Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1070/22.6PBFIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: MEDIDA DE COACÇÃO
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA
PERIGO DE PERTURBAÇÃO GRAVE DA ORDEM E DA TRANQUILIDADE PÚBLICAS
PERIGO DE FUGA
Data do Acordão: 03/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 18.º, N.º 2, E 32.º, N.º 2, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 191.º, N.º 1, 192.º, 193.º, N.º 1, 202.º, N.º 1, E 204.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - As medidas de coacção, constituindo limitações do princípio da presunção de inocência, são legitimadas em cada caso pela estrita necessidade de tais medidas e que, de entre as admissíveis e adequadas às exigências cautelares requeridas pela concreta situação, se aplique sempre a medida menos gravosa.

II - As medidas de coacção devem obedecer aos requisitos e princípios enunciados no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, do qual resulta que a lei processual penal sujeita a sua aplicação aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, bem como da subsidiariedade, no caso da obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva.

III - A conclusão da existência de “fortes indícios”, que terá que corresponder a uma alta probabilidade de ao sujeito, por força deles, vir a ser aplicada uma pena, é um juízo provisório porque se baseia nos elementos disponíveis naquele momento do processo, estando, por isso, sujeito a alterações decorrentes da investigação subsequente.

IV - O perigo de continuação da actividade criminosa decorre da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, respeita apenas à continuação da actividade criminosa que se mostra indiciada no processo, o que se verificará com a execução do mesmo ilícito e bem assim com outros análogos ou da mesma natureza, e não se analisa apenas em relação às vítimas nos autos, mas também em relação a quem venha a estar em situações semelhantes.

IV - O perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas tem de resultar da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, relevando para o mesmo a alteração negativa que prejudique ou cause dano à ordem pública e não apenas a mera alteração ou inquietação gerada no meio social.

V - O perigo de fuga corresponde a um perigo real e iminente, não meramente hipotético, virtual ou longínquo, a resultar da ponderação da factualidade conhecida no processo, relativa aos ilícitos indiciados e sua gravidade, e bem assim a outros factores atinentes ao arguido, como sejam a personalidade revelada, a sua situação pessoal, económica, profissional e familiar e o contexto social em que se insere.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório 

1. No Inquérito n.º 1070/22...., que corre termos nos Serviços do Ministério Público da Procuradoria da Comarca de Coimbra - DIAP 2.ª Secção da Figueira da Foz, AA, com os demais sinais dos autos, foi, em 30 de Novembro de 2022, submetido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, findo o qual, por despacho então proferido pelo Mmo. Juiz de instrução, foi determinado que para além do termo de identidade e residência já prestado aquele aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito às medidas de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica e de obrigação de não contactar com os restantes arguidos, ofendidos e testemunhas.

2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido AA, que finalizou a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

“1. O ora recorrente, não se conforma, com os factos considerados fortemente indiciados pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, por entender que os autos, não dispõem de prova indiciária suficiente …

2. Mais entende o arguido ora Recorrente, que as Medidas de Coação aplicadas, se revelam desadequadas e desproporcionais quer em razão dos factos considerados indiciados, quer em razão da não verificação concreta dos perigos, bem como das exigências cautelares, que o presente caso reclama

3. Devendo, a final ser proferida decisão que apenas sujeite o arguido ora recorrente à MC de TIR, às proibições de contactos com arguidos, ofendidos e testemunhas, e ainda, a proibição do arguido se dirigir ao concelho ..., bem como, proibição de frequentar espaços de diversão nocturna.

5. Da Factualidade considerada fortemente indiciada: Plasma a decisão recorrida, que foram carreados para os autos os seguintes elementos de prova que constam da decisão pag. 9 e 10.

6. Refere então a decisão agora em crise, que no confronto daqueles elementos de prova, e, em conjugação com as declarações prestadas pelas testemunhas, resulta fortemente indiciada a prática, pelo mesmo, de todos os factos constantes do despacho de apresentação.

7. Vejamos, que a insuficiência de indícios relativos à prática pelo recorrente dos crimes pelos quais foi indiciado e sujeito a MC privativa da liberdade, resulta do próprio texto da decisão.

8. Que refere que o Ofendido BB não se apercebeu que foi vibrado.

9. Que CC referiu que desconhecia o Ofendido, mas que havia sido pessoa de cor.

10. Das imagens apenas resulta um individuo de tez escura empunhando algo na mão direita.

12. Existiam mais indivíduos de tez escura no local, nomeadamente no grupo.

13. A faca/ navalha apreendida é absolutamente comum, não havendo certezas que seja a mesma.

15. A suficiência dos indícios de futura condenação do arguido, aferida por um juízo de alta probabilidade, em face das regras da experiência comum e livre apreciação da prova, tem de ser compatibilizada com o princípio in dubio pro reo …

16. O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido; ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.

17. O mesmo decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no art. 32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa …

20. Da necessidade, da Adequação e da Proporcionalidade das Medidas de Coação aplicadas

21. Sendo que, segundo o despacho recorrido, existem todos os perigos, mas não verificados de forma concreta, mas apenas com base em considerações e generalidades.

22. Vejamos que os factos alegadamente foram praticados em 30 de Julho de 2022, o arguido foi detido em 30 de Novembro de 2022.

