incidentes sobre o prédio, bem como a circunstância do prédio não ser já propriedade de «F..., S.A.», mas sim da empresa «B...».

Que estão as partes desde o início do negócio devidamente informadas e legalmente documentadas sobre a titularidade da propriedade do prédio.

Que, como na maior parte dos negócios onde existam ónus, estes são cancelados a posteriori da escritura. Esta situação é sanada com a apresentação, no próprio dia da escritura, dos respectivos distrates ou certidões de cancelamentos de ónus.

Que, assim, a empresa promitente compradora foi atempadamente informada que necessitaria, para obter os títulos de cancelamento dos encargos existentes sobre o prédio, de diligenciar, no dia da escritura, as garantias bancárias para fazer face aos pagamentos a realizar.

Que a empresa promitente compradora, não obstante previamente informada sobre o teor e condições das garantias a apresentar, não logrou fazê-lo em tempo algum.

Que tinha plena convicção que, sem a apresentação das garantias, não existiriam condições para se obter os títulos de cancelamento e/ou distrates.

Que procedeu a empresa «D..., Lda.» à marcação da escritura de compra e venda sem apresentar as garantias necessárias para a efectiva concretização do negócio, consciente de que sem o pagamento os ónus não seriam cancelados e a escritura não seria realizada.

Que é de ressalvar que a empresa promitente compradora não comunicou à empresa «B...» qualquer data de escritura, nem demonstrou qualquer intenção de o fazer.

Pelo 2.º outorgante foi dito:

Que é pelos seguintes motivos imputáveis ao 1.º outorgante e à sua representada que não é celebrada a referida escritura:

a) Que a «F... – Indústrias Transformadoras, S.A.» não demonstra ser proprietária do prédio acima identificado;

b) Que a proprietária «B... – Sociedade de Construções, Lda.» não está presente para o vender;

c) Que a «F... – Indústrias Transformadoras, S.A.» não nomeou a sociedade «D..., Lda.» para adquirir o prédio e fazer negócio com a dita sociedade «B... – Sociedade de Construções, Lda.».

d) Que o prédio continua com os ónus que constam da certidão predial permanente, de que se anexa impressão efectuada hoje;

e) Que a «F... – Indústrias Transformadoras, S.A.» não indicou a favor de quem deveriam ser emitidas as garantias bancárias de €700.000,00 e de €25.000,00;

f) Que a «F... – Indústrias Transformadoras, S.A.» não indicou a favor de quem a sociedade «D..., Lda.» deveria transmitir os bens dados em permuta.

12) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, sob o n.º ..., freguesia de Matosinhos, o prédio urbano sito na Rua ..., em Matosinhos (certidão de registo predial junta a fls. 27 e ss, emitida a 29/04/2013).

13) Sobre tal prédio, à data de 29/04/2013, encontravam-se registadas:

a. A 31/03/1992, a aquisição, por justificação notarial, a favor da aqui requerida;

b. A 12/12/2006, penhora a favor de A..., para garantia da quantia exequenda de €18.356,66;

c. A 13/02/2008, hipoteca voluntária a favor de «C... – Embalagens, S.A.», para garantia de dívida proveniente de transacções comerciais, no montante máximo assegurado de €1.158.928,57;

d. A 18/03/2008, arresto a favor de «B... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.», pela quantia de €333.736,10;

e. A 04/08/2008, hipoteca voluntária a favor de «M..., Limited», para garantia de contrato de abertura de crédito, no montante máximo assegurado de €2.532.000,00;

f. A 25/09/2008 (provisório por natureza e dúvidas, dúvidas removidas a 31/03/2009), acção judicial proposta por «B... – Sociedade de Construções, Lda.», pedindo, além do mais, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel, livre de ónus ou encargos, por via de usucapião;

g. A 05/02/2009 – apresentação 1885 (provisório por natureza), a aquisição, por compra, a favor de «B... – Sociedade de Construções, Lda.», sob condição suspensiva de a acção judicial acima referida ser julgada improcedente;

h. A 05/02/2009 – apresentação 3160 (provisório por natureza), penhora a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de €12.744,59;

i. A 05/02/2009 – apresentação 4644 (provisório por natureza), penhora a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de €1.149,87;

j. A 05/02/2009 – apresentação 4675 (provisório por natureza), penhora a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de €1.483,71;

k. A 05/02/2009 – apresentação 4695 (provisório por natureza), penhora a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de €10.445,42;

l. A 05/02/2009 – apresentação 4702 (provisório por natureza), penhora a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de €1.890,12;

m. A 13/10/2009 (provisório por natureza), penhora a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de €16.425,98;

n. A 30/10/2009 (provisório por natureza), penhora a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de €130.910,16;

o. A 05/11/2009 (provisório por natureza), penhora a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de €56.931,95;

p. A 17/11/2009 (provisório por natureza), hipoteca legal a favor da Segurança Social para garantia do pagamento de contribuições, no montante máximo assegurado de €84.736,66;

q. A 03/11/2011 (provisório por natureza), penhora a favor de «C... – Embalagens, S.A.», para garantia da quantia exequenda de €853.370,94 e despesas previsíveis da execução.

14) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, sob o n.º ..., o prédio urbano sito na Rua do ... (certidão de registo predial junta a fls. 50 e ss, emitida a 07/12/2012).

