Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1714/13.0TBCTB-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: INVALIDADE DA VENDA EXECUTIVA
VÍCIOS DO DIREITO EFICAZES RELATIVAMENTE AO COMPRADOR
VENDA DE COISA LOCADA
FALTA DE ELEMENTOS NA PUBLICITAÇÃO DA VENDA
ANULAÇÃO DA VENDA EXECUTIVA
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 2.º DA CRP
ARTIGO 838.º, 1, DO CPC
ARTIGOS 824.º, 2; 905.º; 906.º; 1022.º; 1023.º; 1037.º, 2; 1064.º; 1072.º, 1 E 1305.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
1. - No âmbito da invalidade da venda executiva, a que alude o disposto no art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv., relativamente a direitos transmitidos com sujeição a ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, integram-se os denominados vícios do direito, por oposição aos vícios da coisa (os que afetam a coisa em si mesma).

2. - É suscetível de constituir tais «vícios do direito», entre outros, a existência de direitos pessoais sobre a coisa, desde que eficazes em relação ao comprador, como é o caso da locação, a que é equiparável, para este efeito, a existência de um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial a funcionar no imóvel objeto da venda executiva.

3. - Tendo sido anunciado, no âmbito da venda executiva em leilão eletrónico, que o imóvel a vender «é actualmente explorado pelos executados para comércio (café)», em razão do que o recorrente, enquanto proponente, formou a convicção de que eram os próprios executados quem se encontrava a usar o espaço e a explorar o estabelecimento, pelo que o imóvel lhe seria entregue, consumada a venda, livre e devoluto de pessoas e bens, ocorre um deficitário e inexato quadro informativo, veiculado no anúncio da venda, se vem posteriormente a verificar-se, pago já o preço, que quem explora o estabelecimento a funcionar no imóvel é um terceiro, mediante contrato de cessão de exploração do estabelecimento, celebrado anteriormente à execução, com convencionada cedência da exploração «a título definitivo».

4. - Num tal caso, não é exigível ao proponente aceitar a venda com a dita limitação, que não havia sido tomada em consideração, por falta de publicitação, antes lhe assistindo o direito de anulação da venda executiva, com restituição do que haja pago a título de preço e impostos sobre a transmissão.

5. - Cabendo aos tribunais, no exercício do poder/função judicial do Estado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, estes esperam daqueles uma conduta pautada pela boa-fé, verdade e transparência, em clima de confiança, em que têm o direito de acreditar na sua relação com todos os poderes públicos, devendo ser protegidas as expetativas por eles legitimamente criadas em resultado de comportamentos dos poderes do Estado – ou de quem os auxilia nos termos legalmente previstos –, aos quais se exige previsibilidade de atuação, de acordo com o princípio constitucional do Estado de Direito democrático, nas vertentes dos subprincípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

No âmbito de autos de execução sumária para pagamento de quantia certa,

que o “Banco 1..., S. A.” (exequente originário), com os sinais dos autos,

intentou contra os Executados

1.º - AA,

2.ª - BB,

3.ª - CC, e

4.º - DD,

estes também com os sinais dos autos,

tramitada a ação executiva e determinada a venda de um bem imóvel penhorado mediante leilão eletrónico,

veio o proponente, EE, também com os sinais dos autos ([1]),

apresentar requerimento ao Tribunal, onde expôs o seguinte:

- ter apresentado proposta para aquisição do imóvel penhorado nos autos (prédio urbano sito na EN ...12, freguesia ..., descrito na CRP sob o n.º ...67 e com inscrição matricial sob o art.º 1399.º), sendo que a respetiva venda foi publicitada livre de ónus e/ou encargos, como resultava destacado no anúncio correspondente;

- por isso, entendeu o Requerente que o imóvel lhe seria entregue livre e devoluto de pessoas e bens;

- assim, o Requerente tem insistido em realizar a escritura de compra e venda com entrega do prédio livre e devoluto, tendo pago o preço e os respetivos impostos;

- contudo, por mail de 03/06/2022, veio o AE (FF) informar que, quando o imóvel foi licitado, constava indicação no site E-leilões.pt no sentido de o mesmo estar ocupado;

- ter o Requerente tomado conhecimento recentemente que o café alegadamente está a ser explorado por uma sociedade comercial, «A... Unip., Ld.ª», desconhecendo aquele a que título tal acontece;

- o Requerente não pretende adquirir o imóvel sem estar livre e devoluto de pessoas e bens e de ónus e encargos;

- caso o imóvel seja transmitido com ocupantes, terá de se considerar que o Requerente se encontrava em erro sobre a coisa transmitida por falta de conformidade pelo que foi anunciado, sendo vaga a expressão de que o imóvel está ocupado, faltando esclarecer a que título se ocupa, isto é, com ou sem título, de modo a que o proponente conheça a situação real do bem, pelo que estão verificados os requisitos para anulação da venda, a que alude o art.º 838.º do NCPCiv..

