Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HELENA MELO | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS PENHOR CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL | ||
Data do Acordão: | 06/28/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 204.º, N.º 2, DA LEI N.º 110/2009, DE 16-9 | ||
Sumário: | I – No confronto entre o penhor e os créditos com privilégio mobiliário geral da Segurança Social, dos trabalhadores e do Estado, deverá ser graduado em 1.º lugar o crédito da Segurança Social, em obediência ao disposto no art. 204.º, n.º 2, da Lei n.º 110/2009, de 16-9.
II – A interpretação restritiva daquela norma, de modo a graduar o penhor em 1.º lugar no confronto com os aludidos créditos, confere uma álea de incerteza que não pode ter sido pretendida pelo legislador, o qual não desconhecia as disposições legais com que tal norma entra em colisão, nem as controvérsias jurisprudenciais que a mesma tem suscitado, o que não impediu que a mantivesse ao longo dos anos, pretendendo assim conferir aos créditos da Segurança Social um tratamento privilegiado no confronto com o penhor e outros créditos dotados de privilégio mobiliário geral. | ||
Decisão Texto Integral: | 3620/21.6T8LRA-C.C1 Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra: I - Relatório P... Unipessoal, Lda. foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado, tendo sido aberto concurso de credores, pelo prazo de 30 dias. Findo o prazo para as reclamações, a Srª Administradora da Insolvência juntou aos autos a lista de credores reconhecidos. Mostram-se apreendidos para a massa insolvente os seguintes bens: - móveis; - 660 ações nominativas representativas do capital social da ...; - 1050 ações nominativas representativas do capital social da ...; - saldo bancário no valor de €381,30; A M..., SA veio impugnar a lista de credores, alegando que o seu crédito ascendia a e € 3.238,84. O Município da ... veio impugnar a lista de credores, alegando que o seu crédito ascendia ao valor de € 465,92, acrescido de juros moratórios de € 4,48. Notificada, a Srº Fiduciária veio reconhecer ambos os créditos. Foi proferida sentença, cujo dispositivo é o seguinte: “1) Reconhecer os créditos constantes da lista de créditos reconhecidos elaborada pelo Srº Administrador de insolvência. 2) – Julgar procedente as impugnações e, consequentemente, reconhecer à M..., SA no valor de € 3.238,84 e ao Município da ... um crédito no valor de € 465,92, acrescido de juros moratórios de € 4,48. 3) - Graduar os créditos pela seguinte forma: 1) – Pelo produto dos bens móveis e depósito bancário: A) - As dívidas da massa insolvente saem precípuas do produto da venda do bem (art. 172º, nº 1 e 2). B) Do remanescente do produto da venda, dar-se-á pagamento: 1º- Crédito reclamado pela trabalhadora constante da lista referido aí com o nº 4) que beneficia de privilégio mobiliário geral; 2º- Crédito reclamado pelo Ministério Público, em representação da Autoridade Tributária e Aduaneira, relativamente a créditos IRS, IRC e IVA no montante de no montante de €11.700,68 e crédito da Segurança Social no montante de €17.875,43 que beneficiam de privilégio mobiliário geral; 3º- Os restantes créditos reconhecidos, que têm natureza comum, a pagar rateadamente, se necessário; 4º- Os créditos subordinados. * 1) – Pelo produto da venda das ações: A) - As dívidas da massa insolvente saem precípuas do produto da venda do bem (art. 172º, nº 1 e 2). B) Do remanescente do produto da venda, dar-se-á pagamento: 1º- Crédito reclamado pela Segurança Social no montante de €17. 875,43 que beneficia de privilégio mobiliário geral; 2º- Crédito reclamado pela G..., SA que beneficia de penhor; 3º- Crédito reclamado pela trabalhadora constante da lista referido aí com o nº 4) que beneficia de privilégio mobiliário geral; 4º- Crédito reclamado pelo Ministério Público, em representação da Autoridade Tributária, relativo a IRS,IRC e IVA que beneficia de privilégio mobiliário geral; 5º- Os restantes créditos reconhecidos, que têm natureza comum, a pagar rateadamente, se necessário; 6º- Os créditos subordinados. “ A credora G..., S.A., não se conformou com a graduação efetuada, relativamente ao produto da venda das ações e interpôs o presente recurso de apelação, tendo concluído as suas alegações da seguinte forma: A. O crédito da ora Recorrente beneficia e foi reconhecido como crédito garantido por penhor sobre 1710 ações representativas do respetivo capital. B. O penhor é uma garantia real que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro (art. 666.º, n.º 1 do CC). C. Constituindo-se o penhor de valores mobiliários pelo registo na conta do titular dos valores mobiliários, com indicação da quantidade de valores mobiliários dados em penhor, da obrigação garantida e da identificação do beneficiário (art. 81.