15) Sobre tal prédio, à data de 07/12/2012, encontravam-se registadas:

a. A 11/04/1991, a aquisição, por compra, a favor da aqui requerida;

b. A 25/06/2008, hipoteca voluntária a favor de «Banco C..., S.A.», para garantia de empréstimo a conceder a terceiro, no montante máximo assegurado de €2.253.740,71;

c. A 25/09/2008 (provisório por natureza), acção judicial proposta por «B... – Sociedade de Construções, Lda.», pedindo, além do mais, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel, livre de ónus ou encargos, por via de usucapião;

d. A 02/10/2008 (provisório por natureza), penhora a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de €38.444,44;

e. A 20/10/2008 (provisório por natureza), penhora a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de €1.727,23;

f. A 17/11/2009 (provisório por natureza), hipoteca legal a favor da Segurança Social para garantia do pagamento de contribuições, no montante máximo assegurado de €84.736,66;

g. A 31/05/2010 (provisório por natureza), penhora a favor de «Banco C..., S.A.», para garantia da quantia exequenda de €1.829.107,27;

h. A 08/06/2010 (provisório por natureza), penhora a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de €291.017,65;

i. A 08/11/2012 (provisório por natureza), penhora a favor do Ministério Público junto da 1.ª Secção do 1.º Juízo dos Juízos de Execução do Porto, para garantia da quantia exequenda de €231,60;

j. A 30/11/2012 (provisório por natureza), hipoteca voluntária a favor da sociedade aqui requerente, para garantia de pagamento da não restituição do sinal de um contrato-promessa que não foi cumprido, no montante máximo assegurado de €350.000,00.

16) A este prédio, matricialmente inscrito sob o artigo 6593 (proveniente do artigo 1747), foi atribuído, em 2015, pelos Serviços das Finanças, o valor patrimonial de €795.180,00 (certidão de teor matricial junta a fls. 644).

17) A requerente emitiu a favor da requerida o cheque n.º ..., sobre o Banco S..., com data de 27/03/2009, no valor de €300.000,00 (documento junto a fls. 595 e, mais legível, o exemplar junto na última sessão da audiência de julgamento).

18) A requerente emitiu a favor de G... o cheque n.º ..., sobre o Banco S..., com data de 31/01/2013, no valor de €25.000,00 (documentos juntos a fls. 16 e 649).

19) A aqui requerente dirigiu à aqui requerida uma carta registada com aviso de recepção, com data de 22/05/2013, interpelando-a para o pagamento de €350.000,00 até 30/11/2013, mais declarando que considerava resolvido o contrato-promessa entre ambas celebrado em 28/11/2012, tendo por objecto o prédio sito na Rua ..., em Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... (documento junto a fls. 45 e ss, cujo teor, no mais, aqui se reproduz integralmente).

20) A aqui requerida respondeu a tal missiva, através de carta registada com aviso de recepção datada de 23/05/2013, declarando, no que concerne à interpelação para pagamento da quantia de €350.000,00, não vislumbrar qual o fundamento de tal pretensão e, quanto à intenção da requerente de resolver o contrato celebrado em 28/11/2012 sem invocar o motivo justificativo, «será devidamente assente, ainda que da vossa parte enquanto promitentes-compradores tenha existido e persistido uma real e efectiva situação de incumprimento contratual. Esta questiúncula será certamente objecto de discussão e apreciação em sede própria. (…)» (documento junto a fls. 49, cujo teor, no mais, aqui se reproduz integralmente).

21) A 27/01/2014, aqui requerente propôs contra a aqui requerida e contra G..., no Tribunal Judicial de Matosinhos, acção declarativa pedindo que fossem os réus condenados a restituir-lhe a fracção autónoma designada pela letra «B» do prédio sito na Rua ..., em Matosinhos, e a indemnizá-la  com €25,00 por cada dia ou parte de dia, desde 29/04/2013 até ao dia em que ocorra a restituição (documentos de fls. 314 e ss).

22) No âmbito de tal acção, registada com o n.º ..., foi proferido saneador-sentença onde, em conhecimento parcial do mérito, foram os réus condenados a restituir à autora a fracção autónoma em questão; em sede de audiência de julgamento realizada a 14/01/2016, autora e réus lograram alcançar uma transacção quanto ao montante da indemnização devida pela mora na entrega do imóvel, fixando-a em €21.950,00, de que a ré se confessou devedora, a pagar pela ré à autora em 7 prestações mensais, a 1.ª de €800,00 até ao dia 31/01/2016 e a 2.ª de €4.000,00 até ao dia 15/05/2016; tal transacção foi homologada por sentença proferida nessa data (documentos de fls. 340 e ss e 348 e ss).

23) A 08/04/2016, a requerida e G... instauraram contra a requerente, no Tribunal da Comarca do Porto – Matosinhos, acção declarativa pedindo, além do mais, sejam declarados nulos, por simulados, os negócios jurídicos corporizados no «contrato-promessa com permuta e revogação do anterior» de 28/11/2012, a constituição e registo da hipoteca sobre o imóvel constantes dos docs. 4 e 5 e as declarações notariais constantes dos docs. 6 e 7 (documentos juntos a fls. 596 a 648).

