Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2651/17.5T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: ENTIDADES PÚBLICAS EMPRESARIAIS
CELEBRAÇÃO DE CONTRATOS DE TRABALHO SUBORDINADO
REQUISITOS NECESSÁRIOS
NULIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO
Data do Acordão: 01/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DO TRABALHO DE COIMBRA – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 47º/1 E 2 CRP; ARTº 14º DO DL Nº 233/2005, DE 19/12; ARTº 28º DO DL Nº 18/2017, DE 10/02.
Sumário: I – As entidades públicas empresariais não podem outorgar em contratos de trabalho subordinado sem prévia tramitação de procedimento de seleção e recrutamento.

II – A ausência desse procedimento ou da sua demonstração, que compete ao trabalhador, determinam a nulidade do contrato de trabalho.

III – O estatuído no artº 47º/1 da CRP e as exigências de prévios procedimentos de seleção e de recrutamento dele decorrentes prevalecem sobre o direito comunitário, designadamente sobre a Diretiva 1999/70/CE do Conselho, de 28/6.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A autora propôs contra o réu a presente acção com a forma de processo comum e emergente de contrato de trabalho, deduzindo os pedidos seguidamente transcritos:
Deve a presente acção ser julgada procedente por provada e em consequência:
a) Deve ser reconhecido e declarado que o vínculo contratual estabelecido desde 1 de Janeiro de 2015 entre a A. e o Réu tinha a natureza de contrato de trabalho e não de contrato de prestação de serviços, sendo a A. titular de um vínculo por tempo indeterminado com o Réu;
b) Deve ser reconhecido e declarado que a cessação do contrato decretada unilateralmente pelo Réu, com efeitos a partir do dia 8 de Maio de 2017, é ilícita, representando um despedimento sem justa causa;
c) Deve o Réu ser condenado a reintegrar a A. ao seu serviço, para o posto de trabalho e para o exercício das funções para que foi contratada e com o vencimento constante do contrato;
d) Deve o Réu ser condenado a processar e pagar as retribuições que a A. deixe de receber desde a data do despedimento até à data da efectiva reintegração, acrescida dos juros de mora que sejam devidos à taxa legal;
e) Deve o Réu ser condenado a pagar à A. as remunerações devidas desde Janeiro de 2017 até à data do despedimento, no montante total de € 3.600,00, acrescido de IVA à taxa legal;
f) Deve o Réu ser condenado a indemnizar a A. pelos danos patrimoniais decorrentes do despedimento, no montante de € 2.829,00.”.
Alegou, como fundamento da sua pretensão, que foi trabalhadora subordinada do réu, apesar da aparência formal de prestação de serviço que vinha sendo conferida a tal relação profissional, sendo que o réu a despediu ilicitamente com efeitos reportados a 8/5/2017.
O réu contestou, pugnando pela improcedência da acção.
Com efeito, reconhecendo embora que a relação entre si e a autora era substancialmente de trabalho subordinado, o certo é que tal relação era nula desde o seu início, porquanto emergente de um contrato outorgado sem a competente autorização para recrutamento de trabalhadores para a constituição de vínculo de emprego público por parte da tutela governamental, para lá de que a autora não possuía o grau académico necessário para o desempenho funcional para que foi contratada.
Respondeu a autora para, no essencial, pugnar pela validade da relação de trabalho cujo reconhecimento peticiona e para concluir como na petição tinha efectuado.
O processo prosseguiu os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:

Por todo o atrás exposto, face à nulidade do contrato de trabalho, julga-se totalmente improcedente a presente ação, e em consequência:

*
 Absolvemos a R. “ A... , E.P.E”, da totalidade dos pedidos formulados nos autos pela A. – B... ;
 Custas a cargo da A.”.
Inconformada com o assim decidido, apelou a autora, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:
[…]
Contra-alegou o réu, pugnando pela improcedência da apelação.
Nesta Relação, o Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
II – Questões a resolver

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) se a sentença padece das nulidades que lhe são assacadas pela recorrente;
2ª) se deve ser ordenada a remessa dos autos à primeira instância a fim de que ali se discuta e apure se a contratação da autora foi ou não precedida de procedimento de selecção e de recrutamento;
3ª) se a matéria de facto deve ser aditada nos termos propugnados pela apelante;

4ª) se o contrato de trabalho entre a autora e o réu é nulo pela circunstância da contratação da autora pelo réu não ter sido precedida de qualquer procedimento de selecção e recrutamento;

5ª) se a autora tem direito à remuneração vencida desde Janeiro de 2017 e, na afirmativa, até que momento.

*
III – Fundamentação

A) De facto

O tribunal recorrido enunciou como provados os factos seguidamente transcritos:
[…]
*
B) De Direito

Primeira questão: se a sentença padece das nulidades que lhe são assacadas pela recorrente.

