Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
314/14.2TAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: PROVA
DEPOIMENTO DO ASSISTENTE
CRIME DE AMEAÇA
Data do Acordão: 04/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (INSTÂNCIA LOCAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.125.º E 127.º, DO CPP; ART. 155.º DO CP
Sumário: I - Os factos apurados podem assentar numa multiplicidade de meios de prova ou num só e, para além disso, a prova relevante pode ser um só depoimento de uma testemunha, do arguido, do assistente, etc. Mister é que ele se tenha revelado credível.
II - Se a prova, analisada à luz das regras da experiência, apontava para uma determinada realidade e se esta interpretação não foi posta em causa, a convicção formou-se desta forma e sedimentou-se nos termos expostos na decisão sobre a matéria de facto.

III - O bem jurídico protegido pelo tipo [ameaças] é a liberdade de decisão e acção e as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa ameaçada, afectam a paz individual essencial à verdadeira liberdade.

IV - Sobre as características das ameaças, têm que se reportar a um mal, futuro e a sua ocorrência depende da vontade do agente.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO
1.

O arguido A... foi condenado na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 6 €, por cada um dos dois crimes de ameaça agravada praticados, dos art. 153º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal, tendo a pena única sido fixada em 240 dias de multa, à mesma taxa.

Foi, ainda, condenado a pagar à demandante civil B... a quantia de 1.000,00 € a título de indemnização, acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da notificação para contestar o pedido até pagamento.

2.

O arguido recorreu, concluindo:

«a) O arguido A... foi condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de dois crimes de ameaça agravada p, e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al a), do Código Penal, nas penas parcelares de 150 (cento e cinquenta) dias de multa por cada um deles, e, após cúmulo jurídico, na pena única de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), num total de € 1.440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros).

Foi ainda o demandado civil A... condenado a pagar à demandante, sua filha, B... , a quantia de €1.000,00 (mil euros), acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano desde a data em que o demandado se considera notificado para contestar o pedido em causa até efectivo e integral pagamento, tudo a título de indemnização civil.

b) A matéria que o Tribunal recorrido enumerou como provada mostra-se escassa e insuficiente para dela se concluir pela existência da prática de dois crimes de ameaça agrava, crimes pelos quais decidiu condenar o ora recorrente;

c) A matéria considerada provada não permite suportar, por insuficiência, a existência da prática de dois crimes de ameaça agravada praticados pelo arguido;

d) Para tal teriam que ficar inequivocamente provados factos que demonstrassem o registo da conversa telefónica que deu origem às ameaças, sendo que a prova testemunhal também não foi suficientemente conclusiva quanto à existência das referidas ameaças;

e) Foi com base apenas nas declarações da assistente, as quais não foram prestadas com o devido rigor e de um modo espontâneo ou escorreito, que o Tribunal recorrido formou a sua convicção, extraindo, mesmo sem qualquer suficiência e razoabilidade, o julgamento da existência da prática de dois crimes de ameaça agravada;

f) Só após grande insistência do Tribunal, a assistente acaba por dizer que o arguido lhe dirigiu expressões como: "vou aí, arrombo-te a porta e mato-te a ti e a ele", com notória evidência que a assistente só o disse porque o Tribunal assim o insistiu ao referir por diversas vezes como: "alguma vez o seu pai usou o verbo matar?" e "é que uma coisa é dizer dou-te um tiro nos cornos, outra coisa é dizer mato-te a ti e a ele".

g) Com grande probabilidade o arguido nunca dirigiu essas expressões à assistente, bem como dificilmente o Tribunal poderia firmar a sua convicção já que não existe qualquer meio probatório que possibilite firmar com convicção a existência da conversa telefónica entre o arguido e a assistente.

h) O Tribunal recorrido faz alicerçar a sua convicção, de forma essencial e decisiva, no depoimento da assistente, sendo certo que só com grande dificuldade a assistente referiu expressões com a palavra "mato-te" e de uma forma forçada e artificial.

i) Esse depoimento, pela forma como foi prestado e por não se encontrar acompanhado de qualquer outro meio de prova não poderá nunca ser suficiente para dar como provado que o arguido praticou os factos pelos quais vem acusado e que se consubstanciam na prática de dois crimes de ameaça agrava.

