Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
713/10.9GAVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
VIOLÊNCIA
Data do Acordão: 03/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 347.º DO CP
Sumário: A violência a que alude o n.º 1 do artigo 347.º do Código Penal não tem de ser agressão física, bastando a simples hostilidade idónea a coagir ou impedir a actuação legítima do funcionário.
Decisão Texto Integral: Em conferência na 2.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra       

RELATÓRIO

1- No 2.º juízo do Tribunal Judicial de Ourém, no processo acima referido, foi  o arguido A... julgado em processo comum singular , tendo sido a final proferida a decisão seguinte :

- condenado, como autor material de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p.p. pelo art. 347.º do Cod. Penal, na pena de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução por 12 meses.

2 - Inconformado, recorreu o arguido, tendo concluído a sua motivação pela forma seguinte:
Das diligências probatórias não resulta a comprovação de que o arguido tivesse usado de resistência ou ameaça grave e, muito menos, susceptível de coagir os dois militares da GNR de os impedir ou gravemente dificultar a sua missão.
Não poderá ser dado como provada a intenção do arguido de obstar ao desempenho dessa missão.
Não pode sequer dar-se como provado que o arguido tenha recusado a identificar-se.
Sendo dois militares da GNR os destinatários dos comportamentos comprovados no julgamento não é admissível que estes pudessem ser idóneos para afectar o cumprimento da missão dos agentes, como aliás não afectaram, segundo as declarações dos próprios.
Não se encontram preenchidos os elementos do tipo criminal em causa, pelo que o arguido deve ser absolvido.

3 - Nesta Relação, o Exmo. PGA emitiu douto parecer em que, acompanhando o MP da 1.ª instância, se pronuncia pela improcedência do recurso. 

4 - Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência.

                                                             

5 - Na 1.ª instância deram-se como provados os seguintes factos:

1. No dia 16.11.2010, pelas 22h34, o arguido encontrava-se no interior do estabelecimento denominado Café  … denotando sinais de estado de embriaguez.
2. Na ocasião o arguido recusava abandonar o estabelecimento e pretendia fumar.
3. face dessa situação foi pedida a comparência de membros da GNR de Ourém o que veio a suceder, mediante a deslocação ao local de uma patrulha da GNR constituída pelos Cabo  … e pelo Guarda … , os quais se encontravam fardados e no desempenho das suas funções.
4. Nesse contexto dirigiram-se ao arguido e logo que este foi abordado, dirigiu aos agentes as seguintes expressões: “O que é que estes cabrões estão aqui a fazer?” e “quem é  que os chamou para aqui?”.
5. Perante tais palavras os agentes da GNR solicitaram ao arguido que os acompanhasse ao exterior do estabelecimento, ao que aquele acedeu, embora demonstrando relutância. Entretanto, os agentes da GNR referiram ao arguido que tinha que se identificar o que, apesar de algumas insistências, aquele se foi recusando a fazer, acabando por ser advertido de que se não se identificasse teria de ser detido para se obter a sua identificação.
6. Como o arguido não se identificou o mesmo foi detido para o aludido efeito, tendo sido necessário usar da força física para esse efeito, desde logo para o imobilizar.
7. Na sequência da detenção o arguido arranhou com uma das mãos a face do lado esquerdo do Cabo … , entortando-lhe a armação dos óculos.
8. Em virtude do aludido o Cabo  … sofreu a lesão descrita no relatório de exame de fls. 41 dos autos, designadamente, traumatismo da face esquerda que exigiu para a sua cura 3 dias, sem afectação para o trabalho geral ou especifico.
9. Ao mesmo tempo, pot modo sério e determinado o arguido dirigia a ambos as expressões: “já enterrei vários, posso enterrar mais dois” e “quando vos apanhar com outra farda vou fodê-los a tiro”.
10. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, querendo proferir as referidas expressões com o objectivo de dissuadir os agentes de autoridade referidos de cumprir com as suas funções, nomeadamente de o autuar, não se coibindo de para o efeito ser agressivo e de proferir contra os mesmos expressões de que poderia atentar contra a sua vida.
11. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, ao recorrer á força fisica para se opor à sua detenção, o que fez sobre o Cabo  … arranhando-o e entortando-lhe os óculos.
12. Sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
13. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
14. O arguido é tido por quem com ele priva como sendo pessoa correcta, educada e respeitadora.
15. O arguido é solteiro e não tem filhos.
16. Vive em casa dos seus pais.
17. Tem como habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade.
18. Declara auferir mensalmente a quantia de €500,00.

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FUNDAMENTAÇÃO

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, extraídas da motivação apresentada, cabe agora conhecer das questões ali suscitadas, a saber, a ausência de prova dos factos provados e que os mesmos , mesmo que provados, não integram o crime em causa por não serem idóneos para tal.

Porque vem questionada a matéria de facto e o juízo que levou à respectiva fixação, importa começar por deixar exposta aos meios de prova e as razões de convicção do tribunal convicção, em resumo e com interesse :
« (...) 0 arguido admitiu a prática dos factos, embora de forma genérica afirmando não se recordar na íntegra do sucedido. Refere que ingeriu bebidas alcoólicas, o que não deve fazer em virtude de um problema de saúde posto que a ingestão das mesmas lhe provoca alterações comportamentais (...)
(...) depoimento das testemunhas … , os quais, na primeira pessoa confirmaram todo o acervo factual vertido na acusação. Confirmaram assim as expressões ali consignadas referindo que para além destas outras foram proferidas não conseguindo explicar o sucedido e o porque da conduta do arguido. Mereceram credibilidade por parte do Tribunal revelando conhecimento pessoal e directo dos factos, isenção e espontaneidade sendo certo que concorre nesse sentido a admissão genérica dos factos pelo arguido».

