Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
262/13.3GAPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: REQUERIMENTO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 06/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 283.º, N.º 3, AL. B), E 287.º N.º 2, DO CPP
Sumário: I - Resulta da exigência das disposições legais, que o requerimento de abertura de instrução na sequência de um despacho de arquivamento ou de não acusação pelo Ministério Público, deve traduzir-se numa verdadeira acusação feita pelo requerente da abertura da instrução, contendo ou narrando todos os factos a imputar ao (s) arguido (s), o elemento subjetivo do crime bem como as disposições legais aplicáveis.
Se o mesmo for omisso quanto a estes elementos, deve ser liminarmente rejeitado.

II - Esta exigência formal e substantiva do requerimento de abertura da instrução, por parte do assistente significa também uma via ou imposição legal de concretização das garantias de defesa do arguido, sem que daí advenha qualquer limitação ao assistente no acesso aos tribunais para, também ele, fazer valer os seus direitos e pretensões.

III - O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, mas tem de ter em conta e atuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução, os factos têm que ser alegados pela assistente. A investigação do juiz, na instrução, tem como limite, aqueles factos alegados.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.          

I

            1. Nos autos supra identificados, findo o inquérito, pelo Ministério Público foi proferido o despacho de fls. 83 e 83v., no qual determinou o seu arquivamento – do crime de abuso de confiança.

            2. Face a este arquivamento, requereu a assistente A..., Lda., titular do nipc nº (...) , melhor id. nos autos, a abertura de instrução ao abrigo do artigo 287º, alínea b), do Código de Processo Penal – fls. 88 a 93 102 a 104.

            3. Por despacho de fls. 160 a 165, datado de 17 de Dezembro de 2014, e pelos fundamentos que do mesmo constam, foi rejeitado o requerimento de abertura de instrução da assistente.

            4. Não se conformando com o decidido, recorre a assistente, formulando as seguintes conclusões:

            Veio o tribunal ad quo rejeitar o requerimento para a abertura de instrução da aqui assistente com base na sua inadmissibilidade legal.

Inadmissibilidade que em súmula assenta e no facto de invocar que no caso de existir um despacho de arquivamento o requerimento para a abertura da instrução, pelo assistente, tem de consistir numa verdadeira acusação, o que no presente caso não aconteceu.

Todavia tal despacho e sustenta-se numa errada apreciação do requerimento para abertura da instrução da assistente, pois todas as formalidades legais foram cumpridas.

Do requerimento para a abertura da instrução da assistente consta o seguinte:

A denunciada foi, em 15/02/2013, destituída, com justa causa, de gerente da denunciante (ora assistente); Destituição que foi registada comercialmente e comunicada à denunciada.

Não tendo esta procedido à devolução do veículo matrícula FF (...) , que lhe estava afeto no exercício da gerência entretanto cessada.

Não o tendo efetuado voluntariamente, como se impunha, nem instada para tal.

Cometendo, deste modo, a denunciada, o crime de abuso de confiança, previsto e punível pelo artigo 205° da CP, porquanto o fez, livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei.

São estes os factos praticados pela arguida que claramente demonstram o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo descrito no artigo 205° CP, delimitando deste modo o objeto do processo.
            Os factos descritos no requerimento para a abertura da instrução são claramente o recorte unitário do pedaço de vida que se subsume ao um tipo incriminador. em concreto o crime de abuso de confiança, previsto e punido no artigo 205° do CP.

O facto descrito não se revela duvidoso, vago ou confuso.

Entende o tribunal ad quo que o facto de não se identificar a arguida na descrição não possibilita a delimitação do objecto do processo.

Porém, não se descure nem olvide que a parte introdutória do requerimento para a abertura da instrução o faz com referência ao despacho de arquivamento onde essa identificação é clara e precisa.

E decorrendo o inquérito apenas contra B... , apenas a esta se imputam os factos descritos no requerimento para a abertura da instrução.

Considerar ser inadmissível a RAI, apenas e porque não se coloca no mesmo o nome da denunciada, é impedir que um sujeito processual fique impedido de praticar atos processuais com o fim de encontrar a verdade material, por uma questão meramente formal e que se sana com a simples leitura do despacho de arquivamento que suporta o requerimento da assistente.

Até porque a instrução não deixa também de ser uma fase de investigação e nessa medida, a primeira preocupação da assistente foi demonstrar ao juiz de instrução criminal quais as diligências de investigação que deveriam ter sido realizada em sede de inquérito que se tivessem acontecido determinariam a prolação de uma acusação.

Parece-nos, claramente que este entendimento é uma violação crassa do princípio da igualdade de armas presente em qualquer processo de natureza adjetiva.

