Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
126/12.8GCSAT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: OBJECTO
APREENSÃO
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 07/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - MINISTÉRIO PÚBLICO - SÁTÃO - PROCURADORIA DA INSTÂNCIA LOCAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 97.º, 178.º, N.º 6, E 186.º, N.º 1, DO CPP; ART. 205.º DA CRP
Sumário: I - O propósito do legislador em proteger a propriedade, fazendo uso de incidentes ou procedimentos cautelares, deve funcionar de forma autónoma e independente do fim essencial do processo principal, designadamente no inquérito cuja preocupação do Ministério Público se deve centrar na investigação criminal, o que aliás, em nosso entender foi feito com respeito pela distribuição de poderes mesmo na fase de inquérito, enxertando um incidente judicial, para decidir uma questão colateral e que só decidida pelo juiz de instrução poderá ser sindicada pelo Tribunal de recurso.

II - Estando o veículo apreendido registado em nome do recorrente, não indiciado pela prática de qualquer crime e como tal interveniente acidental, presume-se que o veículo lhe pertence, por força do art. 7.º, do C.R.Predial e só deve manter-se a apreensão, uma vez verificados os requisitos para tal.

III - O despacho recorrido de indeferimento do levantamento da apreensão carece de fundamentação de facto e de direito, pois a decisão inserida num incidente judicial, em que está em causa a protecção do direito de propriedade do recorrente é omisso quanto a factos e quanto a razões de direito.

IV - Para os demais casos em que não se estabelecem especificamente quaisquer requisitos, a fundamentação da decisão deve conter os elementos indispensáveis que tornem compreensível a fixação dos factos e respectiva motivação do julgador e as razões de direito justificativas da decisão do tribunal.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra


I- Relatório
Em autos de inquérito em que é arguido A... entre outros, indiciado pela prática do crime de exploração ilícita de jogo, por factos praticados em 11/07/2012, imputados no auto de notícia de fls. 38 a 41, foi apreendido por uma patrulha da GNR, do Posto Territorial de Sátão, o veículo marca Toyota Hiace, matrícula (...) OI, conforme auto de apreensão de fls. 42 e 43, o qual se encontra registado, conforme cópia do registo de propriedade de fls. 44 junta a estes autos, em nome do recorrente B... .
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Por requerimento de fls. 48 a 55, dirigido ao Juiz de Instrução Criminal, entrado nos autos em 10/09/2012, veio o recorrente alegando ser um terceiro totalmente alheio aos autos de inquérito e na qualidade de proprietário do aludido veículo apreendido, requerer, ao abrigo do disposto no art. 178.º, n.º 6, do CPP, o levantamento da apreensão e consequente restituição. 
Justifica ainda que o dito veículo foi utilizado pelo arguido A..., a quem tinha sido facultada a utilização por alguns dias, para as suas deslocações pessoais, até ser concluída a reparação do veículo daquele.
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Ouvido o Ministério Público, na qualidade de titular do inquérito, promove o indeferimento em 12/09/2012 (fls. 56 e 57), justificando que está em investigação nos autos a prática do crime de exploração ilícita de jogo, imputado ao arguido A....
Alega ainda que o recorrente já havia apresentado anteriormente requerimento em 19/07/2012, dirigido ao magistrado do Ministério Público, o qual mereceu indeferimento, por despacho de 24/07/2012 (fls. 69), com o seguinte fundamento:
 « B... veio requerer o levantamento da apreensão da viatura, referindo em súmula ser o seu proprietário.
Neste momento, o inquérito ainda se encontra numa fase muito embrionária, pelo que não se afigura oportuno proceder ao levantamento requerido, já que os autos não permitem concluir se a viatura em causa, ainda que de propriedade de terceiro, estava ou não afecta à actividade ilícita que se investiga nestes autos.
Assim, sem prejuízo de, oportunamente, ser reavaliado o requerimento que antecede e poder ser levantada a apreensão da viatura, por ora, indefere-se o requerido».