B) De direito

Primeira questão: se a decisão recorrida transitou em julgado, total ou parcialmente, e, na afirmativa, qual o âmbito objectivo do caso julgado que assim se formou e que consequências tem o mesmo quanto à cognoscibilidade da presente apelação.
1.1. Para o devido enquadramento desta questão importa considerar que a apelante assentou a sua pretensão de ver decretada a insolvência da ré, designadamente na alegação de que era titular activa de dois créditos de que era sujeito passivo a apelada, a saber: i) um crédito emergente do incumprimento definitivo e culposo, por parte da apelada enquanto promitente-vendedora de um contrato-promessa outorgado em 28/11/2012 entre apelante e apelada, ficando a apelada na obrigação de restituir à apelante, esta na qualidade de promitente-compradora fiel, o dobro do sinal de 375.000 euros constituído ao âmbito desse contrato; ii) um crédito emergente do incumprimento de um contrato de comodato outorgado entre apelante e apelada, respectivamente como comodante e comodatária.

A decisão recorrida julgou a acção improcedente e absolveu a apelada do pedido de declaração de insolvência.

Para se determinar o âmbito objectivo do assim decidido e do caso julgado daí decorrente, importa delimitar com precisão duas variáveis através da resposta a dar a duas questões, a saber: i) quais os fundamentos da decisão que constituem o antecedente lógico indispensável ou necessário à emissão da parte dispositiva do julgado[1]; ii) qual o objecto do recurso.

No que concerne à primeira dessas variáveis, prescreve o art. 621º/1/1ª parte do NCPC, que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga:…”, sabendo-se que existe hoje uma corrente jurisprudencial e doutrinária consolidada no sentido de que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado – neste sentido, por exemplo, acórdãos do STJ de 20/6/2012, proferido no processo 241/07.0TTLSB.L1.S1, de 12/7/2011, proferido no processo 129/07.4.TBPST.S1, de 8/3/2007, proferido no processo 07B595, de 19/2/2016, proferido no processo 6B4446, e de 15/5/1999, proferido no processo 99A422; acórdãos da Relação de Évora de 23/7/2014, proferido no processo 209/09.1TBVRS.E1, e de 30/6/2016, proferido no processo 1375/06.3TBSTR.E1; acórdãos da Relação de Coimbra de 5/7/2011, proferido no processo 393/09.4TBSEI.C1, e de 15/3/2005, proferido no processo 4128/04; Vaz Serra, R.L.J., ano 110º, pp. 232 e ss; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 3ª edição, p. 201; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 579.

No que concerne à segunda das referenciadas variáveis, decorre do já escrito supra que o tribunal ad quem não pode conhecer de questões não suscitadas nas conclusões dos recursos e que não sejam de conhecimento oficioso.

Flui de quanto vem de referir-se, com relevo para a decisão em apreço, que se a decisão de absolvição de um réu constante do dispositivo da sentença decorreu da solução dada na fundamentação a uma dada questão preliminar, e se a solução dada a essa questão preliminar não consta entre as que se mostrem impugnadas nas conclusões do recurso, então aquela decisão absolutória com esse concreto fundamento transita em julgado, independentemente de nas conclusões serem abordados adicionais questões e fundamentos no sentido da revogação da absolvição contida no dispositivo da sentença[2].
1.2. No caso em apreço, de entre as questões preliminares cuja decisão constituiu o antecedente lógico da decisão final de absolvição contou-se, entre outras, a de saber se o alegado crédito emergente de um incumprimento definitivo de um contrato-promessa conferia à apelante legitimidade substantiva para requerer a declaração de insolvência da apelada.

Abordou-se e decidiu-se, pois, a questão explicitamente suscitada nos arts. 32º a 44º da oposição, de saber se um crédito litigioso[3] confere ou não legitimidade substantiva ao seu alegado titular activo para requerer a insolvência do seu alegado sujeito passivo, a qual, como é sabido, tem vindo a receber respostas desencontradas na nossa jurisprudência.

Com efeito, decisões há que respondem afirmativamente e sem qualquer limitação a tal questão[4], a par de outras que lhe respondem de modo negativo e restritivo[5], e ainda a par de outras que respondem diferenciadamente à questão em função da complexidade e profundidade da indagação que é necessário desenvolver judicialmente para se concluir no sentido da (in)existência do crédito[6].

Abordando tal questão e decidindo-a, em sede de fundamentação jurídica, a decisão recorrida: i) optou pela tese da legitimidade mitigada ou híbrida; ii) qualificou como sendo crédito litigioso, a requerer complexa e aprofundada averiguação em acção autónoma, aquele que a apelante invocou com fundamento em incumprimento definitivo de um contrato-promessa; iii) concluiu, com esse exacto fundamento, por considerar que a apelante não tinha legitimidade substantiva para requer com fundamente nesse crédito litigioso a insolvência da ré.

É o que emerge como liminar clareza do seguinte segmento da decisão recorrida: “Se relativamente à matéria do contrato de comodato, por sentença homologatória de transacção proferida a 14/01/2016, foi judicialmente fixado o valor de €21.950,00, de que a requerida se confessou devedora, atinente a indemnização pela mora na entrega do imóvel (pontos 21) e 22) dos factos provados), já assim não sucede quanto à matéria do contrato-promessa, que não foi objecto de acção declarativa prévia, não estando, pois, judicialmente verificado o invocado direito de crédito de €750.000,00 (atinente ao dobro do sinal prestado).

A requerida contesta a existência de tal direito de crédito.

Sustenta não ter recebido da requerente qualquer quantia a título de sinal.

Já instaurou acção declarativa onde pretende desenvolver essa discussão.