O Tribunal ad quo determina que: é manifesto que no requerimento de abertura de instrução não vêm enunciados factos imputados à denunciada e que permitam proferir uma decisão de pronúncia relativamente à mesma.            Quanto á inexistência de fatos tal não se verifica conforme se referiu em 4°.

            Da segunda parte o que a assistente conclui é que não há prova indiciária suficiente para a prolação da pronúncia.

Ora as diligências de investigação que a aqui assistente requer no seu requerimento para a abertura da instrução permitem obter essa prova indiciária.

Servindo exatamente a instrução para isso, tal como é referido pelo tribunal ad quo quando descreve o disposto no artigo 287° n.° 2 do CPPP.

Coartar tal possibilidade com base apenas numa questão meramente formal é desvirtuar o processo penal português que assenta as suas premissas num processo essencialmente acusatório e democrático, onde a igualdade de armas e o contraditório são o seu ponto de sustentação.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ SER:

A) DADO PROVIMENTO AO RECURSO;

B) SEJA DECLARADA ABERTA A INSTRUÇÃO COMO É DA MAIS ELEMENTAR E ABSOLUTA JUSTIÇA.     

            5. Respondeu o Ministério Público, dizendo em síntese:

            Está …mais que assente, que o requerimento de abertura de instrução deve constituir, substancialmente, uma acusação alternativa que vai ser sujeita a comprovação judicial, sob pena de ser inexequível e não fixar o objecto da instrução.

Ora, da análise do requerimento de fis. 100 a 105 facilmente se conclui que o mesmo não obedece a estes requisitos pois não procede à enumeração dos factos concretos que se pretende estarem indiciados.

Efectivamente o assistente limita-se a tecer as razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do Ministério Publico e, tal como refere a Srª Juiz de Instrução «. . . .apenas a partir dos pontos 19 a 23 se faz alusão a factos que podem integrar a prática do crime em análise “(sic).

            Assim, a assistente não narra quais os factos que entende estarem indiciados de forma precisa e concreta, limitando-se a relatar conclusões e com várias lacunas como a localização espacial e temporal dos factos, os elementos integradores da culpa, sendo que, tal como se apresenta, jamais poderá conduzir à prolação de qualquer despacho de pronuncia.

            Por outro lado não pode o tribunal convidar a assistente a suprir as falhas assinaladas, sob pena de estar a contender com direitos de defesa do arguido.

            Assim decidiu bem a Exa Senhora Juiz de Instrução ao não admitir por legalmente inadmissível, face à inexistência de objecto, o requerimento de abertura de instrução deduzido pelo assistente ao abrigo do artigo 287°, n° 3 do CPP.

            6. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer dizendo em síntese:

            O inquérito tem por finalidade investigar a existência de um crime, bastando a mera notícia do mesmo para que possa ser feita a respectiva denúncia, devendo o Ministério Público proceder ao registo de todas as denúncias, que lhe forem transmitidas (artigos 244 O, 247º e 262º O do Código de Processo Penal).
            Por outro lado, deve deduzir acusação se, no decurso do inquérito, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente (artigo 283
O do Código de Processo Penal).

            A instrução, por seu lado, visa comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito e o requerimento para a abertura de instrução deve conter os factos, que o Requerente espera provar, através das diligências a realizar e dos meios de prova a produzir na instrução (artigos 286 ° e 287 ° C. P. P.).

            A decisão instrutória só pode, validamente, pronunciar o arguido por factos descritos na acusação do Ministério Público ou do Assistente, ou no requerimento para a abertura de instrução, ou que não constituam uma alteração substancial deles, sendo nula em caso contrário (n 01 do artigo 309º do Cód. Proc. Penal).

            Nos termos da ai. f), do n ° 1, do artigo 1 ° do C. P. P., ocorre alteração substancial dos factos, se estes tiverem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

            Nesta conformidade, pois, a fase de instrução não é um segundo inquérito e, para que haja abertura de instrução, é indispensável que um crime esteja descrito numa acusação ou no requerimento de abertura de instrução, não bastando a mera notícia ou imputação de crimes em abstracto, sendo essencial a data da prática dos factos, a identificação do (s) arguido (s), o elemento subjectivo da infracção e uma correcta articulação dos factos imputados.

            Se nenhum crime for descrito numa acusação ou requerimento para abertura de instrução, faltar a identificação dos arguidos, a data da prática dos factos ou o elemento subjectivo, nenhuma comprovação é possível fazer da decisão de acusar ou de arquivar quanto a ele, sendo, portanto, a instrução legalmente inadmissível e o requerimento de abertura de instrução deve ser rejeitado (n 03 do artigo 287º do C.P.P.).
            Se a lei impõe a
rejeição do requerimento, obviamente que impede a sua aceitação e posterior correcção.
            Em face do exposto, e
acompanhando a resposta da Exmª Magistrada cio Ministério Público, constante de fls. 189 a 192, somos de parecer que o recurso da assistente, A... , Lda. ‘, não merece provimento, devendo ser confirmado o despacho recorrido.