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários). D. No que à graduação de créditos concerne, o penhor, se constituído validamente, como in casu, e enquanto garantia real, é oponível erga omnes, preferindo aos privilégios mobiliários gerais – artigo 749.º do Código Civil. E. Por conseguinte, os créditos com aqueles privilégios não podem ser, quanto aos bens empenhados, graduados antes do crédito pignoratício, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 666.º, 749.º e 822.º, todos do Código Civil. F. Os privilégios gerais, não constituindo verdadeiros direitos reais de garantia (de gozo, de aquisição ou de preferência) sobre coisa certa e determinada, devem ceder perante os direitos reais de garantia de terceiros, individualizados sobre bens concretos. G. Esta conclusão infere-se da norma estabelecida no n.º 1, do artigo 749.º do Código Civil, segundo a qual o privilégio geral não vale contra terceiros sempre que estes terceiros sejam titulares de direitos que sejam oponíveis ao exequente. H. Ora, são oponíveis ao exequente, nos termos do já referido artigo 822.º do Código Civil, os direitos de garantia real anteriores à penhora, como é o caso do penhor ou da hipoteca. I. No caso, o crédito garantido por penhor sobre direitos confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito e juros com preferência sobre os demais credores – arts. 666º, nº 1, e 679.º do CCivil - que não gozam de privilégio especial ou de prioridade de registo, nos termos do art. 686.º, n.º 1, do C.Civil, como sucede com os créditos laborais que, não gozando de privilégio mobiliário especial, mas tão só de privilégio mobiliário geral, devem ser graduados depois daquele (arts. 666º, nº 1, 749º, nº 1 do CC e 333º, nº 1, al. a) do CT). J. No concurso entre o direito de crédito garantido pelo direito de penhor e o direito de crédito da titularidade de instituições da Segurança Social garantido por privilégio mobiliário geral, atualmente, e após bastante discussão na doutrina e jurisprudência, tem-se vindo a entender que deve graduar-se em primeiro o direito de crédito garantido pelo direito de penhor. K. Para tal foi relevante o acórdão do Tribunal Constitucional nº 363/02, de 17.9.2002, onde se decidiu, com força obrigatória geral, serem, por violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático consagrado no art. 2º da Constituição, inconstitucionais as normas contidas nos art. 2º do Decreto-lei nº 512/76, de 3 de Julho, e 11º do Decreto-lei nº 103/80, de 9 de Maio, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido prefere à hipoteca, nos termos do art.º 751º do Código Civil. (disponível em www.dgsi.pt) L. E indo de encontro à análise efetuada no recentíssimo Acórdão da 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Setembro de 2021, proferido no processo 638/20.0T8SNTA.L1, entendemos que tal interpretação deve ser feita também relativamente ao penhor, acolhendo-se a posição que assim o gradua em primeiro lugar uma vez que tais fundamentos “(…)têm suporte legal e melhor se conjugam com o sistema de prioridades de pagamento que o Código Civil consagra. A verdade é que, não se menosprezando a importância fundamental das contribuições para a sustentabilidade da Segurança Social, e sem minimizar o interesse público por ela prosseguido, o certo é que o próprio legislador as situa em terceiro lugar na ordem de pagamentos, nas situações em que os créditos delas derivados concorrem com créditos dos trabalhadores e com créditos do Estado. Finalmente, cumpre fazer evidenciar que a Segurança Social desde a entrada em vigor do atual Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social já dispõe da possibilidade de garantir os seus créditos por um qualquer dos meios de garantia previstos nos artºs. 601º e ss. do Código Civil. Assim, a solução que defendemos afigura-se-nos ser aquela que é ético-socialmente mais acertada no que diz respeito ao desfecho da lide, além de ser a que melhor salvaguarda a segurança e confiança jurídica.” M. E conclui o referido Acórdão, em Sumário, que “os créditos garantidos por penhor, quando concorram com créditos dos Trabalhadores, do Estado e da Segurança Social, que gozam de privilégio mobiliário geral, devem ser graduados em primeiro lugar relativamente aos bens sobre os quais foi constituído o penhor, seguindo-se-lhes, pela ordem por que foram mencionados, os créditos privilegiados.” N. Ora, partindo deste entendimento e tendo presente o princípio da proteção da confiança e da segurança do comércio jurídico, interpretando-se restritivamente a norma do art. 204º e 205º da Lei nº 110/09, de 19 de setembro, há que