Concluiu, neste âmbito incidental, por:

- dever ser ordenado ao AE que justifique a que título é ocupado o imóvel, bem como se a venda é livre de ónus, encargos, pessoais e de bens;

- dever, em caso de persistência da intenção de venda com ocupantes, ser declarada anulada a venda, ordenando-se a devolução das quantias pagas pelo Requerente (a título de preço e impostos).

Respondeu o AE (com data de 13/06/2022, a fls. 33 do processo físico), expressando-se assim:

- o Requerente/proponente efetuou a licitação mais alta, no valor de € 142.451,20, em negociação particular no site E-leilões.pt;         

- na respetiva negociação particular constava que «O imóvel é actualmente explorado pelos executados para comércio (café)»;

- assim, o proponente sabia que o imóvel estava ocupado e ali laborava um café, estando mencionado no respetivo leilão, sendo que pelas fotos também era possível verificar que o café se encontrava a laborar;

- por isso, quaisquer interessados, pela informação facultada na venda, quando licitaram, tinham conhecimento da ocupação do imóvel, funcionando ali um café.

Concluiu pela improcedência da argumentação do Requerente, devendo manter-se a venda e aquele comparecer na data e local designados para a escritura de compra e venda.

Notificado, em novo requerimento (cfr. fls. 34 e seg. do processo físico), o Requerente/proponente insistiu na sua anterior argumentação, a que acrescentou o seguinte:

- apurou-se que o café está a ser explorado por uma sociedade comercial («A...») e não pelos executados, sendo que o 1.º andar está, por seu lado, ocupado por uma senhora idosa, desconhecendo-se a que título, sendo que o Requerente não pretende adquirir o imóvel sem estar livre de pessoa e bens e de ónus e encargos;

- o Requerente encontra-se em erro sobre a coisa transmitida por falta de conformidade com o anunciado, sem o que nunca teria apresentado uma proposta tão elevada por um imóvel em tais condições, o que é imputável à vacuidade da informação prestada aquando da publicitação do bem a vender, sem esclarecimento do título a que o imóvel é ocupado.

Concluiu pela declaração judicial de anulação da venda, ordenando-se a devolução das quantias já pagas (preço e impostos).

Os Executados DD e AA, notificados, referiram que a Executada CC reside no 1.º andar do imóvel desde 1976, sendo a sua casa de habitação, enquanto no rés-do-chão se encontra a laborar um estabelecimento de café, explorado, desde o ano de 2012, pela dita sociedade «A...».

Por decisão judicial incidental, datada de 20/10/2022, foi decidido julgar «totalmente improcedente a arguida anulação da venda invocada pelo proponente», com «Custas do incidente criado a cargo do arguente (…)».

Inconformado, recorre o Requerente/proponente, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([2]):

«

O imóvel penhorado nos autos encontra-se registado em comum e sem determinação de parte ou direito a favor de DD com BB no regime de Comunhão de adquiridos;

CC, viúva; e

AA, divorciado.

Por óbito do Sr. GG casado que foi com a D. CC no regime de Comunhão geral, por sua vez pai do DD e do AA.

A presente execução foi proposta contra, DD; BB; CC; e AA.

Por decisão do AE de 07/08/2019 refª2042648 foi decidido promover a venda judicial da totalidade do prédio penhorado.

Na sequência de diversas tentativas frustradas de venda do imóvel em 22/02/2022 o sr AE decidiu prosseguir com a inserção do imóvel penhorado na plataforma do E-leilões.

Assim, foi publicitada a venda do imóvel penhorado nos autos, por meio de leilão electrónico, anunciado nos seguintes termos: (factos provados)

“Descrição: Penhora do prédio urbano composto por cave, rés-do-chão e forro servindo de comércio e habitação, sito em Estrada ..., ..., ..., descrito na CRP ... sob o prédio n° ...67 da freguesia ... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo nº ...99.

Observações: O imóvel é actualmente explorado pelos executados para comércio (café). (nosso sublinhado e negrito)

Será promovida a venda do imóvel na totalidade nos presentes autos, com divisão do produto obtido com o Processo de Insolvência dos executados DD, BB e AA.

Foram os executados notificados dos deveres de fiéis depositários do bem, nos termos do artigo 818.º do CPC sob pena do artigo 761.º do CPC. É da única e exclusiva responsabilidade do proponente a verificação do estado do bem imóvel a adquirir, no entanto o mesmo de deverá assegurar-se que o bem imóvel corresponde às suas expectativas e se encontra nas condições desejadas. O imóvel é vendido no estado em que se encontra pelo que os interessados na aquisição que devem proceder à verificação prévia do estado do bem. A falta desta verificação por parte do proponente não determina, nos termos legais, a anulação da venda, não poderá assim ser motivo invocável nulidade de venda.

Observações (para administração da plataforma): Será promovida a venda do imóvel na totalidade nos presentes autos, com divisão do produto obtido com o Processo de Insolvência dos executados DD, BB e AA», tendo-se também anunciado como valor base € 159.315,98 e valor mínimo € 135.418,58”

Em 06/05/2022 com refª2880898, foi adjudicado o imóvel penhorado ao recorrente pelo valor de 142451,20€.

