Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8565/18.4T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: SOCIEDADE POR QUOTAS
DESTITUIÇÃO DE UM GERENTE
DIREITO ESPECIAL À GERÊNCIA
DELIBERAÇÃO SOCIAL SOBRE A FORMA DE GERÊNCIA
Data do Acordão: 06/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 24º, 58º, 253º, 257º E 265º DO CÓD. DAS SOCIEDADES COMERCIAIS.
Sumário: I – Em princípio, a destituição de um gerente de uma sociedade por quotas é inteiramente livre, não carecendo sequer de fundamentação ou motivação.

II - O direito especial à gerência, tendo sempre de ser convencionado no contrato social, não é atribuível a todos os sócios sob pena de então não ser especial. Coisa diversa é a estipulação da inderrogabilidade da cláusula que atribua a gerência a todos os sócios salva a verificação de determinado condicionalismo.

III - Por si só, a cessão da quota de determinado sócio-gerente não implica a a transmissão da gerência que ao mesmo cabia.

IV - A caducidade prevista na 1ª parte do nº 1 do art.º 253º do CSC não se verifica quando a "falta definitiva" do gerente cuja intervenção é nominalmente exigida, apesar de decorrer da cessão da respectiva quota social, se encontra suprida pela previsão do contrato social de que todos os sócios são nomeados gerentes.

V - Necessita da maioria qualificada referida no nº 1 do art.º 265º do CSC a deliberação social que altera o disposto no pacto social quanto ao número de gerentes ou à forma de vinculação da sociedade.

Decisão Texto Integral:











Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Coimbra:

J... e R... intentaram no Juízo de Comércio de Coimbra, Comarca de Coimbra, uma acção sob a forma de processo comum contra F..., LDA, pedindo que se declare:

a) A nulidade das deliberações de destituição dos Autores e de alteração do pacto social tomadas na reunião da assembleia geral da Ré realizada em 18 de Outubro de 2018, por violação do disposto no art. 248.º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais, ex vi art. 56.º, n.º 1, al. d), do mesmo diploma, e por violação do pacto em conjugação com o art. 58.º, n.º 1, al. a) do mesmo CSC;

b) A nulidade da deliberação de alteração do pacto por violação do quórum deliberativo exigido pelo art. 265.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, ex vi art. 56.º, n.º 1, al d) do mesmo Código;

c) A anulação da deliberação de destituição dos Autores como gerentes da ré, atento o teor abusivo dos votos que a compõem, nos termos do art. 58.º, n.º 1, al. b);

d) Caso assim se não entenda, que esta deliberação seja declarada ineficaz face aos Autores, atenta a falta de consentimento dos mesmos na revogação do seu direito especial;

e) Subsidiariamente, que seja anulada a mesma deliberação atenta a violação da vantagem especial dos Autores à gerência.

Cumulativamente, pedem que sejam cancelados todos os registos realizados com base nas deliberações impugnadas.

 

Para tanto alegam que à data de 16 de Novembro de 2010 eram gerentes da ré, sendo sócios desta sociedade a sociedade P..., L.da, de que os autores são igualmente sócios, e J... e B... Foi então alterado o contrato de sociedade no sentido de a Ré se obrigar com a assinatura de dois gerentes, sendo obrigatória a assinatura de um dos Autores em representação da sócia P..., L.da e a assinatura de J... ou B..., que assumiram então também as funções de gerentes; posteriormente, por cessão da quota detida pela sócia P..., os Autores tornaram-se titulares de quotas no capital social da ré, sendo seus atuais sócios; no dia 4 de Outubro de 2018 os sócios e gerentes B... e J... redigiram uma convocatória para uma assembleia geral a ter lugar no dia 18 de Outubro de 2018, tendo por objecto a destituição dos Autores das funções de gerentes e a alteração da redacção dos artigos 3.º e 4.º do pacto social, assembleia essa que se realizou sem a presença dos autores e nas quais foram tomadas as deliberações constantes da ordem de trabalhos.

Alegam os Autores que estas deliberações são anuláveis, nos termos do art. 58.º, n.º 1, al. a), do Código das Sociedades Comerciais, porque a assembleia foi realizada sem que tenha sido respeitado o prazo de quinze dias previsto no art. 248.º, n.º 3, do referido diploma, e reproduzido nos estatutos da sociedade; que não foi respeitado o quórum deliberativo de 3/4 exigido pelo art. 265.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais para as deliberações de alteração do contrato, visto eles (Autores) serem detentores de 45% do capital social; que deliberação de destituição é abusiva, sendo assente em motivações pessoais dos sócios maioritários com o objectivo exclusivo de prejudicar os Autores em detrimento do interesse social; e que a dita deliberação viola o direito especial dos Autores a tomar parte na vinculação da sociedade, direito ou vantagem especial que adquiriram através da cessão da quota da sociedade P..., L.da, e que não pode ser suprimido sem o seu consentimento.