adotar a regra geral da inexistência de relação ou conexão entre o crédito e os bens que o garantem que os privilégios especiais pressupõem. Assim, os privilégios mobiliários gerais não têm a mesma natureza, de direitos de garantia, daqueles e, ao contrário dos privilégios especiais, conforme art. 750º, não serão, consoante art. 749º do Código Civil, oponíveis a outros direitos reais, como é o caso do penhor. O. Por conseguinte, no concurso entre o direito de crédito garantido pelo direito de penhor e o direito de crédito da titularidade de instituições de segurança social garantido por privilégio mobiliário geral, a prevalência deve operar por essa ordem. P. Também ao nível do STJ, mais recentemente podemos notar uma inversão da posição anteriormente adotada, hoje pronunciando-se no sentido da prevalência dos créditos garantidos por penhor sobre os créditos de impostos de da SS, afirmando que: ”Quanto ao lugar da graduação desses créditos (os dos trabalhadores e os do Estado por impostos),no caso de existir penhor com garantia sobre determinados móveis, decorre do art. 666.º do CC que o penhor confere ao credor preferência no pagamento sobre os demais credores” (Acórdão de 10.12.2009, proc. 864/07.7TBMGR-I.C1.S1; cfr. também acórdãos do STJ de 30.05.2006, proc. 06A1449 e de 08.06.2006, proc. 06B998, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). Q. Importa, na verdade, por um lado atentar à natureza dos dois institutos em análise e ao animus do legislador na construção de todo o esquema de garantias: os privilégios gerais, não constituindo verdadeiros direitos reais de garantia sobre coisa certa e determinada, devem ceder sobre os direitos de garantia de terceiros, individualizados sobre bens concretos – como é o caso do penhor. R. E, por outro, ao facto de, em caso de dúvida, a solução ter de ser encontrada com recurso aos princípios gerais: não fornecendo a Lei um sistema coerente, as previsões do Código Civil, que valem como princípios gerais nesta matéria, deverão sempre prevalecer. S. Entendimento que é também perfilhado pelo Il. Conselheiro Salvador da Costa, na medida em que defende que "no confronto do direito de crédito garantido por privilégio mobiliário geral (leia-se IVA, IRS e IRC) e do direito de crédito garantido por penhor ou retenção, são estes que prevalecem na ordem de graduação" (in "O Concurso de Credores, 2015, 58 Edição, pág. 239, Almedina). T. De igual modo, Luís M. Martins, in “Processo de Insolvência”, 2.ª edição, pág. 172, defende que “o credor pignoratício tem preferência absoluta nos termos do artigo 666.º do CC (…)”. U. Também ao nível da Relação, tem sido esse o entendimento recorrentemente adotado – veja-se, a título de exemplo, o recente Ac. TRL 291/2019, proc. 6486/17.7T8FNC-E.L1. V. Como tal, o crédito da recorrente deveria ter sido graduado em primeiro lugar, em exclusivo, para ser pago pelo produto da venda dos valores mobiliários apreendidos. W. Não tendo entendido e decidido conforme exposto, a sentença recorrida fez incorreta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, designadamente dos artigos 47.º, 140.º, n.º 2 e 174.º do CIRE, 666.º, 749.º e 822.º do Código Civil. X. Pelo que, no provimento do presente recurso, deve revogar-se a sentença recorrida e, em sua substituição, ser proferida outra que gradue, relativamente às ações representativas do capital social da G..., SA apreendidas nos autos, em primeiro lugar os Créditos reclamados pela ora Recorrente, atendendo ao penhor constituído. Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Exas. doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente Recurso, revogando-se a sentença de graduação recorrida e, consequentemente, ser substituída por sentença que proceda à correta graduação dos créditos da Recorrente nos termos acima indicados, nomeadamente, reconhecendo a prioridade do crédito garantido por penhor da Recorrente para ser pago em 1.º lugar pelo produto da venda das ações G..., SA apreendidas, tudo com as demais consequências legais. Não foram apresentadas contra-alegações. II – Objeto do recurso Considerando que: . o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e, . os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu ato, em princípio delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, a questão a decidir é: . se o crédito da apelante que goza de penhor sobre as ações apreendidas para a massa, no confronto com o crédito da Segurança Social que goza de privilégio mobiliário geral, com créditos laborais com privilégio mobiliário geral e do Estado por impostos – IRS, IRC e IVA - também dotados de idêntico privilégio, deve ser graduado em primeiro lugar, para ser pago pelo produto da venda das ações apreendidas.
