Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
35/15.9GAMDA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
VEÍCULO COM OU SEM MOTOR
ACUSAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Data do Acordão: 06/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (V. N. FOZ CÔA – INST. LOCAL – SEC. COMP. GEN. – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 292.º, N.º 1, DO CP; ART. 117.º, N.º 1, DO CE
Sumário: I - Tendo sido dado como provado que o arguido conduzia um veículo com determinada matrícula, a viatura em causa só pode ser com motor, tendo em conta o disposto no n.º 1 do artigo 117.º do Código da Estrada.

II - Ainda que a acusação tivesse omitido as demais características do veículo, não estava o tribunal a quo inibido de recorrer ao auto de notícia - base da sua convicção -, onde consta tratar-se de um “veículo ligeiro, de mercadorias, da marca Mitsubishi, modelo L200, de cor branco”.

III - Sendo irrelevante, à estrutura normativa do artigo 292.º, n.º 1, do CP, que o veículo possua (ou não) motor, a factualidade assim descrita na acusação, dada como provada na sentença, é suficiente, na referida dimensão, à perfectibilização do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

O Ministério Público veio interpor recurso da sentença que absolveu o arguido A... da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.

E, da respectiva motivação extraiu as seguintes conclusões:

1. Por sentença proferida nestes autos, em 07/12/2015, o arguido foi absolvido da prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. nos termos do artigo 292.º n.º 1 e 69.º n.º 1, alínea a) do Código Penal, com fundamento na insuficiência dos elementos objectivos indicados na acusação, cuja falta não seria passível de integração.

2. Salvo o devido respeito por opinião diversa, entendemos que a não indicação na acusação de que o veículo em causa era ligeiro ou pesado, a motor ou sem motor, revela-se conclusivo e inadequado do ponto de vista da técnica acusatória, não sendo a sua distinção relevante para efeitos de punição, uma vez que o tipo legal pune, tanto a condução em estado de embriaguez de veículos a motor como sem motor.

3. Por outro lado, o auto de notícia - elemento probatório relevante - contém a indicação clara das características do veículo cuja matrícula indicamos na acusação, o que não carecia sequer que fosse lançado mão do instituto da alteração não substancial dos factos, tal como previsto no artigo 358.º n.º 1 do Código de Processo Penal, pois tais elementos são secundários e, desde logo, redundantes para o arguido, que bem conhece o veículo que conduzia, não contendendo com o seu direito de defesa e contraditório a sua não comunicação e concessão de prazo para defesa.

4. Aliás, o Mmo Juiz lança mão, na sua argumentação, do Acórdão de Uniformização da Jurisprudência n.º 1/2015, fazendo crer que a ausência de elemento subjectivo - que constitui matéria do referido acórdão - encontra alguma identidade com a situação vertente, ao ponto dos argumentos aí aduzidos terem aqui alguma aplicabilidade.

5. Assim sendo, parece-nos que os elementos de prova - v.g. auto de notícia - ­carreados para os autos não foram valorados na sua plenitude, assim como a interpretação jurídica dos mesmos não foi adequada e consentânea com a previsão do artigo 292.º n.º 1 do Código Penal e até mesmo com as considerações vertidas no citado Acórdão de Uniformização e institutos previstos nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal; a valoração adequada sempre consideraria a suficiência da matéria probatória e a perfeição da acusação, de modo a que a solução dos autos fosse a condenação, conforme pugnamos em sede de alegações orais.

Termos em que deverá ser dado provimento ao recurso, ora interposto e, consequentemente, ser revogada a decisão absolutória, substituindo-se por outra que, interpretando de forma adequada a prova constante dos autos, faça a sua exata subsunção ao direito aplicável.