Em 07/06/2022 por requerimento com refª2916217, o recorrente veio expor e requerer que caso persista a intenção do AE em vender o imóvel com ocupantes requer a anulação da venda e a devolução das quantia por ele pagas a título de preço e impostos.

O sr AE veio responder ao peticionado pelo recorrente pugnando pelo indeferimento do requerido e aproveitou para juntar cópia do anúncio da venda electrónica.

Em 30/06/2022 com a refª2937809, o recorrente manteve a sua posição

Após o decurso do contraditório foi proferida a decisão recorrida em 20/10/2022.

10ª

O pressuposto da anulação da venda executiva invocado pelo recorrente consiste no erro sobre a coisa (penhorada) por falta de conformidade com o que foi anunciado.

11ª

A publicidade da venda efectuada pelo AE induziu o comprador em erro pensando que quem ocupava o café eram os executados, DD, BB e AA, a título pessoal.

Consequentemente, com a venda judicial estes tinham de abandonar o imóvel e o próprio café.

12ª

Surge inesperadamente um novo interveniente no processo com um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, por documento escrito datado de 01-08-2012, isto é a A..., Unipessoal Lda. (cfr. factos provados nº03)

13ª

A montante da A..., lda se situa uma outra sociedade, B... Lda.

Desconhecendo-se a que título e legitimidade surge como cedente do espaço comercial, será por ser arrendatária, comodatária, cessionária, trespassária, entre outras.

O anúncio é completamente omisso face a estes factos e oculta duas sociedades comerciais com interesses no imóvel e que o desvalorizam.

14ª

Do requerimento de 26/09/2022 com a refª 3002219 veio o executado, DD, e o ex-executado, AA, informar que reside neste imóvel desde 1980 a D. CC, o que se reclama deve ser considerado provado para a boa decisão da causa por alegado oportunamente por um dos intervenientes nos autos.

15ª

A expressão usada pelo AE na publicitação da venda que o imóvel, café, está ocupado e a ser explorado pelos executados é vaga, pois tem de se esclarecer a que título ocupam, isto é com ou sem título de forma, duração, de modo a que o proponente tenha uma noção clara da situação real do bem a licitar.

Além disso, deveria constar da publicidade a referência a CC, A..., Unipessoal Lda, e a B... Lda., a ocupação do imóvel e do café, e qual o título para tal ocupação.

16ª

A publicidade, propostas e despacho de adjudicação notificados ao recorrente são completamente omissos quanto a estes factos.

17ª

Considera o recorrente que o tribunal “a quo” fez errada interpretação do disposto no art.838º do CPC.

18ª

A existência de um contrato de cessão definitiva do estabelecimento de café instalado no prédio penhorado, efectuado por um terceiro que não os executados, e ainda a utilização do imóvel como habitação da D. CC, deve ser entendido como um ónus ou limitação que não foi tomado em consideração pelo recorrente e que exceda os limites inerentes aos direitos da mesma categoria e que seria essencial para este formar a sua decisão, pois influencia o valor do bem e o destino que o comprador lhe pretende dar.

Nestes termos requer a V.Exªs se dignem revogar a douta decisão recorrida e substituí-la por outra que declare anulada a venda dos autos e ordene a devolução ao recorrente das quantias por ele pagas a título de preço e impostos.».

Contra-alegou a “C..., S. A.” (enquanto atual parte exequente), pugnando pela total improcedência do recurso.


***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo – foi indeferida a atribuição de efeito suspensivo requerida pelo Recorrente –, tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos, de forma fundamentada pelo Relator, o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do recurso

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação, inexistindo impugnação da decisão de facto, saber se estão, ou não, verificados os requisitos da pretendida anulação da venda executiva, ao abrigo do disposto no art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv., com as inerentes consequências.


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III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

Na 1.ª instância foram julgados provados – de forma incontroversa – os seguintes factos:

«1. Nos presentes autos de execução foi decidido pelo Sr. Agente de Execução efectuar a venda do imóvel penhorado em causa por meio de leilão electrónico, tendo sido anunciado o mesmo através da respectiva plataforma, onde foi anunciado o seguinte:

«Descrição:

Penhora do prédio urbano composto por cave, rés-do-chão e forro servindo de comércio e habitação, sito em Estrada ..., ..., ..., descrito na CRP ... sob o prédio n° ...67 da freguesia ... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo nº ...99.

Observações:

O imóvel é actualmente explorado pelos executados para comércio (café). Será promovida a venda do imóvel na totalidade nos presentes autos, com divisão do produto obtido com o Processo de Insolvência dos executados DD, BB e AA. Foram os executados notificados dos deveres de fiéis depositários do bem, nos termos do artigo 818.º do CPC sob pena do artigo 761.º do CPC. É da única e exclusiva responsabilidade do proponente a verificação do estado do bem imóvel a adquirir, no entanto o mesmo de deverá assegurar-se que o bem imóvel corresponde às suas expectativas e se encontra nas condições desejadas. O imóvel é vendido no estado em que se encontra pelo que os interessados na aquisição que devem proceder à verificação prévia do estado do bem. A falta desta verificação por parte do proponente não determina, nos termos legais, a anulação da venda, não poderá assim ser motivo invocável nulidade de venda.