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Na sequência de novo requerimento de 10/09/2012, dirigido à Ex.ma Juiz de Instrução Criminal, esta proferiu o despacho de indeferimento de fls. 47, datado de 18/09/2012, do seguinte teor:
«Estando os autos em fase de inquérito, e no seguimento da posição assumida pelo Ministério Público a fls. 186 e 199, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e uma vez que por ora, mantem interesse a apreensão do veículo automóvel de matrícula (...) 01 apreendido nos autos, podendo vir a concluir-se, no termo do inquérito, e tal como se indicia nesta fase, se mostrava afecta à actividade criminosa em investigação nos autos.
Pelo exposto, indefere-se ao requerido».
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Inconformado o requerente B... com este despacho dele interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
«A. Não pode o ora Recorrente concordar com o douto Despacho com a Ref.ª 621173 de fls ... dos autos, que indeferiu o levantamento da apreensão do veículo automóvel de propriedade do ora Recorrente, de matrícula (...) 01.
B. E desde logo, analisado atentamente o douto Despacho recorrido, é para nós líquido que, o mesmo padece de Nulidade, nos termos preceituados nos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. c) do C.P.Penal, porquanto, o Digníssimo Tribunal "a quo" não fundamentou, nos termos legais, aquela sua decisão, tão pouca se pronunciou sobre questões que deveria ter apreciado.
C. Deveria, ao contrário do que fez, o Digníssimo Tribunal "a quo" ter apreciado e decidido, concretamente, relativamente à factualidade vertida pelo Recorrente naquele seu requerimento, bem como, quanto à questão do enquadramento jurídico da factualidade presente nos autos em razão do aduzido quanto a tal matéria pelo ora Recorrente, pois que, a dar-se tal factualidade como assente ou a decidir-se como correcto o enquadramento ora "indicado" sempre implicaria decisão diametralmente oposta àquela que veio então a ser proferida pelo Digníssimo Tribunal “a quo”.
D. Ao arrepio do que é de direito, na medida em que, atento o ali decidido, uma tal Decisão se revela como legalmente "equiparável" a uma qualquer Sentença, limitou-se aquele Digníssimo Tribunal a aludir ao crime "visado" nos autos e a indeferir, sem mais, o peticionado,
E. Pelo que, não tendo um tal Despacho sido devida e legalmente fundamentado e por não haver o Tribunal se pronunciada sobre questão que deveria apreciar, padece aquele de manifesta Nulidade, nos termos do preceituado nos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. c) do C.P.Penal, o que expressamente se invoca com todas as consequências legais daí advenientes.
F. Sem conceder quanto a uma tal Nulidade, sempre se entende que, da matéria carreada para os autos, no requerimento sobre o qual "incidiu" o douto Despacho sob recurso, sempre se impunha decisão diversa daquela que veio a ser proferida pelo Digníssimo Tribunal "a quo".
G. Na verdade, com todo o devido e merecido respeito, ao contrário do vertido no douto Despacho recorrido, nunca o veículo automóvel apreendido nos autos poderá ser considerado como um qualquer instrumento e/ou produto de um crime, mormente, o crime de exploração ilícita de jogo ou mesmo o crime de material de jogo.
H. Senão porque, para além de o ora Recorrente ser um terceiro em relação à matéria em causa nos presentes autos, a verdade é que, a utilização do aludido veículo automóvel, naquele propalado dia 11 de Julho de 2012, pelo identificado A...foi meramente ocasional e isolada.
I. Não oferecendo, por isso, tal veículo automóvel, de propriedade do ora Recorrente, qualquer perigosidade para a segurança das pessoas, para a moral ou a ordem públicas, até porque, nunca foi por si destinado à prática de um qualquer ilícito penal, além do que, porque não voltará a ser facultado o seu uso a quem quer que seja, designadamente ao identificado A..., não existe um qualquer risco de poder ser utilizado para o cometimento de um qualquer ilícito penal.
J. Pelo que, não sendo o ora Recorrente sequer visado na acção de fiscalização que legitimou a apreensão de tal veículo automóvel, e, não sendo visado, por qualquer forma, nos presentes autos, entende-se modestamente que não existem, tão pouco alguma vez existiram, no caso presente, quaisquer pressupostos legais que justificassem tal apreensão, tal como preceituados no art. 178.º, do C.P.Penal.