*
O arguido não respondeu.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, por entender que “todos os elementos do tipo podem ser verificados na matéria provada nos pontos 1, 2 e 3, na medida em que de acordo com a tipificação legal é indiferente que o veículo conduzido pelo arguido tenha ou não motor. Provada que está a condução sob o efeito do álcool (1,50 g/l) de veículo na via pública a matéria é suficiente, concretamente quanto ao elemento objectivo da infracção, para a decisão de direito de condenar o arguido, sem que se verifique o vício do art. 410º, n.º 2, al. a), do CPP. (…) atenta a matéria de facto provada, bem assim a sua situação pessoal, social, económica, familiar e os antecedentes criminais, deverá ser aplicada ao arguido uma pena de multa não inferior a 70 dias de multa, à taxa de 6,00 euros e, uma pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis não inferior a 4 meses, considerando o disposto nos artigos 40º, 70º, 71º, 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal”.

Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP, o arguido não apresentou resposta.
Os autos tiveram os vistos legais.

***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta da sentença recorrida:

 “2.1. Factos provados

2.1.1. Da acusação pública

1- No dia 25 de Maio de 2015, a hora não concretamente apurada mas próxima das 00h03, o Arguido A... conduzia o veículo de matrícula (...) JT na Estrada Nacional 334 EN 334, em Prova, Mêda, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,501 g/l.

2- O Arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que antes de iniciar a condução daquele veículo havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para lhe determinar tal taxa de álcool no sangue, não se tendo abstido, mesmo assim, de o conduzir.

3- Agiu sob convicção de que a condução de veículos na via pública, nas condições em que o fez, é proibida e punida pela lei penal.


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2.1.2. Outra factualidade relevante

4- O Arguido completou a 4.ª classe.

5- É agricultor de profissão, trabalhando por conta própria.

6- Ocasionalmente também trabalha à jeira, auferindo 35€ ao dia.

7- Retira proventos anuais da venda de vinho e de azeite, em quantia não apurada.

8- É casado vivendo com a sua esposa em casa própria.

9- A esposa é doméstica.

10- Tem 3 filhos já casados.

11- Despende 200€ mensais com um empréstimo para aquisição de uma carrinha.

12- Possui o seguinte antecedente criminal registado:

a. pela prática de um crime de desobediência, em 28 de Agosto de 2011, foi condenado por sentença transitada em julgado a 27 de Setembro de 2011 na pena de 59 dias de multa à taxa diária de 5€.


*

2.2. Factos não provados

2.2.1. Da acusação pública

                  Nenhum.


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2.2.2. Outra factualidade relevante

a- Os proventos referidos em 7- são de 500€ anuais.

b- O Arguido subsiste com o apoio económico da sua mãe.


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2.3. Motivos de facto

Factos provados 1- a 3-. Esta factualidade tem pleno sustento na prova documental examinada em audiência, – mais concretamente o auto de notícia de fls. 3 e talão de alcoolímetro de fls. 4 –, e no depoimento da testemunha B... , militar da GNR que elaborou o mencionado auto e procedeu à acção de fiscalização em causa.

Referiu a mencionada testemunha, em síntese, que no dia 25 de Maio depararam-se – a testemunha e um colega que estavam de patrulha às ocorrências – com uma viatura parada no meio da via, com os máximos ligados.

No interior estava o Arguido, adormecido, e ao ser surpreendido pela patrulha arrancou com o seu veículo, mas os militares começaram a gritar pelo seu nome – uma vez que o colega da testemunha já conhecia o Arguido –, e o mesmo acabou por parar um pouco mais à frente.

Logo depois, foi identificado e submetido ao teste do balão, tendo acusado a taxa de 1,501 g/l (cf., talão de fls. 4), depois de deduzido o erro máximo admissível.

A referida testemunha depôs de forma totalmente isenta, clara e coerente, não se depreendendo em que medida é que, conforme referiu a defesa em sede de alegações orais, o seu depoimento colide com as regras da experiência comum.

Não existe qualquer outra explicação razoável para o facto de o Arguido estar parado no meio da via, adormecido no interior do seu veículo, com os máximos ligados.

Tal circunstancialismo somente leva à conclusão de que, em momento temporalmente próximo da acção de fiscalização, o Arguido conduzia o seu veículo da dita Estrada Nacional, com a sobredita taxa de álcool no sangue.            