            7. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.      

II

Questão a apreciar:

Da verificação ou não dos requisitos legais do requerimento de abertura de instrução, com as respectivas consequências daí emergentes.

III

Apreciando.

Dos requisitos legais do requerimento de abertura de instrução.

1. Começando pelo teor do requerimento de abertura de instrução[1], verifica-se que a assistente começa por tecer críticas à investigação feita pelo Ministério Público no sentido de que não foram devidamente investigados todos os factos e muito menos realizadas todas as diligências de prova possíveis de realizar e que, em seu entender, deveriam ter sido efectuadas.

Indica e sugere, concretamente, que diligências deveriam ter sido realizadas e que podem e devem ainda ser feitas. E, se assim se fizer, com certeza que os indícios da prática dos factos pela arguida surgirão nos autos.

2. Sobre os requisitos do requerimento para abertura de instrução, estipula o artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal:

O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c) “.

Por sua vez, exige-se no artigo 283º, nº 3, alínea b):

“ A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que me deve ser aplicada “.

E na alínea c):

“ A indicação das disposições legais aplicáveis “.

2.1. É nosso entendimento, que resulta da exigência destas disposições legais, que o requerimento de abertura de instrução na sequência de um despacho de arquivamento ou de não acusação pelo Ministério Público, deve traduzir-se numa verdadeira acusação feita pelo requerente da abertura da instrução, contendo ou narrando todos os factos a imputar ao (s) arguido (s), o elemento subjetivo do crime bem como as disposições legais aplicáveis.

Se o mesmo for omisso quanto a estes elementos, deve ser liminarmente rejeitado.

            3. Por sua vez, é do seguinte teor o despacho recorrido que indeferiu a abertura da instrução:

            “Impõe-se pois apreciar e decidir se o requerimento apresentado para a abertura de instrução cumpre os requisitos exigidos para ser admitido nos autos.

            De acordo com o disposto no artigo 287º do Código de Processo Penal:

            …

            De acordo com o disposto no artigo 286º, nº. 1 do Código do Processo Penal “ A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

            De acordo com o disposto no artigo 287º, nº. 2 do Código de Processo Penal…

            Dispõe a alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal que…

            Sendo que de acordo com a al. c) do artigo 283º, nº. 3 do Código de Processo Penal[2]

             a acusação contém, sob pena de nulidade “A indicação das disposições legais aplicáveis.”.

            Do cotejo dos preceitos legais citados resulta que o requerimento da abertura de instrução apresentado pela assistente tem de conter a indicação dos factos que fundamentam a sujeição do arguido a julgamento, assim como a indicação das disposições legais aplicáveis.

            Deve assim ser semelhante a uma acusação pública, por força da remissão operada pelo art. 287.º, n.º 2 para o art. 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal.

            Importa referir que abstendo-se o Ministério Público de acusar, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente terá de conter uma verdadeira acusação, para possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório, bem como a elaboração da decisão instrutória.

            Compreende-se tal exigência já que, não havendo acusação pública, cabe ao assistente no requerimento de abertura da instrução delimitar os factos que serão objecto de apreciação em sede de instrução.

            Tal exigência impõe-se em nome de princípios fundamentais do processo penal que têm também assento constitucional, nomeadamente o direito de defesa e a estrutura acusatória do processo penal.

            Desta delimitação do objecto do processo resulta o estabelecido no art. 303º, nº. 3 e 309º, nº. 1, ambos do C.P.P., que proíbe a pronúncia do arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura de instrução, assim como os factos que representem uma alteração não substancial dos alegados nesse requerimento só podem ser atendidos caso seja observado o mecanismo processual previsto no nº. 1 do art. 303º.

            Nesse sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/2004 (DR, II, de 28 de Junho de 2004).

            O entendimento de que o requerimento para a abertura de instrução formulado pelo assistente deve corresponder a uma acusação é unânime na jurisprudência (Ac. do S.T.J. de 25.10.2006 e 12.03.2009, in www.dgsi.pt/jstj). O nº. 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal estabelece que o requerimento para a abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

            Na inadmissibilidade legal da instrução insere-se o requerimento apresentado para a abertura de instrução apresentado pelo assistente que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos imputados ao arguido e pelos quais se pretende que o mesmo seja pronunciado.

            No caso concreto a assistente no requerimento que apresentou insurgiu-se contra o despacho de arquivamento, referindo que os indícios recolhidos seriam suficientes para justificar a submissão da denunciada a julgamento e pela prática de crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205º, nº. 1 do Código Penal.