K. Por outro lado, todo o material encontrado no interior do veículo automóvel em causa, de matricula (...) OI, aquando da sua apreensão, em razão de Auto de Notícia que deu origem aos presentes autos de inquérito crime, não era destinado à prática de um qualquer ilícito penal, designadamente, ao transporte e/ou exploração de quaisquer jogos de fortuna ou azar, apenas sendo subsumível, quanto muito, à prática de contra-ordenação, por enquadrado nas denominadas modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar.
L. Não se justificando, por isso, de forma alguma, a manutenção da apreensão do veiculo automóvel em causa nos autos, na medida em que, ao contrário do vertido no douto Despacho em "crise", um tal veículo não era utilizado como um qualquer instrumento de crime, bastando, para assim se concluir, atentar em toda uma séria de Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, mas, essencialmente, no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2010 (proferido no Processo n.º 2485/08 e publicado na 1.ª Série, N.º 46, do D.R. de 08 de Março de 2010), em sede de Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência.
M. Até porque, mesmo que possa o aludido material, encontrado no interior do veículo em causa aquando da sua apreensão, ser de qualificar como apto ao desenvolvimento das denominadas modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar, a verdade é que, ainda assim, tão pouco estaremos no caso presente perante a prática de um qualquer ilícito, ainda que do tipo contra-ordenacional, porquanto, estaremos, apenas e só, não perante a prática consumada de uma contra-ordenação, mas sim, perante a prática de actos preparatórios, os quais, por inexistência de disposição expressa nesse sentido, tão pouco serão de punir.
N. Não obstante, e sem conceder no supra exposto, mais se dirá que o veículo automóvel apreendidos nos autos não é passível de ser utilizado, com especial apetência, como um qualquer meio auxiliar à prática de um qualquer ilícito, seja por quem for, sendo tão susceptível como um qualquer outro veículo automóvel, de qualquer espécie, ou um qualquer outro meio de transporte, tão pouco se afigurando tal veículo como absolutamente essencial para uma tal conduta.
O. Tão pouco, o veículo apreendido, constitui um qualquer meio de prova do tipo de ilícito indiciado (independentemente de estarmos perante ilícito criminal ou contra-ordenacional), o que desde logo retira justificação à sua apreensão como meio de protecção e conservação da prova – art. 186.º, do C.P.Penal.
P. Sendo certo que, ainda que se possa vir a concluir por um qualquer ilícito criminal nos presentes autos, nada faz presumir que venha um tal veiculo a ser declarado perdido a favor do Estado, mais que não seja, atendendo à incongruência e desproporcionalidade de uma tal medida.
Q. Pois que, da ratio do art. 109.º, do C.Penal, e ainda que se debatam razões de índole preventiva, sempre resulta, numa qualquer declaração de perda, presente o principio da proporcionalidade, daí podendo resultar que não seja decretada a perda quando a mesma se mostre desproporcionada para com a importância, natureza ou a gravidade do facto ilícito praticado.
R. Mais se diga, e atendendo ao preceituado nesse art. 109.º, do C.Penal, mormente, à natureza do objecto apreendido e às circunstâncias do caso, que o veiculo apreendido não oferece o perigo típico exigido por lei para a sua eventual perda a favor do Estado – Cfr. neste sentido, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26-01-2000 e 24-03-2000.
S. Ademais, de referir que, naquele douto Despacho, o Digníssimo Tribunal "a quo", onera o ora Recorrente com um ónus, de não verificação dos legais pressupostos de apreensão, manutenção dessa apreensão, e posterior perda do veículo apreendido, seja, um ónus de fazer prova de que o veículo não estava afecto à actividade alegadamente criminosa que se investiga nos autos, o qual se afigura como totalmente inadmissível, por absolutamente ilegal.