Quanto aos factos imputados, o Arguido prestou declarações, apenas, no momento a que alude o art.º 361.º do Cód. Proc. Penal, referindo tão-somente que o militar da GNR é que o mandou avançar, algo que se afigura relativamente inócuo ao assim reconhecer, implicitamente, que efectivamente estava adormecido no meio da estrada.

Os factos provados 2- e 3- extraíram-se por presunção judicial, enquanto motivação típica, e por isso mesmo presumível, de quem age como agiu o Arguido.

Factos 4- a 12-. Esta factualidade extraiu-se das declarações do Arguido e do certificado do registo criminal de fls. 54-55.

Factos a- e b-. Estes factos, também provindos das declarações do Arguido, não mereceram credibilidade na medida em que, notoriamente, os rendimentos que o Arguido, após grande insistência, foi concretizando, não se compaginam com as suas condições de vida – é casado, vive em casa própria e despende 200€ mensais com a aquisição de uma carrinha; de igual modo se afigurou pouco ou nada credível quando mencionou que subsistia com o apoio económico da sua mãe.


***

APRECIANDO

Como é sabido, o âmbito dos recursos é limitado em função das conclusões extraídas da respectiva motivação, pelos recorrentes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, conforme o disposto nos artigos 412º, n.º 1 e 410º, n.ºs 2 e 3 do CPP.

No presente recurso, a Recorrente, discordando da motivação de direito constante da sentença, pugna pela condenação do arguido, por considerar que os elementos de prova – v.g. auto de notícia – carreados para os autos não foram valorados na sua plenitude, assim como a interpretação jurídica dos mesmos não foi adequada e consentânea com a previsão do artigo 292º, n.º 1 do Código Penal.


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Pese embora a factualidade dada como assente, foi o arguido absolvido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez de que se encontrava acusado, constando na motivação de direito da sentença recorrida:

«Compulsada a matéria de facto provada (2.1.1.), todavia, há que concluir que a mesma é insuficiente para o preenchimento integral dos pressupostos objectivos do ilícito criminal em equação.

Ali se refere (2.1.1.), apenas, que o Arguido «conduzia o veículo de matrícula (...) JT» – assim como referia acusação, integralmente provada.

É elemento objectivo do tipo, nos termos do mencionado normativo, «conduzir veículo, com ou sem motor».

Salvo melhor opinião, a expressão «veículo de matrícula (...) JT», é insuficiente para o preenchimento do dito pressuposto objectivo, porquanto da mesma não se depreende qual o veículo em concreto a que se reporta.

Tratar-se-á de uma bicicleta? De um automóvel? De um tractor? No universo de «veículos» sujeitos a matrícula, cabem vários tipos de «veículos», passe a redundância.

Também não se sabe se o «veículo» sub judice é com ou sem motor – e trata-se de uma insuficiência fáctica insuprível, no modesto entender do Tribunal.

(…)

Em suma, uma vez que não é possível extrair da factualidade provada se o Arguido conduzia um veículo com ou sem motor, sabendo-se apenas que conduzia um «veículo», o que, salvo melhor opinião, é claramente insuficiente para o preenchimento de tal elemento objectivo do tipo, impõe-se, necessariamente e sem necessidade de ulteriores considerações, a sua absolvição.»

Estabelece o n.º 1 do artigo 292º do CP que Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Portanto, são elementos objectivos do tipo deste ilícito: - a condução de veículo, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.

E, preceitua o n.º 1 do artigo 117º do Código da Estrada (sob a epígrafe Obrigatoriedade de matrícula) que «Os veículos a motor e os seus reboques só são admitidos em circulação desde que matriculados, salvo o disposto nos n.ºs 2 e 3.».

Ora, tendo sido dado como provado que o arguido conduzia o veículo de matrícula (...) JT, resulta evidente que se trata de um veículo com motor; e ainda que a acusação não indicasse as demais características da viatura em causa, não estava o tribunal a quo inibido de recorrer ao auto de notícia de fls. 3 (que serviu de base à sua convicção), face ao seu valor probatório, onde consta que é um “veículo ligeiro, de mercadorias, da marca Mitsubishi, modelo L200, de cor branco”.