23. Ou seja, volvidos 4 meses, inexistem indícios de que o arguido tenha voltado à ..., tenha contactado os ofendidos ou testemunhas.

24. Se tenha ausentado da sua residência ou local de trabalho. Acresce que o arguido tem filho menor de tenra idade.

25. E a sua personalidade não pode ser exclusivamente aferida através da análise do seu CRC.

30. No que diz respeito ao uso dos meios de coação em processo penal, haverá sempre que respeitar os princípios da legalidade (artigos 29º, nº 1, da CRP, e 191º do CPP), excepcionalidade e necessidade (artigos 27º, nº 3 e 28º, nº 2, da CRP, e 193º do CPP), adequação e proporcionalidade (art.º 193º do CPP), como emanação do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, contido no artigo 32°, n° 2 da Constituição.

31. Neste quadro, é preciso ter bem presente o carácter excepcional das medidas de coação, perante a restrição que representam nos direitos fundamentais dos cidadãos, direitos esses que resultam do artigo 18º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

33. Para aplicação desta MC tem que se aferir, através de factos concretos e objetivos, que in casu inexistem, os perigos de fuga, este perigo tem que ser concreto e atual e foi considerado não verificado na decisão recorrida, bem como os demais perigos elencados na decisão recorrida.

35. E por maioria de razão o mesmo se aplica, aos alegados perigos de perturbação quer da ordem e tranquilidade pública, quer de perturbação do inquérito, conservação, aquisição da prova.

45. Por todo o exposto, estamos perante meras considerações/conjeturas, que não se inserem no pressuposto referenciado no art.º 204.º, al. a), pelo que este condicionalismo não se verifica.

47. Inexiste ainda factos, que indiciem que o arguido se ausentou da sua residência ou local de trabalho. Sendo que foi exatamente na sua residência que foram cumpridos os mandados de busca e detenção.

48. Aqui chegados, é de se concluir, salvo melhor entendimento, que as MC aplicadas, NÃO respeitam os princípios acima expostos, nomeadamente da adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, para além de que, em concreto, não se verifica quanto ao ora Recorrente, qualquer perigo indicado na decisão recorrida.

3. Admitido o recurso, o Ministério Público veio apresentar resposta em que pugna pela improcedência e consequente manutenção do despacho recorrido…

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal (doravante CPP), emitiu parecer no sentido de que o despacho recorrido não merece qualquer censura …

*

II – Fundamentação 

[1][2]

1. … são as seguintes questões suscitadas no recurso:

-           A existência de fortes indícios da prática dos imputados crimes de homicídio na forma tentada e de ofensa à integridade física qualificada.

- Os perigos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 204.º do CPP e a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica.

                                                       *

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição dos segmentos relevantes o presente recurso):

“(…)

II. DETENÇÃO

IV. FACTOS FORTEMENTE INDICIADOS com a «descrição dos factos concretamente imputados ao arguido incluindo, sempre que forem conhecidas as circunstâncias de tempo, lugar e modo » - cfr. art.0 1940 , n.0 6 alínea a) do CPP :

No dia 30-7-2022, depois das 05h00, no estabelecimento “N...”, sito na Rua ..., ..., área desta comarca, o arguido AA id. a fls. 245, acompanhado de DD, EE, FF, GG e um desconhecido, tiveram um desentendimento com os ofendidos BB, id. a fls. 173, CC, id. a fls. 63, e HH, id. a fl. 56.

O arguido AA, a determinado momento, sacou de um canivete de abertura manual, com cabo plástico, verde, com estampado de figuras (flores) e lâmina pontiaguda de um gume, em aço, com lâmina com 6,7 cm de comprimento e com medidas totais de 16,2 cm e atingiu o BB na zona das costas.

Em consequência de tal conduta do arguido AA, sofreu BB, dores e as lesões descritas na documentação médica de fls. 17 e ss., que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais …

O arguido AA com a sua atuação, visava com os golpes desferidos contra o ofendido BB, atingi-lo em zonas vitais como é zona do tórax, onde estão alojados órgãos vitais, representando como possível que tal conduta provocasse a morte de BB, conformando-se com esse resultado, resultado esse apenas não conseguido, por circunstâncias alheias à sua vontade …

Após, o arguido AA, a determinado momento, atingiu o CC na zona das costas, com o canivete.

O arguido AA, sabia que a utilização do canivete, dificultava a defesa do ofendido CC e que potenciava o carácter lesivo dos seus actos de hostilidade, podendo resultar graves lesões para este.

O arguido AA agiu no propósito conseguido, de molestar o ofendido CC na respectiva integridade física e de lhe provocar dores e mal-estar físico.

O arguido AA agiu voluntária, livre e conscientemente em todas as suas condutas.

Bem sabia o arguido AA que as suas condutas eram proibidas e punidas por criminalmente.

O arguido AA já foi anteriormente condenado em penas de prisão suspensa com regime de prova.

V- Elementos de prova indiciária dos factos imputados …

Cumpre referir que o arguido exerceu a faculdade de não prestar declarações nesta diligência quanto aos factos que lhe são imputados, tendo apenas tomado posição quanto à sua situação socio económica.