E acompanhando o decidido no douto acórdão da Relação de Lisboa de 22/11/2011 (processo n.º, disponível em www.dgsi.pt), «(…) se a controvérsia a respeito da existência do crédito for tal que, objectivamente, permita antever que só mediante uma aprofundada indagação, quer de facto, quer de direito, o assunto pode ser esclarecido, indagação só compatível com as garantias próprias de um processo declarativo comum autónomo e que supera natureza da (mera) justificação (sumária), própria do processo de insolvência, deve então concluir-se que o requerente não preenche a necessária condição de legitimação que o habilita a requerer a concernente declaração. (…)».

Naturalmente sem prejuízo da demonstração da existência do crédito em acção declarativa autónoma, especialmente vocacionada para esse efeito.

Assim, quanto a esta parcela do invocado crédito, claramente litigioso, falece à requerente legitimidade substantiva para requerer a declaração de insolvência da requerida.”.

E tanto bastaria para que, concordantemente com o assim sustentado, fosse decretada a improcedência da acção.
1.3. Ex abundanti cautela e, portanto, de modo subsidiário e complementar em relação ao acabado de referir-se, acautelando entendimentos diferenciados sobre a solução jurídica da questão da legitimidade do credor litigioso para requerer a declaração de insolvência naquelas situações em que a afirmação do crédito está dependente de complexa e profunda indagação, o tribunal recorrido não deixou de abordar a questão de saber se a apelante logrou efectivamente fazer a prova, no processo de insolvência, do aludido crédito emergente de um incumprimento definitivo do contrato-promessa que está em apreço.

A esse respeito, o tribunal recorrido respondeu negativamente a esta última questão colocada subsidiariamente e encontrou nessa resposta negativa um fundamento complementar para a falta da legitimidade da apelante para requerer a insolvência da apelada com base nesse alegado crédito.

É o que claramente emerge dos seguintes segmentos da decisão recorrida “Na verdade, tendo a requerida impugnado a matéria alegada no requerimento inicial relativa à existência do invocado crédito da requerente, que disse assente em negócios jurídicos simulados, não tendo recebido qualquer quantia a título de sinal (vide artigos 1.º a 44.º da oposição), recaia sobre a requerente o ónus da prova dos respectivos factos, constitutivos do direito alegado, prova essa que não foi feita (artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).

Do depoimento das duas testemunhas ouvidas, uma apresentada pela requerente (F..., contabilista certificado da requerente desde a sua constituição, em 1994, até ao presente) e outra apresentada pela requerida (M..., ex-trabalhadora da requerida, onde exercia funções de administrativa, secretariado geral, desempregada há cerca de 6 meses), pouco se extraiu com relevo para a decisão da causa.

Segundo afirmaram, nenhuma delas tomou conhecimento directo dos termos e condições do(s) negócio(s) firmado(s) entre requerente e requerida, conversações desenvolvidas, pagamentos efectivamente efectuados e a que título.

F... apenas relatou o que percepcionou pela análise, classificação e tratamento contabilístico de documentos, conjugado com os esclarecimentos prestados pelo legal representante da requerente, D..., que dava a indicação de imputação de valores a determinada conta-cliente. Contabilisticamente constam registados, como «adiantamento a fornecedores», 3 pagamentos: um de €300.000,00, outro de €50.000,00 (a 30/12/2012) e outro de €25.000,00 (a 31/01/2013), no montante global de €375.000,00, que disse ter saído da conta da empresa e, pelo menos para efeitos da contabilidade, não consta como tendo sido restituído.

Não assistiu à entrega de cheques a G...

Nem soube explicar a razão pela qual, sendo o negócio efectuado com a empresa requerida, surgem cheques passados em nome pessoal daquele.

Sabe apenas que os cheques foram comunicados à contabilidade, com indicação de serem imputados àquele negócio, o que foi feito.

Também M... assumiu apenas receber documentos que depois encaminhava para os serviços de contabilidade da requerida, nunca tendo presenciado as reuniões havidas entre o “Sr. Engenheiro” (G...) e o Sr. D..., que tinham lugar no escritório do Dr. M...

Tudo o que sabe sobre as vicissitudes dos negócios, aliás relatado em moldes muito vagos e imprecisos, é de ouvir dizer do “Sr. Engenheiro”.

Outrossim não elucidam as declarações de parte dos legais representantes da requerida (G...) e da requerente (D...) que, pese embora convirjam no facto de as sociedades por ambos representadas terem celebrado outro negócio além dos aqui em discussão, também tratado pelo Advogado Dr. M..., no mais, se limitaram a reproduzir a tese sustentada nos respectivos articulados.

G... (da requerida), em discurso vincadamente confuso, desordenado e disperso, reiterou não ter recebido, para si ou para a sua representada, a quantia titulada pelos 3 cheques a título de sinal do contrato-promessa. Disse que a confissão de dívida efectuada, cerca de 4 anos após o primeiro contrato-promessa (de 2009), mais não foi que uma «armadilha» arquitectada pelo Advogado, em quem na altura confiava representar o interesse de ambas as partes. O negócio foi «cozinhado» apenas para enganar a «B...», sociedade que à data se tentava apropriar dos prédios invocando a usucapião.