III – Fundamentação A situação factual é a supra descrita. Na sentença recorrida entendeu-se ser de graduar o crédito da Segurança Social em primeiro lugar porque à luz dos princípios que regem a interpretação da lei, não pode prevalecer a solução de graduar o crédito garantido por penhor à frente dos créditos da segurança social, porque “além de não ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, contraria, aberta e frontalmente, a letra da lei (o artigo 204º, nº 2, do CRCSPSS), bem como o pensamento e vontade do legislador quando determinou, de forma expressa e sem margem para qualquer dúvida, que o privilégio dos créditos da segurança social prevalece sobre qualquer penhor. Importa notar que a prevalência do privilégio da segurança social relativamente ao penhor já constava do Dec. Lei nº 103/80 de 09/05 (cfr. artigo 10º,nº 2) e a transposição da norma em questão para a legislação atualmente em vigor evidencia o claro e firme propósito do legislador em assegurar a prevalência dos créditos por contribuições devidas à segurança social relativamente ao penhor, propósito que se insere na necessidade de assegurar a sustentabilidade da segurança social e o direito à segurança social que a todos é garantido pelo artigo 63º da Constituição da República. Pensamos, portanto, em face disso, que não poderá prevalecer a solução de graduar o crédito garantido por penhor à frente dos créditos da segurança social. “ E seguidamente, estando em causa também a graduação de créditos laborais e créditos por impostos, escreveu-se na sentença recorrida: “Mas se essa solução não é viável pelas razões apontadas, pensamos que também não poderá prevalecer a solução de graduar o crédito garantido por penhor atrás dos créditos dos trabalhadores e do Estado garantidos por privilégio mobiliário, uma vez que tal solução também não encontra o mínimo apoio na letra da lei e também contraria abertamente o pensamento e a vontade do legislador quando determinou (artigo 749º do CC) que tais privilégios não prevalecem sobre o penhor. Pensamos, portanto, que a observância da lei e o respeito pelo pensamento e vontade legislativos impõem necessariamente que os créditos da segurança social sejam graduados com preferência relativamente aos créditos garantidos por penhor e que estes sejam graduados com preferência relativamente aos demais créditos garantidos por privilégio mobiliário, designadamente, os créditos laborais e os créditos do Estado. É certo que a graduação dos créditos assim efetuada implica que os créditos dos trabalhadores e os créditos do Estado sejam graduados após os créditos da segurança social, quando é certo que, por aplicação dos artigos 204º, nº 1, da Lei nº 110/2009, 333º do Código do Trabalho e 747º do CC, os créditos da Segurança Social seriam graduados a par dos créditos do Estado e depois dos créditos dos trabalhadores. Importa notar, no entanto, que essa graduação nem sequer entra em colisão direta e frontal com o artigo 333º do Código do Trabalho, uma vez que aqui apenas se determina que os créditos dos trabalhadores são graduados antes dos referidos no artigo 747º do CC e esta disposição nem sequer alude aos créditos da segurança social (sendo que estes são graduados nos termos da alínea a) desse artigo 747º por força de disposição legal que consta de outro diploma) e, portanto, se os créditos dos trabalhadores forem graduados antes dos créditos do Estado e depois dos créditos da segurança social, estar-se-á a respeitar – ou pelo menos não se estará a desrespeitar abertamente – o citado artigo 333º onde não se determina (de modo expresso) que esses créditos sejam graduados antes da segurança social. Por outro lado, ainda que por aplicação das citadas normas legais os créditos da segurança social e os créditos do Estado devessem ser graduados a par, pensamos que a inobservância dessa regra será, apesar de tudo, menos ostensiva e assumirá uma menor gravidade quando comparada à inobservância das demais regras supra citadas