 

        Contestou a Ré F... excepcionando a preterição do litisconsórcio necessário passivo, porquanto, para a decisão poder produza o seu efeito útil normal, deveriam ter sido demandados, para além da sociedade, os sócios e gerentes J... e B..., que foram as pessoas que estiveram presentes na assembleia geral e votaram a deliberação; por impugnação invocou que o vício de que padecia a anterior convocatória foi sanado através da marcação de nova assembleia geral de ratificação das deliberações anteriores, efectuada a 5 de Dezembro de 2018 e com 15 dias de antecedência sobre a nova data; que a alteração do pacto social constitui mera decorrência da destituição da gerência, sempre resultando da caducidade de cláusula do contrato social que consagrava a forma de obrigar da sociedade, por analogia com o art. 253.º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais, não estando por isso sujeita a maioria qualificada; que os Autores, não exercendo de facto a gerência da sociedade desde Novembro de 2010, praticaram actos que constituem justa causa de destituição, tendo causado prejuízos económicos; que não existe qualquer direito ou vantagem especial dos Autores à gerência, uma vez que o direito em causa foi criado para todos os sócios e não foi criado aquando da constituição da sociedade.

Concluiu pela procedência da excepção dilatória com a sua da instância, ou, se assim não se entendendo, pela improcedência da acção, com a condenação dos Autores em multa por litigarem de má-fé.   

No saneador, após se julgar improcedente a excepção dilatória da preterição do litisconsórcio necessário passivo, foi a acção julgada parcialmente procedente, declarando-se a anulação da deliberação da assembleia geral de 18 de Outubro de 2018 que alterou o artigo quarto do pacto social da Ré, do demais peticionado indo esta absolvida.

Inconformados, deste veredicto recorreram Ré e Autores, recursos admitidos como apelações com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância sem que dessa decisão tenha havido qualquer impugnação:

1. A Ré é uma sociedade comercial do tipo por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial da ...

2. O objecto social da Ré engloba a actividade de administração de condomínios.

3. A sua constituição foi inscrita no registo comercial em 4 de Março de 1996, através da Ap. 01.

4. O capital social de 400.000$00 foi realizado pelos sócios fundadores nos seguintes termos: ...

5. No dia 13 de Abril de 2010 os Autores adquiriram, cada um, uma quota no valor nominal de € 1.250,00.

6. Os Autores assumiram, desde essa data em diante, as funções de gerentes da sociedade.

7. No dia 16 de Novembro de 2010 o Autor R... cedeu a sua quota à sociedade comercial P... – ... , L.da e a quota do autor J... foi dividida em duas quotas, uma no valor nominal de €250,00, cedida à referida sociedade, e outra de €1.000,00, cedida a B...

8. Nessa mesma data, J... e B... tornaram-se sócios da Ré, pela aquisição de uma quota no valor nominal de €1.000,00 cada.

9. Nessa data assumiram ambos igualmente as funções de gerentes.

10. A Ré passou a deter um capital social de €5.000,00, distribuído pelos seus três sócios da seguinte forma: P... – ... , L.da um total de €3.000,00, repartido por três quotas; B... €1.000,00 e J... €1.000,00.

11. Em virtude das alterações resultantes da deliberação aprovada em assembleia geral realizada no dia 16 de Novembro de 2010, e uma vez que os Autores eram sócios maioritários da sociedade P... – ... , L.da, em 13 de Setembro de 2011 a Ré registou a seguinte alteração ao contrato de sociedade: «Forma de obrigar/Órgãos sociais: Forma de obrigar: Com a assinatura de dois gerentes. Sendo obrigatória uma assinatura de J... ou R... em representação da sociedade P... – ... , L.da e de B... ou de J...».

12. Posteriormente, em virtude de cessões registadas, a 25 de Setembro de 2012 os Autores tornaram-se titulares, cada um, de quotas no valor nominal de €1.500,00 no capital social da Ré.

13. Em 2017 o Autor J... divorciou-se da sua mulher E..., o que levou a que a mesma assumisse a qualidade de sócia enquanto titular de uma quota no valor nominal de €750,00.

