Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2029/15.5T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
SEGURO DE VIDA
ANULAÇÃO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
DEVER DE INFORMAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 640 CPC, 334, 342 CC, 429 C COMERCIAL, DL Nº 446/85 DE 25/10
Sumário: I - A não discriminação, nem no corpo das alegações, nem nas conclusões, quer do início e fim dos depoimentos na gravação, quer, muito menos, das concretas passagens dos mesmos em que o recorrente funda a sua pretensão, implica a liminar rejeição do recurso sobre a decisão da matéria de facto – artº 640º nº 1 al. b) e nº2 al. a) do CPC.

II - A simples discordância, por exegese diferenciada, do teor dos depoimentos não impõe – salvo lapso material ou erro lógico patente do julgador na apreciação dos mesmos – a censura da sua convicção.

III - No regime das CCG - DL446/85, de 25/10 – o dever de comunicação do predisponente exige a entrega ao aderente da totalidade do clausulado contratual com a antecedência necessária a uma cabal apreensão e interiorização do mesmo por banda deste.

IV - A não prova do cumprimento de tal dever por parte do predisponente implica a exclusão do clausulado do contrato, com não atendimento do mesmo.

V - No contrato de seguro, a simples omissão de respostas a perguntas feitas sobre anteriores doenças do segurado não significa que o segurado mentiu, e apenas releva para efeitos da sua anulabilidade se a seguradora provar que tal omissão foi culposa e intencional, no sentido de o omitente pretender escamotear tais doenças.

VI - Ademais, se a seguradora aceita, ou não se dá conta, como lhe era exigível, que tal omissão ocorreu, e outorga o contrato e recebe o valor do prémio durante vários anos, não pode, aquando do accionamento do seguro, e quanto mais não seja por atuação em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, por frustração da confiança, invocar a sua anulabilidade com base naquela omissão.

Decisão Texto Integral:








ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

M (…), intentou contra COMPANHIA DE SEGUROS A (…), S. A., ação declarativa, de condenação,  com processo comum.

Pediu:

A condenação da ré no pagamento da quantia de €118.684,90, acrescida de juros à taxa legal, contados sobre a quantia de €100.000,00, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese:

- Em 19.09.2006, E (…), Lda. contratou, junto do Banco (…) S.A., um contrato de mútuo, no montante de €100.000,00, tendo o Banco exigido que, para garantia do pagamento da quantia mutuada, os legais representantes da identificada sociedade - o aqui autor e sua esposa M (…) - subscrevessem uma livrança avalisada e celebrassem, cada um, com a ré, um contrato de seguro facultativo denominado “Vida Individual”.

- O contrato de seguro referente ao autor deu origem à apólice com o nº00 (...) e foi celebrado pelo prazo de 28 anos incompletos, com início em 19.09.2006 e termo em 16.09.2034.

- Ficou estipulado que, em caso de morte do autor, seria paga ao Banco (…), S.A. a quantia mutuada que ainda estivesse em divida à data do óbito e que o remanescente seria entregue aos herdeiros legais do autor; no caso de invalidez permanente do autor, seria paga ao Banco (..), S.A. a quantia mutuada que ainda estivesse em dívida e o remanescente seria entregue ao autor (“pessoa segura”).

- No dia 06.10.2010, o autor foi vítima de um acidente vascular cerebral isquémico, em resultado do qual ficou a padecer de incapacidade absoluta e definitiva para qualquer tipo de trabalho, tendo, em 28.12.2011, passado a auferir de uma pensão por invalidez absoluta, paga pela Segurança Social.

A ré deduziu contestação.

Alegou:

- Para a celebração do seguro de vida invocado pelo autor, é necessário o preenchimento prévio do boletim de adesão (proposta) instruído com uma declaração de saúde da(s) pessoa(s) segura(s) onde, o(s) aderente(s) declara(m) quais as doenças de que padece e/ou padeceu.

- O autor nada respondeu ao questionário de saúde e declarou, ainda, que:

“b) - Respondi com exatidão e sinceridade ao Questionário de Saúde, no caso de não me enquadrar nas condições da Declaração de Saúde;

d) Que as omissões, inexatidões e falsidades, quer no que respeita a dados de fornecimento obrigatório, quer facultativo, são da minha inteira responsabilidade;

f) Recebi a Nota de Informação Prévia do Seguro.”

- Seguiu-se a assinatura do autor.

- À data da adesão e aceitação, em 19.09.2006, o autor sabia que era portador da diabetes insulinodependente e de hipertensão arterial, desde o ano de 1993, tratada com insulina e recebia assistência médica e medicamentosa, sendo que estas doenças lhe causaram, diretamente, a incapacidade para o trabalho a que se referiu na sua petição inicial.

- Se a ré tivesse tido conhecimento da doença de que o autor padecia não teria aceitado o seguro proposto.

- Dispõe o ponto 5.4 das Cláusulas Gerais: “A omissão de factos, as declarações falsas, inexatas ou incompletas, que alterem a apreciação do risco, determinam a nulidade do Contrato/Adesão.

- As “repetidas omissões e falsas declarações prestadas pelo autor, de forma claramente intencional, levam à nulidade do contrato de seguro.

- Mesmo que assim não fosse entendido, o autor não reúne as condições exigidas para preencher a cobertura de Invalidez Absoluta e Definitiva (IAD).

Pelo contrato considera-se existir invalidez Absoluta e Definitiva quando se verifiquem cumulativamente os seguintes factos:

- Possuir o Segurado uma incapacidade funcional irrecuperável igual ou superior a 75% com impossibilidade de subsistência sem o apoio permanente de terceira pessoa;

- Possuir o Segurado comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer para exercer qualquer atividade remuneratória.”

- O autor levanta-se, lava-se, veste-se e come sozinha, passeia e leva quotidiano autónomo, não necessitando do apoio permanente de terceira pessoa para o desempenho das suas necessidades do dia-a-dia e atos normais da vida.

