Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
179/09.6GTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: PERÍCIA
DISCORDÂNCIA DO JUIZ
PERITO
Data do Acordão: 12/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO CRIMINAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 127º, 151º, 152º, 157º E 163º CPP
Sumário: 1.- A investigação da causa, o apuramento dos factos de que parte o perito para formular os seus juízos, pertence ao juiz.

2.- A perícia é a actividade de perceção ou apreciação dos factos probandos efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, conclusões essas vinculativas para o julgador.

3.- Se o juiz discordar de tal juízo, tem que explicar o porquê da sua divergência.

4.- Por sua vez quando os factos de que o perito partiu para realizar a sua perícia não coincidem com aquilo que realmente aconteceu, o valor da perícia desaparece, porquanto a mesma assentou numa ficção.

5.- Para além disso, as conclusões do perito têm que ser afirmações sustentadas, isto é, enquadradas e explicadas. Se se limitar a avançar hipóteses, a fazer sugestões, a indicar probabilidades, então embora formalmente se trate de uma perícia os resultados que apresentar já não estão abrangidos pelo especial valor desta prova.

6.- Perito é, apenas, o indivíduo como tal escolhido ao abrigo dos art. 153º e ss. do C.P.P.

7.- Identificar determinada testemunha como perito no rol de testemunhas e, depois, de a ouvir nessa qualidade em audiência, não tem a virtualidade de a converter em perito, ou seja, não transmuda a prova testemunhal em prova pericial .

Decisão Texto Integral: RELATÓRIO


1.

Nos presentes autos o arguido A... foi condenado na pena de 13 meses de prisão, substituídos por prestação de trabalho a favor da comunidade, se possível em instituição de reabilitação de traumatizados estradais, por 390 horas, com execução supervisionada pelos SRS, pela prática de um crime de homicídio por negligência, do art. 137º, nº 1, do Código Penal.

2.

Inconformado, o arguido recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«A) Na sentença recorrida existem factos que constam como provados que estão em contradição ou não resultam da prova produzida na audiência de julgamento, ou ainda não estão consentâneos com os demais elementos documentais existentes nos autos, nomeadamente os factos correspondentes aos pontos 1, 3, 4, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 15, e 16;

B) No que concerne ao facto indicado no ponto 1, existem provas que impunham decisão diversa, nomeadamente:

* as declarações do arguido prestadas na, melhor transcritas supra;

* os depoimentos das testemunhas B..., C... e D..., melhor transcritas supra;

* relatório de fls. 126 a 133;

* participação do acidente de fls. 28 e 29;

* auto de exame directo do local, de fls. 4 a 7.

C) Assim, face a esses meios probatórios, deveria ter sido dado como provado o seguinte: No dia 17/08/2009, cerca das 18h e 30m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de serviço particular e de matrícula …, na Praça de Portagem de Coimbra-Norte da Auto-Estrada nº 1 (A1), Trouxemil, sentido oeste-este (proveniente de Aveiro).

D) Quanto aos factos vertidos no ponto 3 as provas que impunham decisão diversa são as seguintes:

* auto de exame directo ao local (fls. 4 a 7);

* reportagem fotográfica (fls. 13 a 25) – fotos nº 2 a 8;

* relatório final de fls. 126 a 133, nomeadamente fls. 129 – discussão da 1ª hipótese adiantada para explicação da causa do acidente;

* fotografias de fls. 268 a fls. 272, juntas pelo assistente, nunca poderiam ser utilizadas como prova, tendo em consideração que foram tiradas em data muito posterior ao acidente, o que é visível, por confronto com as fotografias 3 e 6 de fls. 15 e 16;

* declarações de arguido e o depoimento das testemunhas E..., B..., C... e D..., a que supra se faz referência.

E) Pelo que, salvo o devido respeito por melhor entendimento, apenas se poderia ter dado como provado o seguinte: No local, a velocidade máxima permitida era de 60km/h e nas portagens onde se processavam pagamentos existia sinalização, antes das cabines de pagamento, que impunha a paragem obrigatória.

F) No que respeita ao facto provado no ponto 4, atentas as declarações do arguido e o depoimento da testemunha B... a que supra se faz alusão, considera que se deveria ter escrito o seguinte: Ao chegar ao local onde se situavam as portagens, o arguido pretendendo passar em portagem reservada aos utentes da via verde, seguiu na direcção da portagem de saída nº 106, contínua àquela, que se situava no sua extremo esquerda, convicto que seguia na Via Verde.

G) No que concerne ao facto provado sob o ponto 6, as regras de experiência comum associadas à dinâmica do acidente e à prova produzida impunham outra decisão; uma vez que o depoimento da testemunha B..., a que supra se faz referência, não coincide com a reportagem fotográfica de fls. 13 a 25 – não ficou espalhada uma única moeda que fosse;

H) Por outro lado resulta dos depoimentos das testemunhas B... e C..., supra melhor transcritos que das várias cabines existentes na portagem, apenas tinha acesso aos escritórios por túnel; além da cabine de portagem nº 106, onde exercia funções a vítima, também a cabine de portagem nº 103, contígua à segunda via verde existente, esta situada a meio do "garrafão", e que o acesso subterrâneo por túnel da cabine de portagem nº 106 também dava acesso à referida cabine de portagem nº 103;

I) Pelo que face ao exposto, considera o arguido que se deveria ter dado como provado o seguinte: O mesmo havia-se deslocado, momentos antes, à cabine de portagem contínua à sua, ou seja a nº 105, atravessando a pé para o efeito a via de trânsito que separava ambos os cabines, apesar da cabine onde exercia funções ter acesso aos escritórios e à cabine de portagem nº 103, por túnel subterrâneo, que não utilizou.

J) No que concerne aos factos provados no ponto 7, só se poderia ter dado como provado: Após tal, F..., saindo da parte de trás da cabine de portagem nº 105, para regressar à sua cabine de portagem, iniciou novamente a pé a travessia da referida via de trânsito, que se destinava aos utentes da portagem manual, que nela teriam de parar para procederem ao pagamento dos valores devidos pela utilização da auto-estrada, sem se certificar previamente se o arguido imobilizara o veículo por si conduzido.

K) E esta conclusão resulta da conjugação dos seguintes elementos de prova:

* depoimento da testemunha B..., supra melhor transcrito;

* do relatório de autópsia de fls. 98 e 99;

* o parecer médico-legal do Dr. G... junto em audiência de discussão e julgamento;

* auto de exame directo a veículo de fls. 8 a 11 e fotografias de fls. 23 a 25);

* depoimento da testemunha H... supra melhor transcrito:

* imagens do acidente cedidas pela Brisa juntas a fls. 64 em CD fotografias de fls. 66, 67 e 121:

* auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7,

* participação do acidente de fls. 28 e 29 e docs. de fls. 32, 40 e 41:

* relatório final de fls. 126 a 133;

* depoimento da testemunha D..., supra melhor descrito;

* esclarecimentos prestados na última sessão da audiência de discussão e julgamento pela perita que efectuou a autópsia, Dr.ª I..., supra melhor descritos.

L) No que se refere aos factos provados no ponto 8, são sem dúvida aqueles que são absolutamente contrários à prova documental existente nos autos e à produzida na audiência de julgamento.

M) Existe nos autos prova que impunha decisão diversa, a saber:

* relatório final de fls. 126 a 133 - quanto ao ponto de percepção possível;

* depoimento das testemunhas presenciais B... e C..., supra melhor descritos;

* declarações prestadas pelo arguido, supra melhor descritas;

* auto de exame directo ao local de fls. 4 a 8 - ausência de marcas de travagem:

* relatório final da G.N.R. de fls. 126 a 133 - ponto de conflito não determinado;

* croquis de fls. 6 e 30;

* depoimento da testemunha J..., supra melhor indicado;

* estudo estimativo de velocidades junto aos autos a fls. 109 a 111;

* depoimento do perito engenheiro K..., supra melhor descrito;

* fotografias 16, 17 e 18 de fls. 21 e 22.

N) Ora, face ao exposto, considera o arguido que apenas se deveria ter dado como provado o seguinte: Em circunstâncias não concretamente apuradas ocorreu de imediato, nessa via de trânsito, uma colisão entre o veículo conduzido pelo arguido e F..., tendo este, em consequência do embate, vindo a imobilizar-se no solo, em decúbito dorsal, junto ao separador central, a cerca de 50 metros de distância das referidas cabines de portagem.

O) No que concerne ao facto vertido no ponto 9, resultou da prova produzida, ao contrário do decidido que não é possível determinar, com rigor, qual a velocidade a que circulava o veículo conduzido pelo arguido e muito menos estabelecer um limite mínimo de velocidade que, a existir nunca será o dado como provado.

P) Esta conclusão impõe-se pela análise da seguinte prova:

* depoimento da testemunha J..., autor do estudo de velocidades existente a fls. 109 a 111 dos autos, supra melhor descrito, que deverá ser confrontado com a foto 11 de fls. 19 e os documentos de fls. 6 e 30 dos autos;

* declarações do perito engenheiro K..., supra melhor descritas.

Q) Face à falta de elementos concretos que possam determinar exactamente o ponto de colisão e a reacção do arguido, considera este, atenta a prova produzida, que apenas se poderia ter dado corno provado o seguinte: O arguido, ao passar a portagem, imprimia à viatura por si conduzida uma velocidade não concretamente apurada, mas inferior a 80 km/h.

R) No que concerne aos factos vertidos no ponto 10,desconhecendo-se, por total ausência de prova, quer documental quer testemunhal, se a vítima foi de imediato projectada a seguir ao embate ou se, pelo contrário, foi inicialmente transportada no capot do carro conduzido pelo arguido e depois “cuspida” até se imobilizar no solo, terá de se ter dado como provado, salvo melhor entendimento, o seguinte: Como consequência desse embate, F... sofreu as lesões descritas no relatório da autópsia, designadamente lesões traumáticas crânío-meningo-encefálicas que lhe causarem directa e necessariamente a morte.

S) Quanto aos vertidos no ponto 11, apenas de poderia ter dado como provado o seguinte, porque é o que resulta da prova efectivamente produzida: Nos trezentos metros que antecedem o local do acidente, a faixa de rodagem é precedida de uma curva para a direito à qual se segue uma recta, que por sua vez alarga à medida que a portagem se aproxima, e tinha assinalada no pavimento, na via de portagem situada na extrema esquerda, contígua à utilizada pelo arguido, o símbolo/distintivo via verde.

T) Provas que justificam esta alteração:

* declarações do arguido, supra melhor indicadas;

* auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7

* fotografias juntas aos autos de fls. 14 a 16 (tiradas à data do acidente), após alteração da sinalização horizontal, vide fls. 268 a 271, e após alteração da sinalização vertical, vide as fotografias juntas na acta de fls. 520 a 522.

U) Já quanto aos factos vertidos nos pontos 15 e 16, além de tal não resultar minimamente da prova produzida, tais factos, a serem considerados, indicam que a conduta do arguido foi praticada a título doloso, o que entra em manifesta contradição, salvo melhor entendimento, com o facto que se deu como provado no ponto 4 da matéria de facto provada e com a punição do mesmo que ocorreu a título negligente, pelo que nunca poderiam tais factos ter sido considerados provados.

V) Devia, isso sim, ter sido dado como provado que: O arguido passou com o seu veículo, sem efectuar qualquer paragem, em portagem reservada a utentes de via manual, pelo que deveria ter parado para efectuar o pagamento do valor do percurso efectuado, violando o sinal C19 que impunha paragem obrigatória, nunca tendo representado como possível que no local pudesse atravessar um peão.

W) Por outro lado, da prova documental e testemunhal produzida há factos que não constam como provados, resultam da prova produzida e deveriam constar da sentença proferida por terem extrema importância na boa decisão da causa, a saber:

X) A Praça de Portagem era composta por sete vias de portagem em patamar, sendo a primeira, da direita para a esquerda, a nº 101 e a última a nº 107, das quais apenas duas eram reservadas a utentes Via Verde, uma delas situada no extremo esquerdo da faixa de rodagem correspondente à via de portagem nº 107, atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, e a outra a meio, correspondente à via de portagem nº 104 - auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7, fotografias de fls. 14 a 25;

Y) Antes do garrafão a faixa de rodagem é composta por três vias de trânsito, no mesmo sentido - auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7, fotografias de fls. 14 a 25;

Z) Imediatamente entes das cabines de portagem existiam no local, colocados apenas no extremo direito da faixa de rodagem, os sinais C13 (proibição de circular com velocidade superior a 60 km/h) e C19 (outras paragens obrigatórias), apesar de existir nos 300 metros antecedentes, dois painéis com sinais de afectação de vias onde os mesmos constavam, que não têm correspondência com o número de vias de portagem existentes no local - auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7, fotografias de fls. 14 a 25;

AA) Por cima das vias de portagem nº 107, 106 e 104 existiam três painéis, todos de fundo branco, sendo que o painel existente sobre a via de portagem nº 106, onde o arguido passou, era da mesma dimensão e formato daqueles mas não tinha nada inscrito, ao contrário dos outros dois onde constava o sinal (H 33) indicador de via verde, bem como os dizeres "Reservado a Utentes", não tendo qualquer funcionalidade à data - auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7, fotografias de fls. 14 a 25;

AB) À data e hora do acidente, o sol estava forte, incidia no sentido Figueira da Foz/Coimbra e reflectia sobre os referidos painéis tornando-os brilhantes - depoimento da testemunha E... e declarações do arguido, supra melhor descritas;

AC) Por esse motivo, para quem circulava nessa praça de portagem, os painéis apresentavam-se com sendo todos iguais, já que à distância apenas era visível o fundo branco dos mesmos - depoimento da testemunha E... e declarações de arguido, supra melhor descritos;

AD) A via de portagem nº 106 por onde o arguido conduziu o seu veículo, estava totalmente livre, desimpedida e aberta à circulação do trânsito, estando a baia (cancela em espinha vermelha e branca) colocada na vertical e o sinal luminoso existente imediatamente a referido painel apresentava a luz verde - conforme depoimento das testemunhas B... e C..., supra melhor descritos;

AE) Não existe em nenhuma das vias de portagem qualquer local devidamente assinalado para o atravessamento de peões e diariamente passam nas vias de portagem manual da praça de portagem em referência vários condutores sem parar para proceder ao pagamento, sendo que muitos o fazem inclusive a velocidade excessiva - depoimento das testemunhas B… e C..., supra melhor descritos:

AF) A via de portagem nº 105 tem uma largura de 3,10m, o veículo por si conduzido, de marca Renault modelo Mégane e cor preta, possui uma largura de 1,777m e as cabines de portagem situam-se em cima de uma plataforma que fica num piano superior em relação à via de trânsito, de cerca de 30 a 35 cm de altura - auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7, croquis de fls. 6 e 30, auto de exame directo a veiculo de fls. 8 a 12, parecer médico-legal do dr. G...;