VI. QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS IMPUTADOS nº 4 e art.º 194º, artº 97º n.º 6 alínea c) do C.P.P.:

Pelo exposto, indiciam já os autos fortemente sem prejuízo do que vier a resultar da investigação em curso - a prática, pelo arguido, em autoria material e em concurso efetivo (artigos 14. 0, n.0 1; 26. 0 e 30. 0, n. 0 1, do Código Penal), de:

- crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelo art.º 131.º e 22.º ambos do Código Penal,

- um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma consumada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, al. a), com referência ao art.º 132.º, n.º 2 al. h), todos do Código Penal.

VIII. Referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida de coacção, incluindo os previstos nos art.ºs 193º e 204º do CPP .

A DM do MP requereu em relação ao arguido as medidas supra refreidas.

Foi exercido o competente contraditório por parte da defesa.

Cumpre apreciar e decidir:

No caso dos autos desde logo, é patente o intenso e concreto perigo de continuação da atividade criminosa por parte do arguido, com prática de factos da mesma natureza, sobretudo por o arguido revelar séria dificuldade em controlar os seus impulsos violentos quando contrariado no relacionamento com terceiros sobretudo sendo forte provável que o arguido em situações idênticas de convívios de noturnos em bares ou discotecas e perante situações idênticas venha a reagir do mesmo modo com a adoção de condutas violentas e insidiosas e com a utilização de armas que utiliza para o efeito. Nota-se que dos antecedentes criminais do arguido se indicia a pratica de factos de idêntica natureza, já foi condenado em participação em rixa e roubo e não obstante praticou os factos nos presentes autos. O perigo de continuação da actividade criminosa não se analisa apenas em relação às vitimas nos presentes autos mas em relação a outras vitimas que num encontro noturno tenha um encontro em tudo idêntico ao dos presentes autos. Igualmente se evidencia no caso concreto forte e intenso perigo de perturbação do decurso do inquérito seja por existirem elementos que apontam no sentido que o arguido está muito longe de querer colaborar com a descoberta da verdade, da apreensão realizada não se logrou obtenção de qualquer peça de vestuário idêntica à utilizada no dia dos factos, seja por ainda em face da gravidade dos factos, o arguido longe por providenciar por qualquer auxilia das vitimas ausentou-se do lugar. O modo de execução dos factos associado à atuação do arguido e dos seus companheiros com forte probabilidade permite concluir que este conhece a identificação das vítimas e se encontra em condições de poder exercer sobre as mesmas, atos concretos de condicionamento da sua versão já apresentada quanto aos factos. Existe ainda um serio perigo da perturbação da ordem e da tranquilidade publico já que os factos em causa são graves, sobretudo em relação ao homicídio embora na forma tentada e foram perpetrados num meio frequentado or elementos da comunidade sendo que com tais factos esta sentiu-se fortemente abalada e exige medidas dissuasoras da pratica de tais factos, note-se que os factos foram levados a cabo numa comunidade e aberto ao público como é a ... com forte cosmopolitismo publicidade, em local público, sendo que atenta a personalidade do arguido caso este fosse restituído à liberdade sem a adoção de medidas tendentes a dissuasão da prática de novos factos.

Por fim, evidencia-se ainda o perigo de fuga por parte do arguido, pois apesar da data dos factos que é certo é que o mesmo depois de ter esfaqueado as vitimas ausentou-se do local e permaneceu em fuga à ação da justiça até à data em que veio a ser detido aqui acresce ainda o fato de já ter sido condenado por factos da mesma natureza e ainda com violência contra as pessoas puníveis os dos autos com pesadas penas de prisão, quanto ao homicídio tentado. É certo que o arguido referiu trabalhar manter um relacionamento com uma companheira com a qual tem um filho de tenra idade, mas tais circunstâncias não foram obstáculo à prática dos factos agora imputados.

Sem prejuízo do comportamento processual futuro do arguido para já todo o circunstancialismo dos autos, aponta inequivocamente que só uma medida privativa da liberdade se revela adequada à s exigências cautelares suprarreferidas proporcional e necessária à gravidades dos crimes e à sanção que previsivelmente lhe virá a ser aplicada.

Qualquer medida não privativa como a obrigação de apresentação periódica e simples proibição de contactos são completamente desadequadas já que aquela primeira não permite fazer face ao perigo de continuação da atividade criminosa, ao perigo de perturbação do decurso do inquérito e de perturbação da ordem publica

Também a medida de proibição de contactos é completamente ineficaz por si só para evitar que o arguido pratique factos da mesma natureza.