O autor respondeu contestando os factos alegados pela ré e reiterando a procedência da acção.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«…declara-se a anulação do contrato de seguro invocado nos autos, e, consequentemente, julga-se a presente ação totalmente improcedente, absolvendo-se a supra identificada ré do pedido deduzido pelo identificado autor.»

3.

Inconformado recorreu o autor.

(…)

Contra a legou a ré pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª -  Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª - Procedência da acção.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Nesta conformidade  constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.1.2.

Por outro lado urge atentar que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto não se destina a que o tribunal da Relação reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão - Cfr. entre outros, os Acs. do STJ de 9.07.2015, p.405/09.1TMCBR.C1.S1 e de 01.10.2015, p. 6626/09.0TVLSB.L1.S1 in dgsi.pt.

Na verdade, e como dimana do preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), «a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.».

Como corolário deste princípio:

«impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.»

É que:

«A reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis…mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República…Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente, aplicável ao recurso de apelação que agora nos interessa:

– manteve a indicação obrigatória “dos concretos pontos de facto” que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),

– manteve o ónus da especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al. b), – exigiu ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c), sob pena de rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder optar pela apresentação da “transcrição dos excertos” relevantes.» - Ac. do STJ de 01.10.2015,  sup. cit.

Nesta senda, estatui o artº 640º do CPC:

“1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;»

5.1.3.

Finalmente, e como dimana do já supra referido, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

 A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve o recorrente efetivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando -  objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.– cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos  in dgsi.pt;

5.1.4.

O caso vertente.

5.1.4.1.

Percorrido o teor da peça recursiva, verifica-se que nela, nem no seu corpo nem em sede de conclusões, o autor cumpre,  minimamente -  ou seja, nem sequer indicando o início e o fim da gravação dos depoimentos -, o seu ónus de  indicação das passagens da gravação dos depoimentos em que se fundamenta para alicerçar a sua pretensão.

E a  transcrição parcelar dos depoimentos não exime ao cumprimento daquele dever.

Efetivamente:

«…A indicação precisa do início e termo das concretas (…) passagens da gravação destina-se a simplificar a tarefa da Relação na reapreciação da prova gravada, não só chamando a atenção para aquela parte do depoimento, como tornando mais fácil e célere a respetiva localização na gravação, sabido como é que, em regra, cada testemunha depõe sobre mais do que um facto. De outra forma bastaria que o recorrente impugnasse a decisão sobre a matéria de facto cumprindo todos os ónus estabelecidos no art. 640º do CPC, com exceção do determinado na al. a) do nº 2, e requeresse a audição e reapreciação integral de todos ou de alguns os depoimentos o que significaria a repetição do julgamento, desiderato que não foi visado pelo legislador”.» - Ac. do STJ de 26.1.2017, p. 599/15.7T8CLD.C1.S1, apud, Ac. do STJ de 18.09.2018, p. 108/13.2TBPNH.C1.S1; cfr, ainda, os Acs. do STJ de 27.10.2016, p. 3176/11.8TBBCL.G1.S1 e de 05.08.2018, p. 15787/15.8T8PRT.P1.S2.

Como  supra se disse, este tribunal ad quem não está vinculado a uma reapreciação de toda a prova produzida, ou, mesmo, de todo o depoimento de uma testemunha.

Este depoimento, por via de regra, como foi o caso, reporta-se a mais do que um concreto facto. E salvo se todos os factos sobre que depôs – o que não é o caso – forem impugnados pelo recorrente, tem este o ónus de concretizar as passagens da gravação nas quais o depoente se reporte ao(s) facto(s) impugnado(s).

Nesta conformidade, não podendo a prova testemunhal ser apreciada, e porque falharia um elemento probatório considerado pelo tribunal, e, essencialmente, pela recorrente,  determinante, esta pretensão teria de ser liminarmente rejeitada.

Pois que, sem aquela prova,  e falhando ao tribunal  de recurso este essencial elemento, não se  pode nesta sede aquilatar da necessidade de censura, ou não, da convicção do julgador na parte afetada.

5.1.4.2.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, nem por isso a presente pretensão poderia proceder.

Os factos colocados sub sursis são os seguintes:

11. O autor recebeu a “Informação à Pessoa Segura” referente à apólice supra identificada, em que se resumem as coberturas, exclusões, falsas declarações, pagamentos de prémios e de indemnizações, entre outras.

16. Se a ré tivesse tido conhecimento do referido em 12. e 13., não teria aceitado o seguro proposto nas condições em que o fez.

21. As doenças referidas em 12. potenciavam o risco de o autor vir a ser vítima de acidente vascular cerebral.

A julgadora deu-os como provados com a seguinte fundamentação:

- A matéria do facto provado 16. ficou, ao que se julga, devidamente demonstrada na decorrência da ponderação, conjunta e crítica, dos depoimentos das testemunhas  2, 3 e 4 – (…) -  e sendo que aquele primeiro assumiu interesse para a demonstração da circunstância de o autor, atentas as patologias que apresentava à data da subscrição da proposta de adesão ao seguro, ser pessoa que incorria num especial risco de ter problemas de saúde acrescidos (nomeadamente, do tipo daquele que depois veio a ocorrer e que está na génese deste litígio).

- O convencimento da veracidade do facto 21. alicerçou-se nos depoimentos dos dois médicos ouvidos na qualidade de testemunhas (testemunhas 2 e 3).

Já o recorrente alicerça a sua pretensão nos depoimentos das testemunhas (…)

Ora lidos os excertos dos depoimentos das testemunhas e o plasmado na decisão fundamentadora desta decisão relativamente aos mesmos, verifica-se que, pelo que supra se mencionou em tese, esta pretensão do recorrente não pode ser acolhida.

Quanto ao facto 11 é de referir que a M (…) é sua esposa.

Ora ainda que tal qualidade não a desqualifique automaticamente enquanto pessoa de bem, proba, vera e íntegra, certo é que ela, meridianamente, tem ou pode vir a ter, interesse, material ou moral, no desfecho da causa.

Pelo que, consciente ou sub conscientemente, o seu  depoimento sempre tenderá a, de um modo ou outro, favorecer a posição do esposo.