No caso em apreço, no próprio corpo das alegações da apelação (capítulo II, alínea A, nºs 1 a 4) e nas correspondentes conclusões (conclusões 1ª e 2ª), a apelante arguiu nulidades da sentença.
Independentemente de se saber se a sentença enferma dos vícios de nulidade que lhe são assacados pela recorrente, o certo é que a arguição desses vícios não teve lugar no requerimento de interposição do recurso, expressa e separadamente, tal como impõe o art. 77º/1 CPT.
Como se sabe, esse art. 77º/1 encontra a sua razão de ser na circunstância das nulidades serem, em primeira linha, dirigidas à apreciação pelo juiz do tribunal da 1ª instância e para que o possa fazer; radica no “…princípio da economia e celeridade processuais para permitir ao tribunal que proferiu a decisão a possibilidade de suprir a arguida nulidade.” – neste sentido, por exemplo, acórdão da Relação do Porto de 20-2-2006, proferido no processo 0515705, bem como demais jurisprudência aí invocada.
O acórdão do Tribunal Constitucional n° 304/2005, publicado no DR, II Série, de 05/08/2005, deixou consignado que em processo do trabalho, o requerimento de interposição de recurso e a motivação deste, no caso de arguição de nulidades da sentença, deve ter duas partes: a primeira dirigida ao juiz da 1ª instância, contendo essa arguição; a segunda, contendo a motivação do recurso, dirigida aos juízes do tribunal ad quem.
Como assim, uma vez que a recorrente não respeitou, relativamente à arguição das nulidades da sentença, o procedimento legalmente estabelecido para o efeito em processo do trabalho, não deve conhecer-se de tais nulidades, o que se decide.

*
Segunda questão: se deve ser ordenada a remessa dos autos à primeira instância a fim de que ali se discuta e apure se a contratação da autora foi ou não precedida de procedimento de selecção e de recrutamento.

Lidos os articulados oportunamente apresentados pelas partes, facilmente se percebe que neles nada se alegou sobre a (in)existência de procedimento de selecção e de recrutamento que tenha culminado com a contratação da autora.
Isso mesmo é reconhecido pela apelante no capítulo II, alínea A), nº 1, das suas alegações.
Ora, é sabido que por força do princípio do dispositivo compete às partes, designadamente, alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, a significar que devem ser as partes a carrear para os autos os factos essenciais em que o tribunal se pode basear para decidir, alegando o autor os que são constitutivos dos direitos em que assentam as pretensões por ele formuladas, e alegando o réu aqueles em que assenta a sua defesa, sendo monopólio das partes, assim, a conformação da instância nos seus elementos objectivos e também subjectivos 
 – art. 5º/1 do NCPC, Montalvão Machado, O Novo Processo Civil, 2.ª ed., p. 26, e Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil (revisto), pp. 53, 128 e 129.

No caso em apreço, independentemente de saber a quem cumpria o correspondente ónus de alegação e prova, é seguro que a temática fáctica relativa à existência ou não de procedimento de selecção e recrutamento que tenha culminado com a contratação da autora é verdadeiramente essencial para a decisão deste litígio, pelo que se lhe aplica o citado art. 5º/1.
Por outro lado, inequívoco é que: i) não estão em causa factos notórios ou de que tribunal devesse ter conhecimento oficioso (art. 5º/2/c do NCPC); ii) não se trata, face ao supra exposto em matéria de essencialidade da temática fáctica em questão, de factos instrumentais ou complementares dos oportunamente alegados pelas partes (art. 5º/2/a/b NCPC); iii) tal temática não foi objecto de abordagem e contraditório no decurso da audiência de julgamento, uma vez que nesta as partes se limitaram a acordar quanto à matéria de facto que deveria considerar-se provada; iv) não foi feito uso do mecanismo legal previsto no art. 72º/1/2 do CPT e que permitiria conhecer de factos não alegados pelas partes com relevo para a decisão da causa.
Neste enquadramento, face à disponibilidade da relação material controvertida no concreto segmento em apreço, aos princípios da liberdade e da autonomia da vontade das partes, da auto-responsabilidade destas inerente ao princípio dispositivo, segundo o qual as partes sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, existe impedimento legal absoluto a que este tribunal profira decisão da qual decorra actividade instrutória e decisória a incidir sobre matéria de facto essencial e que não foi oportunamente alegada pelas partes.
Como assim, respondemos negativamente à questão em apreço.
*

Terceira questão: se a matéria de facto deve ser aditada nos termos propugnados pela apelante.

Pretende a apelante que seja aditada à matéria de facto o seguinte:
- só por ofício de 2/5/2017, o réu notificou a autora da declaração de nulidade do contrato de trabalho entre ambos celebrado;
- o contrato de trabalho entre a autora e o réu manteve-se em execução para lá de 8/5/2017.
Na petição, contestação e resposta, datadas de 4/4/2017, 2/5/2017 e 16/5/2017, jamais se alegou que só por ofício de 2/5/2017 é que a autora foi notificada pelo réu da arguição por este da nulidade do contrato entre ambos celebrado.
Trata-se, assim, de facto que não foi oportunamente alegado pelas partes, que não é de conhecimento oficioso do tribunal, que não decorreu da instrução da causa e em relação ao qual tenha sido feito uso do mecanismo do art. 72º/1/2 do CPT.
Como assim, por aplicação devidamente adaptada do enunciado a respeito da questão segunda, tal facto não pode ser dado como provado.
De resto, a alegação da apelante ora em causa é desmentida pela simples análise da providência cautelar apensa, uma vez que na oposição aí apresentada o aqui réu já arguiu tal nulidade (art. 36º do articulado de oposição), sendo que a autora deve ter-se por notificada dessa oposição em dia não posterior à da realização da correspondente audiência de julgamento (21/4/2017).
No que concerne ao segundo facto que a autora pretende ver aditado, consta da sentença recorrida que “… com a procedência da providência cautelar apensa, a A. manteve o contrato de trabalho em execução durante a pendência da presente ação principal, para além, por isso, dos citados dias 20 de abril, e 08 de maio de 2017.”.
Nenhuma das partes impugnou esse segmento da decisão recorrida que, por isso, transitou em julgado, razão pela qual importa aditar formalmente aos factos descritos como provados, sob o nº 29, o que a este respeito foi descrito, de modo formalmente incorrecto, no decurso da fundamentação da decisão recorrida, ou seja, que por imposição judicial decorrente da decisão referida em 28º e proferida na providência cautelar apensa, o contrato entre a autora e o réu manteve-se em execução para lá de 8/5/2017.
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Quarta questão: se o contrato de trabalho entre a autora e o réu é nulo pela circunstância da contratação da autora pelo réu não ter sido precedida de qualquer procedimento de selecção e recrutamento.

