Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
78/08.9TALSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: INSTRUÇÃO CRIMINAL
REQUERIMENTO
FALTA
FACTOS
Data do Acordão: 11/27/2013
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TIC DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REJEIÇÃO DE RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 283º, Nº 3, B) E C), 287º, N.º S 2 E 3, DO CPP
Sumário: 1.- Discordando o assistente do arquivamento do processo de inquérito por parte do Ministério Público e decidindo-se pela via processual do requerimento de abertura de instrução, fica este onerado à rigorosa observância das formalidades postuladas pelo n.º 2 do 287.º CPP, enunciando, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, bem como, sendo caso disso, a indicação dos atos de instrução que pretenda que o Juiz (JIC) leve a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito, e os factos concretos que através de uns e outros se espera provar, dos elementos constitutivos, objetivos e subjetivos de determinada/imputada infração criminal, que haverá, outrossim, que expressamente identificar, bem como da enunciação da concernente liberdade de determinação do(s) agente(s) e do pessoal conhecimento/consciência da respetiva ilicitude comportamental, ou seja, da culpa – em sentido estrito –, precisando (se tal for revelado no inquérito) as circunstâncias de tempo, lugar e modo da comissão infraccional, a motivação da respetiva realização, o grau comparticipativo do agente (autoria – imediata/material, mediata/moral ou coautoria – ou cumplicidade), e, ainda, quaisquer outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção aplicável, como, se for caso disso, as específicas menções ao passado criminal do alegado infrator, representativas, máxime, dos institutos jurídicos de delinquência por tendência, alcoolismo ou toxicomania (condicionantes de cominação de pena relativamente indeterminada), ou, subsidiariamente, de reincidência, sob pena de nulidade do próprio ato, naqueloutro dispositivo expressamente cominada;

2- A não realização por parte do assistente de tal ónus processual, constitui nulidade do requerimento de instrução que conduz á sua rejeição.

Decisão Texto Integral: DECISÃO-SUMÁRIA[1]

I – INTRODUÇÃO

1 – Irresignado com o despacho judicial – de Ex.ma Juíza de Instrução Criminal, (exarado na peça documentada a fls. 1140/1146 – 6.º vol.) –, que, por pretensa/correspondente nulidade/inadmissibilidade legal, lhe rejeitou o requerimento de abertura de instrução (doravante RAI) por si – na qualidade de assistente – formulado (na peça de fls. 1108/1110) na sequência de despacho de arquivamento processual produzido por Ex.mo magistrado do Ministério Público no termo da pertinente fase de inquérito (ínsito na peça de fls. 1057/1072), pugnando pela respectiva revogação, ou, subsidiariamente, pela anulação do inquérito, o cidadão-assistente A... dele interpôs o recurso ora avaliando, extraindo, para tanto, da referente motivação, (ínsita na peça de fls. 1149/1152), o seguinte quadro-conclusivo (por reprodução):
«[…]

O despacho recorrido considerou que o RAI do ora recorrente não continha factos que constituíssem uma verdadeira acusação.

E, por isto, encontrar-se-ia enfermo de nulidade.

Ocorre que, contrariamente, o recorrente cumpriu com o respectivo preceito, visto no artigo "1º" do RAI, fez referência a fattispecie do crime de infracção das regras de construção p. e p. pelo artigo 277º do Código Penal.

E, no artigo "3º" do seu RAI, referiu que o despacho de arquivamento afirmou que da análise do Plano de Segurança e Saúde da obra, resultou a ausência de referência a situação específica de execução de trabalhos na proximidade duma linha de média tensão em exploração.

Pelo que, ao se referir ao chamado Plano de Segurança e Saúde da obra, o recorrente reenviou para todas as circunstâncias de facto (tempo, modo e lugar da obra), não existindo qualquer questão da alta indagação ou especulação que importasse em nulidade do RAI.