            Determina o preceito em análise que:

            “ 1 - Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (...).

            O crime em apreço é um crime patrimonial pertencente à espécie dos crimes contra a propriedade.

            O bem jurídico protegido no crime de abuso de confiança é exclusivamente a propriedade

            O tipo objectivo de ilícito radica, em o agente ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue.

            São, assim, elementos do tipo:

            a) a apropriação ilegítima.

            b) de coisa móvel.

            c) entregue por título não translativo de propriedade.

            Apropriar é fazer sua a coisa alheia, mas diversamente do que sucede no furto aqui a apropriação sucede à posse ou detenção da coisa.

            O agente recebe validamente a coisa, passando a possuí-la ou a detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa ut dominus.

            Deixa, então, de possuir a coisa em nome alheio e faz entrar a coisa no seu património dispondo da mesma, ou seja, com o propósito de não a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada.

            Esta apropriação há-de ser ilegítima, isto é sem causa de justificação.

            No que concerne ao objecto da acção, o mesmo é como no crime de furto, uma coisa móvel alheia.

            Como já se referiu o crime de abuso de confiança pressupõe uma entrega válida de coisa móvel, feita por título não translativo de propriedade (que não implique a transferência de propriedade).

            Verdadeiramente essencial à estrutura objectiva típica da conduta é que a entrega tenha sido feita por título não translativo da propriedade, cabendo também neste domínio ao direito privado dizer quais os títulos que integram a tipicidade.

            Relativamente à consumação do crime, a mesma ocorre quando ocorre a inversão do título da posse, ou seja, no passar o agente a dispor da coisa animo domini, demonstrada esta por actos objectivos e concludentes.

            No que concerne ao elemento subjectivo do tipo de ilícito em apreço, trata-se de um crime doloso.

            Perfectibilizados os elementos objectivos e subjectivos do crime em apreço, importa agora determinar se no requerimento de abertura de instrução os mesmos vêm enunciados.

            Ora é manifesto que no requerimento apresentado para a abertura de instrução não vêm enunciados factos imputados à denunciada e que permitam proferir uma decisão de pronúncia relativamente à mesma.

            Ou seja, não se descreve uma conduta assumida pela mesma e susceptível de integrar a prática de tal crime.

            Analisado o requerimento de abertura de instrução verifica-se que no mesmo a assistente fez uma análise sobre o despacho de arquivamento e sobre as diligências realizadas em sede de inquérito.

            A assistente considerou ainda que deveriam ter sido realizadas em sede de inquérito outras diligências e que tal se impunha pois seriam úteis e necessárias ao apuramento dos factos imputados à denunciada.

            Apenas a partir dos pontos 19 a 23 do requerimento de abertura de instrução se faz alusão a factos que podem integrar a prática do crime em análise.

            No entanto a descrição desses factos não se apresenta como precisa, nem completa, por forma a considerar-se que os mesmos são suficientes para constituir uma acusação contra a denunciada.

            Ou seja, não consta do requerimento de abertura de instrução a narração de factos, com a indicação das circunstâncias de tempo e de lugar em que os factos ocorreram, bem como a descrição de factos reveladores da participação da denunciada nos mesmos, sendo que à assistente era possível fazer a descrição dos factos nesses moldes face às informações de que dispunha e dispõe.

            Ou seja, refere o assistente que a denunciada (a qual não identifica) foi destituída nem 15.02.2013 como gerente e com justa causa.

            Refere ainda que a mesma não procedeu à devolução do veículo de matrícula FF (...) e que lhe estava afecto no exercício da gerência.

            Ora não descreve a assistente factos referentes à entrega do veículo à denunciada.

            Ou seja, não consta do RAI a descrição das condições e circunstâncias em que o veículo foi entregue à denunciada, nem as condições em que a mesma o poderia utilizar, nem consta a referência às circunstâncias em que a denunciada estava obrigada a entregar o veículo.

            Refere ainda a assistente que a mesma não devolveu o veículo, no entanto não refere factos alusivos às circunstâncias que impunham essa obrigação à denunciada, nem descreve em que circunstâncias a mesma foi instada a devolver o veículo e recusou essa devolução.

            Não se alegam ainda factos dos quais se retire que a denunciada que recebeu o veículo por título não translativo de propriedade inverteu esse título da posse, comportando-se em relação ao mesmo como se fosse a sua legitima proprietária.

            Não se alegam igualmente factos objectivos dos quais se retire que a denunciada sabendo a que título possuía o veículo, passou a actuar relativamente ao mesmo como se fosse a respectiva proprietária.

            Nem se alegam factos susceptíveis de caracterizar que a denunciada actuou dessa forma intencionalmente.