D... (da requerente) descreveu o que, para si, era o propósito negocial da requerente relativamente ao prédio objecto do contrato-promessa: pretendia adquiri-lo; como não tinha disponibilidade financeira para a totalidade do valor pretendido, propôs ao legal representante da requerida o pagamento de parte do preço mediante permuta de 2 ou 3 apartamentos e 2 lojas; entregou-lhe €375.000,00 de sinal, através de 3 cheques (de €300.000,00, €50.000,00 e €25.000,00, os dois últimos, em nome pessoal do Eng.º G..., a pedido deste); a escritura definitiva nunca foi feita porque o prédio estava em nome da «B...» e os €375.000,00 nunca lhe foram devolvidos. Mas uma tónica perpassou as suas declarações: todas as negociações, elaboração de contratos e procedimentos adoptados foram acompanhadas e orientadas pelo seu Advogado, o Dr. M..., a quem confiou o assunto; fazia o que o seu Advogado aconselhava.

Este Ilustre Advogado não foi ouvido nos autos.

Resta então analisar o teor dos documentos, máxime do contrato-promessa de 28/11/2012 que constitui a fonte do alegado crédito correspondente ao sinal em dobro, por incumprimento imputável à requerida.

A requerida diz que os mesmos são forjados, no sentido de não traduzirem a vontade real dos declarantes, não correspondendo à verdade que tenha recebido qualquer quantia a título de sinal.

E do próprio texto desse contrato-promessa emergem termos e condições que careciam de ser esclarecidos e não o foram.

Em primeiro lugar, perante o acordo das partes em afectar os €300.000,00 a parte do sinal do novo contrato-promessa, a que título ficou estipulada a restituição deste valor, acrescido do restante sinal, com garantia idónea a constituir? A única hipótese lógica seria para o caso de incumprimento do contrato-promessa. Mas se assim é, qual a razão para se ter fixado o prazo limite de 31/01/2012 para a requerida cumprir essa obrigação de restituição (considerando H), quando o próprio contrato definitivo seria agendado para data posterior, compreendida entre 15 e 31/01/2013 (vínculo 9.º)? Ou seja, a que título a obrigação de restituição ficou fixada para data anterior à da verificação da mora ou do incumprimento definitivo do contrato-promessa?

Em segundo lugar: o restante sinal, era de €50.000,00 ou de €75.000,00?

A requerente alega ter entregue, a título de reforço do sinal, €75.000,00 (€50.000,00 + €25.000,00).

Mas nos termos da promessa, o reforço do sinal teria de limitar-se a €50.000,00, para bater matematicamente certo o preço convencionado, de €3.477.500,00, com o modo de pagamento aí acordado: €300.000,00 (sinal já prestado) + €50.000,00 (sinal a prestar) + €1.000.000,00 (a pagar na data da outorga do contrato definitivo) + €700.000,00 (a pagar em 31/01/2014, caucionado através de garantia bancária) + €25.000,00 (a pagar em 31/07/2013, caucionado através de garantia bancária ou através de cheque pós-datado) + €1.402.500,00 (valor dos imóveis a permutar).

Mais: a 28/11/2012, G... declarou que a sua representada era devedora à aqui requerente da quantia de €350.000,00, resultante da não restituição do sinal de um contrato-promessa que não chegou a ser cumprido.

Assumindo que, nos termos do novo contrato-promessa, celebrado na mesma data de 28/11/2012, €300.000,00 correspondiam ao sinal já recebido e €50.000,00 a reforço do sinal, a prestar nessa ocasião, certo é que, nessa data, apenas teria sido entregue um cheque (meio de pagamento, não pagamento efectivo) pós-datado para 07/12/2012, com o compromisso de não ser movimentado em data anterior.

Pelo que, a ser assim, não poderia corresponder à verdade a declaração de que, em 28/11/2012, a requerida havia recebido da requerente €350.000,00 a título de sinal.

Cheque este (€50.000,00) de que não foi junta aos autos qualquer cópia.

Por outro lado, o cheque de €25.000,00, datado de 31/01/2013, em nome pessoal de G..., a que título e para que efeito foi emitido? De acordo com o novo contrato-promessa, cheque deste valor seria apenas para entregar aquando da celebração do contrato definitivo, pós-datado para 31/07/2013, em substituição de garantia bancária (vínculos 5.º e 6.º). Foi então para pagamento, na data da escritura de hipoteca e fiança (28/11/2012), de metade dos €50.000,00 que nessa ocasião a requerente deveria entregar à requerida? E neste caso, como foi paga a outra metade de €25.000,00?

Ainda, na missiva que a requerente dirigiu à requerida, com data de 22/05/2013, interpelou-a para o pagamento de €350.000,00 até 30/11/2013. Mas se nesta data, de acordo com a tese da requerente, a mesma já teria pago a quantia de €375.000,00 por conta do novo contrato-promessa, por que razão apenas interpelou para o pagamento de €350.000,00 e não da totalidade dos €375.000,00?

Acresce que do teor da carta dirigida pela requerida à requerente, em resposta, datada de 23/05/2013, conjugado com a declaração notarial de 29/04/2013, extrai-se não ter ficado líquido entre as partes a quem seria imputável a responsabilidade pelo incumprimento definitivo da promessa, pois ambas a atribuem à contraparte, excluindo a própria.

Tal questão não foi dirimida em acção judicial própria (contrariamente ao sucedido quanto à matéria do comodato), tendo a requerente lançado mão directamente do processo de insolvência.

E neste processo de insolvência, dos 3 cheques alegadamente entregues para pagamento do sinal, apenas foi junta cópia de 2.

Desconhece-se se foram efectivamente pagos, cancelados ou dados como extraviados, o que seria facilmente demonstrável mediante conciliação bancária (extracto de movimentação da conta ou declaração bancária, que não foi junta), a tanto não bastando a mera menção contabilística nas contas da requerente.