j) O Tribunal recorrido ao condenar o arguido, desta forma, pela prática de dois crimes de ameaça agravada está a colocar em causa as suas garantias de defesa, nomeadamente o principie in dubio pro reo.

k) Assim o exige o princípio in dubio pro reo, o qual decorre do princípio da presunção de inocência do arguido, previsto no nº 2, do artigo 32º da CRP, que se deverá absolver o arguido "em caso de dúvida do julgador sobre a culpabilidade do acusado." l) Portanto ao Tribunal é dirigida uma imposição "no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa."

m) Deste modo, ao existir insuficiência na prova produzida, não poderá ser outra a decisão senão pela absolvição do réu, com base no princípio do in dubio pro reo bem como pela decisão de considerar o pedido de indemnização cM! como improcedente na sua totalidade».

3.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público respondeu. Alega que o arguido se limitou a discordar com o sentido da decisão, que o tribunal retratou o que resultou do julgamento, pelo que a sentença deve ser mantida.

Nos mesmos termos se pronunciou o Sr. P.G.A., dizendo que o arguido nem imputa à decisão qualquer dos vícios referidos no nº 2 do art. 410º do C.P.P., nem impugna a decisão da matéria de facto, nos termos do art. 412º, limitando-se a contrapor a sua convicção à convicção do tribunal, sendo certo que os factos dados como provados resultaram da prova feita, legalmente atendível.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

4.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.


*

FACTOS PROVADOS

5.

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

«A) O arguido A... é progenitor de B... , nascida a 9 de Setembro de 1985 e de D... , nascida a 14 de Fevereiro de 1997.

B) Em data não concretamente apurada, mas situada no final do mês de Fevereiro ou no início do mês de Março de 2014, num Domingo, cerca das 22:00, o arguido, a propósito de a sua filha D... se encontrar a residir com a sua filha B... , dirigiu-se a esta última através de contacto telefónico, encontrando-se a mesma na respectiva residência, sita em Avenida (...) , Guarda, e em tom sério, ao longo de uma conversa, disse-lhe, entre o mais: “eu vou aí e mato-te a ti e ao teu marido”, “se ele não se cala dou-lhe um tiro nos cornos”.

C) Em consequência da actuação do arguido, desde a ocasião supra relatada, B... sente medo e receia que aquele arguido, em concretização das expressões proferidas, atente contra a sua vida e integridade física.

D) O arguido agiu consciente e livremente, com intenção e vontade de atemorizar a sua filha B... e marido C... , constrangendo-os nas respectivas liberdades pessoais.

E) O arguido bem sabia serem as condutas que assumiu proibidas e puníveis por lei penal.

F) No momento dos factos, a assistente encontrava-se na companhia do seu marido C... , dos seus três filhos menores, e da sua irmã D... .

G) Desde a data dos factos, a demandante B... sente medo que o demandado A... possa concretizar os anúncios que lhe efectuou, quer contra si, quer contra o seu marido, vivendo por isso inquieta, até porque o demandado bem a conhece, sabe onde esta reside e conhece os seus hábitos.

H) O arguido exerce a profissão de pedreiro, mediante o que aufere rendimentos de pelo menos €505,00 por mês. Vive com a actual esposa (que é empregada numa padaria em part-time) e com dois filhos que tem com esta, de 4 e 14 anos de idade. Suporta renda de casa no valor de €550,00 por mês, e €142,33 a título de prestação para pagamento de empréstimo à habitação. Tem como habilitações literárias a antiga 4ª classe.

I) O arguido foi já condenado no âmbito do processo n.º 35/01.6STGRD, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, pela prática no dia 17 de Maio de 2001 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena principal de 120 dias de multa à taxa diária de 500$00, num total de 60.000$00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses. Tal condenação transitou em julgado a 4 de Junho de 2001 e as respectivas penas foram já declaradas extintas.

Foi também condenado no âmbito do processo n.º 139/01.5JAGRD, do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, pela prática no dia 1 de Julho de 2001 de um crime de contrafacção de moeda e um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena única de 3 anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e 90 dias de multa à taxa diária de €3,00, no total de €270,00. Tal condenação transitou em julgado a 17 de Dezembro de 2003 e a respectiva pena foi já declarada extinta.