Num primeiro momento deve destacar-se que: i) não merece discussão a qualificação da relação contratual entre a autora e o réu como correspondente à de um contrato de trabalho subordinado – nesse sentido pronunciou-se a decisão recorrida sem impugnação da autora ou do réu; ii) tal relação iniciou-se em 1/1/2015 e manteve-se ininterruptamente e sem perturbações até ao dia 8/3/2017, data em que a autora foi notificada da decisão do réu de 7/3/2017 que pretendia colocar termo a tal relação com efeitos reportados a 8/5/2017; iii) por força da decisão referida em 28º dos factos provados e proferida na providência cautelar apensa, no dia 21/4/2017, o contrato entre a autora e o réu manteve-se em execução para lá de 8/5/2017.
Como assim, é por reporte ao momento em que se iniciou a relação de trabalho entre a autora e o réu que deve aferir-se da (in)validade do contrato celebrado entre ambos.
Num segundo momento, deve determinar-se a natureza jurídica do réu e a sua integração na administração pública portuguesa em sentido subjectivo ou orgânico - o correspondente ao conjunto das entidades, serviços e órgãos que prosseguem a actividade materialmente administrativa, sabido que deste ponto de vista a administração pública divide-se em três grandes ramos, a saber: a administração directa do Estado, a administração indirecta do Estado e a administração autónoma do Estado[1] – neste sentido, Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, 1994, pp. 393 e ss, Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, I, 1982, pp. 144 e ss, João Caupers, Direito Administrativo I, 1999, pp. 266 e ss., e pp. 292 e ss, Vital Moreira, Administração Autónoma e Associações Públicas, 1997, pp. 104 e ss, e Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, I, 1999, pp. 157 e ss., e pp. 239 e ss.
A administração indirecta do Estado integra: a) as pessoas colectivas de estatuto público, nas quais se integram os institutos públicos[2] [de prestação (v.g. hospitais públicos não empresariais, Instituto Nacional de Estatística), reguladores (v.g. INTF, I.P. - transportes ferroviários; InIR, I.P. – infra-estruturas rodoviárias; INAC, I.P. – aviação civil; IMOPPI, I.P. – mercados de obras públicas e particulares e do imobiliário; ERSAR, I.P. – serviços de águas e resíduos), fiscalizadores (v.g. Autoridade da Concorrência, Agência para a Qualidade e Segurança Alimentar) e de infra-estruturas (v.g. Instituto Marítimo-Portuário)], e as entidades públicas empresariais[3]; b) as pessoas colectivas de estatuto privado[4], nas quais se integram as empresas públicas sob a forma societária, as fundações e as associações - João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 10ª edição, Editora Âncora, pp. 123 e ss.
Tudo a significar, pois, que o réu integrava, enquanto entidade pública empresarial, a administração pública indirecta do Estado.
Num terceiro momento, importa reter que nos termos do artigo 14º do DL 233/2005, de 19/12, aplicável ex-vi do art. 5º/1 do DL 30/2011, de 2/3, que criou o réu com a natureza de entidade pública empresarial (art. 1º/1/b):
1 - Os trabalhadores dos hospitais E. P. E. estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, de acordo com o Código do Trabalho, demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e regulamentos internos.
2 - Os hospitais E. P. E. devem prever anualmente uma dotação global de pessoal, através dos respectivos orçamentos, considerando os planos de actividade.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 15.º, os hospitais E. P. E. não podem celebrar contratos de trabalho para além da dotação referida no número anterior.
4 - Os processos de recrutamento devem assentar na adequação dos profissionais às funções a desenvolver e assegurar os princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade, da boa fé e da não discriminação, bem como da publicidade, excepto em casos de manifesta urgência devidamente fundamentada.”.
Através do estatuído no art. 14º/4 acabado de transcrever-se procurou dar-se satisfação à exigência constitucional decorrente do art. 47º/2 da CRP, nos termos do qual “Todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em con­dições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso.”.
Procurando delimitar-se o conceito de função pública relevante para efeito do transcrito art. 47º/2, nada melhor do que socorrer-nos da doutrina expendido pelo Tribunal Constitucional a esse respeito, por exemplo, no seu acórdão nº 61/2004, proferido no processo 471/01[5], nos termos do qual “Seguindo, uma vez mais, a argumentação desenvolvida no Acórdão n.º 406/2003, recordar‑se‑á que uma solução intermédia parece ser defendida por J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, quando referem (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, pág. 264, nota VIII ao artigo 47.º):