(…)

No caso, cotejada a matéria de facto dada como provada e não provada, evidencia-se que a requerente não justificou ser credora da requerida, com a extensão alegada.

Se relativamente à matéria do contrato de comodato, por sentença homologatória de transacção proferida a 14/01/2016, foi judicialmente fixado o valor de €21.950,00, de que a requerida se confessou devedora, atinente a indemnização pela mora na entrega do imóvel (pontos 21) e 22) dos factos provados), já assim não sucede quanto à matéria do contrato-promessa, que não foi objecto de acção declarativa prévia, não estando, pois, judicialmente verificado o invocado direito de crédito de €750.000,00 (atinente ao dobro do sinal prestado).

(…)

Naturalmente sem prejuízo da demonstração da existência do crédito em acção declarativa autónoma, especialmente vocacionada para esse efeito.

Assim, quanto a esta parcela do invocado crédito, claramente litigioso, falece à requerente legitimidade substantiva para requerer a declaração de insolvência da requerida.

Aqui chegados, a requerente justificou ser credora da requerida pelo valor de €21.950,00 (alcançado por acordo, judicialmente homologado, em 14/01/2016), montante relativamente ao qual foi ajustado o pagamento em prestações.

Este facto, por si, não evidencia a verificação da hipótese normativa de qualquer dos factos-índice da situação de insolvência prevenidos no n.º 1 do artigo 20.º, designadamente a das invocadas alíneas b) e g) – i), ii) e iv).

Nada mais se provou susceptível de preencher tal previsão.”.

Em face de quanto vem de referir-se pode seguramente concluir-se que a decisão recorrida julgou improcedente o pedido de declaração de insolvência da apelada formulado com fundamento na titularidade de um crédito emergente do incumprimento definitivo de um contrato-promessa pela apelada, com base no entendimento de que faltava legitimidade substantiva da requerente para com esse fundamento a solicitar, ilegitimidade substantiva essa que a decisão recorrida fez assentar em duplo fundamento: por um lado e em via principal, estar em causa um crédito litigioso a carecer de mais ampla e complexa indagação em acção autónoma própria para afirmar a sua (in)existência; por outro lado e em via subsidiária, a indemonstração efectiva dessa titularidade por parte da requerente.
1.4. Reportando-nos agora, no que concerne à concreta questão que está em análise, ao objecto do recurso tal qual foi delimitado pelas conclusões da apelante, verificamos que o mesmo se concentrou exclusivamente na questão da legitimidade substantiva da apelante para requerer a insolvência da apelada com fundamento na efectiva e demonstrada titularidade do crédito que tem estado a ser ponderado, pois que sustenta a apelante ter feito prova mais do que suficiente para que o tribunal recorrido desse como provada a titularidade activa pela apelante daquele crédito, tendo o tribunal recorrido incorrido em erro na apreciação daquela prova e na decisão de com base nela dar como não provada a titularidade daquele crédito, devendo o tribunal ad quem rectificar esse erro, dar como provada tal titularidade e concordantemente reconhecer à apelante a legitimidade substantiva que lhe foi negada pela sentença recorrida – centrou-se pois e exclusivamente na questão identificada no ponto 1.3 que antecede.

É o que claramente emerge das conclusões 4, 5, 6 (pontos 9º-a, 10-a, 11º-a, 25, 26 e 27), 8, 9, 11, 12, 13 e 14, através das quais a recorrente resume o seu esforço argumentativo no sentido de serem dados como provados aqueles que considera[7] serem os factos demonstrativos da titularidade do direito a que se arroga.

A significar que a recorrente descurou na enunciação da sua discordância jurídica o outro e prévio fundamento em que o tribunal recorrido assentou a sua decisão denegativa de legitimidade substantiva à requerente para peticionar a insolvência da ré e que radica no entendimento afirmado pelo tribunal recorrido de que o crédito em questão era litigioso e carecia de mais aprofundada indagação em acção autónoma, não podendo por isso constituir fundamento do pedido de insolvência feito com base nele – reportamo-nos à questão identificada no ponto 1.2 que antecede.

Lidas as conclusões da apelante nelas não se encontra a mínima discordância em relação a esse concreto segmento decisório que, por isso mesmo, não envolvendo qualquer questão de conhecimento oficioso a impor a intervenção ex-ofício deste tribunal, transitou em julgado

Estando definitivamente assente, por via do aludido efeito de caso julgado, que o crédito da requerente alegadamente decorrente de um incumprimento definitivo de um contrato-promessa é litigioso, devendo ser objecto de mais complexa e profunda indagação em acção autónoma, razão pela qual não confere tal crédito legitimidade substantiva para ser requerida a insolvência da ré, inviabilizada fica, do ponto de vista adjectivo, qualquer discussão do tipo da alimentada pela recorrente no sentido da efectiva demonstração da titularidade desse crédito que está impedida por aquele primeiro segmento decisório.