Não bastassem tais circunstâncias, o recorrente imputou responsabilidade de cada arguido, conforme se verifica pela indicação dos artigos "4º" e "5º" de seu RAI, os quais contêm o seguinte:
«4° Desta forma, houve falha humana, no mínimo, com negligência, nos seguintes termos:
-a) Quem elaborou o plano de segurança não referiu a proximidade de trabalhos próximos à linha de média tensão;
-b) Quem era responsável ou encarregado de electricidade pela empresa B...não zelou pela verificação da existência ou não de técnico de segurança da obra, bem como não verificou se a EDP tinha sido alertada pela desligar o fornecimento de energia àquela linha, durante a execução dos trabalhos;
-c) Quem executou os trabalhos, próximos à linha de média tensão não questionou nem verificou junto a seguranças da obra, se os mesmos poderiam ser iniciados, sem qualquer risco.
5º Deste modo, salvo o devido respeito, contariamente ao referido pelo despacho de arquivamento, os arguidos constituídos, cada um dentro das suas funções, segundo a respectiva legis artis, deveriam e poderiam ter verificado o risco de se iniciar a execução dos trabalhos que levaram à descarga eléctrica e lesões provocadas no corpo do ofendido».

Sem se olvidar do artigo "6º" do seu RAI, onde o recorrente afirmou que os arguidos, por omissão, assumiram o risco do evento produzido.

Pelo que, por ter decidido como decidiu, o douto despacho recorrido violou o disposto pelos artigos 287º, nº 2 do CPP, bem como do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na vertente processo não equitativo.

Nomeadamente porque somente o JIC poderia realizar os actos de instrução requeridos pelo RAI e não o assistente/ofendido que não possui poder jurisdicional a fim de definir e concretizar a responsabilidade individual de cada arguido como autor/co-autor do ilícito criminal em causa.
10º
Sem prejuízo de que se o JIC entendeu que tais elementos não se encontram claros ou presentes no RAI, mutatis mutandis, então o inquérito em causa será nulo, ex vi o disposto pelo artigo 119º, al. d) do Código de Processo Penal, nesta parte.
11º
Não podendo o recorrente ser prejudicado por não poder descrever circunstâncias de facto que somente teria acesso e conhecimento, após a realização dos actos de instrução requeridos, visto o inquérito não ter realizado as diligências devidas, nesta parte, na sua inteireza, salvo o devido respeito.
[…]»
2 – O Ministério Público – em 1.ª instância e nesta Relação – pronunciou-se pela insubsistência argumentativa e pela consequente improcedência recursória, (vide respectivas peças processuais – de resposta e parecer –, a fls. 1158/1162 e 1170 e v.º).