“A definição constitucional do conceito de função pública suscita al­guns problemas, dada a diversidade de sentidos com que as leis ordinárias uti­lizam a expressão e dada a pluralidade de critérios (funcionais, formais) defen­didos para a sua caracterização material. Todavia, não há razões para contestar que o conceito constitucional corresponde aqui ao sentido amplo da expressão em direito administrativo, designando qualquer actividade exercida ao serviço de uma pessoa colectiva pública (Estado, região autónoma, autarquia local, instituto público, associação pública, etc.), qualquer que seja o regime jurídico da relação de emprego (desde que distinto do regime comum do contrato indi­vidual de trabalho), independentemente do seu carácter provisório ou defini­tivo, permanente ou transitório.”
No entanto, VITAL MOREIRA, mais tarde, viria a pronunciar‑se em sen­tido mais amplo (Projecto de lei‑quadro dos institutos públicos, Relatório Final e Proposta de Lei‑Quadro, Grupo de Trabalho para os Institutos Públicos, Ministério da Reforma do Estado e da Administração Pública, Fevereiro de 2001, n.º 4, pág. 50, nota ao artigo 45.º), adoptando uma posição que tem também sido defendida pelo Tribunal Constitucional, ao ponderar que:
“No entanto, mesmo quando admissível o regime do contrato de traba­lho, nem a Administração Pública pode considerar‑se uma entidade patronal privada nem os trabalhadores podem ser considerados como trabalhadores co­muns.
No que respeita à Administração, existem princípios constitucionais válidos para toda a actividade administrativa, mesmo a de «gestão privada», ou seja, submetida ao direito privado. Entre eles contam‑se a necessária prossecu­ção do interesse público, bem como os princípios da igualdade, da proporcio­nalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266.º, n.º 2, da Cons­tituição), todos eles com especial incidência na questão do recrutamento do pessoal.
Além disso, estabelecendo a Constituição que «todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso» (CRP, artigo 47.º, n.º 2), seria naturalmente uma verdadeira fraude à Constituição se a adopção do regime de contrato individual de trabalho incluísse uma plena liberdade de escolha e recrutamento dos tra­balhadores da Administração Pública com regime de direito laboral comum, sem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da igualdade e da imparcialidade.”
Estas últimas considerações afiguram‑se inteiramente procedentes, prin­cipalmente quando, como é o caso, o regime laboral do contrato individual de trabalho se reporta a um instituto público que mais não é que um serviço público personalizado.
Com efeito, a exigência constitucional de “acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso” apresenta duas vertentes. Por um lado, numa vertente subjectiva, traduz um direito de acesso à função pública garantido a todos os cidadãos; por outro lado, numa vertente objectiva, cons­titui uma garantia institucional destinada a assegurar a imparcialidade dos agentes administrativos, ou seja, que “os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do inte­resse público” (n.º 1 do artigo 269.º da CRP). Na verdade, procedimentos de selecção e recrutamento que garantam a igualdade e a liberdade de acesso à função pública têm também a virtualidade de impedir que essa selecção e recrutamento se façam segundo critérios que facilitariam a ocupação da Administração Pública por cidadãos exclusiva ou quase exclusivamente afectos a certo grupo ou tendência, com o risco de colocarem a mesma Administração na sua dependência, pondo em causa a necessidade de actua­ção “com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé” (n.º 2 do artigo 266.º da CRP).
Esta perspectiva é particularmente importante quando se trate de recru­tamento e selecção de pessoal para entidades que exerçam materialmente funções pú­blicas, como acontece com o IPCR (cf., supra, 4.1).
A afirmação anterior não é desmentida pelo facto de o pessoal técnico superior e o pessoal destinado a desempenhar funções especializadas em investigação laboratorial para a conservação e restauro, ao contrário do restante pessoal do Insti­tuto, ser admitido em regime de contrato individual de trabalho (artigo 22.º, n.º 1, do Decreto‑Lei em análise). De facto, e se bem que se possa admitir que aquele regime se poderá adaptar melhor à situação do pessoal técnico especializado (embora não de todo o pessoal técnico superior), em virtude da sazonalidade e especificidade das tare­fas que é chamado a desempenhar, não podemos ignorar que, no decurso da sua activi­dade, também poderá estar em causa o exercício de poderes de autoridade estadual, nomeadamente, os poderes de superintendência e de certificação acima mencionados.
Consequentemente, as atribuições e a natureza do IPCR, bem como as funções cometidas aos seus órgãos e agentes justificam inteiramente que ao recruta­mento e selecção do seu pessoal, ainda que sujeito ao contrato individual de trabalho, se apliquem as garantias de liberdade e igualdade de acesso que se encontram fixadas no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.
Ainda que se entenda que para o recrutamento de pessoal sujeito ao re­gime do contrato individual de trabalho se não justifica a realização de um concurso pú­blico, nem por isso se pode deixar de reconhecer que a selecção e o recrutamento desse pessoal deverá sempre ter lugar através de procedimentos administrativos que assegu­rem a referida liberdade e igualdade de acesso.[6].