AG) O veículo conduzido pelo arguido era visível para F... a uma distância superior a 50m - relatório final de fls 126 a 133;

AH) o arguido só se apercebeu da presença de F... na via no preciso instante do embate, não tendo por isso previamente travado ou afrouxado - relatório final de fls 126 a 133 e parecer médico-legal do Dr. G...;

AI) O procedimento de troca de moedas da concessionária para a qual este trabalhava determinava que quando os portageiros precisassem de moedas para efectuar os trocos, o solicitassem via telefónica ao portageiro principal que exercia funções nas instalações dos escritórios, situados na extremidade da praça de portagem, sendo este o responsável por lhas fazer chegar à cabine de portagem onde exerciam funções - depoimento das testemunhas B... e C..., supra melhor descritos:

AJ) O embate deveu-se ao facto de o arguido não ter imobilizado o veículo por si conduzido e ao facto de F... ter atravessado a via de portagem a pé sem previamente se certificar que o podia efectuar em segurança - relatório final de fls. 126 a 133;

AK) Após o embate o arguido imobilizou o veículo por si conduzido a cerca de 47 metros das cabines de portagem croqui de fls. 6 e 30;

AL) Em consequência do acidente a viatura apresentava danos apenas na parte da frente do lado esquerdo, situando-se as maiores deformações ao nível do capot, do pára-brisas e tejadilho - auto de exame directo a veículo de fls. 8 a 12 e fotografias de fls. 14 a 25;

AM) Não existem no local do acidente marcas de travagem - croquis de fls. 6 e 30;

AN) O arguido é tido por pessoa cumpridora, respeitadora, condutor prudente, bom amigo e bom trabalhador - conforme depoimento das testemunhas ……………………., supra melhor descritos:

AO) O arguido sofre por causa do acidente, revivendo diariamente o sucedido, tendo-se tornando uma pessoa muito introspectiva que sofre em silêncio - vide depoimento das testemunhas H..., … , …., supra melhor descritos:

AP) Confessou parcialmente os factos;

AQ) É tido, por pessoas das suas relações, como condutor responsável e habitualmente prudente - vide depoimento das H... ………, supra melhor descritos:

DA INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA

AR) Para se preencher o tipo de ilícito de crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º nº 1 do CP, é preciso que se verifiquem os seguintes requisitos:

- acção (ou omissão) devida;

- violação do dever objectivo de cuidado;

- produção de resultado típico;

- previsibilidade objectiva da realização típica, incluindo o processo causal nos seus traços essenciais;

- imputação objectiva de resultado à acção ou nexo de ilicitude;

- violação do dever subjectivo de cuidado;

- previsibilidade subjectiva da realização típica e exigibilidade do comportamento lícito.

 AS) Do texto da sentença recorrida não existem factos que permitam averiguar se o resultado - morte da vítima - era ou não previsível e a questão da previsibilidade não consta sequer da parte da fundamentação e não foi abordada na formação da decisão.

AT) Pelo que salvo o devido respeito por melhor entendimento, não resulta da mesma a verificação de todos os factos objectivos e subjectivos e necessário nexo de causalidade adequada que permitam punir o comportamento do arguido pelo tipo legal de crime em que foi condenado.

AU) Por outro lado embora resulte da fundamentação da decisão que a velocidade não foi causa de acidente, não se questiona por que motivo é que o arguido não afrouxou nem parou antes do veículo por si conduzido vir a embater na vítima,

AV) não se determinou se tinha ou não forma de a visualizar e vice-versa

AW) e também não corista dos factos provados porque é que o arguido seguia em via destinada a portagem manual convicto que seguia na via verde,

AX) Pelo que não foi ainda investigada toda a matéria com interesse para a decisão final.

AY) Era deveras importante determinar se a existência do painel branco por cima da cabine de portagem por onde o arguido conduziu o seu veículo, em tudo semelhante ao da via verde, nas mesmas condições atmosféricas e sinalética que se apresentava existente no loca à data, era passível de ter igualmente confundido o homem médio colocado na sua posição.

AZ) E isto é matéria que, salve melhor entendimento, o tribunal "a quo" tinha o ónus de averiguar para determinar a culpabilidade do arguido no acidente em causal atento o disposto no nº 3 do artigo 1º do Regulamento de Sinalização do Trânsito e o nº 3 do artigo 5º do Código da Estrada,

BA) as fotografias juntas aos autos, o relatório final de fls. 126 a 133, e o teor dos depoimentos das testemunhas B..., C... e D..., que referiram que aquele painel é confundível com um painel Via verde que supra se indicaram,

BB) E ainda do facto de a sinalização da portagem Coimbra-Norte, após o acidente em causa ter sido alterada, quer a nível do traçado e marcas rodoviárias na via quer a nível dos painéis existentes sobre as cabines,

BC) Esse dever impunha-se igualmente pelo facto de as fotografias de fls. 14 a 25 demonstrarem claramente que os sinais de trânsito em causa (C13 e C19) se encontram apenas no lado direito da faixa de rodagem violando o disposto no nº 1 do artigo 14º do Regulamento de Sinalização do Trânsito.

BD) Pelo que, salvo o respeito por melhor entendimento, considera-se verificada a existência do vício em causa plasmado na al. a) do nº 2 do artigo 410º do CPP).

DO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA

BE) Da análise da decisão recorrida consta na parte da fundamentação dos factos provados sob os nº 1 a 8 e 10 a 14, que o arguido desculpou-se «com a afirmação de que as placas superiores estavam brilhantes, devido ao sol intenso por trás de si (o que impossibilitava de ler a sua indicação)»,

BF) e que a testemunha E... (que o tribunal "a quo", referiu que a mesma seguia na viatura conduzida pelo arguido, ao seu lado, qual tal é absoluta MENTIRA, e nunca foi dito pela mesma, bem pelo contrário, referiu expressamente que PASSOU NO LOCAL DO ACIDENTE APÓS ESTE TER OCORRIDO E ANTES DE CHEGAREM OS MEIOS DE SOCORRO),

BG) referiu também ser um dia de sol, tendo a testemunha D..., agente da GNR instrutor do inquérito, que chegou ao local no final da tarde, pelas 19 h e 40m e desmontou a desculpa do arguido, ao afirmar que teve o cuidado de, no dia seguinte, fazer o mesmo percurso do arguido, à hora do acidente, com dia igualmente de sol e não ter vislumbrado qualquer brilho nos painéis superiores que dificultasse a visibilidade do respectivo teor.

BH) Ora, se o referido GNR esse cuidado é no mínimo sinal de que no dia do acidente tal situação foi relatada pelo arguido (e não inventada como estratégia de defesa),

BI) Depois as regras da experiência comum demonstram precisamente o contrário, ou seja, que os dias não são todos iguais, pois o sol não nasce nem se põe à mesma hora, logo não tem a mesma inclinação, para além de que se desconhece se o céu estava igualmente limpo, etc.

BJ) Pelo que o raciocínio lógico efectuado pelo tribunal "a quo" está em manifesta contradição com as regras da experiência comum.

BK) Além disso, o percurso que o referido GNR fez foi o consentâneo com a descrição que fez do acidente e da proveniência do arguido, como tendo sido da A14 (Figueira da Foz), quando na verdade se apurou que o arguido provinha da A1, apesar de a portagem para ambas as auto-estradas ser a mesma.

BL) Por outro lado, presume-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial (art. 127º e 163º, nº 1 do CPP) pelo que a divergência não fundamentada da convicção do julgador relativamente ao juízo contido no parecer dos peritos (nº 2 do artigo 163º do CPP) consubstancia erro notório na apreciação da prova.

BM) Ora, no que concerne ao facto provado sob o nº 9, referente à velocidade a que circulava o veículo conduzido pelo arguido no local, o único perito ouvido sobre a matéria foi o eng. K..., resultando da sentença recorrida que o mesmo partindo do princípio que o arguido trava, imediatamente, ao embater, com diferentes tipos de reacção, a velocidade seria entre 72,3km/h e 79,7km/h.

BN) Contudo, o tribunal "a quo” considerou que a velocidade era não inferior a 80km/h, tornando em consideração o depoimento da testemunha J..., o facto de o arguido referir que ia com o pé levantado não se lembrando se travou, no local não existirem marcas de travagem e o facto de o automóvel possuir travões de disco hidráulico e ABS (referindo quanto a este facto que resulta de matéria pesquisada pelo tribunal "a quo", desconhecendo-se onde) e ainda a própria configuração do local e da posição do corpo junto ao separador central.

BO) Salvo o devido respeito ou melhor entendimento, não está devidamente fundamentada a divergência de opinião do perito inquirido.

BP) Para além de o arguido não concordar com a mesma, já que o facto de o arguido não ter a certeza se travou de imediato só demonstra, pelas regras da experiência comum, que circulava ainda a velocidade inferior à que foi estimada pelo próprio perito (que partiu do pressuposto que ele travou de imediato a fundo).

BQ) por outro lado, resulta do depoimento do referido perito que para formular os cálculos e apresentar as referidas 4 hipóteses, teve em atenção todas as características do veículo (referindo inclusivamente que teve acesso à ficha de homologação do modelo), a ausência no local de marcas de travagem e ao croqui do acidente, onde consta o previsível local de impacto e ainda a posição final da vítima,

BR) Pelo que todos esses factores foram já tidos em conta pelo perito na sua avaliação.

BS) Por último, o facto de o corpo da vítima se ter vindo a imobilizar junto ao separador central, em posição de decúbito dorsal, não indica que o mesmo tivesse servido de barreira natural que obstrui o prosseguimento do corpo em projecção, pois não é isso que nos dizem as regras da experiência nem tal resulta da matéria de facto provada.

BT) Pelo que, face ao exposto, considera o arguido verificado o vício plasmado na al. c) do nº 2 do artigo 410º do CPP.

DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA

BU) Este princípio encontra-se consagrado no artigo 127º do CPP mas sofre de restrições impostas por várias normas, entre elas a imposta pelo artigo 163º do CPP, referente à valoração da prova pericial.

BV) O tribunal “a quo” deu como provado que o veículo conduzido pelo arguido circulava a velocidade não inferior a 80km/h, em clara contradição com os cálculos apresentados pelo eng. …, único perito ouvido sobre a matéria, supra melhor indicados,

BW) preterindo os conhecimentos técnicos do referido perito, fundamentando a sua divergência em dados empíricos, prováveis e do senso comum, alguns dos quais foram tidos em consideração na elaboração dos resultados apresentados pelo referido perito, pelo que não poderia o tribunal “a quo” subvalorizar, como fez, o seu depoimento, violando dessa forma o princípio aqui em causa e os limites que lhe são impostos (artigos 127º e 163º do CPP)

BX) Por outro lado, do depoimento da perita DRA. I..., supra melhor identificado e do parecer médico-legal do DR. G... junto aos autos, resulta que a vítima foi muito provavelmente colhida no ar e não enquanto caminhasse ou mesmo corresse na via, daí as lesões que resultam da autópsia concentrarem-se todas sob o lado direito da vítima.

BV) Face à dinâmica acidente tal como consta provada (que a vítima atravessava a via da direita para a esquerda) tais lesões são incompatíveis com essa realidade.

BX) Contudo o tribunal a quo, na formação da sua convicção simplesmente não fez uso desses elementos de prova nem explicou porquê, limitando-se a dar como provado o atravessamento da via da direita para a esquerda da vítima, afirmando que nessa circunstância foi colhida pelo carro conduzido pelo arguido.

CA) Pelo que face ao exposto, conclui-se que o tribunal a quo se bastou com o conhecimento particular que possui da via e das suas particulares características e fez "tábua rasa" de todos os pareceres técnicos e periciais que fossem contra a sua "livre" convicção, violando desta forma, salvo melhor entendimento, o princípio da apreciação da prova.

DA NULIDADE DA SENTENÇA

CB) O tribunal a quo, melhor entendimento, não efectuou, como se lhe impunha, um exame crítico de todas as provas que serviram para formar a sua convicção.

CC) Nesse exame crítico impunha-se que fizesse alusão às imagens cedidas pela BRISA, reproduzidas na audiência de discussão e julgamento de 16/02/2011, onde é visível parcialmente a parte esquerda da via em causa e a traseira do veículo conduzido pelo arguido,

CD) através das quais é verificável que não se vê peão algum nem estão accionados os sinais STOP traseiros da referida viatura,

CE) o que demonstra, pelas regras da experiência comum que até esse instante o arguido não se apercebeu da presença da vítima, muito provavelmente por a mesma não ser visível, senão teria travado imediatamente.

CD) Por outro lado, forma a sua convicção com base em matéria por si pesquisada (veja-se a questão do veículo conduzido pelo arguido possuir ABS a que supra se aludiu) sem indicar a respectiva fonte,

CE) Dá como provados factos em perfeita contradição com a prova pericial efectuada (o que se verifica em relação à questão da velocidade a que seguia eventualmente a viatura conduzida pelo arguido) sem a devida fundamentação da divergência,

CF) ignora simplesmente o parecer médico-legal e o depoimento da perita que efectuou a autópsia, que visarem determinar se as lesões que apresentava a vítima, constantes do relatório da autópsia, eram compatíveis com a dinâmica do acidente tal qual constava da acusação deduzida, e nem a eles faz a mínima referência.

CG) Pelo que pelo exposto, salvo melhor opinião, padece de nulidade a sentença recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 349º, nº 1, aI. a) e c) do CP.

DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO-LEGAL DOS FACTOS

CH) Neste item o tribunal a quo primeiro considerou que o arguido praticou a contra-ordenação p. e p. pelo artigo 28º, nº 1, aI. b) e 2 e 5 do Código da Estrada, ao considerar que passou no local com velocidade não inferior a 80km/h e também a contra-ordenação p, e p. pelo artigo 24º (C19) e 261º, nº 1 do RST (ao não parar para pagar sendo a via de portagem nº 106 uma via de portagem manual).

CI) Mais considerou que nenhuma das referidas infracções é passível de subsunção a qualquer das alíneas dos artigos 145º e 146º, ambos do Código da Estrada, muito menos às imputadas, integrando por isso o conceito de leves.

CJ) No que concerne à violação do sinal C19 o arguido considera-a praticada, apesar de este existir apenas do lado direito do extremo da faixa de rodagem atento o sentido de marcha do arguido e não estar repetido do lado esquerdo, como impõe o nº 1 do artigo 14º do RST,

CK) e ainda de facto de, ao contrário do indicado na sentença recorrida, ele não constar no painel branco aposto por cima da via de portagem nº 106, diferentemente do que sucedia nas outras vias de portagem, excluindo as reservadas aos utentes da via verde (violando-se desta forma o disposto o nº 3 do artigo 5º do Código da Estrada e ainda o nº 3 do artigo 1º da Regulamentação de Sinalização do Trânsito),

CL) e ainda de apenas constar nos painéis de sinalização de vias que se encontravam 300m antes da portagem, os quais não tinham correspondência com o número de vias de portagem existentes no local.