Logo, o depoimento, sempre teria e terá de ser apreciado e valorado «cum granno sallis», ie., cautelosa e comedidamente, e apenas poderia e poderá relevar se se alcandorasse em razão de ciência fidedigna, lógica e inatacável e/ou, fosse cabalmente corroborado  por outros meios de prova.

Ora nada disto se verificou, antes pelo contrário,  como bem  explicitou a julgadora.

Na verdade, ela própria não nega ter recebido e assinado o documento em causa.

Antes, pelo contrário, tendo admitido que receberam e assinaram os documentos do seguro, dos quais não excluiu o sub judice.

Ademais a A (…) verbalizou que quando o banco faz um seguro de vida é feito um questionário aos clientes, naturalmente que incidente sobre o seu estado de saúde.

Quanto ao facto 16, mais uma vez os depoimentos das testemunhas indicadas pelo recorrente não corroboram a sua versão/interpretação, antes pelo contrário.

A C (…), funcionária da ré disse que se a seguradora tivesse conhecimento das «patologias» pré existentes, a seguradora, para casos de morte, imporia agravamentos, e, para os casos de invalidez – que é o caso presente – o seguro seria sempre excluído.

A T (…) não terá dito adrede, que a companhia recusava o seguro, mas também não excluiu essa possibilidade

Já as restantes testemunhas indicadas para este ponto não se pronunciaram sobre esta matéria, mas apenas sobre as limitações de saúde do autor.

Por conseguinte, a decisão da julgadora neste particular encontra suficiente respaldo probatório, e, acima de tudo, a prova invocada pelo recorrente e a interpretação que dela pode ser efectivada, decididamente não impõe, como, exige a lei, e nem sequer aconselha, a censura da convicção da  Srª Juíza.

Finalmente o ponto 21.

Este foi dado como provado por virtude dos depoimentos dos dois médicos (…)

Ora estes médicos verbalizaram, segundo a julgadora, que ao autor:  «já lhe havia sido diagnosticada a diabetes, assim como a hipertensão arterial, sendo alvo de acompanhamento médico regular e de medicação, nos moldes que melhor precisou.

Nomeadamente, afirmou, de forma convicta, que o autor, em face das aludidas doenças de que padecia, era um doente de risco cardiovascular – cuja ocorrência se veio a confirmar -, pese embora aquelas doenças não obstassem a que fizesse uma vida praticamente normal (desde que observasse as devidas prescrições médicas).»

 O facto de, outrossim, terem dito que, com algum cuidado, poder ter, tanto quanto possível, uma  vida normal, não invalida, como pretende o recorrente, que o risco e o efeito potenciador de tais doenças para a ocorrência de um ataque cardio vascular, não existisse.

Tanto que existia que este ataque se verificou.

E não é preciso ser médico, sendo quase uma evidência, do conhecimento geral  e do senso comum, que tais patologias  assumem um jaez que, prototipicamente, as insere no rol das que encerram tal risco potencial.

Sendo de notar que o facto apenas se menciona como potenciador do risco.

Não tendo sido dado como provado aqueloutro invocado pela ré « Que as doenças referidas em 12. tenham sido a causa única da incapacidade para o trabalho do autor.».

Quanto a este é que  já poderia ser discutível se a prova seria suficiente para o convencimento da sua verificação, o que, tendencialmente, julgamos que não seria.

Mas para o que está em dilucidação, que, repete-se, apenas coloca em equação das aludidas maleitas  implicarem a potenciação, ou seja, e numa definição possível, a intensificação/agravamento da possibilidade de ocorrência de um facto, in casu, um AVC, tal dúvida, meridiana, sensata e razoavelmente,  não se coloca.

5.1.5.

Por conseguinte e no indeferimento da presente pretensão, os factos a considerar  são os apurados na 1ª instância, a saber:

1. Em 19.09.2006, E (…)Lda. contratou, junto do B (…), S.A., um contrato de mútuo, no montante de €100.000,00.

2. B (...) , S.A. exigiu que, para garantia do pagamento da quantia mutuada, o autor e M (…) na qualidade de legais representantes da E (…), Lda., subscrevessem uma livrança avalisada e celebrassem, cada um, com a ré, um contrato de seguro facultativo.

3. Nesse contexto, a ré celebrou com B (…), S.A., na qualidade de tomador, E (…) Lda., como aderente, e o autor, como pessoa segura, um contrato de seguro A (…), titulado pela apólice 8 (...) / 2 (...) , sendo o capital inicial de €100.000,00, com data de adesão inicial em 19.09.2016 e data do termo em 16.09.20134.

4. O contrato referido em 3. previa as coberturas por morte e por invalidez absoluta e definitiva do segurado, aqui autor, dele constando como beneficiários, em caso do morte, B (…). S.A e herdeiros legais e, em caso de invalidez, B (…), S.A. e pessoa segura.

5. Para celebração desse seguro de vida, foi necessário o preenchimento de uma proposta – denominada “boletim de adesão” -, que continha, a par do mais, um questionário de saúde da pessoa segura, onde, nomeadamente, o aqui autor, naquela qualidade, devia declarar quais as doenças de que, então, padecia ou havia padecido.

6. Mais precisamente, no referido “boletim de adesão”, consta, sob o nº10 e a epígrafe “declaração de saúde”, designadamente, que “A declaração de saúde, não sendo necessários quaisquer exames médicos, será suficiente nas seguintes condições:

- Para capitais seguros (…) iguais ou inferiores a €100.000,00 e cuja idade do proponente seja inferior a 61 anos”.

7. Consta, ainda, sob o mesmo número, “Declaro não estar sob observação médica ou em tratamento médico regular, não ter interrompido por mais de 15 dias consecutivos, nos últimos 5 anos, a minha atividade laboral por motivos de saúde, não ter sido operado ou internado num estabelecimento hospitalar, não ter fármaco dependência ou toxicomania, não ter alguma deficiência física ou funcional e não ter sido objeto de recusa ou agravamento do prémio aquando da subscrição de um seguro de vida”.