Na verdade, mesmo a proceder a pretensão recursiva fáctica da apelante enunciada na conclusão 6ª - e já se disse supra que tal não poderia seguramente ocorrer em relação à matéria conclusiva e jurídica que consta dos pontos 9º-a, 10-a, 11º-a, 25, 26 e 27 – ainda assim teria de prevalecer processualmente o caso julgado que se formou em torno da decisão do tribunal recorrido absolver a recorrida do pedido de insolvência, com o fundamento de que o crédito que vem sendo considerado é litigioso, a carecer de mais ampla indagação em acção autónoma, razão pela não conferia o mesmo legitimidade substantiva para ser requerida a insolvência do alegado devedor.
1.5. Em resumo: transitou em julgado a decisão que decretou a improcedência do pedido de insolvência com o fundamento de que o crédito emergente do alegado incumprimento definitivo e culposo, pela apelada, de um contrato-promessa descrito nos factos provados, não conferia ao alegado credor, ora apelante, legitimidade substantiva para com base nele requer a insolvência, por estar em causa um crédito litigioso que deveria ser objecto de prévia, autónoma e mais profunda indagação em processo próprio.

Como reflexo directo de quanto acaba de enunciar-se, fica claramente impedida, por tal se traduzir em acto inútil e proibido por lei (art. 130º NCPC), qualquer discussão fáctica ou jurídica sobre o tema de saber se a apelante é ou não efectiva titular de um direito de crédito emergente do incumprimento definitivo e culposo por parte da apelada de um contrato-promessa entre eles celebrado, e, na afirmativa, se com base nesse alegado direito de crédito deveria ter sido declarada a insolvência da ré.

Fica fora do objecto do recurso, assim, o teor das conclusões 4, 5, 6 (pontos 9º-a, 10-a, 11º-a, 25, 26 e 27), 8, 9, 11, 12, 13 e 14.

Em discussão fica, apenas, a parte do crédito referente ao incumprimento do contrato de comodato entre a apelante e a apelada.

Segunda questão: se a matéria fáctica se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada.

Em face do referido na questão primeira, o único ponto que pode ser abordado no âmbito desta segunda questão reporta-se à pretensão da recorrente no sentido de que seja dada como provada a seguinte matéria: “22-A) Das prestações referidas no ponto 22) dos factos provados, até à presente data, a requerida apenas pagou à requerente a primeira, no valor de € 800,00, tendo-se constituído em mora no pagamento do remanescente, no valor de € 21.150,00, a partir do dia 15/05/2016 – quantia de que ainda hoje permanece devedora.”.

O único meio de prova que a recorrente oferece para suporte da sua pretensão consiste nas declarações de parte prestadas em audiência pela própria apelante, através do seu legal representante.

Ora, às declarações de parte da apelante, enquanto pessoa com interesse directo no desfecho desta acção, com as consequentes reservas que devem ser colocadas à isenção, objectividade e credibilidade desse tipo de depoimentos, principalmente nos casos, como o dos autos, em que estão desacompanhadas de qualquer outro meio de prova que as suporte e corrobore, não podem reconhecer-se aquelas garantias de isenção, objectividade e credibilidade mínimas para poderem ser invocadas como suporte da convicção positiva de um tribunal expressa na decisão de dar como provado um determinado facto.

Como assim, com base nesse único meio de prova, não lobriga este tribunal fundamento suficiente para dar como provada a matéria de facto enunciada no ponto 22-A) sugerido pela apelante, cuja pretensão se julga improcedente.

Terceira questão: se a apelada deve ser declarada insolvente.

Preceitua o artigo 3.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março – Código a que pertencem as disposições infra citadas sem outra indicação - CIRE) que «É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas» e o n.º 2 do referido normativo que «as pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis», salvo quando o activo seja superior ao passivo avaliado de acordo com as regras ínsitas no n.º 3 da norma em análise.”.

Prescreve este n.º 3 do artigo 3.º: “Cessa o disposto no n.º anterior, quando o activo seja superior ao passivo, avaliados em conformidade com as seguintes regras:

a) Consideram-se no activo e no passivo os elementos identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor; b) Quando o devedor seja titular de uma empresa, a valorização baseia-se numa perspectiva de continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável, mas em qualquer caso com exclusão da rubrica de trespasse;

c) Não se incluem no passivo dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa de fundos distribuíveis ou de activo restante depois de satisfeitos ou acautelados os direitos dos demais credores do devedor».

Considera-se empresa, para efeitos do CIRE, toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica (vide artigo 5.º) e administrador aquele a quem incumba a administração da entidade em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente (artigo 6.º, n.º 1, alínea a).

Prescreve o n.º 1 do artigo 20.º que “A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos:

a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;

b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;

c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;

d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;

e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;

f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 218.º;

g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos:

(i) tributárias;

(ii) de contribuições e quotizações para a Segurança Social;

(iii) dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato;

(iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência.

h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no n.º 2 do artigo3.º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado..

Na situação em apreço, o único débito demonstrado e do qual é sujeito passivo a apelada, sendo dele sujeito activo a apelante, é o que decorre da matéria de facto dada como provada no ponto 22º) dos factos provados, nos termos do qual “No âmbito de tal acção, registada com o n.º ..., foi proferido saneador-sentença onde, em conhecimento parcial do mérito, foram os réus condenados a restituir à autora a fracção autónoma em questão; em sede de audiência de julgamento realizada a 14/01/2016, autora e réus lograram alcançar uma transacção quanto ao montante da indemnização devida pela mora na entrega do imóvel, fixando-a em €21.950,00, de que a ré se confessou devedora, a pagar pela ré à autora em 7 prestações mensais, a 1.ª de €800,00 até ao dia 31/01/2016 e a 2.ª de €4.000,00 até ao dia 15/05/2016; tal transacção foi homologada por sentença proferida nessa data (documentos de fls. 340 e ss e 348 e ss).”.