14. Esta quota foi cedida ao sócio J..., por contrato celebrado no dia 7 de Setembro de 2018.

15. No dia 4 de Outubro de 2018 os sócios e gerentes B... e J... redigiram uma convocatória com o seguinte teor:

«Ex.mo Senhor,

B... e J..., na qualidade de gerentes da sociedade comercial por quotas F..., Lda., com sede na Rua ..., detentores de 55% do capital da sociedade, vêm muito respeitosamente convocar V/ Ex.ª para estar presente em Assembleia-Geral Extraordinária, que terá lugar no próximo dia 18 de Outubro de 2018, pelas 15.00h, na sede social da sociedade, com a seguinte ordem de trabalhos:

1. Destituição dos gerentes J... e R...

2. Alteração à redacção dos Art.ºs 3.º e 4.º do Pacto Social, para o seguinte texto:

Artigo Terceiro

O capital social, integralmente realizado, é de 5.000,00€ (cinco mil euros) e corresponde à soma de quatro quotas, sendo elas:

- Uma quota nominal de 1.750,00€ (mil setecentos e cinquenta euros) pertencente ao sócio J...;

- Uma quota nominal de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros) pertencente ao sócio R...;

- Uma quota nominal de 1.000,00€ (mil euros) pertencente ao sócio B...;

- Uma quota nominal de 750,00€ (setecentos e cinquenta euros) pertencente ao sócio J...

Artigo Quarto

A gerência da sociedade e a sua representação em juízo, activa e passivamente, fica a cargo dos sócios ou não sócios, com ou sem remuneração, conforme venha a ser deliberado em Assembleia Geral, estando já nomeados gerentes os sócios J... e B...

Ponto Único: Para obrigar a sociedade em todos os seus actos e contratos, bastará a assinatura de um dos seus sócios gerentes, J... ou B...».

16. Os Autores não compareceram na sede da sociedade no dia 18 de Outubro de 2018.

17. A assembleia decorreu sem a sua presença, tendo sido deliberada a destituição da gerência dos Autores e a alteração dos artigos 3 e 4 do pacto social, nos termos constantes da convocatória, com os votos favoráveis de B... e J...

18. O artigo sexto do pacto social da Ré estatui que «As assembleias gerais, salvo os casos em que a lei exija outras formalidades ou prazos, serão convocadas por meio de carta registada com aviso de recepção enviadas aos sócios com a antecedência mínima de quinze dias».

19. Com a assunção das funções de gerência por parte dos sócios J... e B..., os mesmos passaram a auferir uma remuneração mensal, complementada pela aquisição em regime de leasing por parte da Ré de dois veículos (um para cada um) de marca x ... , para uso exclusivo, pessoal ou profissional.

20. Os Autores nunca receberam remuneração pelo exercício da gerência.

21. Os seguros contratados pela Ré no âmbito do seu objecto social eram outorgados com a sociedade P... - ... , L.da, enquanto sociedade mediadora.

22. Por essa via, os Autores encontraram um proveito económico que os fez prescindir da remuneração inerente á gerência da ré.

23. No dia 23 de Agosto de 2016 os sócios J... e B... intentaram contra os ora autores uma acção especial de suspensão e destituição de órgãos sociais, que correu termos sob o n.º ...

24. O processo terminou com a improcedência do procedimento cautelar e a desistência do pedido na acção principal de destituição da gerência, tendo as partes transigido relativamente às custas do processo.

25. Os sócios e gerentes marcaram nova assembleia geral de ratificação das deliberações anteriores, feita a 5 de Dezembro de 2018, com a antecedência de 15 dias sobre a nova data, que se realizou sem a presença dos autores e cujas deliberações foram assim votadas e determinadas.

A apelação dos Autores.

Nas conclusões deste recurso podem divisar-se as seguintes três questões:

Incumprimento da antecedência mínima para a convocação da assembleia geral de 5.12.2018;

Direito especial à gerência por parte dos AA.;

Abuso do direito.

Não houve contra-alegações.

Apreciando.

Sobre o incumprimento da antecedência mínima para a convocação dos AA., ora recorrentes.

Apesar de na epígrafe desta questão os Autores e agora apelantes aludirem ao incumprimento da antecedência mínima da convocatória da Assembleia de 5 de Dezembro de 2108 acabam os apelantes por levantar um problema diferente: o do objecto da convocatória.

Entendem então que na convocatória para a Assembleia Geral de 5.12.2018 não foi indicado o objecto que veio a ser alvo de discussão e votação nesse dia, ou seja, a renovação das deliberações tomadas na anterior Assembleia de 28 de Outubro, uma vez que ali se aludiu apenas à “ratificação” das mesmas, o que, segundo os apelantes, é coisa diversa da “renovação”.