“Tomei conhecimento das condições contratuais (…) e que qualquer omissão ou falsa declaração pode anular a minha adesão ao contrato (…)”.

8. Sob nº11 do documento mencionado em 6. Consta o aí denominado “ questionário de saúde”, que refere no seu início: “Preencher somente para capitais seguros Vitall superiores a €100.000,00 ou sempre que a idade do proponente seja igual ou superior a 61 anos ou se não se enquadrar nas condições previstas na Declaração de Saúde.”

9. O autor nada respondeu ou preencheu na parte referente ao questionário de saúde nomeadamente:

- Quanto ao peso, altura e tensão arterial;

- “5. Está sob observação médica ou tratamento regular?”;

- “11. Existe algum facto relacionado com a sua saúde que não tenha sido retendo (queria dizer-se «referido») e que tenha deixado sequelas às quais foi recomendado algum teste de despistagem, de diagnostico, exame médico ou tratamento médico que não (tenha) realizado?”

E no quadro logo a seguir, “Em caso de resposta afirmativa a qualquer das perguntai do Questionário acima, ou existência de qualquer outro facto ou circunstância relevante para a avaliação do estado de saúde da Pessoa Segura, especifique por favor, indicando a que Pessoa Segura se refere, respetivas datas e quais as consequências atuais”, o autor nada mencionou.

10. Na parte atinente à “declaração e assinatura”, consta, nomeadamente, que o autor por aí declara:

“b) - Respondi com exatidão e sinceridade ao Questionário de Saúde, no caso de não me enquadrar nas condições da Declaração de Saúde;”

“d) Que as omissões, inexatidões e falsidades, quer no que respeita a dados de fornecimento obrigatório, quer facultativo, são da minha inteira responsabilidade;”

“f) que Recebi a Nota de Informação Prévia do Seguro”.

Seguindo-se a assinatura do autor enquanto pessoa segura.

11. O autor recebeu a “Informação à Pessoa Segura” referente à apólice supra identificada, em que se resumem as coberturas, exclusões, falsas declarações, pagamentos de prémios e de indemnizações, entre outras.

12. Em 1993, haviam sido diagnosticadas ao autor as doenças crónicas da diabetes e de hipertensão arterial, o que ele bem sabia na data da celebração do contrato referido em 3. e da subscrição da proposta de adesão acima mencionada.

13. Desde aquela data, o autor recebia assistência médica e medicamentosa regular, estando dependente desta para controlo das patologias referidas em 12.

14. Sob a cláusula 3.2 das Condições Gerais do contrato mencionado em 3. é previsto que: “Fica excluída deste contrato a invalidez proveniente de situações físicas  anormais, emergente de acidente ou doença já existente na Pessoa Segura à data do preenchimento do Boletim de Adesão, bem como as consequências de quaisquer lesões causadas por tratamento não relacionado com doença ou acidente coberto por este contrato de seguro”.

15. O ponto 5.3 das Cláusulas Gerais do contrato aludido em 3. refere que “A omissão de factos, as declarações falsas, inexatas ou incompletas, que alterem a apreciação do risco, determinam a nulidade do Contrato/Adesão. Verificando-se aquela situação, a pessoa segura/Aderente e/ou o Tomador do Seguro não terão direito à devolução dos prémios pagos.”

16. Se a ré tivesse tido conhecimento do referido em 12. e 13., não teria aceitado o seguro proposto nas condições em que o fez.

17. No dia 06.10.2010, o autor foi vítima de um acidente vascular cerebral isquémico.

18. Em virtude de tal ocorrência, o autor esteve internado no Hospital de Santo André, em Leiria, entre os dias 06 e 13 de outubro de 2010.

19. Em resultado do AVC sofrido, o autor ficou portador de uma incapacidade permanente parcial fixável em 80,344%; ficou a padecer de incapacidade absoluta e definitiva para o exercício da sua profissão, assim como para toda e qualquer actividade profissional, tendo, em 28.12.2011, passado a auferir de uma pensão por invalidez absoluta, paga pela Segurança Social.

20. O autor carece de ajuda de terceira pessoa para algumas das actividades da vida diária.

21. As doenças referidas em 12. potenciavam o risco de o autor vir a ser vítima de acidente vascular cerebral.

22. O autor participou, em 12.11.2010, à ré a ocorrência do sinistro e a sua pretensão de receber as quantias referentes às coberturas negociadas, tendo recebido como resposta, em 27.11.2012, que:

“Após análise de toda a documentação clínica em nosso poder, informamnos os nossos Serviços Clínicos que concluíram que a invalidez apresentada resulta de uma situação já existente à data de adesão ao Seguro, pelo que, de acordo com o clausulado (art.º3.2) esta situação encontra-se excluída.

Nestes termos, lamentamos comunicar não nos ser possível proceder ao pagamento de qualquer indemnização ao abrigo deste processo de sinistro.

Informamos ainda que posteriormente nos pronunciaremos sobre a continuidade da apólice”.

23. Nas Condições Gerais do contrato mencionado em 3. está, ainda, previsto:

“2. Objeto do Contrato de Seguro

2.1. Pelo presente contrato, nos termos condições Gerais e. Particulares, a Seguradora garante o pagamento do capital seguro verificando-se o evento a que respeita o risco coberto, se abrangido pela cobertura ou coberturas contratadas desde que não ocorra nenhuma causa de exclusão.

2.2. Coberturas

(…)

Invalidez Absoluta e Definitiva: No caso de Invalidez Absoluta e Definitiva do Segurado, a Seguradora, nos termos previstos nas Condições da Apólice, garante o pagamento do capital seguro ao Beneficiário. Considera-se existir Invalidez Absoluta e Definitiva quando se verifiquem cumulativamente os seguintes factos:

- Possuir o Segurado uma incapacidade funcional irrecuperável igual ou superior a 75% (…) com impossibilidade de subsistência sem o apoio permanente de terceira pessoa;

- Possuir o Segurado comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer para exercer qualquer atividade remunerada.”