Observações (para administração da plataforma):

Será promovida a venda do imóvel na totalidade nos presentes autos, com divisão do produto obtido com o Processo de Insolvência dos executados DD, BB e AA», tendo-se também anunciado como valor base € 159.315,98 e valor mínimo € 135.418,58.

2. Na modalidade de negociação particular, através de leilão electrónico, a proposta mais alta foi a oferecida pelo aqui arguente, no valor de € 142.451,20.

3. Foi outorgado entre B... Lda., e A..., Unipessoal Lda., acordo designado «contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, por documento escrito datado de 01-08-2012, por via do qual o primeiro declarou ceder à segunda a exploração do estabelecimento comercial designado «Café Restaurante – ...», instalado na Estrada Nacional ...12, ..., ....» ([4]).


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B) Substância jurídica do recurso

Da anulação da venda executiva de imóvel por meio de leilão eletrónico

Invoca o Recorrente (proponente na venda executiva de imóvel empreendida nos autos, tendo já depositado o respetivo preço, no âmbito de leilão eletrónico em que foi licitante) ter sido induzido em erro (conclusão 11.ª) pelo teor da publicidade da venda efetuada pelo AE.

Nesse horizonte, refere que, enquanto comprador, foi levado a pensar que quem ocupava o café, que labora no rés-do-chão do imóvel, eram os executados (DD, BB e AA), a título pessoal, pelo que, por efeito da venda forçada (venda judicial), estes teriam de abandonar o imóvel e o próprio café.

Porém, refere o Apelante – como o fizera já anteriormente, por requerimento, enquanto proponente com preço pago – que surgiu «inesperadamente um novo interveniente no processo», dotado de contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, como resulta de documento escrito (datado de 01/08/2012 e, entretanto, junto ao processo), isto é, a aludida «A..., Unipessoal Lda.», a montante da qual se situa ainda outra sociedade, «B... Lda.», desconhecendo-se a que título e legitimidade surge esta como cedente (conclusões 12.ª e 13.ª).

Certo é, a seu ver, que o anúncio é completamente omisso face a estes factos e oculta duas sociedades comerciais com interesses no imóvel e que o desvalorizam, termos em que conclui que a expressão usada pelo AE na publicitação da venda, no sentido de o imóvel/estabelecimento de café estar ocupado/explorado pelos executados, é vaga, não esclarecendo a que título ocupam, de modo a que o proponente conhecesse a situação real do bem (cfr. conclusão 15.ª). Em suma, na sua ótica, existe «manifesta desconformidade entre o que foi anunciado e o adjudicado» (cfr. parte final da motivação recursiva), existindo «ónus ou limitação que não foi tomada em consideração», excedendo «os limites inerentes aos direitos da mesma categoria», com essencialidade para a formação da decisão de comprar (conclusão 18.ª).

A esta argumentação – já vertida, no essencial, em anterior(es) requerimento(s), como referido – não foi sensível a 1.ª instância, em sintonia, aliás, com posição vertida a respeito pelo AE.

O Tribunal a quo fundamentou o seu juízo incidental de improcedência, à luz do invocado preceito do art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv. – e considerando que a venda «foi devidamente anunciada no portal respectivo», em cuja publicidade foi mencionado que «O imóvel é actualmente explorado pelos executados para comércio (café)» –, pelo seguinte modo:

«(…) perante o teor da publicitação devidamente realizada qualquer cidadão médio, colocado nas circunstâncias concretas que se colocavam ao ora arguente, teria de contar que a aquisição a efectuar iria ser confrontado com uma exploração comercial do café. Bastava uma leitura atenta do anúncio em causa. Ademais, o contrato de cessão de exploração não confere ao seu titular qualquer direito real, mas sim um mero direito obrigacional. Sendo o contrato de cessão de exploração anterior à penhora determinante da venda executiva, tal venda não implica a caducidade deste contrato ainda que o bem vendido estivesse onerado por hipoteca registada anteriormente a favor do adquirente. Da tipicidade dos direitos reais e seu numerus clausus resulta a impossibilidade da aplicação analógica ao contrato de cessão de exploração do n.º 2 do art. 824.º do Código Civil por tal contrato conferir ao seu titular um direito de crédito, obrigacional e não real.

Situação diferente é se o ora arguente, na pele de proponente, não atentou devidamente nesse anúnciosibi imputet.

A circunstância do proponente, qualquer que ele seja, apresentar uma proposta para o efeito de venda por negociação acarreta a necessária eventual responsabilização pela mesma, desde que seja a vencedora e, como tal, aceite pelo agente de execução, sendo certo que o anúncio foi inequívoco, não podendo a circunstância de existir um estabelecimento comercial (tendo ele sido anunciado) determinar a anulação da venda, desde logo porque não há desconformidade entre o objecto anunciado e o objecto real, sendo certo que aquele referido ónus só não foi tomado em consideração pelo comprador por falta de precaução.