Conforme já referido e sem prejuízo do comportam ente processual futuro do arguido, caso este fique confinado à sua residência, não podendo sair da mesma sem ser sinalizada a sua saída, com forte probabilidade e não podendo sair da mesma sem ser sinalizada a sua saída, não poderá encontros noturnos bares e discotecas e outros tipos de convívios adotar a prática de factos da mesma natureza. Igualmente a OPHVE constitui obstáculo a que o arguido contacte com as vítimas por qualquer meio sinalizado a sua presença e fazendo face ao perigo de fuga e sendo ainda adequada ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade publica de qualquer crime de homicídio ainda que tentado, convoque

Assim e apesar da natureza subsidiária da prisão preventiva e conforme já referi, ao comportamento processual futuro do arguido, e em conformidade com os princípios supra referidos, determino que o arguido aguarde os ulteriores tramites processuais sujeito à obrigação de permanência na habitação com VE na morada do arguido indicada pelo arguido não dispondo o mesmo de qualquer autorização para dela se ausentar, com a exceção de frequentar consultas/tratamentos medicas ou diligências processuais cumulada com a proibição de contactar com os restantes arguidos dos autos e ainda os ofendidos e testemunhas identificados nos mesmos

IX - Decisão:

Pelo exposto, determino que o arguido aguarde os ulteriores tramites processuais sujeito as seguintes medidas de coacção:

1 –TIR, já prestado.

2- Obrigação de permanência na habitação com VE na morada indicada pelo arguido não dispondo o mesmo de qualquer autorização para dela se ausentar com a exceção de frequentar consultas medicas ou diligências processuais, cumulada com a proibição de contactar com os restantes arguidos dos autos e ainda os ofendidos e testemunhas identificados nos mesmos, nos termos dos artºs 191º, 193º, 204º al. A), b) e c), 201º, 202º, nº1, al. a), 200º, nº 1 al. d) todos do CPP

Até à instalação dos mecanismos de vigilância eletrónica, uma vez que este Tribunal desconhece se o arguido reúne condições materiais de execução da mesma medida, nos termos do disposto no artº 16º, nº 1 da Lei 33/2010 de 2 de setembro, terá que o arguido aguardar em prisão preventiva até que seja fornecido aos autos o competente relatório previsto no artº 7º, nº 2 do CPP. Na verdade, de momento, só a medida de prisão preventiva se revela adequada às exigências suprarreferidas até que seja fornecido o competente relatório e que desse modo confirme que o arguido se encontra em condições de beneficiar dessa medida.

Determino que com nota de muito urgente se solicite à DGRSP a elaboração de relatório a que alude o artº 7º da lei da vigilância eletrónica, como vista a que o arguido posso vir a beneficiar da medida de OPHVE, já que a medida de prisão preventiva é meramente transitória.

 (…)”.

                                                         *

3. Apreciando.

3.1. As medidas de coacção são meios processuais de limitação da liberdade pessoal do arguido que se destinam a fazer face, dentro das condições estabelecidas na lei, às exigências de natureza cautelar que se verifiquem no processo, uma vez que, durante qualquer uma das suas fases, aquele “poderá frustrar-se à acção da justiça, fugindo ou procurando fugir; poderá dificultar a investigação, procurando esconder ou destruir meios de prova ou coagindo ou intimidando as testemunhas, e poderá continuar a sua actividade criminosa”.[3]

Assim, tendo presente que nos casos expressamente previstos na Constituição é possível a restrição dos direitos, liberdades e garantias, devendo tais restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, n.º 2 da CRP), as medidas de coacção, mecanismos que se destinam a acautelar a eficácia e o regular desenvolvimento do processo penal, constituem limitações da liberdade pessoal justificadas por tais finalidades permitidas pela lei e que, em concreto, importa assegurar no processo.

Deste modo, para além de, em abstracto, se revelar legalmente admissível a aplicação ao arguido de uma medida de coacção, em cada situação concreta a medida deve mostrar que é objectivamente idónea para assegurar a finalidade para a qual é permitida, impondo-se ainda que seja a necessária para realizar esse desiderato, o que significa que com ela não pode ser prosseguido um propósito diverso do legalmente estabelecido.[4] 

As medidas de coacção constituem ainda limitações do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da CRP, ao dispor que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.

Da consagração constitucional da presunção de inocência decorre a exigência de que o processo penal seja estruturado “de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido, tido à partida como inocente, por não haver qualquer fundamento para que aquele não se considere como tal enquanto não for julgado culpado por sentença transitada em julgado”[5]. O que, no contexto das medidas de coacção, significa que a limitação do princípio da presunção de inocência seja legitimada em cada caso pela estrita necessidade de tais medidas e que, de entre as admissíveis e adequadas às exigências cautelares requeridas pela concreta situação, se aplique sempre a medida menos gravosa[6]. Assim, como sublinha Figueiredo Dias, a limitação ou a privação da liberdade do arguido encontra-se estritamente vinculada “à exigência de que só sejam aplicadas àquele as medidas que ainda se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente[7].

Como limitações de direitos fundamentais, as medidas de coacção devem obedecer aos requisitos e princípios enunciados no artigo 18.º da CRP, do qual resulta que a lei processual penal sujeita a sua aplicação aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade [bem como da subsidiariedade, no caso da obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva].

O princípio da legalidade ou da tipicidade significa que as medidas de coacção são apenas as que se encontram previstas taxativamente na lei (artigo 191.º, n.º 1 do CPP), sendo certo que, segundo o texto constitucional, só a lei pode restringir direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.os 2 e 3 da CRP).