Mas não têm razão, salvo o respeito devido.

Com efeito, aceitando os recorrentes o que na acta nº 27 de 05.12.2018 ficou exarado, ou seja, que a convocatória para essa Assembleia Geral foi enviada “para ratificação das deliberações tomadas relativamente aos seguintes pontos: (…)”, dúvidas não lhes poderiam pairar no seu espírito de que o que se pretendia era produzir deliberações de idêntico teor às (irregularmente) tomadas na Assembleia de Outubro.

Face ao teor da convocatória era esse o sentido inequívoco que um declaratário normal colocado na posição dos Autores/apelantes dele retiraria.

É certo que a expressão “ratificação” que ali foi utilizada não terá sido a mais curial ou rigorosa, atento o seu preciso significado técnico-jurídico (que a lei liga à falta de poderes representativos). Tratou-se, no entanto, de uma mera qualificação jurídica, de um nomen iuris emprestado para a comunicação de um desiderato perfeitamente explicitado. Os seus destinatários não podiam ignorar que estava causa a repetição do objecto da anterior assembleia, irregularmente convocada, de molde a se voltarem a discutir e votar os mesmos assuntos ou temas. O que conta para a percepção do fim de uma convocatória pelos destinatários é a realidade que através dela se pretende transmitir e que eles podem apreender. Ora essa realidade só podia ser a da renovação da discussão e votação das deliberações da anterior assembleia, repetição apenas imposta por força da irregularidade verificada na respectiva convocatória.

Também argumentam os recorrentes com o disposto no art.º 62º, nº 1, do CSC, preceito que, segundo eles, requeria a expressa atribuição de efeitos retroactivos à deliberação renovada, atribuição que pretendem não ter existido.

Sucede que nunca a Ré invocou a retroactividade dos efeitos das deliberações de Dezembro de 2018. Aliás, nem se vê o alcance da eventual não retroactividade para a decisão das demais questões a apreciar.

Donde a improcedência da questão ora em apreço.

Sobre a presença de um direito especial à gerência por banda dos Autores quando foi deliberada a respectiva destituição.

Relevam os apelantes no seu objecto recursivo a questão de não poderem ser destituídos da gerência da Ré em Assembleia Geral uma vez que tinham um direito especial à gerência.

Que dizer?

Estatui o art.º 24º, nº 5, do CSC que os direitos especiais dos sócios não podem ser eliminados ou coarctados sem o consentimento do seu titular, salva estipulação em contrário. Por sua vez, quanto às sociedades por quotas, prescreve o nº 3 do art.º 257º do mesmo Código que a cláusula contratual que atribui a um sócio de uma sociedade por quotas um direito especial à gerência não pode ser alterada sem o seu consentimento, sem prejuízo de deliberação no sentido da promoção da sua destituição judicial por justa causa.

Ora resulta da matéria provada – devendo esta ser confrontada ou compaginada com a certidão permanente do registo comercial da Ré junta a fls. 66 e ss – que, a determinada altura, mais exactamente a partir da deliberação de 16 de Novembro de 2010 e do registo de alterações ao contrato de sociedade e designação de membros de órgãos sociais, a sócia P.... passou a ser titular no capital da Ré de uma quota de €3.000,00, cabendo então a cada um dos outros dois sócios – B... e J... – uma quota de €1.000,00.

E, bem assim, que, a partir daquela data, a Ré P... passou a ter assento na gerência da Ré representada por J... ou R..., seus sócios maioritários.

Era este, pois, o quadro de administração e vinculação da Ré à data das deliberações em causa.

O princípio geral sobre a destituição de gerentes das sociedades por quotas, sejam eles sócios ou não, decorre do disposto no art.º 257º, nº 1, do CSC, normativo segundo o qual “Os sócios podem deliberar a todo o tempo a destituição dos gerentes”. Este princípio tem como consequência prática mais relevante a de que, não havendo disposição em contrário no contrato, basta aos sócios uma maioria simples do capital para afastar os gerentes que se encontrem funções.

Não há, por conseguinte, na lei uma exigência de justa causa nem, tão pouco, de uma mínima fundamentação ou motivação para que essa destituição possa avançar sem restrições[1]. O que vale por dizer que, sem embargo do eventual direito do destituído a ser indemnizado nos termos igualmente previstos na lei (art.º 257º, nº 7), a destituição dos gerentes é inteiramente livre em homenagem ao interesse social avaliado pelos sócios em cada momento.