T. Isto porque, se assim fosse, e incumbisse a um qualquer "visado", de diligência de apreensão, o ter que provar a "acidentalidade" da utilização do objecto apreendido (neste caso, do veículo apreendido), sempre o nosso legislador teria formulado outros pressupostos legais, a acrescer aos presentes no art. 178.º, do C.P. Penal, ou teria formulado os existentes numa formula negativa, o que não sucedeu.
U. Até porque, conforme bem resulta, uma qualquer apreensão, como meio de obtenção de prova que é, terá sempre que ter a natureza meramente preventiva ou cautelar, cujo escopo consiste em facilitar a instrução do processo para se proteger a realização do direito criminal e, nunca, natureza punitiva.
V. Donde, e tendo em conta tudo o preceituado no art. 109.º, n.º 1, do C.Penal, mas, essencialmente, a ratio desse normativo legal, pois que, ainda que se debatam razões de índole preventiva, na declaração de perda, tem que estar obrigatoriamente presente o principio da proporcionalidade, permitindo-se que aquela não seja decretada quando se mostre desproporcionada para com a importância, natureza ou a gravidade do facto ilícito praticado.
W. Ao que acresce a inexistência de uma qualquer conclusão, pelo menos válida e legal, de que o veículo automóvel, apenas porque no dia da sua apreensão continha no seu interior material que se entenderá como ilícito, se apresenta como um qualquer produto de uma qualquer actividade ilícita, designadamente, do crime de exploração ilícita de jogo que surge indiciado nos presentes autos.
X. Sempre teremos que concluir que, no caso presente, não se afigura sequer possível (quanto mais previsível), por desproporcional, uma qualquer declaração futura de perda do veículo apreendido a favor do Estado, porquanto, não se afigura viável uma qualquer conclusão objectiva do relacionamento de um tal veículo com a prática de um qualquer ilícito penal.
Y. Pelo que, não se afigurando um tal veículo automóvel como um qualquer meio de prova, de uma qualquer actividade alegadamente ilícita indiciada nestes autos, deverá determinar-se, ao invés do decidido no douto Despacho ora recorrido, o levantamento da sua apreensão.
Z. Isto porque, para além de não existir um qualquer risco de puder vir o mesmo a ser utilizado para o cometimento de um ilícito penal, o mesmo não oferece uma qualquer perigosidade para a segurança das pessoas, para a moral ou ordem públicas.
M. O douto despacho sob recurso violou os arts. 178.º e 186.º do C.P.Penal e 109.º, n.º 1, do C.Penal, e padece da Nulidade preceituado nos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. c), do C.P.Penal».
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Respondeu o Ministério Público na 1.ª instância ao recurso interposto, nos termos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, pugnando pela sua improcedência, formulando as seguintes conclusões:
«1. No âmbito dos presentes autos investiga-se a prática do crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelos termos conjugados dos artigos 1.°,3.° e 108.º, do DL n.º 422/89, de 02/12, na redacção dada pelo D.L. n.º 10/95, de 19/01, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 28/2004, de 16/07, D.L. 40/2005, de 17/02 e pela L. 64-N2008, de 31/12.
2. No dia 11 de Julho de 2012, militares da GNR de Sátão procederam à fiscalização do veículo com a matrícula (...) OI, pertencente ao ora recorrente, verificando-se que no seu interior encontravam-se diversas máquinas que desenvolvem jogos de fortuna e azar, explorados fora dos locais legalmente autorizados.
3. Nessa ocasião, foram apreendidas quatro máquinas, a viatura de matrícula (...) OI e, bem assim, diversa documentação manuscrita e impressa, da qual consta uma relação de estabelecimentos comerciais, localizados por toda a zona centro, bem como quantias monetárias extraídas das máquinas, comissões correspondentes aos exploradores, montantes de prémios pagos e objectivos a atingir para efeitos de pagamento de comissões.
4. Por decisão proferida em 18 de Setembro de 2012, o Tribunal a quo indeferiu o pedido de levantamento da apreensão da aludida viatura, apresentado pelo ora recorrente.