O princípio da necessidade decorre da imposição legal de “a liberdade das pessoas só [poder] ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar” (artigos 191.º, n.º 1 e 193.º, n.º 1, ambos do CPP). Tais exigências processuais encontram-se previstas no artigo 204.º, cuja verificação se exige que ocorra no caso concreto e no momento da aplicação da medida: a) fuga ou perigo de fuga; b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Por sua vez, os princípios da adequação, da proporcionalidade e da subsidiariedade estão consagrados no artigo 193.º do CPP, que estabelece o seguinte:

1 – As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

2 – A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.

3 – Quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.

4 – A execução das medidas de coacção e de garantia patrimonial não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requerer.

 Para além dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º do CPP (e das condições enunciadas no artigo 192.º), a medida de coacção de prisão preventiva, sujeita à subsidiariedade que, como vimos, assenta na inadequação ou insuficiência das outras medidas coactivas, tem como requisitos específicos de aplicação a verificação de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos, nos termos estipulados na alínea a) do artigo 202.º, n.º 1 do CPP, ou então que o crime doloso fortemente indiciado corresponda a um dos descritos nas alíneas b) a e) do mesmo preceito.

Já a aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica depende da existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, conforme determina o artigo 201.º, n.os 1 e 3 do CPP.

O conceito de “fortes indícios” da prática de determinado tipo de ilícito, como requisito da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, aponta para um grau de medida que apenas se alcança por referência ao que a lei estatui quanto ao que sejam “indícios suficientes”, verificando-se estes “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança” (artigo 283.º, n.º 2 do CPP).

Neste sentido, os “fortes indícios” que aqui se discutem terão que corresponder a uma alta probabilidade de ao sujeito, por força deles, vir a ser aplicada uma pena.

No entanto, o grau de exigência probatória para o qual remete o conceito é inferior ao da comprovação para além da dúvida razoável exigido para o juízo de condenação, assentando antes numa base indiciária em que, considerando os elementos de prova disponíveis no momento da aplicação da prisão preventiva, é possível “formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição”.[8]

E porque de um juízo provisório se trata, uma vez que se baseia nos elementos disponíveis num determinado momento do processo, está naturalmente sujeito a alterações decorrentes da investigação subsequente que poderá resultar em novos elementos que probatoriamente sustentem um outro sentido.

*

Feito este enquadramento, passemos, então, à análise das concretas questões suscitadas no recurso interposto do despacho proferido pelo Mmo. Juiz de Instrução que, na sequência de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, aplicou a AA a medida de permanência na habitação com vigilância electrónica, cumulativamente com a medida de obrigação de não contactar com os restantes arguidos, ofendidos e testemunhas.               

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3.2. Diz o recorrente que são insuficientes os indícios relativos à prática dos crimes que lhe são imputados, pelos quais foi sujeito a medida de coacção privativa da liberdade …

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Conforme já foi dito em 3.1., um dos requisitos específicos de aplicação da prisão preventiva é a verificação de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos, nos termos estipulados na alínea a) do artigo 202.º, n.º 1 do CPP, ou então que o crime doloso fortemente indiciado corresponda a um dos descritos nas alíneas b) a e) da norma em análise.

Do mesmo modo, a aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica depende da existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, conforme estabelece o artigo 201.º, n.os 1 e 3 do CPP.

Revertendo ao caso dos autos, no despacho recorrido o Mmo. Juiz de Instrução entendeu que se encontra fortemente a prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º e 22.º, e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Penal.

Baseou-se para tanto nos elementos do processo, indicados na promoção do Ministério Público de apresentação a primeiro interrogatório judicial, que entendeu sustentarem a indiciação forte dos factos imputados e que foram comunicados ao arguido no interrogatório, nos termos do disposto no artigo 194.º, n.º 7 do CPP, sendo que, após referir que o arguido exerceu a faculdade de não prestar declarações quanto aos factos imputados, o Mmo. Juiz de Instrução destacou do aludido acervo probatório a prova testemunhal, designadamente os depoimentos de um dos seguranças e do gerente do estabelecimento onde ocorreram os acontecimentos, o auto de visionamento de registo das imagens, onde se atesta que um indivíduo de tez mais escura, mantém “algo empunhado na mão direita” e desferindo golpes com recurso a faca/navalha, confirmando-se, deste modo, que na data dos factos o arguido tinha na posse tal instrumento (fls.111 e 112), sendo que ao arguido foi apreendida uma faca/navalha em tudo idêntica à descrita (fls.443 e seguintes).

O Mmo. Juiz de Instrução assinalou ainda que, se é certo que o ofendido BB não se terá apercebido de imediato do golpe que lhe foi vibrado, resulta do seu depoimento que o mesmo terá sido levado a cabo através de um meio insidioso, designadamente com um modo de actuação em que não viu de imediato a navalha/faca, mas apenas sentiu um corte. Também o ofendido CC refere que terá sido vitima de esfaqueamento de indivíduo que desconhecia na altura, mas que refere ser pessoa de cor, o que corresponde à etnia do arguido.

Ora, analisados os elementos indicados, a Relação não pode deixar de estar de acordo com o juízo de forte indiciação da prática, pelo recorrente, de factos subsumíveis nos imputados crimes de homicídio na forma tentada e de ofensa à integridade física qualificada.