por via das quais o legislador manifestou, de modo claro e expresso, a sua vontade de que o privilégio da segurança social prevalecesse sobre o penhor e que este prevalecesse sobre os demais privilégios. Concluímos, portanto, em face do exposto, que a solução que melhor respeita – ou que menos desrespeita – a letra da lei e o pensamento e a vontade do legislador corresponderá a graduar os créditos pela ordem seguinte: créditos com privilégio da segurança social, créditos garantidos por penhor, créditos com privilégio dos trabalhadores e créditos com privilégio do Estado. Qualquer outra solução (seja a de graduar o crédito garantido por penhor em 1º lugar e, portanto, antes do crédito com privilégio da Segurança Social, seja a de graduar o crédito garantido por penhor em último lugar e após os créditos com privilégio dos trabalhadores e do Estado) violaria e desrespeitaria, aberta e frontalmente, a letra da lei e a vontade do legislador quando determinou que o privilégio da segurança social prevalece sobre o penhor e quando determinou que o penhor prevalece sobre os demais privilégios mobiliários”. A apelante defende que o crédito garantido por penhor deve ser graduado em 1º lugar, fundamentando-se nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 15.09.2011, CJ 4/2011, págs. 173 a 176, Acs. do TRG de 13.02.2014, de 13.10.2016 e 08.07.2020, Ac. do TRL de 9.11.2021, proc. 211/11.3TYLSBC.L1[1], disponíveis em www.dgsi.pt., Acs. do STJ de 10.12.2009, proc. 864/07TBMGR-I.C1.S1, de 30.05.2006, proc. 06A1449 e de 06.06.2006, proc. 06B998, estes dois últimos igualmente acessíveis na mesma base de dados e Ac. do Tribunal Constitucional nº 363/02 de 17.09.2002, publicado no Diário da República n.º 239/2002, Série I-A de 2002-10-16. Os créditos sobre a insolvência distinguem-se, nos termos do nº 4 do artº 47º do CIRE, em créditos garantidos, privilegiados, comuns e subordinados. Os créditos garantidos são essencialmente os que envolvem garantias reais sobre os bens da massa insolvente e os créditos privilegiados são os que envolvem privilégios creditórios especiais e gerais sobre os bens da massa insolvente. Os credores da insolvência são tratados de forma igual, mas segundo a qualidade dos seus créditos. Segundo o art.º 733º do Código Civil, privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros. Os preceitos em confronto são os seguintes: art. 666.º, n.º 1 do CCivil: “O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros (…), com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel (…)”; - art. 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16 de setembro: “1 - Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil. 2 - Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”. - art. 747.º, n.º 1, do CCivil: “Os créditos com privilégio mobiliário graduam-se pela ordem seguinte: a) Os créditos por impostos, pagando-se em primeiro lugar o Estado e só depois as autarquias locais; (…)” - art. 749.º, n.º 1, do CCivil: “O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.” - art. 333.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro: “1. Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios: a) Privilégio mobiliário geral; (…)
Antes da Lei 110/2009 já o artº 10º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, diploma que antecedeu a Lei 11/2009, e que estabelecia o Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência (atualmente Segurança Social), dispunha que: O acórdão do Tribunal Constitucional citado pela apelante não se pronuncia sobre a prevalência do penhor sobre o privilégio mobiliário geral atribuído aos créditos da Segurança Social. Neste acórdão é declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 2º da Constituição, das normas constantes do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil. Diversamente, no caso do penhor, o Tribunal Constitucional, chamado que foi, por diversas vezes, a apreciar a constitucionalidade da norma que estabelece a prevalência do