CM) Já no que concerne à velocidade, o arguido discorda veementemente da prática da contra-ordenação que lhe é imputada, pois considera que não se conseguiu determinar com certeza a velocidade a que seguia mas seguramente, face ao depoimento do eng. …, era inferior a 80km/h.

CN) Discorda ainda do tribunal a quo quando este refere que «no que à velocidade do veículo conduzido pelo arguido concerne, se, por um lado, não se afigura a mesma causal do embate/acidente, por outro já não pode ser considerada inócua relativamente ao resultado final produzido na vítima - a morte.»

CO) Isto porque, como resultou do depoimento da perita Dr.  …e do parecer médico-legal junto na última sessão de julgamento, elaborado pelo Dr. G..., a morte num atropelamento pode ocorrer mesmo a velocidades pouco superiores a 20 km/h.

NO QUE CONCERNE A CONDUTA DO PORTAGEIRO

CP) Ora, quanto a este item, o arguido discorda veementemente da posição do tribunal "a quo" e da fundamentação utilizada.

CQ) Em primeiro lugar porque a portagem não deixa de ser um local de trabalho mas é, para os devidos e legais efeitos, considerada auto-estrada, vigorando o princípio da igualdade de concessão da Brisa (contrato de concessão da Brisa, aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros nº 198-B/2008, publicada em DR, 1ª Série, em 31/12, ponto 34).

CR) Nas auto-estadas e nas portagens não existe nenhum princípio de excepção, pelo que se aplicam igualmente a todos os que nela transitem as regras do Código da Estrada.

CS) Aliás, diga-se ainda que a auto-estrada em causa só termina após as cabines de portagem.

CT) Assim, e em conformidade, o portageiro em causa, mesmo que pudesse proceder ao atravessamento da via, o que não se concebe atento o disposto no artigo 72º, n.º 1 do CE,

CU) ao atravessar deveria, no mínimo, ter cumprido o exigido no n.º 1 do artigo 101º do mesmo diploma, o que não fez.

CV) Por outro lado, tal obrigação resulta igualmente dos documentos de fls. 430 e seguintes, referentes ao contrato de trabalho da vítima e às normas de segurança que lhe estão associadas.

CW) Por outro lado, se de facto a vítima se deslocou à cabine de portagem n.º 105 a fim de ir destrocar notas por moedas, para poder efectuar os trocos, com a sua conduta violou igualmente os procedimentos internos da instituição para que trabalhava.

CX) Por último também não se aceita que a vítima pudesse ter confiado na imobilização do carro pelo arguido pelo que resultou da prova produzida que todos os dias passam naquela e noutras vias de portagem manual utentes que não param, deliberadamente, para efectuar o pagamento, pelo que isso seria um motivo mais do oue suficiente para não confiar no comportamento dos mesmos.

CY) Mas ainda que isso não fosse suficiente, na Lei nº 25/2006, de 30 de Junho, nomeadamente na al. c) do seu artigo 6º, esse comportamento constitui contra-ordenação punível com coima.

CZ) Contudo, atento o teor do nº 1 do artigo 3º da mesma a fiscalização do cumprimento das normas referentes aos títulos de trânsito em infra-estruturas rodoviárias, designadamente em auto-estradas e pontes, é efectuada por portageiros.

DA) Pelo que daqui se pode concluir que se tal fiscalização se insere no âmbito das funções desempenhadas pela vítima, pelo que não se poderia considerar como considerou a sua atitude como ingénua na crença da observância das regras estradais e dos deveres de diligência por parte dos utentes das auto-estradas.

DA CONDUTA DO ARGUIDO

DB) Considera que apesar da prática da contra-ordenação por violação da paragem obrigatória na portagem, circunstancialismo em que ocorreu impõe que se considere que o mesmo estava induzido em erro, por confundibilidade provocada pela deficiente sinalética, nomeadamente a existência do painel branco sobre a via de trânsito por si optada e ainda pelo encadeamento do sol,

DC) Considerando que não lhe pode ser imputada a exclusividade na ocorrência do acidente, por a atitude da vítima ter em muito contribuído para a sua verificação.

DA VERIFICAÇÃO DA PRÁTICA DO CRIME DE HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA SIMPLES

DE) Ora, de todo o exposto resulta claramente que da violação da obrigação de paragem na portagem para efectuar o pagamento apenas é previsível que a conduta seja sancionada com uma coima        

DF) Não é espectável para qualquer utente da auto-estrada, mesmo apercebendo-se de que havia errado na escolha da via, que se lhe deparasse um qualquer peão, até porque no local não existe sinalização indicativa em conformidade (não existe nenhuma passadeira nem sinalização vertical ou luminosa a alertar para a possível existência de peões na via).

DG) O legislador, quando criou a norma estradal punitiva desse mesmo comportamento, considerou que a sua violação era apenas passível de uma sanção pecuniária, à qual não associou nenhuma inibição de conduzir, pelo que foi configurada como contra-ordenação leve.

DH) E o resultado que o legislador pretendeu evitar foi o de que os utentes não parassem para proceder de pagamento da utilização do troço, não para evitar qualquer atropelamento de eventual peão que pudesse atravessar a via, pelo que não se verifica o requisito da previsibilidade subjectiva da realização típica a que supra se aludiu.

DI) Além disso, se a vitima tivesse dado cumprimento ao disposto no artigo 101, n.º 19 do Código da Estrada face às circunstâncias verificadas, dificilmente iniciaria o atravessamento por não ver verificadas condições para o fazer, pelo que a sua conduta interrompeu o nexo de causalidade adequada à verificação do ilícito.

DJ) Vigorando no processo penal o princípio do "in dúbio pro reu", a prática da contra-ordenação pode consistir no indício de preenchimento do tipo de ilícito mas não pode em caso algum fundamentá-lo.

DK) Atento o exposto, impõe-se necessariamente, por falta de verificação dos pressupostos de punição do nº 1 do artigo 137º, conjugados com o disposto no artigo 15º, ambos do CP, que o arguido seja absolvido da prática do homicídio negligente de que vem condenado.

DA ESCOLHA DA PENA

DL) À cautela e sem prescindir, na improcedência da argumentação deduzida que importe a absolvição do arguido sempre se terá a dizer que a pena de prisão aplicada ao arguido é desajustada, porque injustificadamente severa face às finalidades da punição, atento o seu diminuto grau de culpa (negligência inconsciente).

DM) Ao crime em questão corresponde uma moldura penal de prisão até 3 anos ou de muita (de 10 a 360 dias - artigo 47º, n.º 1 do CP) e a cada dia de multa corresponde uma quantia entre 5 e 500€, a fixar em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais (n.º 2 do artigo 47º do mesmo diploma).

DN) Sendo aplicáveis ao crime em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, sendo que o art. 70º do C. Penal impõe que se dê preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

DO) Ora, pesem embora as exigências de prevenção geral em matéria de acidentes de viação, não exclusiva a culpa do arguido, tendo a vítima, contribuído, em larga medida, para o acidente; não tendo o arguido passado criminal e/ou estradal; contando 27 anos de idade, na data dos factos, e sendo na data da sentença, funcionário público, tendo já havido indemnização pelos danos causados pelo acidente, crê se incontroverso que de todo, se não justifica a opção por uma pena privativa da liberdade; pensando-se que uma pena não privativa, de multa, bastará para satisfazer as finalidades que as penas perseguem.

DP) A prisão deve ver a sua aplicação reduzida aos casos de cometimento de crimes mais graves, em que uma reacção através de outras formas de pena não possam assegurar o efeito esse essencial de prevenção geral desejado.

DQ) Apesar do crime de homicídio, mesmo cometido de forma negligente e sobretudo envolvendo actos no âmbito rodoviário, revestir uma gravidade dimensão é por toda a sociedade sublinhada isso não pode deixar imunes os tribunais mesmo no âmbito da escolha da pena, quando, como no caso do artigo 137º nº 1 são disponibilizadas penas alternativas à prisão.

DR) Na fixação concreta da medida da pena o tribunal deve obedecer ao rigoroso cumprimento dos artigos 40º, 70º e 71º do CP e dos princípios constitucionais que se evidenciam como orientadores primários da interpretação jurídico-penal, o que considera-se neste caso não se ter verificado.

DS) Pelo que deverá, face ao exposto e enquadrando-se na situação dos autos, em caso de não absolvição, ser aplicada ao arguido, em detrimento da pena de prisão, a pena de multa, face ao seu diminuto grau de culpa que se consubstancia em negligência inconsciente, limiar abaixo do qual não existe crime, bem como à ausência da prática de quaisquer crimes ou contra-ordenações anteriores.

DT) Se assim não se entender, então deverá ser reduzida a pena de prisão que lhe foi aplicada, por manifestamente exagerada face ao seu diminuto grau de culpa e à conduta estradal e criminal sem qualquer mácula e, bem assim, suspensa na sua execução, por se verificarem os pressupostos de aplicação previstos no artigo 50º do CP.

DU) Isto porque, no caso dos autos em apreciação, pode-se afirmar que o arguido até ao momento do acidente era um cidadão exemplar, vivendo no cumprimento da legalidade, mas apenas teve o azar (assim se pode chamar), de estar no local errado à hora errada e de ter tido um equívoco que resultou no inesperável, pelo que salvo o devido respeito deveria ter o tribunal "a quo", mesmo aplicando-lhe pena de prisão, optado pela suspensão da mesma em detrimento da substituição por trabalho a favor da comunidade

PENA DE SUBSTITUIÇÃO

DV) A pena de prisão de 13 meses aplicada ao arguido foi substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade para o qual este deu o seu consentimento.

DW) Contudo, o tribunal a quo aplicou essa pena substitutiva sem sequer equacionar a aplicação da suspensão da pena, uma vez que, salvo melhor entendimento, se encontram verificados igualmente os pressupostos da sua aplicação.

DX) Por outro lado, apesar do nº 2 do artigo 58º do CP determinar, como único requisito, na selecção da entidade beneficiária, ser o de os fins da entidade serem de interesse para a comunidade,

DY) O tribunal a quo ao requerer que a prestação de trabalho a favor da comunidade ocorresse, se possível, em instituição de reabilitação de traumatizados estradais, induziu, desde já, a sua concretização, extrapolando, salvo melhor entendimento, o único requisito por que se deve pautar a selecção da entidade beneficiária,

DZ) Ou seja, o fim deixou de ser o do interesse para a comunidade para passar a ser uma espécie de punição dirigida ao arguido, o que não é legítimo, salvo melhor entendimento.

EA) O acidente que deu origem aos presentes autos foi um caso isolado, daí não se compreender por que motivo o tribunal, na determinação da pena, refere que a finalidade dessa substituição é fazer com que o arguido reflicta sobre a sua conduta censurável, interiorizar valores fundamentais, que suportem uma mudança de rumo.

EB) Assim, atento o exposto, e na improcedência de tudo o solicitado, deverá ser rectificada a douta sentença proferida, no sentido de se retirar a referência à instituição de reabilitação de traumatizados estradais.

EC) Contudo, ainda se assim não se entender, o arguido aceita prestar o trabalho a favor da comunidade nas condições em que resulta da sentença ora recorrida».

3.

O recurso foi admitido.

4.

O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu defendendo a manutenção do decidido excepto no que respeita à pena aplicada, que admite poder ser substituída pela pena de suspensão da execução da pena.

O assistente também respondeu, limitando-se a pedir a improcedência do recurso.

5.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Procedeu-se a audiência, em conformidade com os formalismos legais.

Nela o arguido reafirmou o que já havia dito no recurso.

No parecer emitido o Sr. P.G.A. junto desta relação divergiu do arguido, quanto a todas as questões por este colocadas, exceção feita no que à pena aplicada respeita. Neste particular entende que a suspensão da execução da pena com sujeição a regime de prova poderá ser aquela que mais se adequa ao caso.

No entanto, previamente, defende que a sentença padece de nulidade, por violação do nº 2 do art. 374º do C.P.P.. Isto porque o arguido foi condenado por crime negligente, mas os elementos relativos à negligência, constantes da acusação, não figuram nem nos factos provados nem nos factos não provados.

Cumpre decidir.

 


*


FACTOS PROVADOS

6.

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

«1. No dia …, pelas 18:25 horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de serviço particular e de matrícula …, na Praça da Portagem de Coimbra Norte da Auto-Estrada nº 14 (A 14), Trouxemil, Coimbra, no sentido Oeste – Este (isto é, saindo da referida A 14), circulando no local trânsito reduzido de veículos.

2. Na ocasião, o veículo conduzido pelo arguido era portador de dispositivo de Via Verde, pelo que, tendo entrado na Auto-Estrada por essa via, deveria sair por uma das portagens ali existentes, especificas para os utilizadores de tal sistema de Via Verde.

3. No local, para as portagens destinadas a utilizadores de Via Verde a velocidade máxima permitida era de 60 km/h e nas portagens onde se processavam pagamentos existia sinalização, antes das cabines de pagamento, que impunha a paragem obrigatória, tudo devidamente assinalado com os sinais de trânsito em uso e visíveis.

4. Ao chegar ao local onde se situavam as portagens, o arguido pretendendo embora passar na portagem reservada aos utentes da Via Verde que se situava na sua extrema esquerda, seguiu na direcção da portagem de saída nº 106, contínua àquela, convicto de que seguia na Via Verde;

5. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, F... exercia as funções de portageiro na cabine de portagem nº 106, ao serviço da sociedade concessionária daquele local;

6. O mesmo havia-se deslocado, momentos antes, à cabine de portagem contínua à sua, ou seja a nº 105, para trocar dinheiro para poder efectuar os trocos dos pagamentos que os utentes viessem a necessitar – sendo que das várias cabines existentes na Portagem só a nº 106 tinha acesso aos escritórios por túnel;

7. Após tal, sabendo que a portagem nº 106 – e o espaço entre a 105 e a 106 – era reservada a utentes que teriam obrigatoriamente de parar, para procederem ao pagamento dos valores devidos pela utilização daquela via, procedeu então à travessia a pé da distância que separava a cabine 105 da 106;

8. Estava a atravessar a pé o dito trajecto quando foi surpreendido pela aproximação repentina do veículo conduzido pelo arguido que, sem afrouxar nem parar junto à cabine nº 106, veio a embater violentamente com a respectiva parte da frente em F..., projectando-o a uma distância de 48,75 m, local onde acabou imobilizado no solo, junto ao separador central.