Situação naturalmente diferente é a do sócio a quem foi outorgado no contrato social um direito especial à gerência[2].

Escreve Paulo Olavo Cunha[3] sobre os direitos especiais dos sócios das sociedades por quotas:

“Os direitos especiais são aqueles que são atribuídos pelo contrato de sociedade a um ou mais sócios (cfr. art.º 24, nº 1), conferindo-lhes uma vantagem relativamente aos demais. O nº 1 do art.º 24 do CSC estabelece com total clareza, que só pelo contrato esses direitos podem ser criados. (…) O critério que nos permite distinguir estes direitos dos direitos gerais reside, precisamente, no facto de só poderem ser atribuídos a alguns sócios, estando, por isso, primordialmente afectos a interesses próprios do seu titular. A especialidade destes direitos sociais radica, pois, nessa característica – de satisfação de interesses pessoais – e na qualidade relativa, de só poderem ser concedidos a alguns sócios. Por isso, os direitos especiais não podem ser atribuídos à totalidade dos sócios, sem prejuízo da sua essência; podem é ser atribuídos a todos sócios direitos que sejam apenas derrogáveis como seu consentimento. (…) Os direitos especiais que revestirem natureza patrimonial são, em regra, “transmissíveis com a quota, sendo intransmissíveis os restantes direitos (art.º 24, nº 3)”.[4]

Daqui parece poder meridianamente concluir-se que, sendo todos os sócios nomeados gerentes, não há nisso uma vantagem de qualquer deles sobre os outros, razão pela qual não se pode falar coerentemente de um direito especial de qualquer deles em relação aos demais.

Há quem admita, ainda assim, que o direito especial à gerência de todos os sócios pode ser o resultado da manifestação de uma vontade colectivamente convergente de que a respectiva cláusula contratual não seja eliminada ou modificada em relação a qualquer deles sem o seu consentimento, salvo se sobrevier justa causa demonstrada em acção para tanto intentada.[5] Para esta orientação seria então suficiente para caracterizar esse direito especial” a constatação da presença, não de um interesse destacadamente pessoal em cada um dos designados, mas de um escopo comum de proteger ou garantir a vontade de todos eles de fazer depender a sua participação social do acesso ao controlo gestionário do ente societário.

Simplesmente, é apodíctico que uma visão deste jaez dos “direitos especiais” é idónea a gerar graves bloqueios, ou, pelo menos, sérios obstáculos à gestão da sociedade, visto que, por depender do seu consentimento, a necessidade de superação do direito especial de algum dos sócios (à gerência) que por qualquer causa a dada altura se viesse a fazer sentir tornar-se-ia extremamente difícil senão impossível de concretizar.

Temos, por isso, como preferível a definição de direitos especiais perfilhada por Paulo Olavo Cunha, de harmonia com as duas dimensões que acima se deixaram aludidas, nomeadamente quanto ao aspecto da sua clara relatividade.

Mas não quer isto dizer que, não se invocando justa causa, e achando-se a gerência atribuída a todos os sócios, pelos contraentes não possa ser estipulada a inderrogabilidade da nomeação em deliberação tomada sem o consentimento do nomeado, sem deliberação tomada por certa maioria qualificada ou sem determinado condicionalismo, de acordo com o convencionado (art.º 257º, nº 2 do CSC). Só que tal não tem subjacente qualquer direito especial à gerência resultante do contrato.

Se se verificar que foi efectivamente convencionado um direito especial à gerência a favor do sócio visado já não poderá ser deliberada a respectiva destituição, que terá então de ser desencadeada através acção própria (nº 3 do art.º 257º do CSC).

Revertendo aos autos, é sem grande esforço que se pode constatar que a nomeação como gerentes dos ora Autores em representação da sócia P..., Lda, contratualmente realizada em 16 de Novembro de 2010 e levada ao registo em 05 de Janeiro de 2011 (por conseguinte, bem antes do registo efectuado em 13 de Setembro desse ano, o qual incluiu apenas uma divisão da quota de €3.000,00 da sócia P... em quatro quotas de idêntico valor global), continuando como gerentes os outros dois sócios (J... e B...), não podia ter envolvido a atribuição de um direito especial, nem à sócia P..., nem muito menos aos Autores, meros representantes desta.

É certo que para vincular/obrigar a sociedade se passou a exigir a assinatura de um dos dois representantes da sócia P..., mas isso terá provavelmente correspondido à participação maioritária desta sócia no capital social da Ré (55%).