24. Em 17.08.2010, o valor em dívida ao B(…), S.A., na sequência do contrato referido em 1., ascendia a €68.226,55.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

A Julgadora decidiu alcandorada no seguinte, sinóptico, discurso argumentativo:

«Do regime legal então vigente resulta tratar-se de um contrato formal, certo que a sua validade depende de o respetivo conteúdo ser consubstanciado num documento escrito, denominado apólice, da qual devem constar, além do mais, o nome do segurador, do tomador e do beneficiário do seguro, o respetivo objeto e a natureza e o valor e os riscos cobertos (vide artigo 426º, § único, do Código Comercial).

Tal convénio regula-se pelas estipulações da respetiva apólice não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do Código Comercial (cfr. artigo 427º do Código Comercial)…

…a ré recusou o cumprimento da sua obrigação decorrente do contrato outorgado, invocando, no âmbito desta ação, várias ordens de considerações …a saber: a nulidade do contrato, com base nas falsas declarações prestada pelo aqui autor aquando do preenchimento do questionário médico que integrava a proposta de adesão; a exclusão do contrato da situação em apreço, por a invalidez ser decorrente de doença já existente à data do preenchimento do aludido boletim; a não verificação das condições de cobertura do contrato por invalidez absoluta e definitiva.

Estabelecia, à data da celebração do contrato, o artigo 429º do Código Comercial que “Toda a declaração inexata, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo.

§ único: Se da parte que fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio”.

E foi, ao que se perspetiva, esse regime legal que foi vertido no contrato de seguro em causa, na cláusula constante da respetiva apólice a que alude o facto provado 15.

Não obstante a terminologia legal, a doutrina e a jurisprudência …foram assinalando que a natureza  particular dos interesses em jogo e a inexistência de violação de qualquer norma imperativa determinam que deva ser a anulabilidade a consequência ou a sanção ligada à emissão de declarações inexatas ou reticentes do segurado, suscetíveis de influírem na existência ou condições do contrato de seguro…

 “Traduzindo-se as declarações inexatas ou reticentes em factos impeditivos ou extintivos da validade do contrato, incumbe à seguradora, por força do preceituado pelo artigo 342º, nº2, do Código Civil, o ónus da prova da sua influência sobre a existência ou condições do contrato, de que tiveram lugar para iludir alguma cláusula contratual.”

Por outro lado e citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.02.2005 (proferido no Processo 10357/2004-6 e disponível no site desse Tribunal), “não se exigindo que o declarante tenha agido com dolo, sendo suficiente que a omissão ou declaração inexata se devam a culpa daquele – o que resulta claro do disposto no § único do citado artigo 429º - é, todavia, necessário que o segurado ou tomador tenha conhecimento dos factos ou circunstância inexatamente declaradas ou omitidas. A lei exige que se trate de circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro – só neste caso é que o seguro é anulável. E esse conhecimento deve, obviamente, reportar-se ao momento da subscrição da proposta contratual.”

Entende a aqui ré que o autor, ao preencher o questionário clínico constante da proposta de adesão ao seguro, prestou falsas declarações e que, como tal, o mesmo é nulo.

E, efetuada a leitura conjunta dos factos provados 1. a 16. e 21., não se vislumbra como, com alguma seriedade, se pode pôr em causa a conclusão da ré seguradora no  sentido de o autor ter prestado falsas informações, ou melhor, omitido factos essenciais acerca do seu estado de saúde relevantes para a decisão da seguradora, aquando do preenchimento do questionário clínico.

Face ao teor do facto provado 7. e não estando o autor em condições de dispensar o preenchimento do questionário de saúde, pois era portador das doenças mencionadas em 12. e fármaco dependente para controlo das mesmas, não devia ter assinado essa declaração, mas antes se impunha que tivesse preenchido o questionário de saúde a que se referem os factos provados 8. e 9. e aí tivesse assinalado as referidas patologias de que bem sabia, há anos, padecer.

Ao não o ter feito, omitiu informações relevantes à ré para efeito do cálculo do risco do contrato e da sua decisão de aceitação ou não do mesmo e respetivas condições, o que torna aquele contrato anulável, nos termos do citado artigo 429º.

Perante tais factos e sem necessidade de outras e mais desenvolvidas considerações, não se pode deixar de afirmar que o autor, conscientemente, ocultou da seguradora ser portador de doenças incapacitantes (situação esta de que estava bem ciente), aquando do preenchimento do aludido questionário,

Chegando-se a esta conclusão, resta aferir se a prestação de respostas inverídicas, pelo autor, nos moldes acima melhor especificados, conferia à ré seguradora o direito à anulação do contrato.

Atenta a noção de contrato de seguro acima enunciada, a declaração de risco, entendida como a declaração do proponente ou aderente ao seguro que habilita a seguradora a avaliar o risco, é um elemento prévio à formação do contrato de seguro que, traduzindo-se numa declaração de ciência (não de vontade), vai conformar as declarações que o concluem – cfr. José Vasques, in local citado, a pág. 211.

É que, no contrato de seguro, “a seguradora baseia toda a sua prestação nas declarações do tomador do seguro, nas quais deve ter toda a confiança. Apresentam, assim, a maior relevância as omissões e reticências, designadamente quando podem influir sobre as condições do contrato” – último autor e local citados, a pág.212.

No ramo dos seguros de vida e/ou de doença, a declaração de risco consiste numa declaração sobre o estado de saúde do segurado envolvendo todos os factos e circunstâncias que tenham influencia sobre o contrato de seguro, sobre o risco segurado. “…com  o objetivo de auxiliar o tomador do seguro a evidenciar os factos relevantes para apreciação do risco, usam as seguradoras fornecer-lhe um questionário que o guie nas suas declarações. No entanto, a existência do questionário, por mais exaustivo que seja, não exime o tomador do seguro da obrigação de comunicar à seguradora outros factos ou circunstâncias com influência sobre o risco. Pesem embora as críticas que esta última tese recebe – principalmente fundadas no facto de que, não sendo o tomador um técnico de seguros, difícil lhe será identificar aspectos relevantes que tenham escapado à seguradora que elaborou o questionário -, parece que, sendo o questionário um elemento de facilitação concedida pela seguradora ao segurado, não é justo que possa redundar em prejuízo daquela; o equilíbrio há de encontrar-se em dever o tomador do seguro declarar todos os factos e circunstancias dele conhecidas (ou que não devesse desconhecer) e que cuja relevância para a formação do contrato esteja ao alcance de um segurado diligente com capacidade normal” – mesmo autor e obra, a pág.220.