9. O arguido, ao passar a portagem imprimia à viatura por si conduzida a velocidade não inferior a 80 km/h.

10. Como consequência desse embate, projecção e queda, F... sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia, designadamente lesões traumáticas crânio-meningo-encefá1icas, que lhe causaram directa e necessariamente a morte.

11. A via no local onde ocorreu o embate/acidente e nas centenas de metros que o precedem era (e é) de traçado recto com alargamento à medida que a portagem se aproxima e tinha assinalada no pavimento, na via de portagem pretendida seguir pelo arguido, o símbolo/distintivo via verde a uma distância de cerca de 200 m;

12. O piso era asfaltado, em estado de conservação, e encontrava-se seco; e

13. O tempo era de céu limpo.

14. Quando fazia esse percurso, tinha o arguido por local de saída habitual a Portagem de Coimbra Sul.

15. O arguido agiu livre e conscientemente;

16. Sabia que tal conduta lhe era proibida por lei.

17. Aufere cerca de € 1 100 líquidos mensais; vive com os pais, pagando, não obstante, € 450 mensais de renda de casa que também habita em Viseu; tem a licenciatura em Matemática; dá o seu consentimento a PTFC;

18. Não se lhe conhecem antecedentes criminais ou contra-ordenacionais».

7.

E foram julgados não provados quaisquer outros factos com relevância para a causa, nomeadamente que «19. O arguido, ao passar a portagem imprimia à viatura por si conduzida a velocidade de 111,35 km/h».

8.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:

«1º a 8º, 10º a 14º: As declarações do arguido – que admitiu/reconheceu a verificação de toda essa factualidade, precisando que vinha de Aveiro e não era seu hábito sair em Coimbra Norte, mas sim em Coimbra Sul, desculpando-se com a afirmação de que as placas superiores estavam brilhantes, devido ao sol intenso por trás de si (o que impossibilitava ler a sua indicação) mas, ao mesmo tempo, admitindo que não procurou outros indicativos (sinais) de via verde por onde devesse circular; mais referiu que o trânsito era pouco e que só se apercebe, ao passar a portagem, de movimento do seu lado direito e logo após o embate e projecção da vítima; estava convicto que era ali a via verde; adiantou que ia em desaceleração no momento do embate, com o pé levantado, sendo que depois não sabe se acelerou ou se travou – complementadas, na parte respectiva, pelos depoimentos das testemunhas B…, portageira na cabine nº 105, à altura – que confirmou que F... se achava em iguais funções na cabine nº 106 e se tinha dirigido à sua cabine para ir buscar trocos; que a portagem por onde passou o veículo conduzido pelo arguido tinha o sinal vermelho junto à cabine e sinal de STOP antes; mais se lembrou que nesse dia estava sol –, C..., responsável de serviço na portagem de Coimbra Norte, à altura – que referiu que existe um túnel que liga os escritórios à cabine nº 106 (sendo esta a única onde tal acontece); precisou que nenhum portageiro está proibido de ir às outras cabines e que se o falecido lhe tem solicitado os trocos, provavelmente teria sido o próprio a levá-los sem utilizar o túnel; também confirmou a existência, à altura, do sinal STOP precedendo as portagens manuais (por onde seguiu o veículo conduzido pelo arguido); lembrou também ser um dia de sol –, E..., que seguia na viatura conduzida pelo arguido, ao seu lado – e que confirmou a convicção do arguido de que seguia na via verde, lembrando-se de que, após o embate, o arguido voltou à portagem a questionar-se e para confirmar, convencido de que havia passado na via verde –, D..., agente da GNR instrutor do inquérito que elaborou o auto de exame directo ao local e à viatura (cujo teor, de fls. 4 a 9, confirmou) – que precisou ter chegado ao local no fim da tarde, pelas 19:40 horas, e desmontou a desculpa do arguido, ao afirmar que teve o cuidado de, no dia seguinte, fazer o mesmo percurso do arguido, à hora do acidente, com dia igualmente de sol, e não ter vislumbrado qualquer brilho nos painéis superiores que dificultasse a visibilidade do respectivo teor –, e pelo teor dos docs. de fls. 14 a 25 e 268 a 272 (fotos de aproximação ao local do acidente, do local do acidente, onde ficou o corpo da vítima depois do embate, da vítima coberta e descoberta, e do estado da viatura conduzida pelo arguido após o acidente, de onde se aferem os elementos referentes e que confirmam as características dadas por assentes), 33/4 (cópia do livrete relativo ao veículo automóvel conduzido pelo arguido, do qual resultam as características respectivas), 213 a 216 (relatório da autópsia efectuada a F..., de onde resultam os elementos referentes e a compatibilidade do resultado com o atropelamento dado por assente), a que acresce o nosso conhecimento da concreta via e suas particulares características;

9.º: O depoimento da testemunha J..., agente da GNR, pertencente ao NIAV, autor de estudos de estimação de velocidades, com formação específica em acidentes de viação na Guarda Civil Espanhola – que precisou que, existindo embora várias fórmulas para a determinação da velocidade dos veículos em acidentes, na por si adoptada, em função da configuração dos danos produzidos no veículo com o atropelamento da vítima concreta, a velocidade da viatura conduzida pelo arguido não era inferior a 80 km/h –, cujas conclusões não são afastadas pela opinião do perito eng. K... – que, afastando embora o método referido, perfilha da opinião de que partindo do princípio que o arguido trava, imediatamente, ao embater, com diferentes tempos de reacção, 4 hipóteses se lhe afiguram como possíveis e cujos valores calcula entre 72,3 km/h a 79,7 km/h, pois que, pela configuração do local de paragem da viatura e do local onde fica o corpo, parte do princípio que este foi “de boleia” em cima do veículo e caiu pouco antes da paragem da viatura –, porquanto, por um lado, é o próprio arguido que afirma ir com o pé levantado e não se lembrar se travou, sendo que o facto de no local não existirem marcas de travagem (auto de exame directo de fls. 4 e 5, já referenciado) nada indicia, considerando que o veículo dispunha de travões de disco de sistema hidráulico (auto de exame directo do veículo de fls. 8 e 9, também supra referenciado) e ABS (matéria por nós pesquisada), e, por outro lado, a configuração do veículo e do corpo referidas não exclui outras possibilidades, tanto mais que a imobilização do corpo junto ao separador central aponta para este como barreira natural que obstrui o prosseguimento do corpo em projecção;

15.º e 16.º: Presunção natural – atenta a idade do arguido, ser titular de carta de condução, que implica o conhecimento das regras estradais, e experiência de condução e de vida –, estribada, na parte respectiva, pelo teor do doc. de fls. 34 (cópia da carta de condução do arguido, de onde se extrai que era titular de carta de condução, pelo menos desde 15.03.2000, havia mais de 9 anos);

17.º: As declarações do arguido – informando o tribunal sobre os seus elementos pessoais – que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se consideraram atendíveis – e dando o seu assentimento a PTFC;

18.º: O teor dos docs. de fls. 349 e 425 a 427 (CRC e RIC do arguido, de onde resulta nada constar).

Factos não provados:

19.º: Ausência de prova bastante – vd. convicção relativa ao facto 9».


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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação são as seguintes as questões a decidir:

I – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

II – Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

III – Erro notório na apreciação da prova

IV – Violação do art. 127º do C.P.P.

V – Nulidade da sentença

VI – Impugnação do enquadramento legal dos factos provados

VII – Impugnação da pena aplicada


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I – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

A lei ao determinar, no art. 428º do C.P.P., que as relações conhecem de facto e de direito abre a porta à possibilidade de alteração da decisão sobre a matéria de facto proferida na 1ª instância.

Na concretização desta possibilidade dispõe o art. 431º do C.P.P., cuja epígrafe é “modificabilidade da decisão recorrida”, que «sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova».

            Ora, o arguido ataca aquela decisão servindo-se da possibilidade conferida no art. 412º, que contem o iter procedimental a cumprir em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Nos termos do art. 412º, nº 3, «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas».

Acrescenta o seu nº 4: «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».

            Na especificação dos factos o recorrente terá que indicar o facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considere incorrectamente julgado.

Quanto às provas, tem que especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida: quando se trate de prova documental tem que especificar o documento ou o excerto do documento que demonstre o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o(s) depoimento(s) relevantes (por identificação da pessoa em causa), tem que relatar a passagem ou passagens desse depoimento que demonstra o erro em que incorreu a decisão e tem, conforme resulta do nº 4 acima transcrito, que localizar este excerto no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo de gravação.

Portanto, quando o recorrente pretenda ver alterada a matéria de facto por via do mecanismo previsto no art. 412º, nº 3 e 4, do C.P.P., tem:

1º - primeiro, que indicar, de forma inequívoca, os factos impugnados;

2º - depois, que concretizar as provas que impõem decisão diversa da recorrida;

2º - finalmente e em caso de prova oral tem que localizar, com exactidão no respectivo suporte, o excerto relevante da prova gravada de que se socorreu para demonstrar o erro da decisão.

           

O cuidado da lei ao fixar os pressupostos de uma impugnação vitoriosa deve-se à circunstância de o recurso sobre matéria de facto, não obstante incidir sobre a prova produzida e o seu reflexo na matéria assente, não configurar um novo julgamento, caso em que as especificações seriam inúteis. Este recurso é um remédio e como remédio que é o que pretende é corrigir os concretos erros de julgamento no que à matéria de facto respeita. Por isso a lei impõe que os erros que o recorrente entende existirem estejam especificados e que as provas que demonstram a sua existência estejam, também elas, especificadas e localizadas.

A lei não se basta com referências genéricas - ao documento X ou ao depoimento Y -, antes exige que o recorrente escalpelize aquela concreta prova e apresente, concretize, o/s ponto/s exacto/s da mesma que comprova/m a tese do recurso. Em caso de prova oral tem, ainda, que localizar o excerto, isto para que todos os demais intervenientes o localizem no suporte e comprovem, portanto, a sua existência.

            A provar isto mesmo temos o nº 6 do art. 412º. Quando a lei diz, nesta norma, que a decisão da impugnação da matéria de facto com recurso à prova gravada é feita mediante a audição ou visualização das passagens indicadas significa que estas passagens – as tais provas que impõem decisão diversa da recorrida -, têm que estar devidamente localizadas.

            A localização referida no nº 4 do art. 412º é, como todos sabemos e/ou intuímos, fundamental. Enquanto que a especificação referida na al. b), do nº 3 do art. 412º respeita à fundamentação do vício, isto é, à demonstração da desconformidade entre a decisão e a prova produzida, já a localização destes excertos, a que se refere o nº 4 da norma, tem a ver com outra coisa. O que se pretende aqui é, evidentemente, contribuir para facilitar a sindicância daqueles excertos por parte dos demais intervenientes no processo: com a indicação da localização da parte do depoimento relevante para a demonstração do alegado erro de julgamento pretende-se que quem analisa a alegação vá, directamente, para o momento indicado, ao invés de ter que proceder à audição da totalidade do depoimento, correndo o risco, inclusive, de não lograr detectar o tal momento indicado [1].

Esta é a interpretação que respeita a letra da lei e é a única que permite o exercício efectivo do princípio do contraditório e que garante o respeito pelo princípio da imparcialidade do juiz. A indicação genérica, sendo certo que seria confortável para o recorrente, prejudicaria de forma intolerável todos os demais intervenientes no processo e poderia, mesmo, inviabilizar o exercício do contraditório. Se fosse aceitável que o recorrente arguisse um qualquer erro e pudesse basear a sua alegação nos “documentos do processo”, ou nos “documentos de fls…”, sem necessidade de expor as razões da relevância de tais documentos, e/ou nos “depoimentos de A, B e C”, também sem necessidade de outras especificações, todo o trabalho de indagação se transferia para os demais intervenientes. Seriam os outros sujeitos do processo, nomeadamente o juiz, que teriam que catar dentre toda a prova produzida as partes que, eventualmente, relevariam para as pretensões do recorrente. Seriam eles teriam que se “afogar” em montanhas de documentos, em horas de gravações para descobrirem, se o conseguissem e se elas existissem, as concretas passagens dos documentos e das declarações em que o recorrente presumivelmente se teria baseado para impugnar um determinado facto, sendo que tais passagens poderiam resumir-se a duas ou três palavras de um depoimento. Isto equivaleria a transferir, de modo abusivo e injustificado, o ónus de fundamentar devidamente o recurso [2].

Para além disso, e como facilmente se percebe, o recorrente sempre poderia transferir para o juiz a responsabilidade pelo insucesso do recurso, quando a procura pela localização dos tais excertos relevantes fosse infrutífera.

Por fim, a incumbência de ser o tribunal a encontrar e seleccionar as provas importantes aos interesses do recorrente violaria, igualmente, o dever de independência e equidistância do juiz porquanto este, no caso, ficaria vinculado a desenvolver o seu trabalho de acordo com o pensasse servir melhor os interesses do recorrente.

            Da leitura das conclusões do recurso – que delimitam, como dissemos, o âmbito do conhecimento deste tribunal -, resulta que o arguido não cumpriu a lei no que às especificações da prova oral respeita, uma vez que nessa especificação se limitou a indicar o nome da pessoa cujo depoimento entende ser relevante e o dia em que depôs.

E a transcrição que faz no texto da motivação dos diálogos alegadamente travados na audiência não substituem as indicações em falta.

Num primeiro momento poderíamos ser levados a pensar que haveria, então, que dirigir ao recorrente convite para corrigir as conclusões do recurso.

No entanto, assim não é.

As conclusões são o resumo da motivação, onde se devem expor as razões do pedido. O que não figura na motivação não pode constar das conclusões.

Ora, se no texto da motivação as especificações dos nº 3 e 4 do art. 412º do C.P.P. não constarem então não há lugar àquele convite, por o mesmo ser manifestamente inútil, uma vez que, e repetindo, o conteúdo da motivação é o limite absoluto das conclusões.

Nos termos gerais o incumprimento de um ónus leva ao não reconhecimento da pretensão exposta. Do mesmo modo, o incumprimento do ónus imposto no art. 412º do C.P.P. determina a impossibilidade de o tribunal de recurso conhecer do pedido.

E nem se diga que esta é uma solução violadora da lei ou, mesmo, inconstitucional.

Sobre uma situação idêntica a esta já se pronunciou o Tribunal Constitucional no recurso 140/2004, de 10-3-2004. Sendo certo que, à data, a lei tinha uma redacção diferente, entendemos que aquela jurisprudência continua a valer, desde logo por maioria de razão, porque a lei actual é, neste particular, mais exigente do que era a anterior.