É verdade que a atribuição do direito especial à gerência, não emergindo expressamente do clausulado, pode advir da interpretação do contrato, como acontece com qualquer declaração negocial.

Sucede que nenhum elemento factual foi aportado aos autos no que toca à susceptibilidade dessa interpretação. 

Na ausência de alegação e prova de factualidade pertinente a propiciar a interpretação da vontade das partes no sentido da criação do direito especial, é razoável afirmar que a mera atribuição da gerência ao sócio maioritário não prefigura, sem mais, a intenção dos pactuantes de atribuir de um direito especial a esse sócio.

Além do mais, toda a protecção dos interesses do sócio-gerente maioritário pode ter naturalmente lugar através do normal funcionamento do seu poder de voto inerente à maioria do capital por ele detida.

Não vemos, portanto, na mencionada exigência – de intervenção de um representante da sócia P... para obrigar a Ré – um claro intuito de lhe conferir uma especial ou particular vantagem diante dos outros sócios gerentes (na altura minoritários), já que se previu que pelo menos um destes também teria sempre que intervir para obrigar a sociedade.[6]

Deste modo, concluímos que não existiu um direito especial à gerência que tivesse sido atribuído/conferido em Setembro de 2010 à sócia P... (maioritária) ou aos seus representantes.

Aparentemente os apelantes também sustentam que com a aquisição das quotas à sócia P... registada em 25 de Setembro de 2012 lhes teria sido transmitido o suposto direito especial à gerência de que esta beneficiava.

Não os acompanhamos.

É que ainda que esse direito tivesse sido efectivamente conferido a essa sócia (não aos Autores, que ali surgiam como seus meros representantes), e não foi, como se viu, nunca ele poderia ser transmitido com a cessão das respectivas quotas por não se tratar de um direito de natureza ou conteúdo patrimonial do sócio (cfr. a parte final art.º 24º, nº 3, do CSC no segmento em que estabelece a intransmissibilidade de” todos os restantes direitos”).

Com efeito, por representarem a sócia P... enquanto esta foi sócia da Ré, os Autores não eram gerentes da Ré senão por virtude dessa qualidade. Não por direito próprio. Daí que, uma vez transmitida a quota ou quotas desta representada, tivessem de deixar de poder intervir na gerência com essa qualidade.

Isto não significa que, tendo readquirido a qualidade de sócios da Ré, não aproveitassem da regra ínsita no corpo do artigo quarto do pacto – que se manteve – de que todos os sócios eram ipso facto gerentes.

De resto, só pode ter sido nesse pressuposto – de serem gerentes por também serem sócios - que foi discutida e deliberada a sua destituição.

Seja como for, não havendo um direito especial à gerência de que os Autores se pudessem arrogar aquando da deliberação da respectiva destituição da gerência, valia então o princípio geral da livre destituição dos gerentes por deliberação dos sócios proclamado no art.º 257º, nº 1, do CSC.

Improcede, destarte, a questão em apreço.

Quanto ao abuso do direito.

 Rebelam-se os apelantes desde logo contra a posição plasmada na sentença recorrida de que não seria possível sindicar a validade da deliberação destitutiva de gerente sem justa causa através do instituto do abuso do direito.

É claro que, se houver justa causa para a destituição, estará afastado o abuso deliberativo.

Que dizer então quando não vem alegada qualquer justa causa?

O raciocínio sufragado na decisão recorrida tem na sua génese o postulado de que, não havendo justa causa para a destituição do gerente, o Código coloca unicamente ao alcance do lesado a acção indemnizatória contra os sócios que votaram a deliberação lesiva (art.º 257º, nº 7 do CSC). Não seria possível extrair outra consequência da destituição.

Afigura-se-nos, porém, que, não havendo justa causa para a destituição, a deliberação pode ser, assim mesmo, abusiva se, conforme o disposto no art.º 58º, nº 1, al.ª b) do CSC, se se vier demonstrar que era adequada ao propósito de um sócio de, através dela, obter, para si ou terceiros proveitos ou vantagens em prejuízo da sociedade ou de outros sócios.

Neste circunstancialismo nada justifica que seja negado ao sócio ou sócios que não votaram a dita deliberação o direito de obterem a sua anulação com base no disposto no art.º 58º, nº 1, al.ª b), do CSC.

No entanto, a decisão recorrida afastou o abuso do direito na deliberação em causa por não ter sido alegado qualquer prejuízo concreto para a sociedade ou para os sócios que as não votaram, nomeadamente para os sócios-gerentes destituídos.