Foi também condenado no âmbito do processo n.º 75/07.1GESLV, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Silves, pela prática no dia 8 de Fevereiro de 2007 de um crime de ofensa à integridade física simples e um crime de ameaça, na pena única de 160 dias de multa à taxa diária de €10,00, no total de €1.600,00. Tal condenação transitou em julgado a 15 de Setembro de 2008 e a respectiva pena foi já declarada extinta».

6.

E foram julgados não provados quaisquer outros factos com relevância para a causa, nomeadamente:

«1) Em consequência da actuação do arguido, desde a ocasião referida nos factos provados, C... sinta medo e receie que o arguido, em concretização das palavras proferidas e referidas igualmente nos factos provados, atente contra a sua vida e integridade física.

2) Desde a data dos factos, a demandante B... sinta medo que o demandado A... possa concretizar quaisquer anúncios contra a vida que tenha efectuado contra os filhos e contra a irmã da demandante.

3) A demandante B... sempre tenha sido tida como sendo séria, honesta, educada, recatada e sensata.

4) A actuação do demandado A... tenha causado perturbação no ambiente familiar da demandante B... , o qual tenha passado a viver numa situação de insegurança e intranquilidade».

7.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:

«O Tribunal baseou a sua convicção obviamente e de forma clara e decisiva no depoimento que foi prestado pela assistente B... , o qual nos pareceu suficientemente circunstanciado, coerente e credível, tendo narrado os factos que foram dados como provados, sem que tenha sido contrariada por qualquer outro meio de prova.

É certo e não pode deixar de se conceder que o depoimento em causa prestado pela assistente não se mostrou totalmente escorreito e espontâneo, tendo sido necessárias algumas insistências no sentido de a mesma concretizar mais aprofundadamente o que narrou e os motivos do sucedido, mas pensamos que nem por isso se haverá de colocar em causa a respectiva credibilidade. É necessário ter em conta que se trata de uma situação com peso emocional para a assistente, ao ver-se em Tribunal a narrar factos que a afectaram sobremaneira e que foram praticados contra si pelo seu próprio pai, que a assistente referiu por mais de uma vez que até ali tinha sido “o seu herói”.

Justamente quanto aos aludidos motivos para o sucedido, a assistente mostrou alguma relutância em fornecer demasiados pormenores, o que de certo modo se compreende, atendendo a que se trata de questões privadas e íntimas do seu agregado familiar, mas ainda assim foi relatando que o sucedido teve a ver, por um lado, com o facto de o seu pai aqui arguido discordar com os horários em que a sua filha e irmã da assistente D... deveria recolher à cama (entendendo o arguido que às 22:00 já seria bastante tarde), mas sobretudo porque existiam claramente questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais relativamente à aludida e então menor D... que na altura dividiam o aqui arguido e a mãe da referida então menor (bem como eventualmente a actual esposa do arguido), e nos quais a aqui assistente se teria imiscuído.

Enfim, em suma, julgamos que as declarações prestadas pela assistente, ainda que não tendo sido acompanhadas por qualquer outro meio de prova, são a nosso ver perfeitamente suficientes para que formássemos uma convicção sobre os factos provados, como formamos, sobretudo atendendo a que não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova.

É de referir que o arguido, tendo estado presente em audiência de julgamento, optou por não prestar quaisquer declarações acerca dos factos que lhe foram imputados, no uso de um direito que lhe assiste, e por isso não pode ser nem é prejudicado, mas a verdade é que por isso não pode ser igualmente beneficiado. Ao não se pronunciar sobre os factos aqui em causa, o arguido colocou-se à mercê da demais prova que foi produzida e que já foi referida, e da qual a nosso ver resulta uma convicção perfeitamente suficiente sobre a prática dos factos que se deram como provados.

Muito embora o arguido tenha deduzido contestação escrita onde impugnou e negou os factos aqui em causa, afirmando aí que tais factos não correspondem à verdade, trata-se aqui contudo de uma simples peça processual, a qual não constitui nem representa qualquer meio de prova, nem substitui, como é óbvio, as declarações que o arguido poderia ter prestado em audiência de julgamento, mas não prestou.