In casu, resultou expressamente demonstrado que o conhecimento, pela ré, da existência das doenças do autor era essencial para a aceitação ou não do seguro em causa ou para o estabelecimento das condições em que poderia aceitar segurar.

Impõe-se, assim, perante tais factos, concluir – sem necessidade de outras e mais extensas considerações, atenta a evidência com que (ao que se julga) se dita tal conclusão – que a ré seguradora, ao abrigo das normas legais citadas, tem o direito à anulação do contrato de seguro, o qual exerceu, devida e atempadamente, aquando da sua defesa (cf. artigo 287º, nº2, do Código Civil).

E a tal – ou seja, à ponderação do exercício desse direito – já se havia reservado, na missiva a que se reporta o facto provado 22., pelo que não se vislumbra qualquer exercício abusivo desse direito, à luz do estabelecido no artigo 334º do Código Civil, assim improcedendo a defesa apresentada pelo autor à defesa por exceção da ré.»

Perscrutemos.

5.2.2.

O autor define o cerne do recurso na consideração de que a ré violou os seus deveres de comunicação e informação a que estava adstrita ex vi do regime jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais.

 A ré pugna que tal pretensão é questão nova não alegada nem apreciada na 1ª instância pelo que vedado está a este tribunal ad quem o conhecimento da mesma.

Como é consabido o tribunal   de recurso assume-se, em termos de competência e funcionalmente, como de mera reponderação ou reapreciação de questões previamente apreciadas na instância inferior, e já não como decisor de questões novas apenas colocadas no recurso.

Vistos os autos, alcança-se que esta questão, rectius, este argumento,  não constituiu o quid nuclear das alegações e das partes e da apreciação do tribunal a quo.

Mas ela(e), bem vistas e interpretadas as coisas, foi  colocada(o) em juízo pelo autor e pode ser tida(o) como incluída(o) nos temas de prova fixados em sede de audiência prévia.

Efetivamente, naquela vertente o autor, alegou, na resposta, à contestação, aliás efectivada a convite da Julgadora, que:

«É falso que tenha recebido a apelidada « informação à pessoa segura» - artº 6º.

«O impresso da proposta foi preenchido por um funcionário do banco – 13º

«O autor limitou-se a assinar um documento que lhe puseram à frente» - 14º.

Já nesta ótica foi definido como tema de prova :

«saber em que contexto foi preenchido e assinado pelo autor o denominado «boletim de adesão»

Ora estas alegações e este tema de prova assumem jaez e virtualidade para se poderem inserir na temática do regime das CCG.

Pelo que, não obstante a decisão ter colocado o acento tónico na própria análise e dilucidação do contrato de seguro enquanto contrato celebrado entre as partes em causa, a sua genética e abstracta natureza de contrato de adesão, em tese sujeito aquele regime,  bem como o modo como, lato sensu, as partes, rectius o autor, delinearam a acção, permite que tal questão/argumento  - ainda que  ora mais impressiva e acentuadamente - ,  possa ser apreciada nesta sede recursiva.

Assim…

Conforme dimana do documento de fls. 36 e 37, encontramo-nos perante um «boletim de adesão» a um contrato de seguro.

É, pois, um caso de aplicação do regime das Clausulas Contratuais Gerais previsto no DL 446/85 de 25.10.

As cláusulas contratuais gerais consubstanciam-se como estipulações predispostas ou predefinidas, em vista de uma pluralidade de contratos ou de uma generalidade de pessoas, para serem aceites em bloco, sem negociação individualizada capaz de influir na modelação do respetivo conteúdo ou possibilidade de alterações singulares.

Pré-formulação, generalidade e imodificabilidade são, pois, as suas características essenciais.

O que está em consonância com os propósitos de racionalização, certificação e uniformização que marcam a essência do fenómeno económico hodierno, no quadro da lógica, tipicamente empresarial, que recorre a este particular modo de contratação – cfr. Almeno de Sá, in Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas", 2ª Ed. ps. 212 e 213 e Ac. do STJ de 19-01-2006, dgsi.pt, p. 05B4052.

Em tal âmbito, o proponente, normalmente uma empresa dotada de um forte complexo organizacional, apresenta-se numa posição de maior preponderância e capacidade de influência e persuasão, por contraposição ao aderente, por via de regra uma pessoa singular mais necessitada e fragilizada.

E, assim, apenas formalmente se encontrando em posição de igualdade com a parte predisponente.

Inexistindo, muitas vezes, por parte do aderente, um verdadeiro conhecimento  do teor, sentido e alcance quanto às cláusulas predispostas, vg. devido à sua minúcia e complexidade, pelo que a sua  liberdade  se cinge ao dilema da aceitação ou rejeição.

Nesta conformidade, o regime jurídico estabelecido no DL. 446/85, de 25.10 vislumbra-se essencialmente – posto que, não lhe sendo alheios motivos de ordem pública, sopesada a finalidade do contrato e o tipo de contratação padronizada  - como um regime de proteção do aderente consumidor – Acs. do STJ de 28.04.2009, p. 2/09.1YFLSB e de 23.01.2014, p. 1117/10.9TVLSB.P1.S1, in dgsi. pt.

Esta protecção consubstancia-se, essencialmente na acentuação/intensificação – por reporte ao que, fora deste regime, é exigível -  do dever do predisponente para com o potencial aderente no atinente aos deveres  de comunicação e informação acerca da existência e do teor das clausulas gerais.

Neste sentido e no que para o caso interessa, estatuem os artºs 5º e 6º do mencionado diploma, nos seguintes termos:

Artº 5º (comunicação):

«1. As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.

2. A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a sua extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.

3. O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante determinado que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.».

