Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
885/10.2T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DESPACHO LIMINAR
JUROS
Data do Acordão: 04/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 235º E 238ºDO CIRE
Sumário: I – Nos termos do Título XII do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação da Empresas) – aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/03, e alterado pelos DL nºs 200/2004, de 18/08; 76-A/2006, de 29/03; 282/2007, de 7/08; 116/2008, de 4/07; e 185/2009, de 12/08 -, título esse dedicado a “disposições específicas da insolvência de pessoas singulares”, é facultado ao devedor/insolvente, sendo pessoa singular, requerer e ser-lhe concedida a exoneração (uma espécie de perdão ou de extinção dos seus débitos…) dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste – artº 235º.

II - Efectuado esse pedido pelo requerente da insolvência, é o dito sujeito a uma decisão (despacho) dita “liminar”, isto é, cumpre verificar judicialmente se, relativamente a esse pedido, estão ou não verificados determinados pressupostos para o prosseguimento do incidente, conforme determina o artº 238º do CIRE.

III - Caso se verifique o preenchimento de alguma das condições ou fundamentos referidos nas als. a) a g) do nº 1 deste último preceito o pedido de exoneração é liminarmente indeferido.

IV - Não integra o conceito normativo de “prejuízo” pressuposto pela al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, o simples aumento global dos débitos do devedor causado pelo simples acumular dos juros.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


I


            Na Comarca do Baixo Vouga – Juízo do Comércio de Aveiro, M…, divorciado, residente na Rua …, instaurou a presente acção com processo especial de insolvência, requerendo a declaração da sua própria insolvência.

            Em simultâneo requereu que lhe seja concedida a exoneração do passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência. 

            Proferida sentença sobre o pedido de declaração de insolvência, nela foi decidido declarar o Requerente como insolvente, sentença devidamente transitada em julgado – fls. 49 a 51.

            Posteriormente foi apresentado novo requerimento do insolvente, declarando que preenche os requisitos legalmente exigidos para que possa ser declarada a exoneração do passivo restante, nos termos do artº 238º, nº 1 do CIRE, e que se dispõe a observar todas as condições exigidas pela lei para o efeito.

            Pelo Administrador da Insolvência foi apresentado o relatório de insolvência, nos termos do artº 155º do CIRE, onde refere, além do mais, não existirem bens do insolvente, pelo que propôs o imediato encerramento do processo, e que nada tem a opor ao pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente – fls. 104/105.

            Realizada a Assembleia de Credores, nela nenhum credor se manifestou acerca do referido pedido de exoneração do passivo do Requerente não liquidado.

            Foi então proferida decisão judicial a indeferir liminarmente o referido pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento na verificação da causa prevista no artº 238º, nº 1, al. d) do CIRE – fls. 132/133.


II

            Desta decisão interpôs recurso o insolvente, recurso que foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

            Nas alegações que apresentou o Apelante concluiu, em síntese e com utilidade, da seguinte forma:

...   


III

            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

            Nesta Relação foi aceite o recurso interposto, tal como foi admitido em 1ª instância (embora com reparo quanto ao seu modo de subida, conforme despacho do Relator de fls. 203), nada obstando que se conheça do seu objecto, o qual se resume à reapreciação do referido despacho que indeferiu liminarmente o requerimento de exoneração do passivo restante oportunamente formulado pelo Requerente/insolvente.

            Nesse dito despacho entendeu-se que é de indeferir liminarmente tal pretensão (pedido de exoneração do passivo restante), com base no disposto no artº 238º, nº 1, al. d) do CIRE, por, como nele se escreve, “se verificarem todos os requisitos previstos na referida alínea”.

            É, pois, esta a decisão posta em causa no presente recurso e contra a qual se insurge o Recorrente, pedindo a sua revogação.

            Apreciando, afigura-se-nos que o Recorrente tem toda a razão.

            Com efeito e tal como já opinámos/escrevemos em outro recurso desta natureza (Apelação nº 1293/09.3TBTMR-A.C1, disponível em www.dgsi.pt/trc), cumpre referir que nos termos do Título XII do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação da Empresas) – aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/03, e alterado pelos DL nºs 200/2004, de 18/08; 76-A/2006, de 29/03; 282/2007, de 7/08; 116/2008, de 4/07; e 185/2009, de 12/08 (salvo eventuais outras alterações próprias da vigente tendência legislativa e que tenham escapado ao nosso escrutínio) -, título esse dedicado a “disposições específicas da insolvência de pessoas singulares”, é facultado ao devedor/insolvente, sendo pessoa singular, requerer e ser-lhe concedida a exoneração (uma espécie de perdão ou de extinção dos seus débitos…) dos créditos sobre a insolvência (mais propriamente aos débitos correspondentes a esses créditos, conforme referem o Prof. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, pg. 184) que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste – artº 235º.