II – AVALIAÇÃO

§ 1.º – Legalidade do despacho recorrido

1 – Decidindo-se o Ministério Público pelo arquivamento do processo de inquérito, o sujeito-assistente (posto, claro está, que, tendo para tanto legitimidade, assuma formalmente o respectivo estatuto), caso de tal discorde, tem duas vias processuais alternativas e facultativas à sua disposição tendentes à sujeição do(s) denunciado(s)/arguido(s) a julgamento:
a) O incidente de reclamação para o superior hierárquico do magistrado titular do inquérito, com vista à sua intervenção, no prazo de 20 dias, no sentido da determinação de dedução de acusação, do prosseguimento das investigações ou de realização de específicas diligências, (cfr. art.º 278.º do CPP);
b) Ou o requerimento de abertura de instrução (RAI), no prazo peremptório de 20 dias, contados da notificação do arquivamento, [cfr. arts. 69.º, n.º 2, al. a), e 286.º, ns. 1 e 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do mesmo compêndio legal].
Sendo est’última a sua opção, ficará onerado à rigorosa observância das formalidades postuladas pelo n.º 2 do 287.º normativo do C. P. Penal, enunciando, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, bem como, sendo caso disso, a indicação dos actos de instrução que pretenda que o Juiz (JIC) leve a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito, e os factos concretos que através de uns e outros se espera provar, necessariamente ilustrativos dos elementos constitutivos, objectivos e subjectivos – com descrição do dolo ou negligência (nos casos em que a pertinente figura-de-delito contempla tal nexo de imputação subjectiva, bem entendido!) – de determinada/imputada infracção criminal, que haverá, outrossim, que expressamente identificar, bem como da enunciação da concernente liberdade de determinação do(s) agente(s) e do pessoal conhecimento/consciência da respectiva ilicitude comportamental, ou seja, da culpa – em sentido estrito –, precisando (se tal for revelado no inquérito) as circunstâncias de tempo, lugar e modo da comissão infraccional, a motivação da respectiva realização, o grau comparticipativo do agente (autoria – imediata/material, mediata/moral ou co-autoria – ou cumplicidade), e, ainda, quaisquer outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção aplicável, como, se for caso disso, as específicas menções ao passado criminal do alegado infractor, representativas, máxime, dos institutos jurídicos de delinquência por tendência, alcoolismo ou toxicomania (condicionantes de cominação de pena relativamente indeterminada), ou, subsidiariamente, de reincidência, (previstos nos arts. 83.º/85º, 86.º/88.º, e 75.º/76.º, respectivamente), tudo em conformidade com o estatuído no art. 283.º n.º 3, als. b) e c), do mesmo compêndio legal, para que remete o n.º 2 do citado preceito 287.º, [com referência ao art.º 1.º, al. a)], sob pena de nulidade do próprio acto, naqueloutro dispositivo expressamente cominada.
Tal actividade processual do assistente haverá, pois, que materializar uma verdadeira acusação – alternativa ao arquivamento decidido pelo M.º P.º.
Regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal enunciação factual tem subjacentes duas ordens-de-razão: uma, inerente ao objectivo imediato da instrução, a comprovação judicial da pretensa indiciação – que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o/ arguido/s se possa/m defender, se tem que reportar à imputação de factos concretos; outra, implícita a uma finalidade mediata, mas essencial – no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento –, a delimitação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória, com a correspondente vinculação temática do tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer respectivo/eventual alargamento arbitrário, constituindo uma garantia de defesa do arguido, lhe possibilita a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.
Se o assistente não realizar devidamente tal ónus processual, qualquer eventual descrição factual que, complementarmente das lacunas observadas, porventura se viesse a fazer numa hipotética pronúncia, redundaria necessariamente numa alteração substancial do requerimento, inexoravelmente ferida da nulidade cominada no art.º 309.º do CPP.
Por conseguinte, a omissão narrativa dos concretos factos fundamentadores da aplicação ao sujeito-arguido duma pena ou duma medida de segurança, geradora de verdadeira ineptidão [vide ainda art.º 193.º, n.º 2, al. a), do C. P. Civil de 1961, com actual correspondência no art.º 186.º, n.º 2, al. a), do CPC de 2013, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, vigente desde 01/09/2013, (cfr. respectivo art.º 8.º)] e nulidade do requerimento de instrução, tornaria juridicamente impossível a realização da fase instrutória, por falta de objecto, e inúteis, e como tal proibidos, quaisquer actos instrutórios que ainda assim se viessem a realizar, (cfr. art.º 130.º do actual C. P. Civil, aprovado pela citada Lei n.º 41/2013, de 26/06 – equivalente ao 137.º do CPC de 1961 –, aplicável ao processo criminal por força do normativo 4.º do CPP)[2].
2 – Ora, com o devido respeito, percorrendo o requerimento de abertura de instrução (RAI) objecto do despacho recorrido, (ínsito na peça processual junta a fls. 1108/1110), nenhuma aproximação à específica materialização de tal disciplina legal sequer encerra, como bem esclarecidamente observado pela Ex.ma Juíza de Instrução Criminal (JIC) e, afinal, o id.º recorrente acaba por implicitamente reconhecer.
Decorrentemente, irrepresentando-se-de-lhe (do RAI) o indispensável conteúdo e virtualidade acusatória por bem-definida conduta jurídico-criminal – essencial à delimitação do objecto processual e da decisão-instrutória –, deixou-se esvaziada de sentido prático-jurídico a respectiva fase processual, assim incontornavelmente votada ao malogro, e, logo, à inexequibilidade, pela impossibilidade de realização do visado/legal desiderato de comprovação judicial da pretensa indiciação da dolosa e voluntária autoria comissiva de concreto/demarcado, típico, ilícito e culposo acto comportamental-criminal de qualquer individualizado cidadão, e à consequente determinação da pessoal sujeição a referente julgamento, nos seus precisos limites, já que, como supra se esclareceu, qualquer eventual complementarização descritivo-factual que em hipotética pronúncia fosse operada pelo juiz de instrução a inquinaria com o vício processual de nulidade, em conformidade com o postulado no art.º 309.º, n.º 1, do CPP, com referência ao conceito normativo ínsito no preceito 1.º, al. f), do mesmo compêndio.
Destarte, como assisadamente ajuizado pela Ex.ma JIC no sindicado despacho, sempre se imporia a rejeição da peticionada instrução, por axiomática inutilidade e decorrente inadmissibilidade, em conformidade com o preceituado nos arts. 137.º do C. P. Civil de 1961 (na actualidade 130.º do referenciado CPC de 2013) e 287.º, n.º 3, do C. P. Penal, sem que, ademais, fosse sequer lícito operar qualquer convite ao pertinente aperfeiçoamento, inequivocamente tradutor de ilegal concessão de oportunidade de renovação do próprio acto jurídico-processual, cuja proibição na actualidade se apresenta já juridicamente incontrastável, por efeito, máxime, do Acórdão de Fixação de Jurisprudência (AFJ) n.º 7/2005, do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/05/2005, (publicado no D.R. – I Série-A – n.º 212, de 04/11/2005), e do Acórdão n.º 389/2005, do Tribunal Constitucional, de 14/07/2005.
3 – Como assim, evidenciando-se o desmerecimento de relevante reparo à dissentida decisão, de tudo cabal/bastantemente explicativa, conclui-se pela manifesta improcedência do recurso e pela sua consequente rejeição, [cfr. art.º 420.º, n.º 1, al. a), do CPP].