Com efeito, pese embora os ofendidos BB e CC não tenham identificado o arguido como tendo sido quem os golpeou com um objecto corto-perfurante, o que se explica pelo facto de as agressões terem sido perpetradas de forma sub-reptícia, com os ofendidos a serem atingidos pelas costas, certo é que o arguido AA foi inequivocamente o único a ser visto a empunhar um objecto com tais características, conforme foi referido pela testemunha II, gerente do estabelecimento em questão (“N...”, na ...) e se visualiza nas imagens de fls.111 e 112, extraídas do sistema de CCTV instalado naquele espaço.

Nas aludidas imagens vê-se o indivíduo de raça negra que veio a ser identificado pela Polícia Judiciária como sendo o arguido AA, conforme comprovadamente o confirmam as diligências realizadas por aquele OPC: contacto e recolha de informações junto de funcionário do Hotel ..., sito na ..., onde arguido e os restantes elementos do grupo de que fazia parte se encontravam hospedados; visionamento das imagens captadas pelos sistema CCTV instalado no referido estabelecimento hoteleiro; e visualização dos indivíduos que formavam o grupo, na ocasião em que os elementos da Polícia Judiciária se deslocaram ao hotel e aqueles se encontravam na piscina, tendo sido observado o indivíduo de raça nega, alto, com pêra, descrito por CC e HH, descrição que apenas a ele, AA, corresponde …

Nas imagens de fls.111 e 112 é possível ver o identificado AA a empunhar um objecto na mão direita que, conforme fls.112, levanta em direcção ao segurança privado do “N...” e, na imagem seguinte, também de fls.112, o gerente do estabelecimento a segurar-lhe a mão …

Recorde-se que … a testemunha II, gerente do estabelecimento “N...”, referiu que, encontrando-se ambos os grupos [grupo dos ofendidos e grupo dos arguidos] na zona da antecâmara da discoteca, junto à saída para o exterior, se apercebeu de um dos indivíduos do grupo desconhecido [grupo dos arguidos] a empunhar uma faca ou navalha, que tentou utilizar contra o “JJ” [CC], que naquele momento estava próximo dele, apenas separado pelo segurança privado KK. O indivíduo que empunhava a faca/navalha foi impedido de a usar pelo depoente que, ao se deparar com aquela cena, lhe agarrou a mão, contribuindo para que o mesmo fosse imediatamente conduzido ao exterior. Descreveu o indivíduo como sendo de raça negra, usava pêra, cabelo curto, identificando-o inequivocamente como sendo o indivíduo constante dos fotogramas de fls.101 [onde se pode ver, a corresponder a essa descrição, o arguido AA].

Acresce que, aquando da busca realizada à residência do arguido AA, foi apreendido um canivete com características idênticas às do objecto utilizado nas agressões aos ofendidos BB e CC …

Aliás, a propósito desta busca domiciliária … a diligência foi realizada na presença do próprio e no quarto por ele ocupado foi encontrado, na última gaveta da mesa de cabeceira, no interior de uma lata, um canivete com cabo plástico, padrão camuflado, que o buscado indicou como sendo o objecto que usou para perpetrar as agressões na ....

Nesta fase do processo, o elemento acima referido – auto de busca e apreensão no qual, repete-se, consta que o buscado indicou o canivete apreendido como sendo o objecto que usou para perpetrar as agressões –, é susceptível de ser valorado com elemento indiciário relevante e que vem, assim, corroborar o que já resultava fortemente indiciado da conjugação dos restantes elementos considerados, nos termos acima expostos.

Na decisão recorrida, reportando-se à informação da Polícia Judiciária de fls.495 a 498, o Mmo. Juiz de Instrução assinalou que a fls.496 se refere que, em relação ao canivete apreendido nos autos, pelo arguido foi dito que o teria utilizado na prática dos factos. Contudo, o Mmo. Juiz de Instrução assinalou também que, uma vez que se desconhecem as circunstâncias em que o arguido proferiu tais afirmações, entendeu, de momento, não valorar essa declaração.

Ora, o aludido auto de busca e apreensão, assinado pelo arguido AA e no qual consta que indicou o canivete encontrado como sendo o objecto que usou para perpetrar as agressões na ..., serve precisamente para esclarecer as circunstâncias em que tais declarações foram proferidas pelo arguido, assumindo, na fase em que nos encontramos, a relevância probatória indiciária já referida.

Em suma, os aludidos elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, persuadem da culpabilidade do agente identificado e, por conseguinte, suportam a formação de um juízo de forte indiciação da prática, pelo arguido AA, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º e 22.º, e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Penal,

Da ponderação que fez de tais elementos probatórios (e mesmo sem ter considerado a relevância do aludido elemento do auto de busca e apreensão de fls.427 e 427-v.º) não resulta que o Mmo. Juiz de Instrução tenha procedido ao juízo de forte indiciação com base em elementos de prova insuficientes ou que o colocassem num estado de dúvida que objectivamente seria apto a abalar a convicção formada no sentido de que os factos se encontram fortemente indiciados.

*

3.3. Na linha do que se adiantou em 3.1., a propósito do artigo 204.º do CPP, as exigências cautelares exclusivamente processuais que determinam o decretamento das medidas de coacção (salvo o termo de identidade e residência) pressupõem que no momento da sua aplicação se verifique, em concreto:

a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Não sendo tais requisitos gerais cumulativos, bastará a verificação de um dos perigos ali elencados para que, uma vez preenchidos também os respectivos requisitos especiais, se mostre justificada a aplicação de uma determinada medida de coacção.