5. O despacho recorrido encontra-se devidamente fundamentado, pois o Tribunal a quo sufragou a posição assumida pelo Ministério Público, dando por integralmente reproduzido o teor dos despachos por si proferidos, considerou que se mantinha interesse na apreensão e ainda que -existem indícios que a viatura com a matricula (...) OI estava relacionada com a actividade criminosa em investigação nos autos.
6. Assim, o despacho recorrido não violou o disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código de Processo Penal, não padecendo de qualquer nulidade.
7. Por outro lado, a sobredita viatura serviu para a prática do crime em apreço nos autos e desenvolveu um papel importante na forma como foi desenvolvida essa actividade ilícita.
8. Ademais, existe uma forte probabilidade da viatura apreendida vir a ser declarada perdida a favor do Estado, pelo que a sua apreensão não é desajustada.
9. Deste modo, urge concluir que o despacho recorrido não violou qualquer dispositivo legal, designadamente, o disposto nos artigos 178.º e 186.º, ambos do Código de Processo Penal e no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal».
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Neste Tribunal da Relação, os autos tiveram vista do Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, o qual emitiu douto parecer acompanhando de perto a resposta do Ministério Público na 1.ª instância, concluindo igualmente que o despacho recorrido não sofre de nulidade por falta de fundamentação e que se mostram reunidos os pressupostos legais para se manter a apreensão.
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Cumprido que foi o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, veio responder o recorrente, reafirmando que o despacho sofre da nulidade apontada e que deve ser levantada a apreensão do veículo por não se verificarem os pressupostos.
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Foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre decidir.
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II- O Direito
As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão a decidir:
Apreciar se o despacho recorrido que indeferiu o levantamento da apreensão do veículo, requerido pelo proprietário, interveniente acidental nos autos, sofre de nulidade por falta de fundamentação e se estão ou não reunidos os pressupostos para se manter a apreensão, cujo condutor que fez uso do mesmo está indiciado da prática do crime de exploração ilícita de jogo.

Apreciando:
Correm autos de inquérito contra A..., entre outros, indiciado pela prática do crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelos termos conjugados dos artigos 1.°,3.° e 108.º, do DL n.º 422/89, de 02/12, na redacção dada pelo D.L. n.º 10/95, de 19/01, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 28/2004, de 16/07, D.L. 40/2005, de 17/02 e pela L. 64-N2008, de 31/12, por factos praticados em 11/07/2012, no âmbito do qual foi apreendido por uma patrulha da GNR, do Posto Territorial de Sátão, o veículo marca Toyota Hiace, matrícula (...) OI, o qual se encontra registado, m nome do recorrente B....
Nos termos do art. 178.º, n.º 1, do CPP são apreendidos os objectos que tiverem servido para a prática do crime.
O veículo em causa foi utilizado para transporte de bens que faziam parte da prática do crime indiciado nos autos e como tal foi justificadamente apreendido pelo órgão de polícia criminal que procedeu à operação de fiscalização e depois objecto de validação pela competente autoridade judiciária, neste caso o Ministério Público, de acordo com o disposto nos n.ºs 4 e 5 daquele mesmo artigo.
É pois ao Ministério Público que incumbe a decisão sobre a necessidade ou desnecessidade de manter a apreensão para efeitos de prova e, consequentemente decidir sobre a entrega dos objectos e bens apreendidos.
Porém, quem se sentir lesado no seu direito de propriedade pela apreensão ordenada, pode requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida, conforme estipula a norma protectora constante do n.º 6. 
Como decorre do art. 68.º, 5, aplicável ex vi art. 178.º, n.º 6, ambos do CPP com as necessárias adaptações, estamos perante um incidente enxertado nos autos de inquérito, que pode decorrer em separado, o qual deve ser instruído com os elementos necessários para um justa decisão.
E tratando-se de um incidente assim deve ser tratado e decidido e não como mero despacho de expediente.