Artº 6º (Dever de informação):

«1. O contratante determinado que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.

2. Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados.»

Sendo que, nos termos do artº 8º (Clausulas Excluídas dos Contratos Singulares):

 Consideram-se excluídas dos contratos singulares:

a) As cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5º;

b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo.

Temos assim que, para que as cláusulas pré-estabelecidas em vista dum contrato devam considerar-se parte integrante dele, é necessária a respetiva aceitação pela outra parte, o que só pode ocorrer se esta tiver conhecimento dessas componentes da proposta negocial. Sem o que não pode falar-se de uma livre, consciente e correta formação de vontade, nomeadamente isenta dos vícios a que se alude nos arts. 246º, 247º e 251º C. Civil.

Na verdade, como também o art. 232º C. Civil previne, não pode falar-se em conclusão de um contrato se não estiver assegurada coincidência entre a aceitação e a oferta relativamente aos elementos relevantes do negócio, o que nos contratos de adesão supõe que se garanta ao aderente um cabal e efetivo conhecimento do clausulado que integra o projeto ou proposta negocial.

5.2.3.

Destarte, a generalidade da doutrina e da jurisprudência entendem que o dever de comunicação não se cumpre pela mera comunicação para que as condições gerais se consideram incluídas no contrato singular.

Sendo, outrossim, necessário, para que esta inclusão se verifique e aquele dever se concretize, que, antes da conclusão do contrato, a comunicação se efetive e seja de molde a proporcionar à contraparte a possibilidade e um conhecimento completo e real do conteúdo do clausulado.

Tal comunicação não pode, pois, ser meramente parcelar ou sumária e exarada no exato momento da assinatura do contrato.

Devendo antes abranger a totalidade do clausulado, com a antecedência necessária a uma cabal apreensão, interiorização e possibilidade de reponderação - normalmente na fase de negociação, ou pré-contratual - e efetivada de modo adequado, tendo-se em conta, designadamente, a importância do contrato e a sua extensão e complexidade das suas cláusulas – cfr. entre outros, o Ac. da Relação do Porto de 24-04-2008, dgsi.pt, p.  0832041; os Acs. do STJ de 19-01-2006  p. 05B4052, de 18-04-2006  p.  06A818, de 24-05-2007  p. 07A1337 e de 23-10-2008 p. 08B2977.

Quanto ao dever de informação ele reporta-se, como resulta da lei, não à globalidade das condições mas apenas a «aspetos» das cláusulas que, segundo as circunstâncias, justifiquem aclaração.

  Estamos a pensar, vg., nos casos em que as clausulas assumem uma complexidade tal que dificulte a apreensão do seu conteúdo, significado e consequências, nos casos em que o aderente revele uma perspicácia e uma capacidade de entendimento e discernimento abaixo da média, ou nos casos em que as cláusulas assumem, na economia do contrato uma relevância tal que, quanto às mesmas não possa restar a mínima dúvida quanto ao seu sentido, alcance e consequências.

5.2.4.

No caso vertente, e pela própria posição da ré, é evidente que as cláusulas quanto a doenças pretéritas do autor assumiam uma relevância de primeira plana.

Por conseguinte, não podia restar a mínima dúvida quanto ao facto de o autor ter tido conhecimento quanto à sua existência, ao seu sentido, alcance e, bem assim,  sobre as consequências que para si adviriam se  acerca delas tivesse uma atitude de omissão ou de inveracidade/falsidade.

Ora a ré não provou, como lhe competia, que tenha cumprido o seu dever de comunicação  e de informação de tais cláusulas – pontos 10 e 11  do aludido «boletim de adesão» -, nem das cláusulas apostas nas condições contratuais gerais – referidas nos pontos 14 e 15 dos factos provados – que estipulavam quanto às consequências de tal posição omissiva ou de inveracidade.

Por conseguinte, e como se viu, tais cláusulas devem ter-se por excluídas do contrato, e, porque desconsideradas, não podendo relevar no sentido pela seguradora propugnado.

5.2.5.

Mas mesmo que assim não seja ou não se entenda, há a dilucidar ainda mais o seguinte.

O ponto 10 do «boletim de adesão» não se aplica ao caso vertente, pois que ele apenas cobraria aplicação se o valor do seguro fosse superior a cem mil euros e/ou o segurado tivesse mais de 61 anos,  requisitos que não se verificam no caso.

Já quanto ao questionário de saúde do ponto 11, inexistiu por banda do autor qualquer resposta, deixando em branco as linhas e quadrados em que se inquiria sobre a sua saúde.

Constituirá este facto causa justificativa para a anulação do seguro, como entendeu a 1ª instância?

A omissão relativamente a perguntas que se perfecionavam apenas  numa resposta de «sim» ou «não» vale o que vale, ou seja, nada.

Ao não responder não se pode concluir que o autor respondeu sim ou não, ou, melhor, e no que aqui releva atenta posição da ré e do tribunal a quo, que o autor respondeu que não padecia das maleitas perguntadas, ou, inclusive, quis significar e subliminarmente convencer neste sentido.

Concluir-se o contrário seria inadmissível, quer perante os princípios de direito probatório, quer, inclusive, perante as regras da lógica: tal pretensão constituiria um salto lógico inadmissível.

Na verdade,  no domínio das hipóteses, é também congeminável que a omissão  tenha constituído, simples e singelamente, um mero lapso material  involuntário do aderente, aliás motivado pelas consabidas e relevantes prototípicas causas  normalmente emergentes nestes casos, a saber: a desatenção do aderente quanto ao teor da minuta apresentada, máxime quanto ao teor de cláusulas insertas no meio da mesma e em letras pequenas, motivada, vg., por estarem já definidos e aceites pelas partes os elementos essenciais do contrato, como seja o valor segurado e o montante do prémio do seguro.

Assim sendo, a relevância de tal omissão no sentido pretendido pela ré apenas adviria, como, aliás, bem referido é na sentença, se se provasse que ela, em si mesma, foi culposa e intencional, no sentido de o omitente com a ela  pretender escamotear as suas anteriores doenças.