            Para tal não basta a alegação que se fez contar do requerimento de abertura de instrução de que “ Não o tendo efectuado voluntariamente, como se impunha” ou de que “ agiu de forma livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei”.

            Ora ao Juiz não é permitido formular uma acusação utilizando apenas alguns dos segmentos apresentados no RAI e acrescentando outros que não constem no requerimento de abertura de instrução.

            E refira-se que a alegação de factos se reporta tanto aos elementos objectivos, como subjectivos dos crimes em apreço.

            São precisamente os elementos subjectivos do crime, por referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade da realização do tipo objectivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente.

            Não contendo o requerimento da assistente a descrição necessária dos elementos objectivos e subjectivos do crime em apreço não poderá ser admitida a instrução requerida pela assistente.

            Do que resulta exposto verifica-se que o requerimento apresentado para a abertura de instrução não é preciso na indicação dos factos objectivos e subjectivos que a serem indiciados poderiam determinar uma decisão de pronúncia em relação à arguida.

            Ou seja, a assistente não delimitou no requerimento apresentado para a abertura de instrução os factos que seriam objecto de apreciação em sede de instrução.

            Sendo que como já se deixou exposto tal exigência se impõe em nome de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente o direito de defesa e a estrutura acusatória do processo penal.

            Importa ainda sublinhar que no caso não há lugar a qualquer convite para aperfeiçoamento do RAI e na sequência da Jurisprudência fixada pelo Ac. Nº. 7/2005, nos termos da qual o convite ao aperfeiçoamento contende com o princípio das garantias de defesa do arguido, consagrado no art. 32º, nº. 1 da CRP.

            Com efeito a apresentação do requerimento da assistente para a abertura da instrução para além do prazo previsto no art. 287º do CPP violaria as garantias de defesa do arguido, pois estabeleceria um novo prazo para a abertura de instrução, sendo que tal se aplica aos casos em que há total omissão da narração dos factos, como quando a omissão é apenas parcial.

Pelo exposto, não se pode considerar válido o requerimento de abertura de instrução apresentado já que não respeita o disposto no art.º 283º, n.º 3, alíneas b) do Código de Processo Penal, aqui aplicável por remissão do n.º 2 do art.º 287º do mesmo diploma legal.

            Pelo exposto, rejeita-se por inadmissibilidade legal o requerimento apresentado pela assistente A... , Lda. para a abertura de instrução (art. 287º, nº. 3 do CPP)”.  

            4. Ora, a abertura da instrução foi requerida, nos presentes autos, pela assistente, na sequência do arquivamento pelo MºPº, quanto aos factos por que aquela apresentou queixa potencialmente constitutivos do crime de abuso de confiança. Ou seja, o objectivo da assistente é o de levar a arguida a julgamento por factos pelos quais o Ministério Público entendeu não deduzir acusação – v. artigo 287º, nº 1, alínea b), CPP.

            Ou, dizendo de outro modo, a instrução destina-se a comprovar judicialmente a decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir acusação ou de arquivar o processo. Já que em sede de instrução o que está em discussão é, exclusivamente, a comprovação da decisão tomada pelo Ministério Público, nesta apenas se vai apurar se a decisão tomada pelo Ministério público (no caso, de arquivamento) corresponde ou se adequa aos indícios existentes no processo bem como à recolha de outros indícios com base nas diligências requeridas/sugeridas e que devem ser realizadas pelo juiz de instrução – artigo 286º, do CPP.

            Todavia, segundo a CRP de 76, o processo penal tem estrutura acusatória. Pelo que esta natureza do processo penal exige, desde logo, que a intervenção do juiz não seja oficiosa.

            Pois, não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e atuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução ou, no dizer da lei, “tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura de instrução”, como refere o n.º 4 do artigo 288.º do CPP.

Ou, dizendo de outro modo, os factos têm que ser alegados pela assistente. A investigação do juiz, na instrução, tem como limite, esses mesmos factos alegados.

            O que significa que o requerimento da assistente, não tendo por detrás uma acusação que delimite o âmbito do objecto a apreciar, tenha de ser estruturado, como uma verdadeira acusação que ainda não existe no processo.

            O requerimento de abertura da instrução constituirá, pois, nestas situações[3], o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz de instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.

            No caso de requerimento de instrução do assistente, «o pressuposto da vinculação temática do processo só pode ser constituído pelos termos desse requerimento, que há-de definir as bases de facto e de direito da questão a submeter ao juiz. Na definição do objecto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há, assim, uma similitude funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura da instrução no caso de não ter sido deduzida acusação» - ac. do STJ de 24-09-2003, proc. 2299/03, http://www.dgsi,pt/.