O auto de notícia vale como documento autêntico quando levantado ou mandado levantar por autoridade pública (art. 363º, n.º 2 do CC) seja autoridade judiciária ou autoridade policial e, por isso, faz prova dos factos materiais dele constantes nos termos do art. 169º do CPP; estabelecendo o artigo 170º, n.º 3 do Código da Estrada que “O auto de notícia levantado e assinado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário”.

Na condenação pelo crime previsto no artigo 292º do CP, teremos de ter presente o bem jurídico protegido por esta norma e a natureza do crime. Serve isto para dizer que, tratando-se de crime de perigo abstracto, e sendo o bem protegido pela norma incriminadora a segurança da circulação rodoviária (referido à pessoa do condenado e não ao tipo de veículo que se conduz), tão perigosa é para a segurança rodoviária, a condução sob a influência do álcool de um veículo com motor ou sem motor.

Por conseguinte, sendo indiferente tratar-se de um veículo com ou sem motor, a factualidade descrita na acusação e dada como provada é suficiente, mostrando-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivo do crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.


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Deste modo, impondo-se a condenação do arguido, e tendo o mesmo sido absolvido na 1ª instância, deve esta Relação proceder à determinação da espécie e da medida da(s) pena(s), conforme Acórdão do STJ n.º 4/2016 (publicado no DR n.º 36/2016, Série I, de 22-2-2016).

O crime tipificado no artigo 292º, n.º 1 do Código Penal, é punível, em abstracto, com prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias, e ainda com pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, nos termos do artigo 69º, n.º 1, al. a) do mesmo Código.

Face ao disposto no artigo 70º do CP e à factualidade dada como provada, designadamente a anterior condenação por crime de desobediência, entendemos que a pena de multa realizará de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Para a determinação da medida concreta da pena há que fazer apelo aos critérios definidos pelos artigos 71º e 47º, n.º 1 do Código Penal, nos termos dos quais, tal medida será encontrada dentro da moldura penal abstractamente aplicável, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.

Atendendo à materialidade considerada provada, são os seguintes os factores que relevam para a medida da pena:

I- Execução do facto

Há a considerar o grau de ilicitude, sendo que a taxa de álcool se situa a 0,3 g/l acima do limite que separa o ilícito criminal da contra-ordenação. A culpa consubstancia-se na existência de dolo directo.

II- Personalidade e condições do arguido:

É agricultor de profissão, trabalhando por conta própria.

Ocasionalmente também trabalha à jeira, auferindo 35€ ao dia.

Retira proventos anuais da venda de vinho e de azeite, em quantia não apurada.

Completou a 4.ª classe.

É casado, vivendo com a sua esposa em casa própria. Tem 3 filhos já casados.

 Despende 200€ mensais com um empréstimo para aquisição de uma carrinha.

 Foi condenado pela prática de um crime de desobediência, em 28 de Agosto de 2011, na pena de 59 dias de multa à taxa diária de 5€.

Ora, sendo de 10 a 120 dias a medida abstracta da pena de multa, afigura-se-nos como proporcional e adequada a pena de 60 dias de multa.

Sobre a taxa diária da multa, é a mesma fixada em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, correspondendo cada dia de multa a uma quantia entre € 5 e € 500, como prescreve o n.º 2 do artigo 47º do CP.

Neste ponto, face aos rendimentos e encargos dados como assentes, entendemos também como justa a taxa diária de € 6,00 , a que corresponde a multa global de € 360,00.

A realçar que, após as alterações introduzidas ao Código da Estrada pelo DL n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, a contra-ordenação relativa à condução com álcool com uma taxa de alcoolémia superior a 0,8 g/l, mas inferior a 1,2 g/l, passou a ser punida com uma coima de    € 500 a € 2500 (art. 81º) – valores que se mantiveram com as alterações introduzidas ao CE pela Lei n.º 72/2013, de 3 de Set.

Logo, a condenação do arguido, no caso vertente, é inferior a tais montantes.

Como verificamos, situações poderão ocorrer, como a dos presentes autos, em que em termos de prevenção e considerando as condições pessoais do arguido, não se justifica a aplicação de uma pena de multa superior, quando a dimensão da ilicitude expressa na taxa de alcoolémia, se situe um pouco acima do limite de 1,2 g/l que confere relevância criminal à conduta.