O objecto do referido processo era decidir, além do mais, da inconstitucionalidade da interpretação dos nºs 3, alínea b), e 4 do art. 412º do C.P.P., no sentido de a falta daquelas especificações ter como efeito o não conhecimento da matéria de facto, por esta falta introduzir um efeito cominatório irremediavelmente preclusivo do recurso. O tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma do art. 412º, nºs 3, alínea b), e 4, do C.P.P., interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente se tenha que dar a oportunidade de suprir tais deficiências, por a indicação exigida pela al. b) do nº 3 e pelo nº 4 do art. 412º do C.P.P. ser imprescindível para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e porque o legislador, ao impô-lo, pretendeu que esta actividade processual se desenrolasse de forma adequada, não sendo tal exigência nem meramente formal, nem desadequada, desproporcionada ou violadora do direito ao recurso.

Assim, e no que à alteração da decisão mediante análise da prova oral produzida respeita, improcede a pretensão do arguido.

No entanto, a par da prova oral o arguido também se socorre de prova documental para demonstrar os invocados erros que imputa à sentença recorrida.

            Começando pela matéria provada, o arguido impugna os factos constantes dos pontos 1, 3, 4, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 15 e 16 e relativamente a alguns deles invoca, também, prova documental relevante no sentido defendido no recurso (em relação aos factos provados constantes dos pontos 1., 6. e 9. o arguido assenta o pedido de alteração do decidido apenas em prova oral, que não se vai conhecer pelas razões já expostas).

Quanto ao facto do ponto 4. diz o arguido, e citamos, «apenas discorda da forma como foi redigido o mesmo uma vez que pode levar a interpretação duvidosa».

Ou seja, o facto não está impugnado. Assim, não se procede a qualquer alteração.

Quanto aos factos 15. e 16. o arguido não indica nenhuma prova da qual resulte a razão de ser da sua impugnação nesta sede, com recurso ao mecanismo do art. 412º do C.P.P.

Resta, então, conhecer dos factos 3., 7., 8., 10. e 11 e da sua conformidade com a prova documental indicada (já que, como dissemos, não sindicaremos a prova oral produzida relativa aos mesmos).

Vejamos, então, que documentos são estes e se o arguido tem razão.

É o seguinte o conteúdo do facto que integra o ponto 3.: «no local, para as portagens destinadas a utilizadores de Via Verde a velocidade máxima permitida era de 60 km/h e nas portagens onde se processavam pagamentos existia sinalização, antes das cabines de pagamento, que impunha a paragem obrigatória, tudo devidamente assinalado com os sinais de trânsito em uso e visíveis».

O arguido pretende que fique consignado que «no local a velocidade máxima permitida era de 60 km/h e nas portagens onde se processavam pagamentos existia sinalização, antes das cabines de pagamento, que impunha a paragem obrigatória».

O arguido concretiza que o que está em causa é a afirmação de que as portagens dos utilizadores da via verde tinham um limite de velocidade de 60km/h e que esta estava devidamente assinalada.

Quanto aos documentos que impõem, na sua tese, a alteração, são os que constam de fls. 4 a 7, 13 a 25, 126 a 133, e 268 a 272.

O documento de fls. 4 a 7 respeita ao exame ao local, onde se pode ver a indicação da sinalização existente.

Os documentos de fls. 13 a 25 são fotografias que retratam a aproximação à portagem, a portagem e o local imediatamente a seguir, passada que é a portagem.

Nas fotografias de fls. 14 podem ver-se dois painéis, um de cada lado da via, com indicação das saídas da auto-estrada: em cada um destes painéis consta que a saída da ponta esquerda é para os utilizadores da via verde.

Nestas mesmas fotografias vê-se que imediatamente abaixo do sinal de via verde de cada um dos painéis consta o sinal de proibição de exceder os 60 km/h, ou seja, a demonstração do que se diz no ponto 3.

Continuando a evoluir na aproximação à portagem surge, então, o local da portagem, propriamente dito, com as cabines e os pórticos que as encimam e vê-se nas fotografias, claramente, os locais destinados à passagem dos utilizadores da via verde.

Como é que se vê?

Imediatamente por cima da via destinada a estes utilizadores são visíveis os característicos sinais de via verde. Aliás, eles são visíveis já na fotografia nº 3, de fls. 15. Mas na fotografia 6, de fls. 16, isto é absolutamente óbvio.

Nesta fotografia nº 6 vê-se, também, um painel branco sobre uma das vias destinadas a utentes não utilizadores de via verde. O painel é de tamanho igual aos outros, só que lhe falta algo absolutamente distintivo, que os outros têm: referimo-nos ao sinal de via verde. Portanto, um dos painéis é todo branco, enquanto os referentes às vias destinadas aos utilizadores da via verde têm, sobre o branco, o sinal de via verde e uns dizeres.

Esta realidade surge-nos absolutamente cristalina na fotografia de fls. 268 que, atente-se, retrata a mesma realidade da fotografia 3, de fls. 15.

Ou seja, tudo em conformidade com o texto do ponto 3 dos factos provados.

Não percebemos, portanto, o sentido desta reclamação.

Mas antes de passarmos para o ponto seguinte cabe fazer uma última referência: se, como aceita o arguido, a velocidade máxima permitida no local era de 60 km/h evidentemente que este limite tinha que estar anunciado. E se nas portagens onde se processavam pagamentos havia sinalização a impor a paragem obrigatória, então aquela outra sinalização, dos 60 km/h, só podia destinar-se às portagens dos utilizadores da via verde.

O arguido ataca, também, o ponto 7 dos factos provados.

Diz este que «após tal, sabendo que a portagem nº 106 – e o espaço entre a 105 e a 106 – era reservada a utentes que teriam obrigatoriamente de parar, para procederem ao pagamento dos valores devidos pela utilização daquela via, procedeu então à travessia a pé da distância que separava a cabine 105 da 106».

Ao invés, o arguido pretende que fique consignado que «após tal F..., saindo da parte de trás da cabine de portagem nº 105, para regressar à sua cabine de portagem, iniciou novamente a pé a travessia da referida via de trânsito, que se destinava aos utentes da portagem manual, que nela teriam de parar para procederem ao pagamento dos valores devidos pela utilização da auto-estrada, sem se certificar previamente se o arguido imobilizara o veículo por si conduzido».

Da explicação que se segue à proposta da nova redação percebe-se que o arguido quer que seja retirada a referência à circunstância de a vítima ir a atravessar no sentido indicado e a andar.

O documento de que se socorre para fundamentar esta sua pretensão é o relatório de autópsia, de fls. 98 e 99, donde consta, diz, que a vítima não tinha fraturas nas pernas nem tinha hematomas ou infiltrações sanguíneas nos tecidos moles das pernas e coxas.

O relatório da autópsia efectuada à vítima F... consta de fls. 98 a 101 do processo.

No exame do hábito externo, a fls. 98v, consta o seguinte em relação aos membros inferiores da vítima:

«Membro inferior direito: Equimose arroxeada abrangendo a face medial da metade distal da coxa, a face lateral do joelho e a face lateral do terço proximal da perna, com cerca de quarenta e quatro por catorze centímetros, no seio da qual se encontra uma escoriação com quatro por dois centímetros e meio, ao nível do joelho. Escoriação arredondada com dois centímetros de diâmetro na face medial do tornozelo.

Membro inferior esquerdo: Escoriação com dois centímetros e meio por um na face lateral do joelho. Escoriação com dez por três centímetros, de direcção longitudinal, na face lateral do terço médio da perna. Área escoriada com onze por seis centímetros abrangendo a face lateral do tornozelo».

Conforme se vê, a vítima não teve traumatismo nos membros inferiores e não apresentava hematomas nem infiltrações.

Só que daqui não resulta, necessariamente, o que o arguido pretende que seja consignado, nomeadamente que o arguido atravessou a correr.


*


            Para a defesa do erro de julgamento em que incorreu o tribunal recorrido neste ponto invoca o arguido o desvio que a convicção do julgador patenteia relativamente àquilo que ele chama de prova pericial constante do processo.

            Nos termos do art. 127º do C.P.P. «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

            Daqui resulta que é regra no nosso direito o princípio da livre apreciação da prova. Mas resulta, também, que existem exceções a esta liberdade de apreciação e uma destas exceções radica, precisamente, na especial força probatória de determinadas provas, que a convicção do julgador tem que sobrevalorizar.

Estamos no domínio da prova vinculada ou legal, em que ou a lei exige determinado tipo de prova para certas circunstâncias factuais ou atribui específica força probatória a determinada prova.

E uma das provas de apreciação vinculada é a prova pericial, que «tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos» - art. 151º do C.P.P.

A perícia é a actividade de perceção ou apreciação dos factos probandos efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos [3].

Dada a importância desta prova o legislador português optou por um modelo de perícia pública, oficial, e formalizou todo o procedimento com vista à sua obtenção, tudo para tentar manter intocado o valor intrínseco da mesma já que, como dissemos, o juiz tem, por regra, que a acatar.

Para além de indicar, no art. 152º do C.P.P., quem realiza a perícia a lei pronuncia-se sobre todo o formalismo a cumprir até que a perícia seja efectivada, todo ele sujeito ao princípio do contraditório.

No termo deste procedimento surge o relatório pericial, que congrega os resultados da diligência.

Ao fim e ao cabo é este relatório, mencionado no art. 157º do C.P.P., que constitui a tal prova vinculada, de que falámos, subtraída à livre apreciação do julgador, conforme diz o art. 163º, nº 1, do C.P.P.

Ora, a única perícia realizada neste processo, cujas conclusões estão subtraídas à livre convicção do julgador, foi a autópsia feita à vítima, cujo relatório consta de fls. 98 e segs. dos autos.

Quanto à circunstância de a sua realização não ter seguido o formalismo estabelecido na lei, isto deve-se ao facto de algumas perícias médico-legais e forenses urgentes poderem ser realizadas sem que um ter iter procedimental se cumpra, conforme permite a Lei 45/2004, de 19/8.

           

Mas atente-se que mesmo numa perícia nem tudo o que dela conste está abrangido pela sua especial força probatória. Dela o que está subtraído à livre convicção é a perceção ou apreciação dos factos que exijam especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, isto é, quando a descoberta da verdade exige técnicas especializadas, que não se compadeçam com a aplicação das regras da experiência comum. Diferentemente se passam as coisas relativamente às questões que não exijam aqueles conhecimentos especiais: nesta parte já a regra da livre apreciação domina.

 Para além disso, as conclusões do perito têm que ser afirmações e afirmações sustentadas, isto é, enquadradas e explicadas. Se ele, ao invés, se limitar a avançar hipóteses, a fazer sugestões, a indicar probabilidades, então embora formalmente se trate de uma perícia os resultados que apresentar já não estão abrangidos pelo especial valor desta prova. Se o resultado da perícia redundar em meras sugestões ou hipóteses, também neste caso ela ficará sujeita ao princípio da livre apreciação, do art. 127º do C.P.P.

Há, ainda, uma outra observação a fazer a propósito da prova pericial, para que se perceba bem do que falamos quando falamos de perícias.

O que vincula o julgador são as conclusões, repetimos, que exijam especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

A base factual de que parte o perito para formular os seus juízos, essa não é do domínio do perito, é sim do domínio do juiz.

A investigação da causa, o apuramento dos factos, pertence ao juiz. O perito emite sobre os factos os juízos que, repete-se, exijam especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. Ora, quando se vem a revelar que os factos de que o perito partiu para realizar a sua perícia não coincidem com aquilo que realmente aconteceu, é óbvio que o valor desta perícia desaparece, pois que se vem a revelar ser ela, afinal, uma ficção [4]. Numa tal situação a prova pericial nada vale, como se percebe.

E aqui chegados bem se vê que nem as declarações prestadas por K..., na sessão do julgamento que teve lugar em 21-2-2001, nem o documento de fls. 508 a 516 constituem prova pericial.

Em ambos os casos estamos perante prova testemunhal, feita por forma directa, no primeiro caso, e indirecta, no segundo.

No primeiro caso, é certo que a testemunha K...foi ouvido na qualidade de “perito” (fls. 503).

Só que esta designação não corresponde à verdade. Tal como se constata da leitura do processo aquela designação deveu-se a um erro, pois que perito é, apenas, o indivíduo como tal escolhido ao abrigo dos art. 153º e segs. do C.P.P.

E este erro em que se incorreu, desde logo de se permitir a identificação da testemunha como perito no rol de testemunhas e, depois, de a ouvir nessa qualidade em audiência, não tem a virtualidade de tornar uma testemunha em perito, ou seja, não transmuda a prova testemunhal em prova pericial [5].

Agora, e quanto ao documento de fls. 508 a 516 entendemos que se trata de um depoimento escrito. Não sendo prova pericial – e é líquido que o não é -, só pode ser, por exclusão de partes, prova testemunhal. E sendo prova testemunhal, não podia ela ser produzida desta forma indirecta, subtraída ao contraditório de todos os demais intervenientes.

Mas imaginando, por mera hipótese, que este documento de fls. 508 e segs. respeitava a uma perícia, a verdade é que nem por isso o resultado seria diferente, isto é, nem por isso as suas conclusões relevariam, fazendo inverter a decisão neste particular.

Primeiro o documento contém afirmações próprias de prova testemunhal e não de prova pericial.

Por exemplo, veja-se o que se diz sobre as fraturas dos membros inferiores, típicas, ao que se diz, dos atropelamentos.

Diz o documento que ressalta da avaliação feita à vítima a ausência de fraturas nos membros inferiores, as chamadas “bumper fractures”, tão características dos atropelamentos. Continua dizendo que estas fraturas podem ocasionalmente não se verificar, mas «o mais comum é a sua existência em percentagens variáveis, dos 53% aos 76% …».

Se a verificação destas fraturas acontece entre os 53% e os 76% dos casos de atropelamentos, restam entre 47% e 24% de atropelamentos que não provocam as “bumper fractures”.

No entanto, e sem atender a este intervalo, o documento desenvolve uma tese que parte da certeza de a vítima ter sido colhida no ar, ou seja, de que não ia a andar quando foi colhida pelo veículo do arguido por não apresentar as tais fraturas.

Para além disso a realidade apurada em julgamento foi diferente daquela de que partiu o subscritor do documento. E tanto bastaria para o tornar desprovido de qualquer valor probatório.

Assim, toda a argumentação desenvolvida a partir daquilo que o arguido chama, por lapso, de prova pericial para fundamentar a alteração dos pontos 7, 8 e 9 dos factos provados soçobra, por inteiro.

E o mesmo se diga, adiantando razões, sobre o mais alegado nesta base.


*

O arguido pretende, ainda, a alteração do ponto 8, donde consta que «estava a atravessar a pé o dito trajecto quando foi surpreendido pela aproximação repentina do veículo conduzido pelo arguido que, sem afrouxar nem parar junto à cabine nº106, veio a embater violentamente com a respectiva parte da frente em F..., projectando-o a uma distância de 48,75m, local onde acabou imobilizado no solo, junto ao separador central».