Os factos provados nada revelam sobre outros débitos de que a ré seja sujeito passivo, pois que a requerente não logrou provar, designadamente, que a ré fosse sujeito passivo dos demais créditos alegados nos arts. 26º e 27º da petição inicial - €400.000 de dívida, há mais de seis meses, ao Fisco e à Segurança Social; mais de €3.900.000 de dívida à L..., SARL e ao Banco C...

Nada revelam os autos quanto à situação patrimonial e financeira da ré, nem sequer sobre a sua situação actual no que toca à sua actividade comercial e industrial.

Neste parco enquadramento fáctico, somos a concluir, como o tribunal recorrido tinha feito, que os factos dados como provados não constituem o substrato necessário para se ter por integrado qualquer dos índices presuntivos de uma situação de insolvência de entre os enunciados no art. 20º/1 do CIRE.

E tanto basta para, sem necessidade de outras considerações, julgar a apelação improcedente.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão apelada.

Custas pela apelante.

Coimbra, 18/10/2016.


(Jorge Manuel Loureiro)

(Maria Domingas Simões)

(Jaime Carlos Ferreira)


Sumário:

I – A força do caso julgado abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam decididas na fundamentação como antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.

II) Se a decisão de absolvição de um réu constante do dispositivo da sentença decorreu da solução dada na fundamentação a uma dada questão preliminar, e se a solução dada a essa questão preliminar não consta entre as que se mostrem impugnadas nas conclusões do recurso, então aquela decisão absolutória com esse concreto fundamento transita em julgado, independentemente de nas conclusões serem abordados adicionais questões e fundamentos no sentido da revogação da absolvição contida no dispositivo da sentença.

III) Julgada improcedente uma acção de insolvência com fundamento em falta de legitimidade substantiva do requerente para a peticionar com o duplo fundamento de que (i) está em causa um crédito litigioso a carecer de mais ampla e complexa indagação em acção autónoma própria para afirmar a sua (in)existência e de que (ii) realmente não se demonstrou a titularidade efectiva desse crédito por parte da requerente, a decisão de improcedência poderá transitar em julgado autonomamente em relação a cada um desses fundamentos absolutórios.

IV) Se na apelação não se impugnou a absolvição com base no primeiro desses fundamentos, o caso em julgado que se forma em torno da decisão absolutória assim proferida constitui obstáculo a que se prossiga na apelação com a discussão em torno da absolvição radicada no segundo dos aludidos fundamentos, pois que em qualquer caso sempre teria de prevalecer intra-processualmente o caso julgado formado em torno da absolvição decorrente do acolhimento, não impugnado, do primeiro dos referenciados fundamentos de absolvição.


(Jorge Manuel Loureiro)



***


[1] Esse antecedente é integrado pelas questões preliminares cuja decisão integra o antecedente pressuposto cronológico, lógico e necessário da parte dispositiva da sentença.
[2] O conhecimento desses adicionais fundamentos e questões estará processualmente excluído por força do caso julgado formado em torno da decisão de absolvição assente num dado fundamento da sentença e na solução dela decorrente para uma questão que constitui o antecedente lógico e cronológico da absolvição.

[3]Diz-se litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado.” (art. 579º/3 do CC), assumindo-se como tal, por isso, aquele cuja existência seja posta em causa no próprio processo de insolvência, resultando o carácter controverso do mesmo da petição inicial ou da oposição do requerido.

[4] São exemplos dessas decisões, partidárias de uma denominada tese da legitimidade ampla, as seguintes: acórdãos da Relação do Porto de 26/1/2010, proferido no processo 97/09.8TYVNG.P1, de 3/11/2010, proferido no processo 49/09.8TYVNG.P1, de 29/9/2011, proferido no processo 338/11.1TYVNG.P1, de 16/12/2009, proferido no processo 242/09.3TYVNG.P1, acórdão da Relação de Lisboa de 16/3/2010, proferido no processo 742/09.0TBBNV.L1, e acórdão do STJ de 29/3/2012, proferido no processo 1024/10.5TYVNG.P1.S1.

[5] São exemplos dessas decisões, partidárias de uma denominada tese da legitimidade restrita, as seguintes: acórdão da Relação de Lisboa de 5/6/2008, proferido no processo 2526/2008, e acórdãos da Relação do Porto de 28/4/2009, proferido no processo 183/07.9TYVNG.P1, e de 5/3/2009,, proferido no processo 565/08.9TYBNG.

[6] São exemplos dessas decisões, partidárias de uma denominada tese da legitimidade mitigada ou híbrida, as seguintes: acórdãos da Relação de Lisboa de 2/11/2010, proferido no processo 1498/09.7TYLSB.L1, e de 22/11/2011, proferido no processo 433/10.4TYLSB.L1.

[7] De precisar que muito do que se descreve nos pontos 9º-a, 10-a, 11º-a, 25, 26 e 27 enunciados pela apelante são conclusões e afirmações de cariz jurídico que jamais poderiam constar de uma decisão de facto que, como emerge da sua própria denominação, deve ser integrada por factos concretos e postergada de afirmações conclusivas e de matéria de natureza jurídica – o conteúdo dos aludidos pontos 9º-a, 10-a, 11º-a, 26º e 27º são claros exemplos do que jamais este tribunal poderia acolher em sede de descrição de matéria de facto provada ou não provada.