Com efeito, para que a situação em causa se enquadrasse na estatuição contida no art. 838.º do Código de Processo Civil e levasse à anulação da venda teríamos que concluir pela existência da apontada desconformidade ou pela existência de algum ónus ou limitação que fossem desconhecidos até aí. E essa situação não se verificou no caso vertente.» (destaques aditados).

Apreciação da Relação:

Só em parte se concorda com a argumentação do Tribunal recorrido, discordando-se – diga-se desde já e com todo o respeito devido – do sentido decisório adotado, pelos motivos que a seguir se exporão.

Vejamos.

Dispõe o art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv. (norma convocada pelo Julgador e pelo Recorrente, por se encontrar no centro da discussão e decisão da matéria recursiva) que:

«Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil.» (itálico aditado).

Também o art.º 905.º do CCiv. – a propósito da venda civil de bens onerados – se refere a direitos transmitidos sujeitos a alguns ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria.

Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela, a respeito desta norma de direito substantivo, está em causa «a existência de encargos ou ónus que incidam sobre o direito transmitido (vícios do direito) e não a existência de vícios da coisa». Neste âmbito, exemplificam tais Autores serem vícios do direito «um usufruto, uma hipoteca, um privilégio por obrigação anterior que se venha a executar, um penhor, uma servidão, etc.», já não o sendo «os encargos ou ónus inerentes aos direitos da mesma categoria, como são as limitações legais ao direito de propriedade e as servidões legais. São estes os limites normais a que se refere o artigo» ([5]).

Mais adiante, prosseguem os mesmos Autores: «Cabem no âmbito do preceito, quer os direitos reais de gozo, quer os direitos reais de garantia, quer os próprios direitos pessoais sobre a coisa, desde que eficazes em relação ao comprador, como é a locação.» ([6]).

A locação – como é sabido e resulta da lei – é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição (art.º 1022.º do CCiv.), a qual é denominada de “arrendamento” se versar sobre coisa imóvel (art.º 1023.º do CCiv.), como no caso de um prédio urbano, âmbito em que o respetivo contrato será de arrendamento urbano (cfr. art.ºs 1064.º e segs. do CCiv.).

Sendo obrigação do locador/senhorio proporcionar à outra parte o gozo temporário da coisa, o arrendatário tem o direito a usar efetivamente da coisa/imóvel para o fim contratado, ficando, pois, com a disponibilidade do bem (cfr. art.º 1072.º, n.º 1, do CCiv.), por todo o tempo do contrato, ao ponto de poder, se privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos, usar, mesmo contra o locador, dos meios facultados ao possuidor nos art.ºs 1276.º e segs. do CCiv. (cfr. art.º 1037.º, n.º 2, do mesmo Cód.).

Donde que bem se compreenda que um arrendamento, enquanto direito pessoal (de pendor obrigacional) sobre a coisa, se dotado de eficácia em relação ao comprador, possa caber na economia, quer do disposto no art.º 905.º do CCiv. (quanto à venda civil de bens onerados), que do art.º 838.º, n.º 1, primeira parte, do NCPCiv. (quanto à venda executiva inválida).

Em qualquer dos casos, com efeito, trata-se de um ónus ou, melhor, de uma limitação sobre o direito de propriedade que se pretende transmitir, visto que o direito de propriedade confere ao respetivo titular o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (cfr. art.º 1305.º do CCiv.).

Ora, é esse gozo pleno e exclusivo do direito de uso do proprietário que resulta limitado em caso de existência de um contrato de arrendamento, visto o imóvel estar na disponibilidade/uso do arrendatário, e não do proprietário, por todo o tempo do contrato, sendo até sabido e compreensível que, em termos de valor comercial, é desvantajoso alienar um imóvel que se encontre arrendado (mormente se for prolongado o prazo do arrendamento), implicando um preço de venda normalmente inferior em comparação com um imóvel semelhante que se encontre devoluto e, como tal, pronto a ser habitado.

No caso, apurou-se que no rés-do-chão do imóvel objeto da venda executiva se encontra instalado um estabelecimento de café, o que não era desconhecido do Recorrente/proponente.

Acontece, todavia, que esse estabelecimento comercial (de café), que funciona no imóvel, foi objeto, já em agosto de 2012 – sabido que, pela numeração dos autos, a execução é posterior, por ter sido intentada no ano seguinte (2013) –, de um denominado «contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial», sendo declarante cedente uma sociedade e cessionário um terceiro (a dita «A...»), constando mesmo do documento referente a tal contrato, adquirido entretanto para os autos por junção da parte executada, que a cessão de exploração é, declaradamente, «a título definitivo» ([7]), sem que resulte esclarecido qual o direito da cedente, sobre o espaço físico/imóvel, que lhe permite manter ali instalado o estabelecimento, designadamente, se um direito de arrendamento, como tal anterior à execução e à penhora.