            Segundo as palavras do Prof. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, III, pág. 139., formalmente, o assistente indica como o M.º P.º deveria ter atuado, ou seja, que «não deveria arquivar, mas acusar e em que termos o deveria ter feito», invocando razões daquela dupla vertente, sendo imprescindível que do requerimento de abertura de instrução conste a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes imputados a cada um dos arguidos e das disposições legais.

            Também Frederico de Lacerda da Costa Pinto[4], escreve no mesmo sentido, dizendo que para todos os efeitos o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente é material e funcionalmente equiparado a uma acusação, quer quanto às exigências que tem de respeitar (art.º 287.º, n.º 2 do CPP), quer quanto ao regime de constituição de arguido (art.º 57.º, n.º 1 do CPP), quer ainda quando à vinculação temática do Tribunal de instrução criminal (art.ºs 303.º, n.º 1 e 309.º, n.º 1).

           

            Esta exigência formal e substantiva do requerimento de abertura da instrução, por parte do assistente significa também uma via ou imposição legal de concretização das garantias de defesa do arguido, sem que daí advenha qualquer limitação ao assistente no acesso aos tribunais para, também ele, fazer valer os seus direitos e pretensões.

            É neste sentido que se pronuncia o TC, In Acórdão n.º 358/2004, proferido no processo n.º 358/2004, publicado no DR II série, n.º 150, de 28 de Junho de 2004, aí defendendo que o objecto da instrução tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e que tal definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, o que decorre de princípios fundamentais do processo penal, designadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória.

            Ora, a descrição factual mencionada deve conter os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o assistente considere terem sido preenchidos – ac. deste TRC de 6.7.2011, proc. nº 212/10.9TAFND.C1, onde é referenciada outra jurisprudência no mesmo sentido: acórdãos da RL de 30.03.2003, (CJ, II, pág. 131); da RP de 07.01.2009, proc. 0846210 e de 11.10.2006, proc. 0416501; da RG de 14.02.2005 (CJ, I, pág. 299); da RP de 23.05.2001 (CJ, III; pág. 238), e os Ac. da RP de 07.01.2009, proc. 0846210 e de 11.10.2006, proc. 0416501, estes dois últimos no que tange à necessidade de constar do RAI o elemento subjetivo do tipo de crime.

            5. Aqui chegados é o momento para dispensar a devida atenção ao concreto teor do requerimento do assistente em que requer a abertura da instrução.

            Mas releva ainda citar o ac. do STJ de 24.09.2003, processo 03P2299, relator Henriques Gaspar, disponível no site da DGSI, dizendo:

            “ O requerimento do assistente não sendo uma acusação em sentido processual-formal deve, pois, constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo (da instrução), e por isso, os termos e os limites dos poderes de conhecimento e de decisão do juiz de instrução – artigos 308.º e 309.º do Código de Processo Penal”.

6. Compulsado o teor do RAI e como já se assinalou em 1), verifica-se que a assistente tece críticas à investigação feita pelo Ministério Público em sede de inquérito no sentido de que não foram devidamente investigados todos os factos e muito menos realizadas todas as diligências de prova possíveis de realizar, pelo que em seu entender, devem ser efectuadas, agora em instrução, as diligências por si indicadas ou sugeridas, com vista a apurar a real responsabilidade da arguida.

            Ora, esta crítica à investigação e posição do MºPº é possível e admissível e a indicação das diligências digamos que é necessária. Mas não chega. O núcleo essencial do requerimento de abertura da instrução é a dita formulação da “acusação”, com o sentido e alcance já referido: a narração dos factos constitutivos do crime imputado à arguida e das disposições legais.

            Por isso, uma pergunta desde já se impõe:

            Os factos indicados ou narrados pela assistente no RAI, mesmo a indiciarem-se todos, só por si integram ou constituem qualquer crime, maxime o de abuso de confiança, imputado à arguida?

            A resposta é, necessariamente, negativa.

            O tipo de crime em causa é definido pelo artigo 205º, nº. 1 do Código Penal, que diz o seguinte:

            “ 1 - Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (...).

            Como bem se explicita no despacho recorrido, “o bem jurídico protegido no crime de abuso de confiança é exclusivamente a propriedade

            O tipo objectivo de ilícito radica, em o agente ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue.

            São, assim, elementos do tipo:

            a) a apropriação ilegítima.

            b) de coisa móvel.

            c) entregue por título não translativo de propriedade.

            Apropriar é fazer sua a coisa alheia, mas diversamente do que sucede no furto aqui a apropriação sucede à posse ou detenção da coisa.

            O agente recebe validamente a coisa, passando a possuí-la ou a detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa ut dominus.

            Deixa, então, de possuir a coisa em nome alheio e faz entrar a coisa no seu património dispondo da mesma, ou seja, com o propósito de não a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada.