No despacho recorrido o Mmo. Juiz de Instrução entendeu que existe o perigo de continuação da actividade criminosa, o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, o perigo de perturbação do decurso do inquérito e o perigo de fuga.

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3.3.1. Começando pelo perigo de continuação da actividade criminosa, segundo o artigo 204.º, alínea c), do CPP, este decorrerá da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, sendo certo que a medida de coacção não se destina a acautelar a prática de qualquer crime, mas apenas a continuação da actividade criminosa que se mostra indiciada no processo, o que se verificará com a execução do mesmo ilícito e bem assim com outros análogos ou da mesma natureza.[9]

Ora, no mesmo sentido, a Relação entende que, perante os elementos disponíveis à data do despacho recorrido, é de considerar que existe perigo de continuação da actividade criminosa, não apenas virtual ou hipotético, mas muito real e concreto, assumindo uma intensidade tal que para lhe fazer face se revela insuficiente a aplicação de medida de natureza não detentiva, impondo-se, no caso, a sujeição do arguido a uma medida de coacção privativa da liberdade.

Como objectivamente resulta dos factos fortemente indiciados e fundadamente motivou a decisão recorrida, o arguido revela séria dificuldade em controlar os seus impulsos violentos quando contrariado na interacção com terceiros, sobretudo sendo altamente provável que em situações idênticas de convívios em bares ou discotecas e perante um circunstancialismo semelhante, venha a reagir do mesmo modo, com a adopção de condutas violentas e insidiosas, com a utilização de armas que traz consigo para locais onde normalmente se aglomeram muitas pessoas e que deveriam ser apenas de convívio e divertimento. O perigo de continuação da actividade criminosa não se analisa apenas em relação às vítimas nos presentes autos, mas em relação a outras vitimas que em eventos do mesmo género tenha um encontro em tudo idêntico ao dos presentes autos, o que se afigura altamente provável, atendendo a que para o estrato geracional de que faz parte o arguido a frequência de espaços de diversão nocturna é algo que normalmente se repete com regularidade.

Assim, a concreta conduta empreendida, pela gravidade que revela e o modo sub-reptício e insidioso com que a executou, o passado criminal com condenações em participação em rixa e roubo, revela uma personalidade em que sobressai a facilidade com que o arguido se determina à realização de delitos como os dos autos, gerando-se a motivação para tal, o que claramente suporta a existência do perigo de continuação da actividade ilícita que se manifesta com intensidade assinalável.

Assim sendo, face ao acima exposto, há que concluir que, perante a natureza e circunstâncias da conduta delituosa indiciada e a personalidade do arguido AA, não se pode fundadamente deixar de temer que este venha a prosseguir a sua actividade ilícita, não obstante tenha sido instaurado o presente processo e caso fique sujeito a uma medida não detentiva, ainda que cumulada com outra da mesma natureza, como a proibição de contactos, pelo que o perigo de continuação da actividade criminosa assume, como já foi dito, um grau de intensidade significativo, a exigir, para o acautelar, uma medida privativa da liberdade.

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3.3.2. Também previsto na alínea c) do artigo 204.º, o perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas tem de resultar da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, relevando para o mesmo a alteração negativa que prejudique ou cause dano à ordem pública e não apenas a mera alteração ou inquietação gerada no meio social.[10]

Naturalmente que as condutas indiciadas suscitam sentimentos de insegurança por parte da comunidade, abalando as legítimas expectativas que a mesma tem na validade e vigência das normas violadas e que tutelam bens jurídicos fundamentais da maior importância para os cidadãos.

Por outro lado, os factos fortemente indiciados são reveladores de uma personalidade … em que sobressai a facilidade com que se determina a realizar tais ilícitos, reagindo da forma violenta aqui fortemente indiciada a qualquer contrariedade, situação de tensão ou provocação de terceiros.

… Atenta a elevada gravidade da concreta conduta ilícita indiciada, o comportamento globalmente adoptado, em si gerador de muita insegurança, bem como a ampla divulgação de acontecimentos como os dos autos, que chegam ao conhecimento da generalidade da população, parte da qual é, aliás, frequentadora dos mesmos espaços ou são-no os seus filhos, netos e outros familiares, maioritariamente das camadas mais jovens, é normal e expectável que o alarme e a intranquilidade rapidamente se propaguem na comunidade e potenciem um grau acentuado de perturbação da paz social, o que, tudo conjugado, leva a concluir no sentido do perigo efectivo de, em liberdade, o arguido perturbar gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Assim, as razões que, em concreto, se identificaram, resultantes sobretudo da natureza e circunstâncias dos crimes indiciados, bem como da personalidade do arguido neles revelada, levam a concluir que existe o perigo efectivo de, em liberdade, AA perturbar gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

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3.3.3. Quanto ao perigo de perturbação do decurso do inquérito, embora não se revele com a mesma intensidade que a dos outros perigos já identificados (3.3.1. e 3.3.2.), analisados os dados do presente caso à luz das regras da experiência comum, verifica-se que estão reunidas as condições para se concluir que o acervo factual indiciado fornece elementos que suportam a existência de um perigo suficientemente concreto de perturbação do inquérito quanto aos elementos ainda a recolher em sede de investigação e à conservação e veracidade do que já foi recolhido, em função do que se considera o fundamento previsto no artigo 204.º, alínea b), do CPP se encontra preenchido.