Como quer que seja, tal anterior existente cessão de exploração «definitiva» de estabelecimento, que funciona, ocupando-o, no rés-do-chão do imóvel em causa, impondo-se ao adquirente/proponente, constitui clara limitação ao direito de propriedade objeto da transmissão em venda executiva, como tal, em prejuízo do aqui Recorrente.

Mas sabia este – ou deveria saber – da existência de tal limitação ao direito de propriedade sob transmissão forçada/executiva? Ao ponto de se poder concluir que apenas de si próprio (da sua incúria/negligência, como comprador) se poderá queixar?

Aqui, cabe notar que a venda executiva é promovida sob a autoridade do Tribunal, mesmo que por AE, mesmo que através das modernas tecnologias (leilão eletrónico).

Por isso é que já foi entendido claramente nesta Relação que a «venda forçada é uma verdadeira venda, em que a intervenção do Estado é em nome próprio, sobrepondo-se ao executado» ou, dito «de outro modo, sendo a venda executiva uma verdadeira venda em que os intervenientes (outorgantes) são o Estado (pelo lado do vendedor) e o comprador - a mesma só se verifica quando há a convergência (o encontro) das declarações negociais (digamos, assim) do Estado e do comprador.» ([8]).

Quer dizer, é o Estado, através dos Tribunais – e de quem estes se socorrem como seus “auxiliares” na tarefa da venda do património penhorado, com maior ou menor desjudicialização de tarefas no seio do processo executivo, mas sempre sob a autoridade/controlo de um juiz –, quem toma a seu cargo a execução e a venda executiva, cabendo-lhe, obviamente, fazer cumprir integralmente a lei na venda forçada com vista à satisfação do crédito exequendo.

Assim sendo, é ao mesmo Estado/Tribunais, no caso através de quem tinha a seu cargo a realização da venda, que cabe bem desempenhar a tarefa de publicitação da venda executiva, havendo, em caso de incumprimento/deficit de publicitação a respeito, de ser extraídas as legais consequências ([9]).

Vem provado, no caso, sem controvérsia, que o AE decidiu efetuar a venda do imóvel por meio de leilão eletrónico, tendo sido anunciado o mesmo através da respetiva plataforma, onde foi explicitado, para além da «Descrição» do prédio, mencionando-se ser o mesmo «composto por cave, rés-do-chão e forro, servindo de comércio e habitação», que «O imóvel é actualmente explorado pelos executados para comércio (café)».

Daqui tem de retirar-se, em sede interpretativa ([10]), que foi anunciado que o imóvel em venda executiva era explorado pelos próprios executados para comércio, encontrando-se, por isso, na disponibilidade – sem prejuízo da penhora e dos respetivos efeitos – deles (executados), enquanto ainda proprietários do bem a vender.

Não poderia extrair-se de um tal enunciado que o imóvel era usado por terceiro(s), que o estabelecimento comercial de café ali instalado era pertença de outrem, que o rés-do-chão estava no gozo (“ocupado”, nas palavras do Recorrente) de outrem, que não os executados.

Jamais naquela publicitação se alude a qualquer cessão de exploração do estabelecimento ou ao uso por terceiros (designadamente, sociedades/pessoas coletivas), muito menos a uma cessão a título «definitivo», posto apenas se inculcar a ideia de que o gozo/exploração era levado a cabo pelos ditos executados.

Ora, como parece evidente, é totalmente diferente para um potencial comprador, mesmo que em venda executiva, que o imóvel penhorado e em venda esteja a ser usado pelos executados ou, em vez disso, esteja no gozo ou fruição de um terceiro, mormente por via de contrato de cessão de exploração de estabelecimento celebrado anteriormente à penhora e à própria execução.

No primeiro caso, por efeito da venda executiva, os executados têm de abrir mão do imóvel (e seu uso), deixando-o livre e devoluto, pelo que terão de cessar ali a exploração do estabelecimento comercial, sendo o espaço entregue, logicamente, ao adquirente.

No segundo caso, diversamente, a posição jurídica do terceiro cessionário, que explora o estabelecimento instalado no prédio, por força da anterioridade do contrato (e decorrente constituição do seu direito de gozo), não pode ser afetada pela venda judicial, o que implica que o imóvel seja transmitido para o adquirente com essa limitação, a qual, como é bom de ver, excede os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria (limitando seriamente o direito de propriedade sobre o bem).

É certo que também se provou constar do anúncio ser da «única e exclusiva responsabilidade do proponente a verificação do estado do bem imóvel a adquirir», pelo que «deverá assegurar-se que o bem imóvel corresponde às suas expectativas e se encontra nas condições desejadas». Assim, «O imóvel é vendido no estado em que se encontra pelo que os interessados na aquisição que devem proceder à verificação prévia do estado do bem. A falta desta verificação por parte do proponente não determina, nos termos legais, a anulação da venda, não poderá assim ser motivo invocável nulidade de venda» (destaques aditados).

Ora, esta alusão – em jeito, numa certa perspetivação, de “quase cláusula de exclusão de responsabilidade” e, na ótica inversa, de não invocabilidade de vícios ([11]) – deve entender-se como reportada ao estado do bem imóvel, a ser vendido no estado em que se encontra, o que logo nos remete para o estado físico do prédio, tratando-se de uma casa/edificação, isto é, os chamados «vícios da coisa», e não para, já no plano jurídico, os denominados «vícios do direito».