privilégio da segurança social relativamente ao penhor (artigo 10º, nº 2, do Dec. Lei nº 103/80 e atual artigo 204º, nº 2, do Dec. Lei nº 110/2009), vem mantendo a posição de negar qualquer juízo de inconstitucionalidade (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 64/2009 e 108/2009, de 10/02/2009 e 10/03/2009, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt). Se bem que no confronto do crédito da Segurança Social apenas com o crédito garantido por penhor, se afigure pacífico que o crédito da Segurança Social, em obediência ao disposto no artº 204º, nº 2 da Lei 110/2009 deve ser graduado em primeiro lugar, a questão está longe de ser pacífica quando além desses créditos concorrem outros créditos para serem pagos pelo produto da venda dos bens penhorados, como ocorre no caso em análise. No sentido defendido pelo apelante que entende que o seu crédito garantido por penhor deve ser graduado em primeiro lugar, entre outros, os acórdãos citados pelo apelante. Assim, designadamente: . No acórdão do TRG 13.02.2014, proc. 1216/13.5TBBCL-A.G1, entendeu-se que, embora estivesse em causa a graduação de um crédito garantido por penhor e um crédito laboral, garantido por privilégio mobiliário geral, acrescentou-se que “também o privilégio mobiliário geral da Segurança Social só prevalece sobre o penhor quando concorrem os dois sozinhos, mas, quando concorrem com outros créditos garantidos com privilégios mobiliários, tal prioridade não opera, graduando-se os créditos da Segurança Social depois do penhor e depois dos outros créditos privilegiados, em virtude de a norma do n.º 2 do artigo 10.º do DL 103/80 ter caráter excecional e dever ser interpretada restritivamente.” .No acórdão do TRG de 13.10.2016, proc. 764/11.6TBBCL-I.G1, igualmente se defendeu que “os créditos garantidos por penhor devem graduar-se à frente dos créditos reclamados pela Fazenda Nacional e pela Segurança Social (ambos com privilégio mobiliário geral), e por esta ordem, relativamente aos bens sobre os quais foram constituídos.” .E no Ac. do TRG de 08.07.2020, proc. 159/15.2T8VLN-B.G1, considerou-se que “os créditos garantidos por penhor, quando concorram com créditos dos Trabalhadores, do Estado e da Segurança Social, que gozam de privilégio mobiliário geral, devem ser graduados em primeiro lugar relativamente aos bens sobre os quais foi constituído o penhor, seguindo-se-lhes, pela ordem por que foram mencionados, os créditos privilegiados.” Também no recente Ac. do TRL de 9 de novembro de 2021, citado pela apelante, proc. 211/11.3TYLSBC.L1, se entendeu que no caso do crédito pignoratício concorrer com o crédito da Segurança Social e com créditos laborais, com privilégio mobiliário geral, o crédito pignoratício deve ser graduado em primeiro lugar, interpretando-se restritivamente o nº 2 do artº 204º da L 110/2009. Só no caso de estarem em confronto apenas o crédito da Segurança Social e o crédito garantido pelo penhor, é que aquele prevalecerá. Sobre a questão em apreço também já se pronunciou este Tribunal da Relação, designadamente nos seguintes dois acórdãos que citamos por serem os mais recentes, mas em sentido divergente: Assim, no Ac. de 11.01.2021, proc. 182/18.5T8TCS-A.C1, defendeu-se que, como resulta do seu sumário que “.2.O legislador, necessariamente ciente da polémica gerada à volta do teor do nº 2 do anterior artigo10º do DL nº 103/80, que contraria a graduação que resultaria do tratamento dado pelo Código Civil aos privilégios mobiliários gerais e ao penhor, optou por, no nº 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, manter aquele regime especialíssimo – de prevalência do privilégio mobiliário geral dos créditos da Segurança Social sobre o penhor, ainda que de constituição anterior. 3. A norma contida no nº 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, de 16/09, enquanto regra especial, sobrepor-se-á à regra geral do artigo 749º CC.”