Pretende o recorrente que se não fez prova dos factos da acusação.

Diga-se então que o próprio arguido confessou de forma genérica os factos,. E depois há os depoimentos dos 2 agentes da GNR, que lograram convencer o tribunal da sua idoneidade e veracidade.

O acto de julgar tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção e tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formulação lógico-intuitiva. Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal. 135 e ss) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte : - a recolha de elementos - dados objectivos - sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença dá-se com a produção da prova em audiência: sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal, que é livre ( art. 127.º do CódProcPenal ), mas não arbitrária, porque motivável e controlável, condicionada pelo princípio de persecução da verdade material ; - a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;

Ora o que o recorrente pretende é que o tribunal devia ter valorado as provas de acordo com a convicção dele próprio recorrente, substituindo-se ela ao julgador, mas como se extrai do art. 127.º do CódProcPenal, salvo os casos de prova vinculativa, o julgador aprecia a prova segundo a sua própria convicção, formada à luz das regras da experiência comum. E, só perante a constatação de que tal convicção se configurou em termos errados é legalmente possível ao tribunal superior alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido.

Como se diz no Ac. Rel. Coimbra de 6/12/2000 (www.dgsi.pt - Acórdãos da Relação de Coimbra) «o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos ( carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ª instância ». Ou, consoante se escreveu no Ac. Rel. Coimbra de 3-11-2004 ( recurso penal n.º 1417/04 ) «... é evidente que a valoração da prova por declarações e testemunhal depende, para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, do modo como os mesmos são assumidos pelo declarante e pela testemunha e da forma como são transmitidos ao tribunal, circunstâncias que relevam, a par da postura e do comportamento geral do declarante e da testemunha, para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova, por via da amostragem ou indiciação da personalidade, do carácter, da probidade moral e da isenção de quem declara ou testemunha » (Cfr. entre outros; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos  n.ºs 1770/02 e 3960/03 ; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03 ; Ac de 6-3-2002, CJ, Ano XXVII, 2.º-44,  todos da Relação de Coimbra ). Este último diz : « (...)  uma incomensurável diferença entre a prova  produzida em primeira instância e a efectuada em sede de recurso com base nas transcrições dos depoimentos (...) quando a opção do julgador se centra em elementos directamente interligados com o princípio da imediação ( vg o julgador refere que os depoimentos não são convincentes num determinado sentido), o tribunal de recurso não tem a possibilidade de sindicar ao concreta de tal princípio » a não ser que « a convicção do julgador na primeira instância mostre ser contrária ás regras da experiência,  da lógica e dos conhecimentos científicos»

 Da motivação de facto consta que o tribunal recorrido ponderou as declarações das testemunhas, e nesse exercício, e fundamentando tal convicção, entendeu dar crédito às testemunhas da acusação. E é pertinente que ali se diga que não se vê qualquer interesse menos louvável ou qualquer motivação dúbia para os queixosos sustentarem a versão que apresentaram.

Embora a coerência ou consistência das declarações não constitua um critério de verdade – pela simples razão de que mesmo provas demonstrávelmente consistentes podem ser falsas –, a incoerência ou inconsistência já indicia a falsidade. O que sugere que devemos combinar as ideias de verdade e de conteúdo numa única – a ideia de um grau de melhor ( ou pior ) correspondência com a verdade, ou de uma maior (ou menor) semelhança ou similaridade com a verdade; ou seja, a ideia de graus de verosimilhança.

Depois, no caso presente a fundamentação de facto é suficiente para dar como provados e não provados os factos referidos como tal na decisão recorrida, pois faz uma análise critica  e objectiva dos meios de prova, e não há qualquer contradição entre os factos provados entre si, entre estes e os não provados, e entre uns e outros e a respectiva fundamentação, e entre esta e a decisão recorrida .

Dispõe o art.  347.º do CodPenal : «Resistência e coacção sobre funcionário : Quem empregar violência ou ameaça grave contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão até 5 anos».

No crime de resistência e coacção sobre funcionário, como resulta da sua própria inserção sistemática, o bem jurídico que a lei quis especialmente proteger  é o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade e a liberdade de actuação do seu funcionário ou membro de força armada, posta em causa pelo emprego de violência ou resistência do agente arguido, não abrangendo, por isso, a tutela da integridade dos mesmos, como bem pessoal.

A violência a que se alude não tem que ser agressão física, bastando a simples hostilidade idónea a coagir ou impedir a actuação legítima do funcionário (No mesmo sentido : Ac STJ, de 25-9-2002 , CJ/STJ, ano IX , t. III, p. 180).

Estando provado em suma que foi necessário usar da força física para imobilizar o arguido na sua resistência às ordens da autoridade policial, que o arguido arranhou com uma das mãos a face do lado esquerdo de um dos agentes, entortando-lhe a armação dos óculos., e que proferiu palavras ameaçadoras contra os dois agentes policiais, estão perfectibilizados os elementos constitutivos, objectivo e subjectivo, do tipo legal em causa, pois aquela conduta global configura uma obstrução ao exercício da autoridade, é idónea a dificultar essa acção da autoridade,

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DECISÃO

Pelos fundamentos expostos :

I - Nega-se provimento ao recurso, assim se mantendo a decisão recorrida

II - Custas  pelo arguido, com 3 Ucs de taxa de justiça

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Paulo Valério (Relator)

Jorge Jacob