            Esta apropriação há-de ser ilegítima, isto é sem causa de justificação.

            …

            Relativamente à consumação do crime, a mesma ocorre quando ocorre a inversão do título da posse, ou seja, no passar o agente a dispor da coisa animo domini[5], demonstrada esta por actos objectivos e concludentes.

            No que concerne ao elemento subjectivo do tipo de ilícito em apreço, trata-se de um crime doloso.

            6.1. Do teor do RAI, apesar de aí não o ter sido afirmado expressamente, é possível deduzir e concluir que:

            A arguida – que não está identificada no RAI – era sócia gerente da assistente.

            Em determinado momento – que também não está identificado no RAI, sendo certo que os elementos que constem de qualquer documento não dispensam a sua alegação e indicação expressa no lugar próprio – foi destituída desse cargo, ficando apenas com a qualidade de sócia.

            No exercício das suas funções teria à sua disposição, por conta da assistente, o uso de um veículo de matrícula FF (...) .

            Que a arguida não entregou esta viatura à assistente voluntariamente nem quando instada para o fazer.

            Como já se afirmou, estes factos, só por si, são insuficientes para se concluir pela prática de qualquer crime pela arguida.

            Com efeito, importava ainda alegar e apurar:

            a - Em que condições a arguida usava e podia usar o veículo de matrícula FF (...) .

            b - Partindo do princípio que a arguida deixava de ter direito a usar o veículo depois da sua destituição como gerente da assistente, qual o prazo ou em que termos deveria entregar o veículo à assistente. De imediato? Em prazo previamente fixado? A fixar? Quando lhe fosse exigido pela assistente?

            c - Se a arguida não entregou o veículo voluntariamente, quando lhe foi exigido pela assistente? Em que data? E qual o prazo para esta entrega?

            d - Se não foi entregue no prazo e condições fixadas pela assistente, que uso efetivo fez a arguida do veículo? Continuou a circular com ele, a fazer uso dele? Praticou algum ato de onde se possa concluir que a sua intenção era ficar com o veículo, fazer dele um bem próprio? Jamais o entregar à assistente?

            e - Finalmente, não se mostra indicado nenhum facto de onde resulte que a arguida não entregou o veículo quando o poderia e deveria fazer mas sobretudo que não fez a entrega intencionalmente, privando desse modo a assistente do uso do veículo.

            Ora, são factos imprescindíveis para deles se poder concluir pela prática do crime pela arguida. Tanto mais que o veículo veio a ser encontrado estacionado junto de uma esquadra da PSP, em circunstâncias não apuradas.

            O despacho recorrido questiona e enuncia todas as questões supra enunciadas, embora sob outros termos, a saber:

            “Ou seja, não consta do requerimento de abertura de instrução a narração de factos, com a indicação das circunstâncias de tempo e de lugar em que os factos ocorreram, bem como a descrição de factos reveladores da participação da denunciada nos mesmos, sendo que à assistente era possível fazer a descrição dos factos nesses moldes face às informações de que dispunha e dispõe.

            Ou seja, refere o assistente que a denunciada (a qual não identifica) foi destituída nem 15.02.2013 como gerente e com justa causa.

            Refere ainda que a mesma não procedeu à devolução do veículo de matrícula FF (...) e que lhe estava afecto no exercício da gerência.

            Ora não descreve a assistente factos referentes à entrega do veículo à denunciada.

            Ou seja, não consta do RAI a descrição das condições e circunstâncias em que o veículo foi entregue à denunciada, nem as condições em que a mesma o poderia utilizar, nem consta a referência às circunstâncias em que a denunciada estava obrigada a entregar o veículo.

            Refere ainda a assistente que a mesma não devolveu o veículo, no entanto não refere factos alusivos às circunstâncias que impunham essa obrigação à denunciada, nem descreve em que circunstâncias a mesma foi instada a devolver o veículo e recusou essa devolução.

            Não se alegam ainda factos dos quais se retire que a denunciada que recebeu o veículo por título não translativo de propriedade inverteu esse título da posse, comportando-se em relação ao mesmo como se fosse a sua legitima proprietária.

            Não se alegam igualmente factos objectivos dos quais se retire que a denunciada sabendo a que título possuía o veículo, passou a actuar relativamente ao mesmo como se fosse a respectiva proprietária.

            Nem se alegam factos susceptíveis de caracterizar que a denunciada actuou dessa forma intencionalmente”.

            6.2. Aqueles factos, não enunciados mas imprescindíveis, não se podem presumir nem apurar pela iniciativa do juiz de instrução. Ainda que durante esta, tais factos viessem a ser conhecidos. A este procedimento se opõe a natureza e estrutura acusatória do processo penal.