Conquanto as considerações acabadas de transcrever tenham sido enunciadas a respeito de um instituto público, as mesmas devem aplicar-se, devidamente adaptadas, às entidades públicas empresariais do tipo da do réu que, como visto e tal como os institutos públicos, integram as pessoas colectivas de estatuto público que fazem parte da administração indirecta do Estado – neste exacto sentido, acórdãos do STJ de 13/07/2017, proferido no processo 723/14.7TTPRT.P1.S1, do Tribunal da Relação do Porto de 19/05/2014, proferido no processo 372/09.1TTVRL.P1, de 3/10/2011, proferido no processo 1029/10.6TTPNF.P1, e de 16/03/2009, proferido no processo 0847551.
 Importa dizer, igualmente, que tudo quanto vem de referir-se a respeito da questão em análise continua válido em face da entrada em vigor do DL 18/2017, de 10/2[7], cujo art. 28º estatui nos termos seguidamente transcritos:
Processos de recrutamento
1 - Os processos de recrutamento devem assentar na adequação dos profissionais às funções a desenvolver e assegurar os princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade, da boa-fé e da não discriminação, bem como da publicidade, exceto em casos de manifesta urgência devidamente fundamentada.
2 - Os diretores de departamento e de serviço de natureza assistencial são nomeados de entre médicos, inscritos no colégio da especialidade da Ordem dos Médicos correspondente à área clínica onde vão desempenhar funções e, preferencialmente, com evidência curricular de gestão e com maior graduação na carreira médica.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 1, os procedimentos com vista à nomeação de diretor de serviço devem ser objeto de aviso público, de modo a permitir a manifestação de interesse individual.”.
Aqui chegados, na ausência de qualquer situação de excepcionalidade urgente que tenha sido invocada para a contratação da autora pelo réu, facilmente se percebe que: i) tal contratação, mesmo que em regime de contrato individual de trabalho, deveria ter sido precedida de um procedimento de recrutamento que respeitasse o comando normativo do art. 47º/2 do da CRP, bem como os princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade, da boa fé e da não discriminação, bem como da publicidade, a que se alude no supra transcrito art. 14º/4; ii) as exigências decorrentes dos normativos referidos em i) devem ter-se como imperativas, razão pela qual o desrespeito pelas mesmas determina a nulidade da contratação que fosse levada a efeito nesse quadro de desrespeito normativo (arts. 280º e 294º do CC).
No caso em apreço, os factos descritos como provados não permitem concluir sobre se a contratação da autora foi ou não precedida de um procedimento de recrutamento do tipo do supra referido.
Tudo está agora em saber a quem competia neste domínio o ónus de alegação e prova.
A este respeito, o STJ tem sido constante na afirmação de que cabe ao trabalhador, no caso à apelante, o ónus de alegar e provar que foi observado um procedimento administrativo de recrutamento e selecção que tenha assegurado a liberdade e igualdade de acesso à função pública – apenas a título de exemplo, acórdãos de 3/10/2007, proferido no processo 07S177, de 14/11/2007, proferido no processo 06S2451, de 18/6/2008, proferido no processo 06S2445, de 1/10/2008, proferido no processo 08S1536, de 25/11/2009, proferido no processo 1846/06.1YRCBR.S1, de 10/4/2013, proferido no processo 2006/09.5TTPNF.P1.S1, de 13/7/2017, proferido no processo 723/14.7TTPRT.P1.S1.
Assim, revertendo ao caso dos autos, não resultando dos factos provados que a contratação da autora tenha sido precedida de um procedimento daquele tipo, terá de concluir-se no sentido de que tal contratação foi feita ao arrepio das exigências decorrentes dos citados arts. 47º/2 e 14º/4, com a consequente nulidade de tal contratação.
Δ
Sustenta a apelante que é materialmente inconstitucional, por violação da garantia constitucional da estabilidade e segurança no emprego (art. 53º da CRP), a norma extraída da conjugação dos arts. 14º/4, 47º/2, 280º e 294º supra invocados, na interpretação de que a contratação da autora pelo réu é nula pela circunstância de não resultar dos factos provados que a mesma tenha sido precedida do necessário procedimento de selecção e recrutamento.
Não acompanhamos a apelante.
Em primeiro lugar porque a garantia constitucional decorrente do citado art. 53.º pressupõe, a nosso ver, uma relação jurídica de trabalho isenta de vícios determinantes da sua nulidade, o que, com visto, não ocorre na situação em apreço.
Em segundo lugar porque para lá dessa garantia constitucional importa também ponderar, em situações do jaez da dos autos, a garantia constitucional da igualdade e da universalidade no acesso à função pública decorrente do citado art. 47º/2, sendo que no confronto dessas duas garantias deve prevalecer esta última[8], em obediência à qual, com flui do exposto, se sustentou a nulidade da contratação da autora pelo réu.
Improcede, assim, a arguida inconstitucionalidade.
Δ