            Esta exoneração equivale ou traduz-se, pois, “na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente” – conforme loc. cit..

            Efectuado esse pedido pelo requerente da insolvência, é o dito sujeito a uma decisão (despacho) dita “liminar”, isto é, cumpre verificar judicialmente se, relativamente a esse pedido, estão ou não verificados determinados pressupostos para o prosseguimento do incidente, conforme determina o artº 238º do CIRE.

            Caso se verifique o preenchimento de alguma das condições ou fundamentos referidos nas als. a) a g) do nº 1 deste último preceito o pedido de exoneração é liminarmente indeferido.

             No caso em apreciação entendeu-se como estando verificada a condição da al. d), isto é, que “o devedor incumpriu o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a apresentar-se à dita, absteve-se dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

            Será que os factos alegados pelo Requerente e aqueles que nos são proporcionados pelos autos nos permitem tirar tal conclusão?

            A decisão recorrida assim o entendeu, o que importa reapreciar – é o objecto do recurso.

           

Conforme se estipula no nº 3 do artº 236º do CIRE, “do requerimento de pedido de exoneração do passivo restante consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”, verificando-se que na petição de insolvência o Requerente logo requereu a concessão da exoneração do passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência (ponto 47º dessa petição) e que posteriormente, em 28/06/2010, na sequência de despacho judicial nesse sentido proferido aquando da sentença de declaração de insolvência – ver fls. 51 -, apresentou a sobredita declaração, conforme fls. 90/91 e 94/95, portanto antes da ocorrência da Assembleia de Credores – fls. 111.

Nesse dito requerimento de exoneração do passivo restante o Requerente declara expressamente que preenche todos os requisitos legalmente necessários para, conjuntamente com a apresentação à insolvência, lhe ser concedida a dita exoneração, também declarando que se dispõe a observar todas as condições legalmente exigidas para a concessão efectiva da dita exoneração.   

            Assim sendo, no caso em apreço – uma vez que o Requerente não estava obrigado a apresentar-se à insolvência (nos termos do artº 18º, nº 2 do CIRE) -, para que esse pedido de exoneração do passivo restante possa (deva) ser liminarmente indeferido, é necessário, desde logo, que o insolvente se tenha abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência e com prejuízo, daí resultante, para os credores.

            O Requerente alegou, para o efeito, que “…vítima da crise que grassa em Portugal, no dia 29/09/2009 o seu vínculo laboral foi dissolvido, com fundamento em extinção do posto de trabalho, encontrando-se actualmente no fundo de desemprego (a auferir € 454,20), razão pela qual deixou o requerente, por conjecturas de mercado, de conseguir pagar pontualmente os seus compromissos, …além de que em Janeiro de 2010 tomou conhecimento de que foi julgada improcedente uma oposição por si movida na execução nº 8417/03.2TBVFR do Tribunal Judicial de S. M. da Feira – 4º Juízo Cível -, esta no valor de € 173.906,40,… conjunto de factos que o tornaram incapaz de cumprir com as suas obrigações vencidas” – pontos 8, 9, 10, 19, 20, 27 e 32 da petição inicial.

Face ao que, a ser assim, não é seguro que não estivesse dentro dos referidos seis meses quando em 10/05/2010 interpôs a acção de declaração de insolvência.

            Porém, mesmo admitindo que não seja claro que o Requerente não estivesse dentro dos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência quando se apresentou em juízo para tal, conforme se defende no despacho recorrido (onde se têm apenas em conta a data de entrada no desemprego do Requerente e a data de propositura da acção de insolvência), e que nem se discute tal questão no presente recurso, será que tal espera ou período de não apresentação à insolvência trouxe prejuízo para os credores, sabendo os Requerentes ou não ignorando não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica (como se diz no despacho recorrido)?

            Não nos parece que assim se possa concluir, tanto mais que os credores do Requerente não só não deduziram qualquer oposição ao referido pedido como até se mostraram desinteressados da sorte do processo de insolvência do Requerente, apenas tendo comparecido na assembleia de credores, como credor do insolvente, o Instituto de Segurança Social – fls. 111.

            Além de que pelo Administrador da Insolvência foi apresentado o relatório de insolvência, nos termos do artº 155º do CIRE, onde refere, além do mais, não existirem bens do insolvente, pelo que propôs o imediato encerramento do processo, e que nada tem a opor ao pedido de exoneração do passivo restante – fls. 104/105.