E nem nos parece que o depoimento que foi prestado pela testemunha abonatória E... coloque minimamente em causa o que anteriormente dissemos, na medida em que tal testemunha não demonstrou qualquer conhecimento directo sobre os factos aqui em causa, tendo-nos até suscitado alguma estranheza pelo facto de, não obstante ser amigo próximo do arguido já há vários anos e ter frequentes contactos e conversas pessoais com este, tenha ainda assim manifestado que conhece e tem contacto com todos os filhos do arguido, justamente com excepção (por algum motivo) da aqui assistente B... . Como é óbvio, não é pelo simples facto de a testemunha aqui em causa ter referido que o arguido tem contactos perfeitamente normais e amistosos com todos os seus demais filhos, que aqui teríamos de dar os factos aqui em sujeito como não suficientemente provados.

A respeito dos efeitos da prática dos factos sobre a pessoa da assistente e demandante, como se deu como provado, são aqueles que resultam claros da experiência comum, para além de terem sido confirmados também pela própria. Já ao contrário não se provaram quaisquer efeitos dos factos sobre o marido e os filhos da assistente ou sobre a respectiva dinâmica familiar, na medida em que não foi produzida prova suficiente a esse respeito, tanto mais que os demais familiares da assistente e do arguido, como testemunhas, não prestaram quaisquer declarações por se terem validamente recusado a depor.

Mais se deu como não provado que a demandante B... sempre tenha sido tida como sendo séria, honesta, educada, recatada e sensata, na medida em que não foi produzida qualquer prova neste sentido e que permitisse sustentar tal facto.

Quanto ao conhecimento e intencionalidade inerentes à conduta do arguido que se deram como provados, são aqueles que resultam claramente da observação objectiva e exterior dos demais factos que se deram como provados, analisados à luz das mais elementares regras da experiência comum, nada nos levando a concluir que o conhecimento e intencionalidade do arguido fossem quaisquer outros diferentes dos provados.

Por fim, a respeito da condição pessoal, familiar e sócio-económica do arguido que foi dada como provada, foram relevantes as suas declarações que prestou a este respeito, não existindo elementos para delas duvidar, e quanto aos antecedentes criminais do arguido, foi relevante o respectivo CRC que consta dos autos a fls. 45 a 50».

DECISÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir respeita à matéria de facto dada como provada e sua suficiência para a decisão.


*

            Relativamente aos factos dados como provados, que relevam para o caso, foi decidido que o arguido disse à sua filha B... , por telefone, em tom sério “eu vou aí e mato-te a ti e ao teu marido”, “se ele não se cala dou-lhe um tiro nos cornos” e que em consequência destas palavras desde então a filha do arguido sente medo e receia que o pai, em concretização das expressões proferidas, atente contra a sua vida e integridade física.

            O arguido defende que a decisão da matéria de facto, que impugnou na contestação, não se pode basear, apenas, nas declarações prestadas pela assistente que, além do mais, não foram rigorosas, espontâneas e convictas e que é insuficiente para a condenação.


*

            No termos dos nº 3 e 4 do art. 412º do C.P.P. quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, sendo que quando as provas tenham sido gravadas nas especificações o recorrente deve indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

            A especificação dos factos não está feita, mas resulta que são as palavras imputadas que estão em causa.

Quanto à prova, o que resulta do recurso é que o arguido acaba por aceitar que a assistente declarou aquilo que o tribunal consignou na sentença, mas defende que o depoimento não deve ser considerado porque não foi convincente.

Portanto, e conforme já foi referido, aquilo que o arguido impugna é, ao fim e ao cabo, a convicção que o tribunal formou a partir deste depoimento.

            Nos termos do art. 127º do C.P.P., e excepto quando a lei disser o contrário «… a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

            O juiz, na apreciação da prova, está liberto das amarras que a prova tarifada impõe podendo, ao invés, socorrer-se de toda a sua experiência, aqui incluída a experiência do homem comum suposto pela ordem jurídica, ao serviço da averiguação da verdade.

A convicção é a certeza adquirida, o convencimento.

Então a livre convicção é o processo de convencimento do juiz sobre os factos, feito de acordo com a regra acima enunciada.