A apelante argumenta, também, no sentido de que o entendimento de que é nula a contratação da autora, pela circunstância de não resultar dos factos provados que a mesma tenha sido precedida do necessário procedimento de selecção e recrutamento, viola a Directiva 1999/70/CE do Conselho, de 28/06.
Sem bem percebemos a argumentação da apelante, a mesma parte do pressuposto de que a referida Directiva tem aplicação na ordem jurídica interna portuguesa com prevalência sobre todo o ordenamento jurídico nacional.
Não acompanhamos a recorrente.
Não discutimos, em tese geral e abstracta, a primazia do direito comunitário sobre o direito nacional.
Esta primazia foi pela primeira vez assinalada pelo TJCE no seu acórdão de 15 de Julho de 1964, 6/64 (Costa/ENEL), disponível na Colectânea da Jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias 1962-1964 (Colect.), pp. 549 ss, no qual se concluiu, em sede de reenvio prejudicial, no sentido de que cabe ao juiz nacional a desaplicação de uma norma legal interna sempre que ela se revele em contradição com o direito comunitário, excluindo-se, portanto, a obrigação constitucional absoluta de vinculação do juiz nacional à lei interna – esse mesmo tribunal reafirmaria esse mesmo primado em diversas decisões subsequentes, entre as quais podemos destacar, apenas a título de exemplo, o acórdão Simmenthal (acórdão de 9 de Março de 1978, 106/77, Colect. 1978, pp. 243 ss, nº 21), o acórdão Fratelli Costanzo (acórdão de 22 de Junho de 1989, 103/88, Colect. 1989, p. 1839, nº 32), o acórdão Factortame (acórdão de 19 de Junho de 1990, C-213/89, Colect. 1990, p. I-2433), o acórdão von Colson e Kamann (acórdão de 10 de Abril de 1984, 14/83, Colect. 1984, p. 1891, nº 26) o acórdão Comissão/Luxemburgo (acórdão de 2 de Julho de 1996, C-473/93, Colect. 1996, p. I-3207, nºs 37 e 38), o acórdão Kreil/Alemanha (acórdão de 11 de Janeiro de 2000, C-285/98, Colect. 2000, p. I- 69, nºs 31 e 32).
Tal primazia é afirmada, igualmente, na Declaração nº 17 anexada à Acta Final da Conferência Intergovernamental que aprovou o Tratado de Lisboa assinado em Lisboa em 13 de Dezembro de 2007, do seguinte teor: “A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adoptado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência.”.
Porém, importa não perder de vista que nos termos do art. 8º/4 da CRP, “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”.
A significar que a nossa CRP consagrou uma reserva à primazia do direito comunitário[9].
O primado do direito da União, nos termos definidos no artigo 10.º-1 da Constituição Europeia, está condicionado pela reserva constitucional de respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático (art. 8.- 4, in fine).”, sendo que “Entre os princípios do Estado de direito democrático haverá de incluir-se, desde logo, o princípio da soberania popular; o princípio do pluralismo de expressão e organização política democrática; o princípio do respeito, garantia e efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, o princípio da separação e interdependência dos poderes; a independência dos tribunais (cfr. CRP, art.º 2.º).” – Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, 4ª edição revista, pp. 266/267.
Assim sendo, como é, inserindo-se o direito consagrado no art. 47º/2 nos preceitos relativos aos “Direitos, liberdades e garantias pessoais”, estruturantes do Estado de direito democrático, o mesmo está abrangido pela reserva prevista no aludido artigo 8º/4, com a consequente primazia daquele normativo constitucional e da declaração de nulidade dele decorrente sobre o estatuído na citada Directiva comunitária – neste sentido, Mota Campos, Manual de Direito Comunitário, Coimbra Editora, 5ª Edição, pp. 401 a 406, Liberal Fernandes, Transmissão do estabelecimento e oposição do trabalhador à transformação do contrato: uma leitura do art. 37º da LCT conforme o direito comunitário, in Questões Laborais, 1999, 14, nota 20, p. 223, acórdãos do STJ de 13/7/2017, proferido no processo 723/14.7TTPRT.P1.S1, de 4/7/2013, proferido no processo 2079/09.0TTPNF.P1.S1; no sentido de que o direito comunitário não prevalece sobre norma estruturante do direito constitucional interno, Diogo Freitas do Amaral e Nuno Piçarra, O TRATADO DE LISBOA E O PRINCÍPIO DO PRIMADO DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA: UMA “EVOLUÇÃO NA CONTINUIDADE”.
Resta acrescentar que a doutrina do acórdão do TJUE de 14 de Setembro de 2016 (processo C-16/15 - María Elena Pérez López contra Servicio Madrileño de Salud - Comunidad de Madrid)[10] que a recorrente invoca a favor da sua pretensão de ver reconhecida primazia ao regime normativo daquela Directiva não pode aplicar-se à situação em apreço, pois que no âmbito destes autos está um conflito entre esse regime comunitário e o direito constitucional interno, ao passo que naquele ocorria um conflito entre aquele mesmo regime comunitário e a legislação comum espanhola que não previa a conversão do contrato a termo da autora, renovado por sete vezes, numa relação de trabalho por tempo indeterminado.
Δ
Concluindo, nenhuma censura merece a decisão recorrida na parte em que declarou a nulidade da contratação da autora pelo réu.
*