            Pois, como já dito, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, mas tem de ter em conta e atuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução, os factos têm que ser alegados pela assistente. A investigação do juiz, na instrução, tem como limite, aqueles factos alegados.

            Assim, no dizer do despacho recorrido, não contendo o requerimento da assistente a descrição necessária dos elementos objectivos e subjectivos do crime em apreço não poderá ser admitida a instrução requerida pela assistente.

            Ou seja, o RAI está formulado de tal modo que deixaria, no essencial, à realização da instrução, o apuramento daqueles factos omitidos pela assistente.

            Mas é o requerimento de abertura da instrução que constituirá o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz de instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.

            As diligências requeridas e a realizar pelo Juiz de instrução bem como a ponderação e análise de todos os elementos probatórios já existentes e os a recolher devem ter um objectivo, um fim: a comprovação ou não dos factos indicados no RAI. Não estando narrados esses factos – todos os relevantes e necessários - e não podendo o juiz de instrução supri-los, significaria que se estaria a realizar diligências e a desenvolver uma atividade judicial sem um fim processual identificado, sem objecto definido. 

            Nos termos do artigo 308º, nº 1, do mesmo diploma, se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

            Para que se verifiquem tais pressupostos de aplicação de uma pena, com certeza que terão de ser indicados os factos integrantes de um crime e quem o praticou.

            O que a assistente não fez no seu RAI. Pelo que é este inepto a produzir os efeitos pretendidos pela assistente.

            7. Embora não suscitada, aqui se referencia uma questão conexa: do eventual convite à assistente para suprir as deficiências do requerimento de abertura de instrução.

            Sem prejuízo de já ter havido um entendimento no sentido de que poderia ser feito este convite[6], no entanto, o entendimento atual da jurisprudência, desde há bastante tempo, é no sentido de que o juiz não deve convidar o assistente a aperfeiçoar o seu requerimento de abertura de instrução, mas sim rejeitá-lo de imediato, não admitindo a abertura de instrução.

            Neste sentido v. ac. do TRP de 21.06.2006, processo nº 0611176, in base de dados do ITIJ; ac. da mesma Relação de 11.10.2006, proc. nº 0416501; ac. do TRC de 1.6.2011, proc. nº 482/09.5TACTB.C1[7] e ac. do TRC de 7.2.2007, proc. nº 231/05.7GBILH.C1[8], ambos na base de dados do ITIJ.
De todo o modo, o STJ veio dirimir as divergências que ainda havia, com o Ac. de fixação de jurisprudência de 12.05.05 (Ac. nº 7/05, publicado no DR em 04.11.05) ao estabelecer que “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Tem sido esta a posição deste Tribunal da Relação de Coimbra de que são eco, entre outros, os dois acórdãos citados na decisão recorrida de 14.4.2010 e de 26.10.2011, respectivamente.

IV

Decisão

Por todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso da assistente mantendo-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 5 (cinco) UCs.

Coimbra, 24 de junho de 2015

            (Luís Teixeira - relator)

           

            (Calvário Antunes - adjunto)


[1] Por não se afigurar necessário, não se reproduz aqui o teor de tal requerimento, sendo certo que o essencial, mesmo nesta parte, se encontra nas conclusões de recurso embora de forma mais sintética, sendo ainda certo que o mais relevante se traduz na indicação ou não dos concretos factos que devem ser objecto da instrução e esses mostram-se reproduzidos nas conclusões de recurso.
[2] Todos estes preceitos já se mostram por nós supra transcritos.
[3] De arquivamento do inquérito pelo MºPº e consequente inexistência de acusação pública nos autos.
[4] Segredo de justiça e Acesso ao Processo, In jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, pág. 90.

[5] Entende-se que a expressão correta será “animus domini”.
[6] V. neste sentido, ac. do TRP, Proc. nº 0110787, de 24-10-2001, in www.dgsi.pt/jtrp e ainda os acórdãos do mesmo Tribunal da Relação do Porto de 4.12.2002, no processo 0210290, de 21.02.2001, no processo nº 0011417, de 17.05.2000, no processo 0040115 (no qual se citam, por sua vez, outros) e de 15.01.1997, no processo nº 9610734, todos consultáveis in www.dgsi.pt/jtrp.

[7] Com o seguinte sumário:
“É de rejeitar, por inadmissibilidade legal, a instrução requerida pelos assistentes, se estes não descreverem no requerimento os factos e as consequências jurídicas que imputam aos arguidos, que possam possibilitar a prolação de um despacho de pronúncia”.
[8] Onde se decidiu:
“Um requerimento para abertura de Instrução que não contém factos dos quais se possam retirar os elementos objectivos e subjectivos de um crime deve ser obrigatoriamente indeferido, por estar ferido de nulidade, sendo inadmissível a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento”.