A atribuição ao juiz de instrução da possibilidade de revogar a apreensão não é convergente com a direcção do inquérito pelo Ministério Público. Se o propósito do legislador foi proteger a propriedade fê-lo contrariando a distribuição de poderes na fase de inquérito, enxertando um incidente judicial, e contraditório, sobre a propriedade no inquérito, tornando o juiz de instrução uma instância de “recurso” da decisão do Ministério Público. A decisão do Ministério Público de restituição de um objecto apreendido não é passível de sindicância nos termos do art. 178.º, n.º 6, do CPP, conforme anota Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2.ª Ed., pág. 491.  
Neste aspecto não estamos de acordo com o ilustre processualista, quando refere que a atribuição ao juiz de instrução da possibilidade de revogar a apreensão não é convergente com a direcção do inquérito pelo Ministério Público, pois os incidentes de apreensão ou procedimentos cautelares são comuns a processos cíveis e processos criminais e por isso a função de os decidir nada colide com a direcção do inquérito.
O propósito do legislador em proteger a propriedade, fazendo uso de incidentes ou procedimentos cautelares, deve funcionar de forma autónoma e independente do fim essencial do processo principal, designadamente no inquérito cuja preocupação do Ministério Público se deve centrar na investigação criminal, o que aliás, em nosso entender foi feito com respeito pela distribuição de poderes mesmo na fase de inquérito, enxertando um incidente judicial, para decidir uma questão colateral e que só decidida pelo juiz de instrução poderá ser sindicada pelo Tribunal de recurso.
Ora, tratando-se de um incidente judicial enxertado no inquérito, o mesmo deve ser nesses termos instruído e a decisão deve ser fundamentada de facto e de direito.
De acordo com o disposto no art. 178.º, n.º 7, do CPP, se os objectos apreendidos forem susceptíveis de ser declarados perdidos a favor do estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o.
Por outro lado, logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, nos termos do art. 186.º, n.º 1, do CPP.
No caso dos autos, estando o veículo apreendido registado em nome do recorrente, não indiciado pela prática de qualquer crime e como tal interveniente acidental, presume-se que o veículo lhe pertence, por força do art. 7.º, do C.R.Predial e só deve manter-se a apreensão, uma vez verificados os requisitos para tal. 
Ora, o despacho recorrido de indeferimento do levantamento da apreensão de 6 linhas, carece de fundamentação de facto e de direito, pois a decisão inserida num incidente judicial, em que está em causa a protecção do direito de propriedade do recorrente é omisso quanto a factos e quanto a razões de direito. 
Depreende-se que o recorrente na sua motivação de recurso alega que a decisão recorrida não contém os requisitos exigidos no art. 374.º, n.º 2, verificando-se assim, na sua opinião, a nulidade do art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.
A falta de fundamentação alegada, tem apoio legal, mas cremos que por via diferente.
Segundo o princípio constitucional do art. 205.º da CRP "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na Lei".
Por sua vez dispõe o art. 97.º, n.º 5, do CPP que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto de direito da decisão.
Só em casos pontuais, como acontece com a sentença, que é o acto decisório por excelência, a lei especifica com pormenor e maior rigor os requisitos da fundamentação, conforme o disposto no art. 374.º n.º 2 e 3, cominando a falta do seu cumprimento na nulidade do art. 379.º, ambos do CPP.
Para os demais casos em que não se estabelecem especificamente quaisquer requisitos, a fundamentação da decisão deve conter os elementos indispensáveis que tornem compreensível a fixação dos factos e respectiva motivação do julgador e as razões de direito justificativas da decisão do tribunal.
A falta de fundamentação dos actos decisórios, que não sentença-crime, não constitui nulidade, nos termos do art. 118.º, n.º 1, do CPP, por não estar expressamente cominada na lei.
Constitui sim mera irregularidade de acordo com o disposto no art. 123.º, do CPP, que afecta o valor da acto praticado.  
O objectivo da fundamentação é, no dizer do Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, 2.ª Ed., III, pág. 294 a de permitir “ a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina”.
Como escreve Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processo Penal, pág. 229, “ Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência”.
Embora não se trate de uma sentença-crime, a qual o tribunal deve ser fundamentada com cumprimento rigoroso das formalidades do art. 374.º, do CPP, a decisão aqui posta em crise, porque não se trata de mero despacho de expediente, deve ser minimamente fundamentada, fazendo constar da mesma os factos provados em análise, sobre os quais deve incidir a sua decisão e fundamentar de facto e de direito a sua opção, que leva ao indeferimento do levantamento da apreensão do veículo.