Quinta questão: se a autora tem direito à remuneração vencida desde Janeiro de 2017 e, na afirmativa, até que momento.

Quanto à segunda parte da questão ora em análise, importa sublinhar que a apelante insurge-se exclusivamente contra a improcedência decretada na sentença recorrida do pedido formulado sob a alínea e) dos diferentes pedidos formulados na petição inicial.
É esclarecedora, a este respeito, a seguinte passagem das alegações de recurso: “Por fim, mesmo que este douto Tribunal considerasse que o aresto em recurso tinha efectuado uma correcta interpretação do direito ao considerar como nulo o contrato de trabalho do A., sempre teria de concluir que incorrera em erro de julgamento ao não julgar procedente o pedido formulado na alínea e) da petição inicial, ou seja, ao não julgar procedente o pedido de condenação do Réu no pagamento as remunerações devidas desde Janeiro de 2017.” – o destaque é da nossa responsabilidade.
Assim como esclarecedora é a seguinte passagem da conclusão 10ª da apelante: “Ainda que por mera hipótese se entendesse que o contrato de trabalho da A. era efectivamente nulo, sempre o aresto em recurso teria incorrido em erro de julgamento ao não considerar procedente o pedido condenatório formulado na alínea e) da petição inicial– o destaque é, mais uma vez, da nossa responsabilidade.
A significar que a divergência recursiva da apelante não se estendeu à improcedência igualmente decretada na sentença recorrida em relação ao pedido constante da alínea d), do seguinte teor: “Deve o Réu ser condenado a processar e pagar as retribuições que a A. deixe de receber desde a data do despedimento até à data da efectiva reintegração, acrescida dos juros de mora que sejam devidos à taxa legal;”.
Como assim, transitou em julgado a decisão do tribunal recorrido na parte em determinou a improcedência do pedido de condenação do réu a pagar à autora retribuições devidas por referência a momentos posteriores à data do despedimento da autora.
Por outro lado, na alínea e) do pedido, a autora apenas peticionou a condenação do réu a pagar-lhe as retribuições devidas entre Janeiro e Março de 2017, à razão de 1.200 euros mensais.
É o que resulte do teor literal do pedido (“Deve o Réu ser condenado a pagar à A. as remunerações devidas desde Janeiro de 2017 até à data do despedimento, no montante total de € 3.600,00, acrescido de IVA à taxa legal;”), conjugado com o teor do art. 41º da petição (“Na data da comunicação o Réu ainda não procedera ao pagamento da remuneração contratualmente devida desde Janeiro de 2017, estando na presente data em dívida a quantia de € 3.600,00, correspondente aos meses de Janeiro a Março de 2017 (v. doc. nº 29, 30 e 31).”.
Importa notar, igualmente, que não divisamos que a autora tenha procedido ao longo deste processo a qualquer alteração desse pedido, do qual não consta qualquer referência a retribuições devidas em momento posterior a Março de 2017, em especial as respeitantes ao período temporal que medeie entre o momento em que foi decretada a providência cautelar apensa e aquele em que se registar a caducidade dessa mesma providência.
A significar, assim, que apenas deve conhecer-se da pretensão da apelante no sentido de que o réu lhe pague as retribuições entre Janeiro e Março de 2017, estando excluído do âmbito cognitivo e decisório deste tribunal quaisquer remunerações posteriores a essa data ou com montantes isolados ou conjuntos superiores aos € 3.600 peticionados, em especial as remunerações a que se alude na apelação por reporte ao período entre Abril de 2017 e o momento em que caducar a providência cautelar apensa.
Assente quanto vem de referir-se, prescreve o art. 122º/1 do CT/09 que “O contrato de trabalho declarado nulo ou anulado produz efeitos como válido em relação ao tempo em que seja executado.”.
Da matéria de facto descrita como provada, em especial da que consta dos correspondentes pontos 8º, 11º, 19º e 28º, resulta inequívoco que o contrato de trabalho entre a autora e o réu, apesar de nulo, esteve em execução, pelo menos, entre Janeiro e Março de 2017, sem que o réu tenha logrado provar, como lhe competia (art. 342º/2 do CC), que pagou à autora a remuneração correspondente a esse período, no valor mensal de 1.200 euros, acrescidos de IVA.
Como assim, à face do que prescreve aquele art. 122º/1 e sem necessidade de outras considerações de fundamentação, não pode deixar de proceder o pedido que está apreço
*
IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta 6ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação parcialmente procedente, condenando-se o réu a pagar à autora a quantia de € 3.600,00, acrescido de IVA à taxa legal.
O réu suportará as custas correspondentes a € 3.600,00; as demais serão suportadas pela autora.
Coimbra, 19/1/2018