Na verdade, percorrendo a factualidade carreada para a acção, para além de alguns juízos de valor e proclamações conclusivas, não se vislumbra a invocação de matéria que consubstancie um qualquer prejuízo para a sociedade ou para os sócios não votantes. Como temos por óbvio, o prejuízo que a lei tem em vista para este efeito não pode subsumir-se à perda da remuneração ou outras regalias de gerência, dado que aqui o dano a ressarcir será sempre do gerente mas não do sócio.

Donde a improcedência desta questão, e com ela, do recurso dos Autores.

A apelação da Ré.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação a Ré F..., LDA, levanta as seguintes questões:

Se a deliberação tomada na Assembleia Geral da Ré de 5 de Dezembro de 2108, relativa à cláusula quarta do pacto social não carecia de ser tomada pela maioria qualificada de ¾ dos votos representativos do capital social das Ré;

Assim se não entendendo, o saber se se deveria declarar a modificação da deliberação da aludida cláusula no sentido de a vinculação da Ré ficar a depender da assinatura de dois gerentes.

Responderam os Autores, batendo-se pela improcedência do recurso.

Cumpre apreciar.

Sobre a caducidade da cláusula de nomeação de gerente.

Advoga a Ré ora recorrente que, em face da deliberação que determinou a destituição de gerentes dos Autores/apelados, caducou o artigo ou cláusula quarta do pacto social que regia sobre o exercício as funções de gerência e a forma como a sociedade se obrigava, pelo que, ao deliberar-se sobre a alteração da cláusula contratual que regia a nomeação dos gerentes e a forma de obrigar a sociedade, a Assembleia Geral da Ré se limitou a preencher o vazio criado por essa destituição, não tendo havido, por isso, qualquer alteração do pacto social no que a tal matéria dizia respeito.

Vejamos.

De acordo com a factualidade dada como provada em 11 do acervo fáctico, antes da tomada da deliberação agora em causa, o artigo quarto do pacto social da Ré dispunha o seguinte:

A gerência da sociedade e a sua representação em juízo, activa e passivamente, fica a cargo dos sócios ou não sócios e com ou sem remuneração, conforme venha a ser deliberado em Assembleia Geral, estando já nomeados gerentes todos os sócios.

Ponto único: Para obrigar a sociedade em todos os seus actos e contratos basta a assinatura de J... ou R... em representação da P..., Lda, e a outra assinatura de B... ou J...”

Em consequência da deliberação da deliberação de 5 de Dezembro de 2108 o aludido artigo quarto passou a ter o seguinte teor:

“ A gerência da sociedade e a sua representação em juízo, activa e passivamente, fica a cargo dos sócios ou não sócios, com ou sem remuneração, conforme venha ser deliberado em Assembleia Geral, estando já nomeados gerentes os sócios J... e B...

Ponto único: Para obrigar a sociedade em todos os seus actos bastará a assinatura de um dos seus sócios gerentes J... ou B...”.

Como se pode constatar, são duas as modificações introduzidas na cláusula contratual pela deliberação agora atacada: por um lado, os gerentes imediatamente nomeados são, não todos os sócios, mas exclusiva e nominalmente os sócios J... e B... (deixando, por conseguinte, de ser gerentes os restantes sócios, que então eram os Autores, novamente sócios da Ré desde 25 de Setembro de 2012); por outro lado, para obrigar a sociedade, passou a ser suficiente a assinatura de um único sócio (enquanto anteriormente eram necessárias as assinaturas de dois, na repartição então prevista, sendo que uma delas teria de ser de um dos Autores).

Não obstante em ambas as situações se admitir que, por deliberação da Assembleia Geral, os sócios ou não sócios pudessem ser nomeados gerentes, certo é que apenas os sócios B... e J... foram logo nomeados como tais, estipulando-se, por outro lado, bastar a assinatura de um só deles (e já não de dois gerentes) para vincular a Ré.

Ou seja, é insofismável que com a deliberação de Outubro/Dezembro de 2018 se produziu uma substancial modificação do estatuído no pacto social relativamente ao que aí estava consignado sobre a gerência e forma de obrigar a Ré.

 Objecta, porém, a Ré F..., ora recorrente, que nada foi efectivamente alterado sobre a matéria porquanto com a destituição dos Autores caducou o regime previsto no artigo/cláusula quarta do pacto social sobre a forma de obrigar a Ré.