Esta livre convicção não se forma contabilizando os depoimentos e decidindo de acordo com o números de afirmações feitas para cada lado. Também não se forma apenas e só a partir de depoimentos claros, inequívocos, que relatem todos os pormenores, que recordem todos os episódios. Do mesmo modo não exige coincidência absoluta entre todos os depoimentos relevados na decisão.

A livre convicção é muito mais do que esse exercício primário.

A verdade que se busca no processo, mesmo no processo penal, não é a verdade ontológica, absoluta, pois que a reconstrução exacta dos factos ocorridos é impossível e o juiz, que não é divino, não consegue alcançar um tal patamar.

Mas o processo também não se basta com a verdade formal, apesar de a nossa lei de processo conter espartilhos que, por vezes, a impõem.

O que verdadeiramente se busca no processo é a verdade material acessível ao nosso conhecimento: verdade material porque afastada da influência que a acusação e a defesa exerçam sobre ela; verdade material porque verdade judicial, prática, e obtida não a todo o preço mas de forma processualmente válida [1].

Daí que a prova, para alguns, mais não seja do que uma demonstração do racional, um esforço de razoabilidade: é a verdade contextual e possível que resulta, precisamente, do trabalho de apreciação da prova, apreciação esta que é livre.

Mas esta liberdade não é arbitrariedade. O juiz tem uma margem de liberdade de apreciação, mas dentro dos limites fixados na lei, limites estes constituídos por vectores, essenciais e que integram a base do nosso sistema processual penal, e que são o grau de convicção exigido para a decisão, a proibição de determinados meios de prova e o respeito absoluto pelos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo[2].

            Trilhado todo este percurso surge, então, a decisão, que consiste, afinal, na opção por uma das versões em conflito no processo, já que, conforme sabemos, na esmagadora maioria dos casos defrontam-se, pelo menos, duas versões do julgamento da causa. Não sendo opção do julgador não decidir [3], terá ele que fazer a sua opção, em respeito pelas regras enunciadas.

            E este processo afere-se através da fundamentação da decisão – dever com consagração constitucional, no art. 205º, nº 1 -, onde o juiz deve explicitar as razões da decisão. É a motivação que constitui o mecanismo de controlo do processo de formação da convicção do tribunal.

            Conforme consta acima, o tribunal fundamentou a decisão de facto tomada no depoimento da assistente, que teve como «suficientemente circunstanciado, coerente e credível, tendo narrado os factos que foram dados como provados, sem que tenha sido contrariada por qualquer outro meio de prova.

É certo e não pode deixar de se conceder que o depoimento em causa prestado pela assistente não se mostrou totalmente escorreito e espontâneo, tendo sido necessárias algumas insistências no sentido de a mesma concretizar mais aprofundadamente o que narrou e os motivos do sucedido, mas pensamos que nem por isso se haverá de colocar em causa a respectiva credibilidade. É necessário ter em conta que se trata de uma situação com peso emocional para a assistente, ao ver-se em Tribunal a narrar factos que a afectaram sobremaneira e que foram praticados contra si pelo seu próprio pai, que a assistente referiu por mais de uma vez que até ali tinha sido “o seu herói” … as declarações prestadas pela assistente, ainda que não tendo sido acompanhadas por qualquer outro meio de prova, são a nosso ver perfeitamente suficientes para que formássemos uma convicção sobre os factos provados, como formamos, sobretudo atendendo a que não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova».

            Neste excerto o tribunal fundamenta, de forma clara e suficiente, as razões da decisão. E as razões residem no facto de a assistente ter prestado um depoimento credível e embora o depoimento não tenha sido espontâneo, as razões da atribuição da credibilidade ao depoimento, não obstante este facto, também estão plenamente explicadas.

Na realidade, no caso em análise é natural que a depoente tenha mostrado reservas para dizer o que se passou.

Para além disso, e como o tribunal também disse, o depoimento, um só depoimento desacompanhado de qualquer outra prova, é suficiente para que se tenha como provada a matéria que ele relate.