Esta realidade poderá revelar alguma incongruência do sistema no que respeita à condução de veículo em estado de embriaguez.

De acordo com o disposto no artigo 9º do Código Civil a interpretação da lei deve ter sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico. E, “o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei” ([1]).

Mas, aos tribunais compete interpretar e aplicar a lei com base no pressuposto/princípio de que a pena não deve exceder a medida da culpa e as exigências de prevenção. Logo, não deve o juiz corrigir (com violação de tal princípio) o que o legislador não quis alterar ou não previu. Se bem que, nos termos do n.º 3 do citado art. 9º o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Ainda que numa lógica de bom senso se deva entender que o crime é mais grave que a contra-ordenação, elevar-se o número de dias de multa e/ou a respectiva taxa diária, de forma a que o montante global da multa não ficasse aquém do limite mínimo da coima correspondente à contra-ordenação prevista no Código da Estrada, tal iria representar para o arguido a imposição de uma pena que excedia a medida da sua culpa concreta, em oposição ao estatuído no n.º 2 do artigo 40º do Código Penal.


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Aplica-se à pena acessória os mesmos critérios legalmente exigíveis para a fixação da pena principal.

Com efeito, a pena acessória de proibição de conduzir traduz-se numa verdadeira pena, dotada de moldura penal própria, estabelecida entre limites mínimo e máximo, dentro dos quais deve o julgador determinar a que se adequa ao caso concreto, em obediência ao disposto no citado artigo 71º do CP. Está tal pena dependente da pena principal, resultando de ambas uma dupla condenação, que tem a sua razão de ser na perigosidade real que representa a condução em estado de embriaguez para a integridade física, ou mesmo para a própria vida dos que circulam nas estradas.  

Como refere o Prof. Figueiredo Dias (Consequências Jurídicas do Crime, pág.165), o pressuposto material de aplicação da pena acessória referida no artigo 69º do CP prende-se com o exercício da condução quando se tenha revelado, no caso concreto, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do facto. Por isso à proibição de conduzir deve assegurar-se também um efeito geral de intimidação que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro dos limites da culpa. Por fim, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano.

De acordo com a moldura sancionatória prevista no n.º 1 do artigo 69º do CP, a proibição de conduzir tem como limite mínimo 3 meses e máximo de 3 anos. 

Partindo do pressuposto que as referências de prevenção exigem que a aplicação do limite mínimo da pena acessória se verifique apenas nas situações em que a dimensão da ilicitude, expressa na taxa de alcoolémia, se situe no limite mínimo (ou muito próximo dele), entendemos que a pena acessória a aplicar in casu deve coincidir com este limite; isto é, a proibição de conduzir veículos com motor terá a duração de 3 meses.

 Tendo em conta o Acórdão do STJ n.º 2/2013 (publicado no DR n.º 5, Série I, de 8-1-2013): « Em caso de condenação, pelo crime de condução em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, do art. 292.º do CP, e aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir prevista no art. 69.º, n.º 1, al. a), do CP, a obrigação de entrega do título de condução derivada da lei (art. 69.º, n.º 3, do CP, e art. 500.º, n.º 2, do CPP), deverá ser reforçada, na sentença, com a ordem do juiz para entrega do título, no prazo previsto, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência do art. 348.º, n.º 1, al. b), do CP.»

Deverá pois, proceder-se em conformidade.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- conceder provimento ao recurso e, em consequência, alterar a sentença recorrida e,…..

a) condenar o arguido A... pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p pelos artigos 292º, n.º 1 e 69º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (o que perfaz a multa global de € 360,00) e, ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 3 (três) meses;

b) determinar que no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, o arguido entregue na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, sob a cominação de, não o fazendo, o arguido cometer o crime de desobediência do artigo 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal.

Sem tributação.


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Coimbra, 1 de Julho de 2016

(Elisa Sales - relatora)

(Paulo Valério - adjunto)


[1] - Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil anotado, 1967, Vol. I, pág. 16.