Reporta-se a recorrente à norma do nº 3 do art.º 253º do CSC, segundo a qual “Faltando definitivamente um gerente cuja intervenção seja necessária por força do contrato para a representação da sociedade, considera-se caduca a cláusula do contrato, caso a exigência seja nominal; no caso contrário, não tendo a vaga sido preenchida no prazo de 30 dias, pode qualquer sócio ou gerente requerer ao tribunal a nomeação de um gerente nos termos do contrato ou da lei”.

Será que, perante a exigência de uma assinatura obrigatória pela sócia P..., através de um dos ora Autores, a destituição deliberada implicou a aludida caducidade da aludida cláusula contratual atinente à gerência?

Não há dúvida de que aquela exigência foi nominal porque especificou a concreta identidade do gerente que podia obrigar a sociedade.

Já se disse que a deliberação de destituição dos “gerentes” J... e R..., decidida em 5 de Dezembro de 2018, foi válida.

Também concordamos que a destituição de um gerente integra uma situação de “falta definitiva”.

Acontece que com a transmissão da participação social da sócia P... não se transmitiu a gerência aos Autores, visto que, como acima se sublinhou, eles não a exerciam iure proprio.

Porém, à luz do corpo do artigo quarto todos os sócios eram gerentes.

É patente que após os Autores terem adquirido as quotas da sociedade Portugália por transmissão registada 25 de Setembro de 2012, a gerência não poderia continuar com esta, por a cessão das quotas implicar a extinção desse direito, à luz do já mencionado art.º 24º, nº 3, do CSC.

Desde essa data que os AA. deixaram de representar a sociedade P... na administração da Ré F...

Segue-se daqui que, tendo, na verdade, a deliberação de 5 de Dezembro de 2018 alterado o artigo quarto do pacto social, o vazio que poderia existir era o da forma de vinculação. Mas já não de gerência, dado que, por virtude da anterior redacção daquele artigo, ela cabia a todos os sócios, incluindo os Autores.

Por conseguinte, para modificar a cláusula não só no segmento em que ela impunha que todos os sócios eram gerentes, nomeando exclusivamente dois gerentes, como no segmento em passou a dispor que a sociedade se obrigava, não com a assinatura de todos os gerentes, mas com a assinatura de um dos sócios B... ou J..., a deliberação em apreço necessitava da maioria qualificada de três quartos dos votos correspondentes ao capital social requerida pelo art.º 265º, nº 1, do CSC.

Pelo que, também neste segmento, a sentença não merece censura.

Sobre a modificação da deliberação.

Por fim, quer a apelante que, sem prejuízo de se entender que a deliberação sobre a alteração do artigo quarto do pacto é inválida, e mesma seja modificada de modo a ficar consignado que a Ré se obriga com a assinatura de dois gerentes.

Esta pretensão é juridicamente impossível.

O tribunal não pode reduzir ou modificar uma deliberação inválida com fundamento na vontade conjectural das partes. Aliás, nem seque há elementos para reconstituir o que seria a vontade hipotética ou conjectural das partes.

Sempre se dirá, todavia, que, repristinada a situação vigente à data da deliberação inválida, perante o afastamento dos Autores a forma de obrigar a Ré é a da assinatura dos dois outros sócios, dado que, por esse facto, são presentemente os únicos gerentes em funções.

Pelo exposto, na improcedência da apelação dos AA. e na procedência da apelação da Ré, confirmam a sentença recorrida.

Custas pelos Autores e apelantes em ambas as instâncias.

                                            Coimbra, 25 de Junho de 2019


[1] Neste mesmo sentido, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, p. 645 e ss.
[2] Não é, pois, concebível, na geometria própria destes direitos, um direito especial à gerência de um não sócio.
[3] Direito das Sociedades Comerciais, 2º ed., p. 215 e ss.
[4] Cita o ilustre professor como perfilhando o mesmo entendimento – de que não verdadeiro direito especial por inexistir uma particular vantagem do sócio quando o mesmo direito é atribuído a todos os sócios – a orientação de Raul Ventura em Direitos Especiais dos Sócios, O direito, Ano 121, I, p. 215. Esta perspectiva não colhe, todavia, unanimismo doutrinal, dela divergindo, p. ex., Coutinho de Abreu, como adiante se assinalará.
[5] Assim, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial., p. 217, aliás, citado na sentença.
[6] A situação parece-nos distinta da que vem referida na sentença como sendo exemplificada por Coutinho de Abreu (Curso de Direito Comercial, p.s 213-214) como um caso de direito especial: a da exigência da assinatura de determinado sócio-gerente quando para obrigar a sociedade são requeridas as assinaturas de dois dos três sócios-gerentes.