É evidente que a valoração da prova por declarações depende do conteúdo das concretas declarações prestadas, do modo como as mesmas são assumidas pelo declarante e da forma como são transmitidas ao tribunal, circunstâncias que relevam para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova. A credibilidade dos depoimentos há-de ser averiguada - afirmada ou negada - no confronto do conteúdo concreto da sua descrição dos factos, num quadro de averiguação cuidadosa, da motivação e do interesse de cada um, nesses factos, por forma a afastar a credibilidade dos depoimentos se se ficar com a percepção que os mesmos estavam concertados, no sentido de alteração da verdade ou de criação de uma realidade virtual.

Para que um qualquer facto se tenha por provado não basta que as testemunhas se pronunciem num determinado sentido, tendo o juiz que aceitar, necessariamente e de forma acrítica, esse sentido ou versão. Do mesmo modo a concordância dos depoimentos não é prova da sua veracidade.

            Para além disso, os factos apurados podem assentar numa multiplicidade de meios de prova ou num só e, para além disso, a prova relevante pode ser um só depoimento de uma testemunha, do arguido, do assistente, etc. Mister é que ele se tenha revelado credível.

            Na fundamentação o tribunal referiu-se, ainda, ao silêncio do arguido, dizendo que ao exercer o seu direito de não falar «o arguido colocou-se à mercê da demais prova que foi produzida …».

O arguido foi acusado da prática dos factos dados como provados e entre a prova indicada na acusação figurava a assistente.

Considerando tudo isto o arguido sabia da possibilidade de a assistente, sua filha, relatar no julgamento aquilo que a acusação referia.

Se a prova, analisada à luz das regras da experiência, apontava para uma determinada realidade e se esta interpretação não foi posta em causa, a convicção formou-se desta forma e sedimentou-se nos termos expostos na decisão sobre a matéria de facto. O arguido, sabendo desta possibilidade, não invalidou aquele juízo, não deu qualquer explicação que fizesse inflectir o raciocínio do julgador.

Sendo certo que o arguido não tem o ónus de se defender para não ser condenado, a verdade é que conhecendo as provas existentes, que sabia que podiam levar à sua condenação, não curou de demonstrar que aquilo que muito provavelmente viria a ser dito era, na sua tese, falso.

Sobre o facto de o arguido negar os factos na contestação isto é irrelevante para a decisão a tomar.


*

            O arguido foi condenado pela prática de dois crimes de ameaça agravada porque disse à sua filha B... que a matava a ela e ao marido, sendo que desde então ela «sente medo e receia que aquele arguido, em concretização das expressões proferidas, atente contra a sua vida e integridade física».

           

Nos termos do nº 1 do art. 153º do Código Penal «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias».

Diz, depois, o nº 1 do art. 155º do Código Penal que se estes factos forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos a pena aplicável será de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.

O bem jurídico protegido pelo tipo é a liberdade de decisão e acção e as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa ameaçada, afectam a paz individual essencial à verdadeira liberdade. Sobre as características das ameaças, têm que se reportar a um mal, futuro e a sua ocorrência depende da vontade do agente [4].

Por isso a ameaça tem que ser adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação, tem que ser susceptível de afectar a paz individual ou a liberdade de determinação, embora sem carecer de afectar, em concreto, a liberdade de determinação da pessoa ameaçada (uma vez que o crime é, agora, de mera acção ou de perigo).

Quanto à adequação da ameaça à criação de medo ou inquietação, a análise assenta num critério objectivo-individual: «objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”);individual, no sentido de que devem revelar as características da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado ou, inversamente, das “sobre-capacidades” relativamente à média dos cidadãos. Assim, uma determinada ameaça pode, relativamente a um adulto normal, não ser considerada adequada … mas já o ser quando o ameaçado é uma criança ou uma pessoa com perturbações psíquicas … a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não intimidado)» [5].

De tudo resulta, portanto, a prática pelo arguido dos crimes pelos quais foi condenado.


*

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, no improvimento do recurso, mantém-se a decisão recorrida.

Fixa-se 3 UCs a taxa de justiça.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.


Coimbra, 4 de abril de 2016

(Olga Maurício – relatora)

(Luís Teixeira - adjunto)


[1]Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, pág. 193/194.
2 Limites enumerados por Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal, 1ª ed., pág.335.
3Nos termos do nº 2 do art. 3º do Estatuto dos Magistrados Judiciais estes «não podem abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado».




[4] Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª edição, pág. 552 e segs.
[5] Obra e autor citados.