Acresce que a dita «verificação prévia» (ou a falta dela) não poderia, logicamente, reportar-se à mencionada exploração do imóvel pelos executados para comércio (café), posto nessa parte ter o âmbito/conteúdo informativo sido claro/expresso, não deixando margem para dúvidas ou acrescidas indagações/verificações pelos interessados na compra e venda executiva ([12]). Assim, era também um âmbito informativo esgotante quanto ao aspeto em discussão.

Em suma, está verificado deficit de informação em sede de anúncio da venda, não sendo a situação imputável ao Recorrente/proponente, que não incumpriu nenhum dever de indagação/verificação, não podendo a sua conduta considerar-se negligente, antes se constatando a ocorrência de um vício do direito quanto à coisa vendida, resultante de uma limitação que, não tomada em consideração, excede os limites normais inerentes ao direito de propriedade objeto de transmissão.

Dúvidas não temos, pois, de que, com esta informação veiculada ao tempo do anúncio da venda executiva, se inculcava a ideia de que o imóvel era vendido sem a limitação aludida, pelo que era razoável/legítimo que um proponente normal concluísse que a exploração do estabelecimento de café (por parte dos próprios executados) cessaria com a venda, termos esses em que o imóvel seria entregue ao adquirente livre de quem procedia a tal exploração e dos bens/elementos para tanto implicados (livre de pessoas e bens).

Assim, o destinatário da informação – veiculada pelos serviços mandatados, de auxílio à Justiça na venda executiva – podia criar, justificadamente, a expetativa, sem mais, de que o imóvel lhe seria entregue sem ocorrência de tal vício do direito.

Ora, ao cidadão comum (comummente um não especialista em questões jurídicas e processuais) mais não restava, nesse contexto, do que confiar na veracidade/exatidão da informação que era transmitida/anunciada, não lhe sendo exigível que desconfiasse da comunicação veiculada, na sede própria – por quem tinha o respetivo dever de informar –, de que eram os executados (não outrem) quem explorava o estabelecimento comercial instalado no prédio.

É sabido que quem opta por prestar informações, mesmo não estando obrigado a fazê-lo, pode ficar sujeito a um dever de informação completa, de molde a evitar um quadro informativo enganoso por omissão, como pode ver-se, no campo contratual/privatístico, explicitado no Ac. TRL de 13/03/2014, Proc. 1122/11.8TVLSB.L1-6 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt ([13]).

Doutrina esta que deve colher aplicação, por maioria de razão, em relação aos serviços/órgãos do Estado, ou que com eles colaboram nos termos da lei (no caso, serviço ligado à Justiça, em âmbito processual, perante o cidadão, com inerente dever de boa-fé e verdade), que apresentam/anunciam um quadro informativo aos interessados/destinatários em venda executiva, para efeitos de aquisição de bens/imóveis penhorados – quanto à situação destes –, horizonte em que esse quadro informativo não pode ser inexato, nem deficitário ([14]).

Assim sendo, a expetativa do ora Recorrente que, uma vez criada e legitimamente justificada, lhe foi inviabilizada (em termos de concretização da venda, nos moldes pretendidos), tem agora de ser protegida quanto ao dito vício do direito, no quadro da invalidade da transmissão, sob pena de ofensa aos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos (como subprincípios concretizadores do Estado de Direito democrático – art.º 2.º da CRPort.).

Por isso, a decisão recorrida não pode ser mantida, antes havendo de reconhecer-se razão ao Recorrente, determinando-se, em substituição ao Tribunal a quo, a anulação da venda, ao abrigo do disposto no art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv., com as legais consequências, implicando, como peticionado, a restituição ao Apelante das quantias que haja pago – a título de preço e imposto(s) incidente(s) sobre a venda inválida, se suportado(s) ([15]).

                              (…)              ***

                                                 ***

V – Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão recorrida, declarando-se, em substituição ao Tribunal a quo, a anulação da venda executiva, como incidentalmente requerido pelo Apelante, ao abrigo do disposto no art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv., com as legais consequências, implicando a restituição àquele das quantias pagas no âmbito da venda inválida (a título de preço e imposto, na medida em que suportado).