Quer o arguido que fique a constar que «em circunstâncias não concretamente apuradas ocorreu de imediato, nessa via de trânsito, uma colisão entre o veículo conduzido pelo arguido e F..., tendo este, em consequência do embate, vindo a imobilizar-se no solo, em decúbito dorsal, junto ao separador central, a cerca de 50 metros de distância das referidas cabines de portagem».

Os documentos que concorrem para a demonstração da adequação deste facto à realidade são o croqui de fls. 6 e 30 e o relatório da GNR sobre o acidente, de fls. 126 a 133, quanto à distância, sendo este último apontado também para por em causa a surpresa atribuída à vítima.

Do croqui de fls. 6 lê-se que a distância entre o local «onde terá ocorrido o ponto de conflito», ou seja, o embate, e o local onde a vítima ficou caída foi de 48,75m.

Este relatório contém factos e opiniões e quando se diz que o condutor não terá visto o peão trata-se de uma opinião.

Não sendo factos são, claro, insuscetíveis de contrariar a matéria dada como provada.

O arguido quer, ainda, a alteração do facto do ponto 10, cuja redação é a que se segue: «Como consequência desse embate, projecção e queda, F... sofreu as lesões descritas no relatório da autópsia, designadamente lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, que lhe causaram directa e necessariamente a morte».

            O que o arguido pretende é que se retire a referência à projeção e queda, na sequência do que foi dito sobre o facto do ponto 8. Como já vimos, a pretensão relativa ao ponto 8 não mereceu acolhimento.

            Finalmente temos o ponto 11. Diz-se neste que «a via no local onde ocorreu o embate/acidente e nas centenas de metros que o precedem era (e é) de traçado recto com alargamento à medida que a portagem se aproxima e tinha assinalado no pavimento, na via de portagem pretendida seguir pelo arguido, o símbolo/distintivo via verde a uma distância de cerca de 200 m».

            Ao invés, pretende o arguido que conste que «nos trezentos metros que antecedem o local do acidente, a faixa de rodagem é precedida de uma curva para a direita à qual se segue uma recta, que por sua vez alarga à medida que a portagem se aproxima, e tinha assinalada no pavimento, na via de portagem situada na estrema esquerda, contígua à utilizada pelo arguido, o símbolo/distintivo via verde».

            O arguido argumenta que a estrada, no local, sofreu alterações entre a data do acidente e a do julgamento. No entanto é o próprio a dizer que nos trezentos metros que antecedem o acidente existe uma curva seguida de uma recta (que se prolonga até às portagens) que alarga à medida que a portagem se aproxima.

            Até aqui não existe diferença entre o que consta e o que o arguido defende: se a curva é a trezentos metros, se depois surge uma reta que se prolonga até às portagens, então esta reta tem centenas de metros.

            Quanto ao mais, o arguido afirma repetidamente ao longo do recurso que pretendia sair pela via destinada aos utilizadores da “via verde”. Como já vimos, estas vias estavam claramente identificadas – vide mais uma vez, as fotografias 2 de fls. 14, 3 de fls. 15, 6 de fls. 16, 268, 269, 270 e 271. Estando o condutor determinado a sair pela via de saída da “via verde”, lá estavam essas saídas devidamente sinalizadas com as placas contendo o “v” imediatamente identificador da “via verde”.

 


*

            Ainda em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto o arguido pretende que aos factos provados sejam acrescentados vários outros, mais concretamente vinte, que são os seguintes:

1 - «a A Praça de Portagem era composta por sete vias de portagem em patamar, sendo a primeira, da direita para a esquerda, a nº 101 e a última a nº 107, das quais apenas duas eram reservadas a utentes Via Verde, uma delas situada no extremo esquerdo da faixa de rodagem correspondente à via de portagem nº 107, atento o sentido de marcha do veiculo conduzido pelo arguido, e a outra a meio, correspondente à via de portagem nº 104 - auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7, fotografias de fls. 14 a 25»;

2 - «Antes do garrafão a faixa de rodagem é composta por três vias de trânsito, no mesmo sentido - auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7, fotografias de fls. 14 a 25»;

3 - «Imediatamente antes das cabines de portagem existiam no local, colocados apenas no extremo direito da faixa de rodagem, os sinais C13 (proibição de circular com velocidade superior a 60 km/h) e C19 (outras paragens obrigatórias), apesar de existir nos 300 metros antecedentes, dois painéis com sinais de afectação de vias onde os mesmos constavam, que não têm correspondência com o número de vias de portagem existentes no local - auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7, fotografias de fls. 14 a 25»;

4 - «Por cima das vias de portagem nº 107, 106 e 104 existiam três painéis, todos de fundo branco, sendo que o painel existente sobre a via de portagem nº 106, onde o arguido passou, era da mesma dimensão e formato daqueles mas não tinha nada inscrito, ao contrário dos outros dois onde constava o sinal (H 33) indicador de via verde, bem como os dizeres "Reservado a Utentes", não tendo qualquer funcionalidade à data - auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7, fotografias de fls. 14 a 25»;

5 - «À data e hora do acidente, o sol estava forte, incidia no sentido Figueira da Foz/Coimbra e reflectia sobre os referidos painéis tornando-os brilhantes - depoimento da testemunha E... e declarações do arguido, supra melhor descritas»;

6 - «Por esse motivo, para quem circulava nessa praça de portagem, os painéis apresentavam-se com sendo todos iguais, já que à distância apenas era visível o fundo branco dos mesmos - depoimento da testemunha E... e declarações de arguido, supra melhor descritos»;

7 - «A via de portagem nº 106 por onde o arguido conduziu o seu veículo, estava totalmente livre, desimpedida e aberta à circulação do trânsito, estando a baia (cancela em espinha vermelha e branca) colocada na vertical e o sinal luminoso existente imediatamente a referido painel apresentava a luz verde - conforme depoimento das testemunhas B... e C..., supra melhor descritos»;

8 - «Não existe em nenhuma das vias de portagem qualquer local devidamente assinalado para o atravessamento de peões e diariamente passam nas vias de portagem manual da praça de portagem em referência vários condutores sem parar para proceder ao pagamento, sendo que muitos o fazem inclusive a velocidade excessiva - depoimento das testemunhas B... e C..., supra melhor descritos»;

9 - «A via de portagem nº 105 tem uma largura de 3,10m, o veículo por si conduzido, de marca Renault modelo Mégane e cor preta, possui uma largura de 1,777m e as cabines de portagem situam-se em cima de uma plataforma que fica num piano superior em relação à via de trânsito, de cerca de 30 a 35 cm de altura - auto de exame directo ao local de fls. 4 a 7, croquis de fls. 6 e 30, auto de exame directo a veiculo de fls. 8 a 12, parecer médico-legal do dr. G...»;

10 - «O veículo conduzido pelo arguido era visível para F... a uma distância superior a 50m - relatório final de fls 126 a 133»;

11 - «o arguido só se apercebeu da presença de F... na via no preciso instante do embate, não tendo por isso previamente travado ou afrouxado - relatório final de fls 126 a 133 e parecer médico-legal do Dr. G...»;

12 - «O procedimento de troca de moedas da concessionária para a qual este trabalhava determinava que quando os portageiros precisassem de moedas para efectuar os trocos, o solicitassem via telefónica ao portageiro principal que exercia funções nas instalações dos escritórios, situados na extremidade da praça de portagem, sendo este o responsável por lhas fazer chegar à cabine de portagem onde exerciam funções - depoimento das testemunhas B... e C... ., supra melhor descritos»;

13 - «O embate deveu-se ao facto de o arguido não ter imobilizado o veículo por si conduzido e ao facto de F... ter atravessado a via de portagem a pé sem previamente se certificar que o podia efectuar em segurança - relatório final de fls. 126 a 133»;

14 - «Após o embate o arguido imobilizou o veículo por si conduzido a cerca de 47 metros das cabines de portagem croqui de fls. 6 e 30»;

15 - «Em consequência do acidente a viatura apresentava danos apenas na parte da frente do lado esquerdo, situando-se as maiores deformações ao nível do capot, do pára-brisas e tejadilho - auto de exame directo a veículo de fls. 8 a 12 e fotografias de fls. 14 a 25»;

16 - «Não existem no local do acidente marcas de travagem - croquis de fls. 6 e 30»;

17 - «O arguido é tido por pessoa cumpridora, respeitadora, condutor prudente, bom amigo e bom trabalhador - conforme depoimento das testemunhas H... ………, supra melhor descritos»:

18 - «O arguido sofre por causa do acidente, revivendo diariamente o sucedido, tendo-se tornando uma pessoa muito introspectiva que sofre em silêncio - vide depoimento das testemunhas …., supra melhor descritos»;

19 - «Confessou parcialmente os factos»;

20 - «É tido, por pessoas das suas relações, como condutor responsável e habitualmente prudente - vide depoimento das H... …., supra melhor descritos».

            Diz a lei, no art. 283º, nº 3, al. b), do C.P.P. que a acusação deve conter, «ainda que de forma sintética», os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, norma aplicável ao despacho de pronúncia, tal como determina o nº 2 do art. 308º.

            Esta regra de parcimónia aplica-se também à sentença. É ilegal a prática de a sentença, em vez de se cingir à enunciação dos factos relevantes à decisão, adotar um estilo jornalístico, cheia de elementos inúteis [6]: só aqueles factos devem constar dela.

            Isto veio a propósito da pretensão do arguido.

O arguido pretende que os factos acima enumerados sejam aditados à matéria assente mas não fundamentou a pretensão, isto é, não disse qual o motivo pelo qual devem ser aditados e cabia-lhe fazê-lo porque cabe ao recorrente fundamentar devidamente o seu recurso.

Os factos que devem integrar a matéria provada têm, naturalmente, que estar provados, mas isso não basta. Para além disso têm, ainda, que ser relevantes para a decisão.

É certo que o arguido diz que os referidos factos são de «extrema importância» mas, repetimos, não diz porquê, não fundamenta.

Relendo o rol dos factos que pretende sejam aditados e tendo em conta os contornos do caso não podemos concordar que estes factos devam ser acrescentados à matéria provada.

Desde logo é manifesta a irrelevância de muitos deles, por exemplo os nº 1º, 2º e 3º. Sendo irrelevantes não têm que figurar porque, como se viu, só os factos relevantes merecem uma tal consideração.

Para além disso muitos outros factos estão em oposição com a matéria provada já sindicada acima, por exemplo os 5º e 6º.

Finalmente, a consideração de muitos outros destes factos dependeria da análise da prova oral produzida, que não se conheceu pelos motivos apontados.


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II – Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

            De seguida o arguido reclama a ocorrência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, do art. 410º, nº 2, al. a), do C.P.P. que, tal como diz, tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

            Isto significa isto mesmo: que o vício tem que se resultar da mera leitura, sem recurso a outros elementos estranhos ao texto, mesmo se constantes do processo.

            Por outro lado esta insuficiência reporta-se ao objecto do processo e traduz-se numa impossibilidade de decidir: «a insuficiência para a decisão da matéria de facto como vício, com as consequências que determina – reenvio para novo julgamento –, não pode ser assimilada à não suficiência dos factos provados para a decisão que esteja em causa, mas, diversamente, à impossibilidade de permitir uma qualquer decisão segundo as várias soluções plausíveis para a questão. Se os factos provados permitem uma decisão, embora diversa da que foi tomada, não existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada mas, eventualmente, se for o caso, erro de julgamento e de integração dos factos provados» [7].

            Ora, os factos assentes permitem, plenamente, a tomada de decisão.

E sendo a decisão possível, sendo os factos provados suficientes à sua prolação, tanto basta para demonstrar a inexistência de um tal vício.


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III – Erro notório na apreciação da prova

            O erro notório na apreciação da prova - outro dos vícios elencados no nº 2 do art. 410º do C.P.P. -, tem, também, que resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo se constantes do processo.

            É, tal como o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, um erro da sentença e não um erro de julgamento.

            O erro notório na apreciação da prova ocorre «quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação do homem médio» [8].

            Como primeira razão para a ocorrência de um tal vício alega o arguido que o facto de ter dito que na altura do acidente as placas que estavam por cima das portagens estavam brilhantes, o não permitia ler as suas indicações, corresponde ao que sucedeu. Não foi invenção posterior, pois já o militar da GNR que tomou conta da ocorrência referiu que o arguido lhe disse isso mesma na altura.

            Diz também, para além disso, e citamos, que «as regras da experiência comum demonstram … que os dias não são todos iguais, pois o sol não nasce nem se põe à mesma hora, logo não tem a mesma inclinação, para além de que se desconhece se o céu estava igualmente limpo, etc. Pelo que o raciocínio lógico efectuado pelo tribunal a quo está em manifesta contradição com as regras da experiência comum».

            Não percebemos o que pretende o arguido com esta argumentação.

            Mas o que se percebe claramente é que mais uma vez ele socorre-se da prova alegadamente produzida em julgamento para demonstrar a verificação deste “vício”, que chama de contradição com as regras da experiência.

            Indo à sentença, ao excerto da fundamentação relativo a este ponto, lê-se que «D..., agente da GNR instrutor do inquérito … precisou ter chegado ao local no fim da tarde, pelas 19:40 horas, e desmontou a desculpa do arguido, ao afirmar que teve o cuidado de, no dia seguinte, fazer o mesmo percurso do arguido, à hora do acidente, com dia igualmente de sol, e não ter vislumbrado qualquer brilho nos painéis superiores que dificultasse a visibilidade do respectivo teor».

            Se é certo que os dias não são todos iguais, que o sol não se levanta e põe à mesma hora, também é verdade que estas diferenças, de um dia para o dia imediatamente a seguir (e desde que não seja dia de mudança da hora, como não foi), são imperceptíveis. Para além disso, segundo diz a decisão, a testemunha fez igual percurso ao do arguido no dia seguinte, que também foi soalheiro.

            A situação não tem, portanto, nada a ver com o invocado erro notório na apreciação da prova.

            Ainda neste particular cabe fazer uma referência ao facto de a sentença recorrida ter “colocado” a testemunha E... dentro do veículo conduzido pelo arguido.

            É certo que, tanto quanto resulta, esta testemunha seguiria em veículo diferente, o que significa que quando na sentença recorrida se diz que ela seguia ao lado do arguido tal não corresponde à verdade.

Mas aqui estamos com o o sr. P.G.A.: no máximo esta desconformidade consubstanciaria um erro material, irrelevante na economia da decisão, já que o que ali se diz que esta testemunha declarou coincide com a tese defendida pelo arguido.

            Sobre a alegada “prova pericial” produzida, já nos pronunciamos sobre esta questão e dispensamo-nos de o repetir.


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IV – Violação do art. 127º do C.P.P.

            Ainda visando a decisão sobre a matéria de facto invoca o arguido, de seguida, a violação do princípio da livre apreciação da prova, querendo com a alegação por em causa a decisão do tribunal de dar como provado que o arguido circulava a velocidade superior a 80 km/h, desconsiderando o que disse a testemunha K...sobre o assunto.