§ 2.º – Vício de nulidade do inquérito

Apodicticamente descabida se revela, doutra sorte, a ora originalmente suscitada nulidade insanável do inquérito – somente nesta instância recursória arguida, e logo, de todo marginal ao próprio despacho recorrido e, por conseguinte, ao respectivo mérito e correspondente questionamento recursivo –, posto que, como preclaramente observado na peça de resposta do Ministério Público, tal pretensa/concernente invalidade, alegadamente tutelada pelo art.º 119.º, al. d), do CPP, apenas virtualmente ocorrerá em caso de absoluta omissão de quaisquer actos próprios/pertinentes da correspectiva fase processual (de inquérito), o que, no particular âmbito, evidentemente não aconteceu, como aí (resposta) se deu esclarecedora nota, (vide fls. 1161/1162).

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto – sem outras considerações, por inócuas –, em conformidade com o estatuído nos arts. 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. a), do CPP, decido:
1 – O irreconhecimento do suscitado vício de nulidade insanável do inquérito.
2 – A rejeição do recurso do id.º cidadão-assistente A (...)
3 – A sua condenação ao pagamento da sanção pecuniária equivalente a 4 (quatro) UC, nos termos do art.º 420.º, n.º 3, do CPP, a que acrescerá o montante de 3 (três) UC, a título de taxa de justiça, pelo decaimento na acção recursiva, (cfr. ainda normativos 515.º, n.º 1, al. b), e 524.º, do CPP, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, na redacção introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13/02).
***
Coimbra, 27/11/2013.    

 (Abílio Ramalho – Juiz-desembargador-relator)

[1] Em conformidade com o disposto nos arts. 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. a), do C. P. Penal.
[2] Cfr., representativamente da uniforme interpretação doutrinal e jurisprudencial do regime jurídico ora traduzido, entre muitos outros, e por todos: Prof. Germano Marques da Silva, in Do Processo Penal Preliminar, págs. 218 e 241ss, e Curso de Processo Penal, I, 5.ª Edição (2008), págs. 359/388, e III, 1.ª Edição (1994), págs. 125 ss; Souto Moura in Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Ed. Almedina, 1988, pág. 120/121; Ac. do TC n.º 389/2005, de 14/07/2005, in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos; da RP, de 15/12/2004, 22/09/2004, 01/03/2006 e 11/10/2006, in http://www.gde.mj.pt/jtrp; e desta RC, de 05/11/2003, 10/01/2007, 07/02/2007, 14/02/2007, 23/04/2008, 01/04/2009, 12/05/2010, 06/07/2011, 16/11/2011, 07/03/2012, 30/01/2013 e 02/10/2013, in http://www.dgsi.pt/jtrc.