(Jorge Manuel Loureiro)


(Paula Maria Roberto)



(Ramalho Pinto)
Sumário:


I) As entidades públicas empresariais não podem outorgar em contratos de trabalho subordinado sem prévia tramitação de procedimento de selecção e recrutamento.
II) A ausência desse procedimento ou da sua demonstração, que compete ao trabalhador, determinam a nulidade do contrato de trabalho.

III) O estatuído no art. 47º/1 da CRP e as exigências de prévios procedimentos de selecção e de recrutamento dele decorrentes prevalecem sobre o direito comunitário, designadamente sobre a Directiva 1999/70/CE do Conselho, de 28/06.

(Jorge Manuel Loureiro)


[1] Para o caso em apreço releva apena a indirecta.
[2] Os institutos públicos podem revestir diferentes modalidades organizativas:
a) Serviços Personalizados (v.g. IGESPAR - Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico; IVV - Instituto da Vinha e do Vinho; ISS - Instituto da Segurança Social; ACSS - Administração Central do Sistema de Saúde; Instituto dos Registos e do Notariado; ICNB – Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade; INFARMED (medicamentos); Turismo de Portugal; Instituto de Reinserção Social; Administrações das Regiões Hidrográficas; Autoridades Metropolitanas de Transportes (AMT/Lisboa e AMT /Porto); INA – Instituto Nacional de Administração; AMA - Agência de Modernização Administrativa);
b) Estabelecimentos Públicos (v.g. Universidades e Institutos Politécnicos públicos, Centros de Investigação Científica, Hospitais públicos não empresarializados);
c) Fundações Públicas – Fundação para a Ciência e Tecnologia, Centro Cultural de Belém, Fundação CEFA (formação autárquica).
Os Institutos públicos (I.P.) são actualmente objecto de regulação-quadro pela Lei 3/2004, de 15/1 (as alterações a esta Lei podem ser consultadas em https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/105825627/201801160850/diplomasModificantes?p_p_state=maximized), embora alguns estejam sujeitos a regimes específicos, nos termos do artigo 48.º da Lei, como as universidades e institutos politécnicos, as instituições públicas de solidariedade social, os estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, as regiões de turismo, o Banco de Portugal e as entidades administrativas independentes.
[3] As entidades públicas empresariais (EPEs) são pessoas colectivas de direito público e de regime privado, que foram autonomizadas do conceito de institutos públicos. Embora sujeitas a regimes de direito privado, dispõem, em regra, de poderes públicos de autoridade e estão submetidas a superintendência e a tutela mais ou menos intensa. Exemplos: na área dos transportes [REFER, CP, API, NAV, Metropolitano de Lisboa]; na área da gestão de recursos públicos [GeRAP (Gestão Partilhada de Recursos na Administração Pública), ANCP (Agência Nacional de Compras Públicas), SPMS (Serviços Partilhados do Ministério da Saúde), Agência para o Investimento e Comércio Externo, Parque Escolar]; na área cultural [Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Nacional de S. João, OPART (Organismo de Produção Artística – CNB e TNSC)]; na área da saúde [alguns Hospitais (CHUC, Curry Cabral, etc.), Centros Hospitalares (Barreiro Montijo, etc.) e Unidades Locais de Saúde (Alto Minho, Baixo Alentejo, Guarda)].
1. As Entidades Públicas Empresariais são reguladas por diplomas específicos (cfr. DL 133/2013, de 3/10, que estabelece os princípios e regras aplicáveis ao sector público empresarial, incluindo as bases gerais do estatuto das empresas públicas – este diploma foi alterado pela Lei 42/2016, de 28/12, e pela Lei 75-A/2014, de 30/9).
[4] Estão aqui incluídas a generalidade das empresas públicas, que são sociedades de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos, instituídas para finalidades públicas sob a forma de sociedades comerciais, como, entre muitas, a PARPÚBLICA, a SIEV- Sistema de Identificação Electrónica de Veículos, SA, etc.
Excepcionalmente, estas empresas podem ser detentoras de poderes públicos de autoridade, como é o caso das várias Administrações Portuárias.
Há ainda as fundações (públicas) de direito privado que são objecto de criação estadual (Fundações universitárias, nos termos do RJIES: U. Porto, U. Aveiro, ISCTE), que tem de ser autorizada por diploma legal, nos termos do artigo 3º/4 da Lei 3/04.
[5] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040061.html.
[6] O entendimento manifestado neste acórdão viria a ser reafirmado pelo mesmo Tribunal Constitucional no seus acórdãos nºs 409/2007, proferido no processo 306/2007 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070409.html), 479/2007, proferido no processo 248/2008 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080248.html), nos quais estava em causa, enquanto empregador em regime de contrato individual de trabalho, um outro instituto público (Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária), decidindo-se nesses arestos no sentido da proibição constitucional da contratação por institutos públicos de pessoal sujeito ao regime jurídico do contrato indivi­dual de tra­balho, designa­damente em termos permissivos da conversão de contratos de traba­lho a termo em contratos sem termo, sem imposição de procedimento de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e igualdade.
[7] Regula o Regime Jurídico e os Estatutos aplicáveis às unidades de saúde do Serviço Nacional de Saúde com a natureza de Entidades Públicas Empresariais, bem como as integradas no Sector Público Administrativo.
[8] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 368/00, proferido no processo 243/00, no qual se deu primazia ao valor da igualdade no acesso a funções públicas, em detrimento do valor da estabilidade e segurança no emprego; igual primazia resulta afirmada no acórdão do Tribunal Constitucional 321/2003, proferido no processo 10/01; acórdãos do STJ de 18/1/2012, proferido no processo 4679/07.4TTLSB.L1.S1, e de 13/7/2017, proferido no processo 723/14.7TTPRT.P1.S1.
[9] Sobre esta temática e para maiores desenvolvimentos sobre a mesma, pode consultar-se Miguel Poiares Maduro, The State of Portuguese European Constitutional Discourse, FIDE, XX Congress, London, Vol. II, 2003, pp. 387 e segs..
[10] Disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=183300&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=1330790.