            Também já foi encerrado o incidente de qualificação da presente declaração de insolvência, onde foi decidido qualificar esta insolvência como “fortuita”.

            Donde resulta que o único prejuízo que os credores podem ter tido com a dita demora, relativamente ao Requerente, terá sido o eventual agravamento do crédito destes em relação ao Requerente mas apenas pelo acrescer de juros de mora entretanto vencidos, nada mais, já que a situação económica do Requerente em nada se alterou no entretanto, nem houve (não se conhece) sequer qualquer delapidação de património próprio.

            Sendo assim, afigura-se que, no presente caso, não está verificado o fundamento da alínea d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, no qual se baseou o despacho recorrido para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

            Não podemos concordar, pois, com a tese defendida no despacho recorrido para se fundamentar o indeferimento liminar da pretendida/requerida exoneração.

            Ao invés, não temos como líquido ou certo que a apresentação à insolvência por parte do Requerente tenha excedido o prazo de seis meses seguintes à verificação da sua situação de insolvência e também não podemos considerar que por efeito decurso do período de espera do Requerente para se apresentar à insolvência tenham resultado prejuízos reais e efectivos para os credores.

            Concordamos com a tese ou posição da Relação do Porto citada nos seus Ac.s de 14/01/2010 e de 19/05/2010, segundo a qual “não integra o conceito normativo de “prejuízo” pressuposto pela al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, o simples aumento global dos débitos do devedor causado pelo simples acumular dos juros”.

            No mesmo sentido também já se pronunciou esta Relação de Coimbra, por acórdão de 23/02/2010, Proc. nº 1793/09.5TBFIG-E.C1 (disponível em www.dgsi.pt), no qual, sendo abordada uma situação bastante idêntica à do presente recurso, se conclui e decidiu pela continuidade do incidente do pedido de exoneração do passivo restante, com o que temos de nos identificar e de dar igual seguimento, revogando o despacho recorrido.

            Veja-se, ainda, no apontado sentido, o voto de vencido constante do Ac. Rel. Porto de 20/04/2010, Procº nº 1617/09.3TBPVZ-C.P1.

            Deve acrescentar-se, no entanto, o que também se escreveu no Ac. desta Relação de 25/01/2011 – Procº nº 767/10.8T2AVR-B.C1 -, relatado pelo Des. José Eusébio Almeida e disponível em www.dgsi.pt/trc, segundo o qual “importa distinguir com clareza os dois principais momentos processuais que conduzem, eventualmente e ultrapassado o primeiro, à efectiva exoneração do passivo. Dito de outro modo, deve acentuar-se que a exoneração só ocorre, e quando ocorre, com a decisão final (artº 244º), isto é, mesmo tendo havido despacho inicial de deferimento, mesmo que não tenha havido (durante o período de cessão) cessação antecipada, ainda assim, no final, pode ser concedida ou recusada a exoneração do passivo restante, o que o juiz oportunamente decidirá, depois de ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência (artº 244º, nº 1). No fundo, o deferimento liminar da exoneração corresponde à verificação da inexistência, nessa ocasião processual, das causas legalmente previstas que impõem o indeferimento liminar, porquanto reveladoras do imerecimento do devedor em vir a ser exonerado; no entanto, não significa que a exoneração se efective ou, muito menos, que estejamos já perante ela, tanto mais que a exoneração é recusada, quer a final, quer antecipadamente, quando se apure a existência de alguma das circunstâncias previstas nas als. b), e) e f) do nº 1 do artº 238º, as quais, se conhecidas em tempo, fundamentariam o indeferimento liminar – artºs 243º, nº 1, al. b) e 244º, nº 2”.   

            Ainda no sentido supra defendido pode ver-se o Ac. Rel. Guimarães de 12/10/2010, Procº nº 2945/09.8TBBRG.G1, disponível em www.dgsi.pt/jtrg.

            Concluindo, no presente caso não podemos dar como verificado o pressuposto da al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, face ao que importa revogar o despacho recorrido, devendo prosseguir os seus regulares termos o incidente de exoneração do passivo restante, assim se dando ao Requerente uma oportunidade de reerguer a sua vida (mormente económica/financeira), fim a que se destina este tipo de incidente do processo de insolvência.


IV

            Decisão:

            Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se o prosseguimento do incidente do pedido de exoneração do passivo restante deduzido pelo Requerente.

            Custas pela massa insolvente.


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Jaime Carlos Ferreira (Relator)
Jorge Arcanjo
Isaías Pádua