            Se, como diz o arguido, as declarações tivessem sido proferidas no âmbito de prova pericial, poderíamos estar, de facto, perante um vício decorrente de indevida valoração da prova.

            Só que não é disso que se trata. Estamos, mais uma vez, perante prova testemunhal, livremente apreciável.

            E quanto às alegadas declarações prestadas por I..., perita médica que realizou a autópsia da vítima?

            Refere o arguido que a senhora perita terá admitido, quando foi ouvida, «que a vítima foi muito provavelmente colhida no ar e não enquanto caminhasse ou mesmo corresse na via …».

            Quid iuris?

Sem por em causa a veracidade destas palavras, neste caso a senhora perita avançou com uma possibilidade, uma hipótese, o que não é suficiente para a vinculação derivada da prova pericial. Como acima se disse, só as conclusões firmes do perito, os seus juízos seguros, vinculam o julgador.

Para além disso tratou-se de um juízo sobre os factos a apurar em julgamento. Ora, este juízo sobre a causa do acidente não se inclui na perícia que a senhora perita foi incumbida de realizar e por isso não está abrangido, portanto, pela sua especial força probatória. Aqui a senhora perita deu uma opinião e como opinião foi considerada.


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V – Nulidade da sentença

            Vem, agora, o arguido atacar a decisão sobre a matéria de facto invocando a nulidade da sentença por falta de exame crítico de todas as provas disponíveis.

            E esta falta radica na omissão da referência às imagens cedidas pela Brisa sobre a passagem do veículo do arguido pela portagem, aquando do acidente, a omissão quanto à apelidada “prova pericial” e, ainda, na consideração de determinados dados sem indicar a origem.

            Nos termos do nº 2 do art. 374º do C.P.P. a sentença contém a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

            Avançando o nosso juízo sobre o caso, desde já diremos que a sentença não padece de nulidade por falta de exame crítico das provas produzidas.

            Quanto às referidas imagens cedidas pela Brisa e visualizadas na audiência dos termos do recurso resulta a sua irrelevância quanto ao momento em que a vítima era visível para o arguido.

            Em relação ao depoimento de K...e ao documento de fls. 508 e segs. nada temos a acrescentar.

            Finalmente, quanto à consideração, por parte do tribunal recorrido, de determinados dados sem indicar a origem, o que está em causa neste segmento do recurso é o facto de a sentença ter recolhido dados sobre o ABS do veículo conduzido pelo arguido sem indicar a fonte.

            Recordando, diz a sentença recorrida, na fundamentação do ponto 9 da matéria assente:

«… por um lado, é o próprio arguido que afirma ir com o pé levantado e não se lembrar se travou, sendo que o facto de no local não existirem marcas de travagem (auto de exame directo de fls. 4 e 5, já referenciado) nada indicia, considerando que o veículo dispunha de travões de disco de sistema hidráulico (auto de exame directo do veículo de fls. 8 e 9, também supra referenciado) e ABS (matéria por nós pesquisada) …».

            A questão reside, portanto, não no facto de se dizer que o veículo do arguido dispunha de ABS mas no facto de não se dizer onde é que esta informação foi recolhida.

            É certo que o juiz deveria ter indicado a sua fonte.

Mas o que verdadeiramente releva é o facto de a referência feita ser verdadeira, pois que se o não fosse certamente o arguido o teria referido.

           


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VI – Impugnação do enquadramento legal dos factos provados

            O arguido impugna, também, o enquadramento jurídico feito aos factos.

            E começa por atacar a decisão de dar como provada a contra-ordenação decorrente da circulação a velocidade superior à permitida invocando, de novo, a desconformidade com a prova produzida.

            Dado que a matéria de facto relativa a esta questão está fixada, improcede a argumentação expendida a propósito deste tema.

            E o mesmo sucede relativamente à discussão que propõe em torno da conduta da vítima.

            E aqui se poderia ter sentido discutir a contribuição dada pela vítima para a ocorrência do acidente – não estivesse esta matéria já definitivamente assente -, já é completamente destituído de interesse tudo quanto de diz sobre as muitas violações das obrigações laborais, em que terá incorrido por ter atravessado aquela concreta via, durante o horário de trabalho, com desrespeito dos regulamentos, perturbando o trânsito, agravando os riscos profissionais.

           

O arguido termina este segmento do recurso dizendo que a culpa na verificação do acidente não pode ser imputada apenas a si, isto «… apesar da prática da contra-ordenação por violação da paragem obrigatória na portagem …».

            O acidente que vitimou F… foi uma infeliz e anómala ocorrência.

            Não era facilmente conjecturável, para ninguém, a verificação de um atropelamento em tais circunstâncias.

Mas isto não significa, concordamos com a primeira instância, que a censura deva incidir, também, sobre a vítima.

            Seguramente que todos os dias passarão muitos condutores pelas saídas de pagamento manual das auto-estradas sem pagar e, portanto, também sem parar.

            No entanto, a eventual repetição destes comportamentos não os torna normais, no sentido de previsíveis e no sentido de imporem aos demais especiais cautelas resultantes dessa possibilidade.

            Na condução, tal como na condução da vida, devemos agir com cautela, cuidado e respeito por todos, de forma a evitar acidentes.

Isto não significa, no entanto, que tenhamos que pautar a nossa actuação de acordo com a suspeita permanente, crónica, quase “paranóica”, que todos os demais concidadãos vão transgredir e violar uma qualquer lei a qualquer momento, relativamente à qual nos temos que precaver.

É verdade que a vítima estava a atravessar uma via de trânsito e tinha, como em todas as demais situações de atravessamento de vias, que agir de forma a fazê-lo em segurança.

Mas não estava, obviamente, a atravessar uma auto-estrada. Tal como a sentença recorrida refere, o local de portagem não pode ser considerado auto-estrada: «a portagem é um local onde se encontram variadíssimas pessoas a trabalhar, em toda a extensão da via, com apenas um túnel, que dá acesso da cabine nº 106 aos escritórios do complexo aí existente, sendo ostensivo que todos os dias e várias vezes ao dia o percurso dos demais portageiros, que não o da cabine nº 106 (que, por mero acaso, ou talvez não, por ser a mais longínqua, é a menos usada, o que também foi confirmado pelo responsável de serviço) tem, forçosamente, que ser efectuado nos mesmos termos em que o fez F... quando foi colhido pelo veículo conduzido pelo arguido, sendo que, naquelas circunstâncias, se os demais portageiros não forem buscar as moedas aos escritórios, terá de ser algum outro funcionário a trazê-las, pela mesma via observada pela vítima …» [9].

Isto é absolutamente verdade. Repare-se o que diz o ponto 6 dos factos provados: «das várias cabines existentes na portagem só a nº 106 tinha acesso aos escritórios por túnel».

Tendo em conta o conceito legal de auto-estrada [10] é evidente que aqueles locais já não integram ou ainda não integram a auto-estrada.

Mas nem sequer se pode defender que integram uma via de trânsito normal, pois que se assim fosse todas as cabines tinham que ter acesso subterrâneo ou, não o tendo, o acesso em segurança dos portageiros teria que estar garantido por uma qualquer outra forma.

A acrescer a todas estas considerações não podemos esquecer, ainda, que naqueles locais de portagens para além da proibição de circular a mais de 60 km/h existem sinais de paragem obrigatória.

            Relativamente aos cuidados no atravessamento por parte da vítima, há um dado decisivo que levou à desconsideração do seu comportamento como concorrente para a verificação do acidente. Foi o facto de ter ele atravessado num local de paragem obrigatória para o condutor que optasse por essa saída.

            Tal como se provou «nas portagens onde se processavam pagamentos existia sinalização, antes das cabines de pagamento, que impunha a paragem obrigatória». Ora a vítima atravessou num desses locais de paragem obrigatória [11].

            Só que não obstante a obrigatoriedade de parar, o arguido não obedeceu à sinalização existente no local e passou pela via no momento em que F... estava a atravessar e fê-lo sem parar nem afrouxar [12].

            Então, qual foi o acto que deu causa ao acidente?

            Parece-nos claro que foi o comportamento do arguido que deu causa ao acidente. Claro que se a vítima não estivesse no local naquele momento nada teria acontecido, mas isso é sempre assim: num atropelamento, num qualquer acidente, se não houver uma concorrência de factos o acidente nunca se dá: se o sinistrado não estiver no local não é atropelado, claro.

            E não se diga que o facto de o arguido ter passado por aquela concreta passagem por erro, já que queria passar pela outra imediatamente à esquerda, o exime de responsabilidade.

            O erro em que incorreu quanto ao local de passagem – ter saído num local de pagamento manual e não, como pretendia, numa passagem destinada aos utentes da via-verde -, deveu-se, entendemos nós, à circunstância de não ter atentado devidamente na sinalização existente no local que, a ser vista com a diligência normal, exigível, sempre obstaria ao equívoco em que o arguido incorreu.

            E não estamos a falar em nenhum especial cuidado na leitura da sinalização, mas apenas nos cuidados normais que um qualquer condutor deve ter no exercício da condução.

            Nunca o relevo reclamado pelo arguido quanto ao erro verificado poderia acontecer. Repare-se que não estamos a falar num condutor não habituado a transitar em auto-estradas e para quem a sinalética específica, nomeadamente a dirigida aos utentes da via verde, fosse desconhecida: o veículo conduzido pelo arguido era portador do dispositivo de via-verde e o arguido – refere-o a sentença -, tinha por hábito transitar na auto estrada.

            Ou seja, estamos a falar num utente habitual das auto-estradas, portanto habituado à sua sinalização.

           

Quando, no caso, se imputa ao arguido o crime em causa o juízo não radica, evidentemente, na consideração de que ele devia e podia prever que, naquele momento, um peão estava a atravessar.

O que resulta é que ele violou um dever, como os demais neste domínio, dirigido à segurança do tráfego.

Por isso o que quer que venha a acontecer de concreto será imputável àquela violação caso esteja no âmbito de proteção da norma, sem que com isso se pretenda atribuir ao agente a previsão daquele concreto resultado.

É que se assim fosse então estaríamos perante um comportamento doloso, e não negligente como sucedeu no caso.

E a este propósito cabe dizer, concordamos com o arguido, que existe contradição entre os pontos 4, por um lado, e 15 e 16, por outro, da matéria assente.

Enquanto que no ponto 4 se diz que «ao chegar ao local onde se situavam as portagens, o arguido pretendendo embora passar na portagem reservada aos utentes da Via Verde que se situava na sua extrema esquerda, seguiu na direcção da portagem de saída nº 106, contínua àquela, convicto de que seguia na Via Verde», nos pontos 15 e 16 consta que «o arguido agiu livre e conscientemente», 15, e «sabia que tal conduta lhe era proibida por lei», 16.

Ou seja, afirma-se a negligência, por um lado, e o dolo, por outro.

O arguido foi acusado pela prática do crime de homicídio por negligência porque, e citamos, «o arguido ao agir como o descrito bem sabia que um condutor médio e prudente não conduziria, à aproximação da saída da auto-estrada, do modo como o fez, impondo-se-lhe regras de cuidado que era capaz de cumprir e não quis acatar, designadamente imprimir menor movimento à viatura e parar antes da cabine da portagem onde seguia, regras estradais de cuidado que se lhe impunham, era capaz de cumprir e não o fez, sabendo que tal lhe estava vedado por lei».

Este factos da negligência não constam nem da matéria assente nem dos factos não provados.

Então, e como disse o sr. P.G.A., pode entender-se que ocorre o vício do nº 2 do art. 374º do C.P.P. já que o tribunal, contrariamente ao devido, não se pronunciou expressamente sobre todos os factos alegados na acusação, no sentido de os julgar provados ou não provados.

Só que a circunstância de terem sido dados como provados factos integradores do dolo reverte a situação para o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, da al. b) do nº 2 do art. 410º do C.P.P.

Na realidade, o que acontece é que para além de constarem da matéria assente factos que se contradizem entre si, os factos constantes dos pontos 15 e 16 da matéria assente estão, também, em contradição com a fundamentação e com a decisão.

E da economia da decisão resulta, inequivocamente, que o crime em causa foi cometido pelo arguido a título de negligência. Repare-se que, face ao que se diz aquando da fundamentação dos factos provados 1 a 8 e 10 a 14, a prova da sua ocorrência resultou, nomeadamente, das declarações do arguido, que estava convicto de que o local por onde passou se destinava aos portadores da via verde, corroboradas pelo depoimento da testemunha E..., que confirmou a convicção do arguido de que seguia na via verde.

   Assim sendo, altera-se o conteúdo dos pontos 15 e 16, que passam a ter a seguinte redação:

15 - «ao agir do modo descrito o arguido sabia que na aproximação à saída da auto-estrada devia imprimir menor movimento ao veículo do que aquele em que este circulava e que devia parar antes da cabine de auto-estrada correspondente à saída que utilizou»;

16 - «o arguido era capaz de cumprir estas regras e não o fez, sabendo que o devia fazer».


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VII – Impugnação da pena aplicada

            Chegamos, finalmente, à última questão suscitada pelo arguido, qual seja a relativa à pena concreta aplicada que, diz ele, deve ser substituída por pena de multa, mais adequada ao caso, já que o acidente se deveu a negligência inconsciente, ou, no mínimo, a aplicar-se pena de prisão deve esta ser substituída pela pena de suspensão da pena.

           

            Nos termos do nº 1 do art. 137º do Código Penal o crime cometido pelo arguido é punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

            Para estes casos, de aplicação alternativa de pena detentiva e não detentiva, impõe a lei, no art. 70º do Código Penal, que o tribunal dê preferência à pena não detentiva sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição: «se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

A tendência a que desde há muito se vinha assistindo e que a lei veio expressamente acolher é a de a pena de prisão dever ser uma reação residual: «…as sanções privativas da liberdade constituem a ultima ratio da política criminal, dando assim cumprimento aos princípios político-criminais da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade …» [13]. Daí que sempre que a pena não privativa da liberdade realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, deve ela ser a escolhida como resposta do direito penal ao ilícito cometido.

            O segmento da sentença recorrida dedicado à escolha e determinação da pena é o seguinte:

«As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa.”

Tal entendimento tem consagração legal, também, no art. 71º do Cód. Penal. O seu nº 1 estipula que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

O seu nº 2 determina que “o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”, fazendo uma especificação não taxativa.