É, pois, de reconhecer como possível que a investigação venha a sofrer importantes entraves caso o arguido continue a poder movimentar-se livremente, sem estar limitado na capacidade de acção e nos contactos pessoais, procurando condicionar a versão dos outros arguidos e, agora que conhece a identidade dos ofendidos e restantes testemunhas, exercendo pressão sobre eles, levando-os a alterar os relatos que já prestaram nos autos. Isto tanto mais que o arguido cometeu os factos na companhia de cinco outros indivíduos e que, após as agressões aos ofendidos, todo o grupo se ausentou do local dos acontecimentos.

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3.3.4. Quanto ao perigo de fuga, previsto na alínea a), é sabido que ele deverá corresponder a um perigo real e iminente, não meramente hipotético, virtual ou longínquo, e a resultar da ponderação da factualidade conhecida no processo, relativa aos ilícitos indiciados e sua gravidade (não servindo, contudo, estes aspectos para, sem mais, com base apenas em generalizações, deduzir que tal perigo existe) e bem assim a outros factores atinentes ao arguido, como sejam a personalidade revelada, a sua situação pessoal, económica, profissional e familiar e contexto social em que se insere, à luz da finalidade de “acautelar a presença do arguido no decurso do processo e a execução da decisão final”, a qual será posta em causa quando há elementos que, em concreto, indiciem que aquele se pretende furtar à acção da justiça.

Ora, no caso dos autos, crê a Relação que os elementos indiciados nesta fase (no essencial, o arguido, depois de ter esfaqueado as vítimas, ausentou-se do local, já foi condenado por participação em rixa e roubo e o crime de homicídio tentado aqui indiciado é punível com pesada pena de prisão) não se mostram suficientes para suportar a existência, em concreto, do indicado perigo de fuga.

3.4. Na linha do que se referiu supra (cf. 3.1.), a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção (artigo 193.º, n.º 2 do CPP).

Por sua vez, quando ao caso couber medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares – n.º 3 do indicado preceito.

Neste contexto, considerando os perigos identificados, nos termos acima expostos (cf. 3.3.1., 3.3.2. e 3.3.3.), entende a Relação que aqueles apenas poderão ser acautelados mediante a aplicação de uma medida privativa da liberdade, mostrando-se as demais medidas de coacção inadequadas e insuficientes.

Além disso, a gravidade da situação leva a afirmar a proporcionalidade de uma medida detentiva, face à sanção que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido (artigo 193.º, n.º 1 do CPP).

A obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica confina o arguido ao espaço da sua casa, limitando-lhe consideravelmente a capacidade de acção, mormente no que concerne à mobilidade que, in casu, se revela essencial para a execução de novos factos (3.3.1.) e a aproximação aos restantes arguidos, ofendidos e testemunhas, por forma a sobre eles exercer influência e pressão, nos termos referidos em 3.3.3. Isto para além de que só assim se atenua suficientemente o alarme social gerado pela prática dos factos, no concreto circunstancialismo que se indiciou, nos termos já descritos em 3.3.2.

Embora não tenha a virtualidade de fisicamente impedir saídas da residência, o equipamento electrónico de vigilância sinaliza o incumprimento das restrições que decorrem da medida e permite, assim, desencadear a intervenção das entidades de controlo e, sendo caso disso, das forças de segurança, para captura e condução ao local de vigilância electrónica do arguido que dele se ausente sem autorização.

Assim, considerando os fortes indícios da prática dos factos imputados a AA e as necessidades cautelares verificadas no caso concreto, conclui a Relação que a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica se encontra legitimada pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, estando, pelas razões já expostas, reunidos os pressupostos para a sua aplicação ao arguido.

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III – Decisão

Por todo o exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmam o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida (artigos 513.º, n.os 1 e 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP, este com referência à Tabela III anexa)

Coimbra, 22 de Março de 2023

(Elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária e assinado electronicamente por todas as signatárias – artigo 94.º, n.os 2 e 3 do CPP)

Helena Bolieiro – relatora

Rosa Pinto – adjunta

Alice Santos – adjunta





[1]
[2]
[3] Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol.II, 5.ª ed., Verbo, 2011, págs.345-347.
[4] Ibid., págs.345-347.
[5] Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/2015, de 12-08-2015, disponível na Internet em
<http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/>
[6] Cf. Germano Marques da Silva, op. cit., pág.348.
[7] Conforme citação de Nuno Brandão em “Medidas de coacção: o procedimento de aplicação na revisão do Código de Processo Penal”, in Revista do CEJ, n.º 9 (especial): Jornadas sobre a revisão do Código de Processo Penal, 2008, pág.72.
[8] Cf. Germano Marques da Silva, op. cit., pág.353.
[9] Cf. Germano Marques da Silva, op. cit., pág.353.
[10] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., Universidade Católica Editora, 2011, pág.602.