Só assim uma decisão poder ser compreendida pelos seus destinatários e conter todos os elementos para poder ser aceite ou ser atacada em caso de não conformação com a mesma. 
A apreensão do veículo foi feita em 11/07/2012 e a decisão que indeferiu o levantamento é de 18/09/2012.
O despacho de indeferimento do Ministério Público de 24/07/2012, foi proferido com o fundamento de que o inquérito ainda se encontrava numa fase muito embrionária, pelo que não se afigurava oportuno proceder ao levantamento requerido, já que os autos não permitiam concluir se a viatura em causa, ainda que de propriedade de terceiro, estava ou não afecta à actividade ilícita objecto de investigação nos autos.
Este foi o único fundamento de indeferimento e que importava apreciar de se verificava ou não.
Tal indeferimento deixou a nota, sem prejuízo de, oportunamente, ser reavaliado o requerimento que antecede e poder ser levantada a apreensão da viatura.
Embora não seja relevante para apreciar os pressupostos da apreensão à data do requerimento do recorrente, sempre será oportuno dizer que agora estamos nitidamente fora de tempo na apreciação de tal decisão, decorridos que foram cerca de 3 anos!
A decisão proferida no incidente de levantamento de apreensão de veículo, posta em crise, não satisfaz as exigências mínimas de fundamentação com a especificação dos motivos de facto e motivos de direito, que fundamentam a decisão de indeferimento.
Impunha-se que, tratando-se de um incidente judicial, enxertado no processo de inquérito, que a senhora juíza fixasse minimamente os factos objecto de decisão e depois de os apreciar fundamentasse a verificação ou não dos requisitos para se manter ou não a apreensão do veículo.
Apesar de se tratar de processo de inquérito, não basta que o Ministério Público promova que “se indefira a o requerido levantamento da viatura e a inquirição das testemunhas arroladas”, para de forma acrítica tal promoção mereça deferimento.
Voltamos a repetir, estamos perante um incidente judicial e a senhora juíza de instrução, enquanto autoridade judiciária, para o dirigir e decidir tal incidente de forma autónoma do inquérito, nem sequer se pronunciou sobre a prova arrolada e limitou-se a deferir a promoção do Ministério Público.
O tribunal podia e devia ter assegurado o contraditório ao recorrente, princípio constitucionalmente assegurado para protecção da defesa dos direitos de qualquer cidadão, designadamente o direito de propriedade e as razões da sua pretensão, nos termos do art, 32.º, n.º 5, da CRP.
O art. 178.º, n.º 7, do CPP impunha que o recorrente, enquanto titular do direito de propriedade do veículo fosse ouvido e que fosse discutida de forma rigorosa se estão ou não reunidos os requisitos para se manter a apreensão do veículo.
E esta discussão rigorosa e desapaixonada só pode ser feita fora do âmbito do inquérito, mas decidida de forma fundamentada quer de facto quer de direito.
Concluímos assim que a decisão recorrida não se encontra devidamente fundamentada, nos termos do art. art. 205.º, n.º 1, da CRP e art. 97.º, n.º 5 do CPP, tendo como consequência a irregularidade prevista no art. 123.º, deste último diploma legal, determinando a sua invalidade por afectar o valor daquele acto decisório.
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III- Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente B..., e, em consequência, se revoga a decisão recorrida que indeferiu o levantamento da apreensão do veículo marca Toyota Hiace, matrícula (...) OI, a qual deve ser substituída por outra que supra a irregularidade apontada, devendo a ser devidamente fundamentada quer de facto, quer de direito, nos termos dos art. 205.º, n.º 1, da CRP e art. 97.º, n.º 5, do CPP.
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Sem custas, nos termos do art. 513.º, n.º 1, do CPP.
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NB: Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP. 

Coimbra, 01 de Julho de 2015
(Inácio Monteiro - relator)
(Alice Santos - adjunta)