Importa, assim, considerar o elevado grau de ilicitude dos factos e a elevada gravidade das suas consequências – a morte é sempre o limite em termos de gravidade de violação dos bens jurídicos pessoais;

O grau de violação dos deveres impostos ao arguido é elevado, considerando as características do local – com marcações estradais bem assinaladas, com boa visibilidade (em pleno dia de sol) –, e a exclusividade da responsabilidade na verificação do evento;

A intensidade da negligência é reduzida, por se tratar de negligência inconsciente;

Os motivos que determinaram os factos fundam-se em razões de imprevidência, distracção e facilitismo;

As condições pessoais e a situação económica são medianas, face à sua idade, situação vivencial e profissional, rendimentos e despesas respectivos;

O desconhecimento de antecedentes criminais e contra-ordenacionais é valorado como atenuante, por indiciar percurso de vida conforme o direito e ser considerado primário;

Finalmente, a necessidade de prevenção geral é elevadíssima, atento o elevado (desconcertante) número de crimes do tipo a nível local e nacional, sendo a sinistralidade estradal a única “virtude” que nos coloca à cabeça dos países europeus.

Por tudo o exposto, julga-se concretamente adequada a pena de 13 meses de prisão, substituídos por prestação de trabalho a favor da comunidade – considerando a necessidade de pôr cobro à autêntica “guerra civil” que se desenrola nas estradas nacionais, a idade do arguido, o seu passado criminal sem mácula (o que nos permite considerar tratar-se de um facto isolado numa vivência conforme o direito), a sua inserção social, familiar e profissional, e a sua dificuldade de autocrítica, afigura-se-nos aquela pena garantir a necessária protecção do bem jurídico lesado e uma mais fácil recondução do arguido aos sãos valores sociais dominantes, porquanto lhe permite, em liberdade, reflectir sobre a sua conduta censurável, interiorizar valores fundamentais, que suportem uma mudança de rumo, e demonstrá-la na prática, num esforço de trabalho que imponha práticas de previdência, diligência, exigência e rigor, se possível em instituição de reabilitação de traumatizados estradais, que lhe permita o contacto com vítimas de acidentes semelhantes, contribuindo assim para sentir a dimensão do mal praticado e uma mais efectiva necessidade de cautelas na prática de condução de veículos automóveis – que se fixa em 390 horas (art.º 58.º do Cód. Penal)».

Apesar de a sentença recorrida não ter avançado qualquer justificação para a escolha pela aplicação da pena de prisão, entendemos que foi a opção acertada.

O bem violado e as condições em que tal violação ocorreu impõem uma reação mais severa que a pena de multa. Bem sabemos todos a perigosidade que comporta a circulação rodoviária nas nossas estradas, perigosidade esta que não decorre apenas da circunstância de essa actividade ser em si mesma perigosa mas que resulta, também e sobretudo, do comportamento do típico condutor português. Daí que as necessidades de prevenção geral continuem a ser muito prementes quando falamos de criminalidade rodoviária.

            E a circunstância de estarmos perante um caso de negligência inconsciente não torna, ipso facto, o comportamento praticamente desculpável, pois que por vezes é mais grave não prever a possibilidade do resultado do que prevê-lo e não se conformar com a sua verificação.

Para além disso, o facto de haver casos em que acidentes ocorridos em situações semelhantes foram punidos com pena de multa sendo, aparentemente, um argumento em favor da escolha por pena não detentiva, só o é verdadeiramente quando se conclua que uma tal opção foi a escolha acertada, o que nem sempre acontece. Ou seja, o que está por demonstrar é que a opção por multa, em tais casos, tenha sido a opção certa.

Concordarmos, pois, com a escolha da pena de prisão e, também, com a sua duração.

Se é certo que o acidente é imputado a título de negligência, a verdade é que na sua origem estiveram dois comportamentos censuráveis do arguido:

- por um lado ele violou a obrigação de parar, que se lhe impunha no local por onde estava a passar (diz a sentença, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, que a portagem por onde o veículo conduzido pelo arguido passou «tinha o sinal vermelho junto à cabine e sinal de stop antes»);

- por outro lado circulava a mais de 60 km/h, que era a velocidade máxima permitida para passar pela via destinada aos utentes da via verde, por onde o arguido supunha que estava a passar.

Após a escolha da pena principal a aplicar ao caso – penas principais são as que constam das normas incriminadoras e podem ser aplicadas independentemente de quaisquer outras -, o tribunal recorrido substituiu a pena de 13 meses de prisão por 390 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, determinando que o mesmo fosse cumprido preferencialmente em instituição de reabilitação de traumatizados estradais.

Ao invés da aplicação da pena principal escolhida o tribunal aplicou uma pena de substituição.

Penas de substituição são as penas aplicadas na sentença condenatória em substituição da execução da pena principal concretamente determinada e que incluem, para além do mais, a suspensão da execução da pena, que o arguido reclama, e a prestação de trabalho a favor da comunidade, escolhida pelo tribunal recorrido.

            A previsão das penas de substituição nasceu com o movimento de luta contra a pena de prisão e o entendimento que as penas curtas de prisão eram não só inúteis como geradoras de danos mais graves do que aqueles que derivariam da impunidade do agente. Portugal foi mais à frente ao por em questão não somente a pena curta da prisão mas toda a pena de prisão aplicável à pequena e média criminalidade [14].

            Ao invés, quando as finalidades preventivas, de prevenção geral e especial, não se alcancem por esta via, então a opção do julgador deve recair sobre pena detentiva [15].  Mas se isto é assim em geral casos há em que a execução da pena curta de prisão se impõe.

            As penas de substituição em sentido próprio que a nossa lei consagra são as penas de suspensão de execução da prisão, de multa de substituição, de prestação de trabalho a favor da comunidade e de admoestação [16].

            Sobre a suspensão da execução da pena, dispõe o nº 1 do art. 50º do Código Penal que «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

A pena de suspensão da execução da pena de prisão está, como qualquer pena, vinculada à satisfação das finalidades das penas, estabelecidas no art. 40º do Código Penal, que são a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que a opção por esta concreta pena radica no juízo de prognose de a ameaça da pena ser suficiente.

O que subjaz à decisão de suspender a execução da pena de prisão é o juízo de prognose acerca do comportamento futuro do arguido: «na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao arguido (como lhe chama Jescheck …), ou seja, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que a esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa» [17].

Esta prognose assenta na personalidade do arguido, nas suas condições de vida, na conduta anterior e posterior ao crime, bem como nas circunstâncias deste, ou seja, «devem ser valoradas todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, atendendo somente às razões da prevenção especial …» [18]. Se esse juízo, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro, for favorável, se o tribunal concluir que o arguido não voltará a adoptar novas condutas desviantes, então terá que suspender a execução da pena.

O juízo de suspensão é um poder-dever, isto é, é um poder vinculado do julgador, que terá que a decretar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos. Desde que imposta ou aconselhada à luz de exigências de socialização a suspensão da execução da pena só não será de aplicar «se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias» [19].

Quanto à prestação de trabalho a favor da comunidade, dispõe o art. 58º do Código Penal:

nº 1 - «Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição»;

nº 2 - «A prestação de trabalho a favor da comunidade consiste na prestação de serviços gratuitos ao Estado, a outras pessoas colectivas de direito público ou a entidades privadas cujos fins o tribunal considere de interesse para a comunidade».

Resulta, assim, que a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade assume um altíssimo valor no quadro das penas de substituição, isto por, por um lado, «centrar o conteúdo punitivo na perda, para o condenado, de parte substancial do seu tempo livre, sem por isso o privar de liberdade e permitindo-lhe … a manutenção do contacto com o seu ambiente e a integração social; por outro lado … o conteúdo socialmente positivo que a esta pena (e só a ela) assiste, enquanto se traduz numa prestação activa (e … ao menos numa certa acepção, voluntária) a favor da comunidade» [20].

No caso entendemos que a execução da pena de prisão não se impõe, tal como, implicitamente, o entendeu o tribunal recorrido.

Cabe, então, aplicar uma pena de substituição. Mas que pena de substituição?

Na operação de determinação da medida da pena há, primeiro, que apurar as penas aplicáveis e respectivas medidas; depois de escolhida a pena a aplicar procede-se à sua quantificação; finalmente, e face à pena concreta, há que escolher, dentre as penas disponíveis, aquela que o arguido vai ter que cumprir.

Havendo, embora, jurisprudência que defende que a lei consagra uma ordem de apreciação das várias penas substitutivas da prisão, que o juiz deve percorrer aquando da escolha de uma pena de substituição, sendo que a aplicação da pena seguinte sem afastamento expresso da anterior determina a nulidade da sentença [21], entendemos, aderindo à tese defendida pela Relação de Guimarães no acórdão proferido em 4-1-2010, no processo 324/09.1GAVVD, que o dever de fundamentação se circunscreve ao ato decisório concreto, que o importante é saber as razões que levaram o tribunal a escolher aquela concreta pena de substituição, sendo certo que desta explicação se retiram os motivos do afastamento de todas as demais [22].

Ou seja, o importante é que da sentença resultem com clareza as razões que levaram o tribunal a aplicar aquela concreta pena.

Relativamente à pena de substituição a escolha do tribunal recorrido recaiu sobre a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade «… considerando a necessidade de pôr cobro à autêntica “guerra civil” que se desenrola nas estradas nacionais, a idade do arguido, o seu passado criminal sem mácula (o que nos permite considerar tratar-se de um facto isolado numa vivência conforme o direito), a sua inserção social, familiar e profissional, e a sua dificuldade de autocrítica», surgindo tal pena como a correta para «garantir a necessária protecção do bem jurídico lesado e uma mais fácil recondução do arguido aos sãos valores sociais dominantes, porquanto lhe permite, em liberdade, reflectir sobre a sua conduta censurável, interiorizar valores fundamentais, que suportem uma mudança de rumo …».

            Esta justificação, pensamos, poderia da mesma forma ser avançada para defender, por exemplo, a aplicação da pena de suspensão, pois que nela nada há que se tenha como especificamente dirigido à defesa da necessidade da pena de prestação de trabalho no caso dos autos.

            Já concretamente dirigidas à pena de prestação de trabalho diz a sentença recorrida que tal pena vai permitir ao arguido, em liberdade, refletir sobre a sua conduta, interiorizar valores e suportem uma mudança de rumo e «demonstrá-la na prática, num esforço de trabalho que imponha práticas de previdência, diligência, exigência e rigor, se possível em instituição de reabilitação de traumatizados estradais, que lhe permita o contacto com vítimas de acidentes semelhantes, contribuindo assim para sentir a dimensão do mal praticado e uma mais efectiva necessidade de cautelas na prática de condução de veículos automóveis».

            Sobre a indicação da entidade onde o trabalho deve ser prestado, diz o arguido que, para além da escolha não caber ao juiz, a escolha feita comporta uma segunda punição.

            Diz o nº 2 do art. 58º do Código Penal que a prestação de trabalho a favor da comunidade consiste na prestação de trabalho ao Estado, a outras pessoas coletivas de direito público ou a entidades privadas cujos fins o tribunal considere de interesse para a coletividade.

            Se da norma não resulta que cabe ao juiz a determinação da entidade concreta onde o trabalho vai ser prestado, isto é, onde a pena vai ser cumprida, também não resulta, seguramente, que o juiz o não possa fazer. E se se entender que o trabalho a prestar deve estar relacionado com o crime cometido, então a lógica impõe que seja o juiz quem deva fazer essa escolha. E bem sabemos que muitas vezes a escolha da entidade faz parte integrante da sanção, por ser essencial ao fim visado com aquela concreta pena.

           

            Face a todo o exposto entendemos que a pena escolhida não é desadequada ao caso. Quanto à indicação da entidade onde o trabalho deve ser, preferencialmente, prestado, entendemos que tal indicação, para além de não ser ilegal, é adequada às finalidades da punição.


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos decide-se:

1º - Alterar o conteúdo dos pontos 15 e 16, que passam a ter a seguinte redação:

15 - «ao agir do modo descrito o arguido sabia que na aproximação à saída da auto-estrada devia imprimir menor movimento ao veículo do que aquele em que este circulava e que devia parar antes da cabine de auto-estrada correspondente à saída que utilizou»;

16 - «o arguido era capaz de cumprir estas regras e não o fez, sabendo que o devia fazer».

2º - Em tudo o mais julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.

Fixa-se em cinco UC´s a taxa de justiça, a cargo do arguido.


Olga Maurício (Relatora)

Luís Teixeira


[1] Estamos, pois, em desacordo com o decidido pela Relação do Porto em 21-10-2009, no processo 1233/06.1TASTS, quando disse que se o recorrente juntar com a motivação do recurso, ou o fizer na motivação, as transcrições dos depoimentos que sustentam a impugnação da matéria de facto, não carece de fazer as especificações constantes da acta. Trata-se, em nosso entender, de especificações diferentes, com fins diferentes, e o cumprimento de uma não desonera o recorrente de cumprir também a outra.
[2] Acórdão da Relação de Évora de 12-3-2008, processo 2965/07.
[3] Acórdão do S.T.J. de 1-10-2008, processo 08P2035.
[4] Vide acórdão do S.T.J. de 1-10-2008, citado.
[5] Curiosamente, a figura do “perito”, do falso perito, sempre foi uma constante nos nossos tribunais.
[6] Acórdão do S.T.J. de 2-6-2005, processo 05P1441.
[7] Acórdão do S.T.J. de 27-5-2009, processo 58/07.1PRLSB.S1.
[8] Acórdão do S.T.J. de 6-10-2010, processo 936/08.JAPRT.
[9] Folhas 530 do processo.
[10] «“auto-estrada” – via pública destinada a trânsito rápido, com separação física de faixas de rodagem, sem cruzamentos de nível nem acesso a propriedades marginais, com acessos condicionados e sinalizada como tal» - art. 1º, al. a), do Código da Estrada.
[11] Pontos 3 e 7 da matéria provada.
[12] Ponto 8 dos factos provados.
[13] Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 2010-2011, pág. 8/9.
[14] Figueiredo Dias, Direito Penal Porguguês-As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág. 327/328.
[15] Em caso de penas alternativas «a escolha pela pena de prisão ou pela pena de multa é algo que não tem directamente a ver com o grau de culpa, mas com as finalidades da punição e estas são exclusivamente de prevenção geral e especial» - acórdão da Relação de Guimarães de 20-4-2009, processo 955/06.1GBGMR.G1.
[16] Figueiredo Dias, obra citada, pág. 335.
[17] Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal anotado, 1º vol., 3ª ed., pág.639.
[18] Autores e obra citada acima, pág. 639/640.
[19] Figueiredo Dias, obra citada, pág. 333.
[20] Figueiredo Dias, obra citada, pág. 573.
[21] Neste sentido vide o acórdão da Relação do Porto de 20-4-2009, processo 0817395.
[22] Diz aquele acórdão: «pretender que a sentença indique as razões porque não optou por cada uma das penas de substituição abstractamente admissíveis, quando já são conhecidas as razões de uma delas, seria, na prática, transformá-la num amontoado de frases feitas, que a tornariam de leitura difícil».