(…). Também no acórdão de 28.05.2019, proc. 3810/17.6T8VIS-B.C1, se entendeu que no concurso entre o privilégio mobiliário da segurança social e do IEFP, créditos laborais e créditos do Estado e o crédito garantido por penhor, prevalecem os primeiros, ainda que o penhor tenha sido constituído anteriormente, graduando-se em primeiro lugar o crédito da Segurança Social, em segundo lugar o crédito garantido por penhor e só depois os créditos laborais e os créditos do Estado, citando-se no mesmo sentido os Ac. da Relação de Guimarães de 31/03/2016, processo nº 565/14.0T8VCT-B.G1 e no Acórdão da Relação de Coimbra de 11/12/2012, no processo nº 241/11.5TBNLS-B.C1. A sentença recorrida seguiu na graduação a ordem referida no Ac. do TRC de 28.05.2019. Não se olvida que em recente acórdão do STJ de 22.09.2021, proferido no proc. 775/15.2T8STS-C.P1.S1, de 22.09.2021 se decidiu no sentido defendido pela apelante, procedendo-se à interpretação restritiva do artº 204º, nº 2 da Lei 110/2009, considerando-se que no caso em que concorrem na mesma graduação créditos garantidos por penhor, créditos com privilégio mobiliário geral emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, e créditos com privilégio mobiliário geral da Segurança Social por contribuições e quotizações, a ordem de prioridade que compete a esses créditos é a seguinte: em 1.º- o crédito pignoratício; em 2.º - o crédito laboral; e em 3.º lugar - o crédito da Segurança Social. Posteriormente, no acórdão já deste ano, de 5.04.2022, proferido no proc. 1855/17.5T8SNT-A.L1.S1, se decidiu no mesmo sentido, mas sem unanimidade, defendendo-se que, quando a graduação se estenda para concurso com créditos de outra natureza (confronto multilateral), igualmente privilegiados, a prevalência dos vários tipos de crédito em conflito, uma vez sendo eles “garantidos” (no caso, pela garantia real do penhor) e “privilegiados” (mobiliários gerais: créditos laborais e créditos fiscais, juntamente com esses créditos da Segurança Social) nos termos do art. 47.º, n.º 4, al. a), do CIRE, para efeitos de aplicação dos arts. 174.º e 175.º do CIRE, se deve seguir a ordem de prioridade determinada pelos critérios legais gerais: arts. 666.º, n.º 1, 747.º, n.º 1, al. a), e 749.º, n.º 1, do CC, 333.º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a), do CT, e 204.º, n.º 1, do CRCSPSS, assim graduando em 1º lugar o penhor. Não obstante a douta argumentação expandida nos acórdãos do STJ citados, acompanha-se o entendimento expresso no voto de vencido, sendo que a questão dará, certamente, origem a um acórdão uniformizador de jurisprudência. A circunstância deste entendimento fazer variar a graduação do penhor e do crédito da Segurança Social, da circunstância de existirem ou não outros créditos dotados de privilégio mobiliário geral, prevalecendo o crédito da Segurança Social sobre o penhor quando apenas estão os dois em confronto e prevalecendo o penhor quando em confronto com créditos laborais e créditos do Estado, caso em que o crédito da Segurança Social será graduado não em primeiro lugar, mas em terceiro (depois do penhor e do créditos dos trabalhadores) confere uma álea de incerteza que não pode ter sido pretendida pelo legislador. O legislador não desconhecia as disposições legais com que o artº 204º, nº 2 da Lei 110/2009 entra em colisão, nem as controvérsias jurisprudenciais que a norma tem suscitado e, no entanto, tem mantido ao longo dos anos a mesma norma, pretendendo deste modo conferir aos créditos da Segurança Social, devido ao relevante valor deste instituto num Estado Social de Direito, um tratamento privilegiado no confronto com o penhor e outros créditos dotados de privilégio mobiliário geral. Pelas razões expostas, entende-se que a sentença recorrida não merece censura. Sumário: (…). IV – Decisão Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida. Custas pela apelante. Notifique. Coimbra, 28 de junho de 2022 [1] A apelante faz ainda referência ao acórdão de 06.09.2021, proferido no proc.638/20.0T8SNT-A.L1, mas que não se encontra publicado. |