Custas da apelação pela Exequente/Recorrida – parte vencida no recurso (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 28/02/2023

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro





([1]) Após comunicação do agente de execução (AE), datada de 06/05/2022, contendo decisão nos seguintes termos: «Face aos termos seguidos por negociação particular – art.º 832.º, al.ª d) e do n.º 1do art.º 837.º do C.P.C., foi realizada a venda dos bens móveis por leilão eletrónico em modalidade de negociação particular (…).
(…) consta como melhor proposta apresentada por EE a de valor – 142451,20 € ID da proposta  - NP...22 para o imóvel identificado na certidão que se anexa.
(…) aceito a proposta apresentada para aquisição do imóvel penhorado nos autos (…).
(…) é realizada a venda do imóvel na totalidade nos presentes autos (…).
(…) será o proponente notificado para em 15 dias, depositar o preço numa instituição de crédito à ordem do agente de execução (n.º 2 do art.º 824.º do C.P.C.), no prazo legalmente fixado.» (cfr. fls. 26 v.º do processo físico).
([2]) Que se deixam transcritas.
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Mais se deixou consignado: «Deram-se como provados os factos acima constantes tendo em conta a certidão de referência n.º 2888655, do comprovativo do registo de proposta em negociação particular, através da plataforma e-leiloes.pt, bem como documentos n.ºs 1 e 2 juntos a 13-06-2022 pelo Sr. AE, bem como o contrato de cedência de exploração de estabelecimento comercial junto a 26-09-2022.».
([5]) Cfr. Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1986, p. 202.
([6]) Op. cit., p. 203.
([7]) Cfr. documento de fls. 40 v.º a 41 v.º do processo físico, do qual consta ainda ser sócio gerente da sociedade cedente – por este representada na outorga do contrato de cessão de exploração – o executado DD.
([8]) Assim o Ac. TRC de 11/12/2018, Proc. 823/11.5TBVIS-E.C1 (Rel. António Carvalho Martins), disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário em parte se transcreveu.
([9]) Veja-se o entendimento sufragado no Ac. TRL de 28/04/2022, Proc. 6589/04.8YYLSB-A.L1-2 (Rel. Arlindo Crua), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se:
«(…)
V– constitui ónus da encarregada de venda (que igualmente desempenhava as funções de agente de execução, tendo operado a penhora de tal imóvel) a aferição acerca da totalidade dos ónus ou limitações do bem cuja venda executava, no âmbito do mandato conferido – o nº. 1, do artº. 833º, do CPC -, de forma a poder concretizar uma venda totalmente esclarecida e com total lisura para os potenciais interessados, e não propriamente ónus da interessada proponente aferir previamente acerca da existência ou inexistência daquele licenciamento;
VI– tendo a encarregada de venda optado pela execução de tal modalidade de venda através de anúncio publicitado na plataforma electrónica e-leiloes.pt, impunha-se-lhe que neste fosse observado todo o manancial informativo e esclarecedor, de forma a proporcionar aos potenciais interessados uma decisão conscienciosa, esclarecida e responsável;».
([10]) Por ser a única interpretação que o texto consente, mormente a um normal declaratário – colocado na posição do real declaratário (cfr. art.º 236.º, n.º 1, do CCiv.) –, que não poderia, de modo algum, concluir que, afinal, não eram os executados, mas um terceiro, a “explorar”/usar/“ocupar”.
([11]) Pertinentes serão, quanto a deveres de informação, as palavra do dito Ac. TRL de 28/04/2022, no sentido de caber ao AE/encarregado da venda «a aferição acerca da totalidade dos ónus ou limitações do bem cuja venda executava, no âmbito do mandato conferido», elementos que, funcionalmente, lhe cabia obter, com intransferível dever de cabal informação a respeito (informação essa a facultar aos interessados/proponentes, em vez de lhes assacar um dever próprio de obtenção da informação).
([12]) Se era expressamente anunciado que se tratava de exploração do imóvel pelos executados, não ocorreria a um proponente normal despender energias e desencadear esforços no sentido de confirmar se assim era de facto ou se, diversamente, o espaço era usado/“ocupado” por outrem/terceiro.
([13]) Em cujo sumário pode ler-se, na órbita do princípio da boa-fé, que: «3. - É possível a existência de declaração inexacta (desconforme com a realidade) apesar de todos os factos relatados serem verdadeiros, se tal declaração for globalmente enganadora por falta de referência a outros que, assim omitidos, afectam o peso do factualismo declarado – hipótese em que o quadro comunicado pode ser literalmente verdadeiro, mas enganador por criar uma impressão contrária à verdade. //4. - Em tais casos, a parte declarante, mesmo que inicialmente não obrigada ao dever de informação, se opta por prestar informações, terá então de ser especialmente cuidadosa em assegurar que a outra parte não é enganada pelo que lhe é comunicado, justificando-se então um dever de verdade.».
([14]) Como enfatizado no Ac. TRC de 05/05/2015, Proc. 50/14.0T8CNT.C1 (Rel. Alexandre Reis), em www.dgsi.pt: «(…) incumbindo aos tribunais, no exercício do essencial poder judicial do Estado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, estes não esperam da sua parte qualquer afronta ao clima de boa-fé e de confiança em que têm o direito de acreditar na sua relação com todos os poderes públicos, porquanto as expectativas por eles legitimamente criadas, resultantes de comportamentos dos poderes públicos, impõem a previsibilidade da actuação destes, ínsita no princípio do estado de direito democrático, nas suas vertentes dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.» (cfr. o respetivo sumário).
([15]) O que, embora incidentalmente alegado (de algum modo), não se mostra refletido – quanto a impostos (e respetivos montantes) – na factualidade dada como apurada, cabendo, oportunamente, à 1.ª instância a adequada verificação a respeito.