O ónus probatório de tal jaez e finalidade sobre a recorrida impendia.

Mas ela não logrou  cumpri-lo.

Acresce que o «boletim de adesão» encontra-se assinado, em último lugar e já depois da assinatura do autor, pelos representantes do banco e, presumidamente, com conhecimento  da seguradora.

Ora a estes representantes,  porque seguramente tarimbados nesta matéria,  porque com perfeito conhecimento da totalidade do teor do boletim de adesão, e porque as suas assinaturas se encontram apostas na mesma página onde consta o questionário de saúde, o que permitia uma fácil apreensão da falta de respostas a tal questionário, era exigível que se apercebessem da omissão.

E, consequentemente, logo no momento, instar o autor a dar as respostas ao mesmo.

Não o tendo feito, como deviam, é admissível a conclusão de que  se aperceberam de tal omissão e, com a mesma se conformaram, aceitando, mesmo assim, outorgar o contrato.

Mesmo que assim não fosse, ou não se entenda, certo é que tem de  considerar-se que  tal inércia que não permitiu o completo preenchimento do boletim de adesão, deriva de uma desatenção do banco e da seguradora a qual, pelos motivos supra referidos, se tem de taxar de censurável.

Pelo que, é caso de chamar à colação o velho brocardo que, se mal andaram, sibi imputet.

5.2.6.

Finalmente o abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprium.

Preceitua o artº 334º do CC:

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Sabe-se que as normas jurídicas, enquanto gerais e abstratas disciplinam relações- tipo, que atendem ao comum dos casos.

Consequentemente, pode acontecer que um preceito legal, certo e justo para as situações normais, venha a revelar-se injusto na sua aplicação a uma hipótese concreta, por virtude das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram: é o problema da fronteira, do “fio da navalha”, da dialética entre a justiça formal e a justiça material ou equidade.

O princípio do abuso de direito constitui uma válvula de escape do sistema, ditada pela consciência jurídica para obtemperar a algumas das consequências de injustiça clamorosa e iniquidade num certo caso concreto, advenientes da pura perspetivação e aplicação formal e rígida de normas legais ou clausulas contratuais.

O abuso de direito é pois um limite normativo ou interno dos direitos subjetivos – pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativo–jurídicos do direito particular invocado que são ultrapassados – cfr. Castanheira Neves in Questão de Facto e Questão de Direito, 526 e nota 46.

Pelo que há abuso de direito quando este, atento o circunstancialismo do caso concreto, é exercido de uma forma injusta e iníqua, com excesso ou desrespeito pelos limites axiológico-materiais da comunidade, ou o sentimento ético-jurídico  nesta dominante, de tal modo que o sentimento de justiça imanente à ordem jurídica, impõe a retirada do mesmo ou a responsabilização do titular - cfr.- Vaz serra “in” Abuso de Direito no BMJ 85º/253 e Pires de Lima e Antunes Varela “in” CC Anotado, anotação ao referido artigo 334º

Em suma, o direito não pode ser exercido arbitrária e exacerbada ou desmesuradamente, mas antes exercício de um modo equilibrado, moderado, lógico e racional.

Ademais a conceção adotada neste conceito é a objetiva, não sendo, assim, necessária a consciência de que com a sua atuação se estão a exceder os apontados limites.

 São seis as tipologias ou situações em que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

No venire contra factum proprium está em causa uma actuação do titular contraditória com um comportamento passado.

Trata-se de uma aplicação do princípio da responsabilidade pela confiança, de uma concretização do princípio ético-jurídico da boa fé.

O  princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamental, e a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem. Poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens; e assegurar expectativas é uma das funções primárias do direito.

A  proibição do venire tem, antes de mais, como pressuposto, uma situação objectiva de confiança:  uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é idónea a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de certa maneira.

Evidenciam-se assim quatro elementos para a caracterização do venire contra factum proprium: comportamento, geração de expectativa, investimento na expectativa gerada e comportamento contraditório.

Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação da confiança, é preciso que ela directa ou indirectamente revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro.

Para a relevância do venire, numa das suas manifestações, a “supressio”, não pode deixar de ter-se em conta uma avaliação no sentido de que o exercício tardio do direito acarretou para o confiante graves e iníquas  desvantagens, eticamente intoleráveis, por reporte às que decorreriam do seu exercício atempado. – cfr. Ac. do STJ de de  02.06.2015, p. 8969/09.3TBCSC.L1.S1 in dgsi.pt.

No caso sub judice.

A ré, mesmo sabendo, ou sendo-lhe exigível que soubesse, que o autor não tinha respondido ao questionário de saúde, aceitou como válido o contrato e recebeu o respectivo prémio durante cerca de quatro anos.

E apenas quando, infortunísticamente, o autor teve o AVC,  e se viu confrontada com o pagamento da indemnização, ela veio invocar tal argumento e requerer a anulação do contrato.

Ora durante este largo lapso de tempo certamente que o autor confiou e, de algum modo ou de certa maneira, gizou e organizou a sua vida na expectativa de estar acobertado pelo seguro que tinha firmado e que julgava válido e eficaz.

Logo, o caso é de intolerável, porque íniqua, frustração de um estado de confiança do autor sedimentada ao longo de anos.

É caso para se concluir que se  aquele evento nocivo não tivesse ocorrido, o contrato   seria e estaria bom para a ré,  e ela assim continuando a,  cómoda e frutificantemente, receber o respectivo prémio.

Mas não pode ser.

Se mais não houvesse, que há, como se viu, já o direito romano tinha solução para estas posições incongruentes ou contraditórias: ubi commodum, ibi incomodum.

O ter-se provado que a ré se tivesse tido conhecimento do referido em 12. e 13., não teria aceitado o seguro proposto nas condições em que o fez – irreleva.

É que  de todo o expendido dimanam, a montante, conclusões que retiram qualquer relevância e eficácia a tal facto, a saber: porque as cláusulas,  já que a ré não provou a sua comunicação e informação do seu teor,  devem ter-se por excluídas do boletim de adesão e das condições gerais da apólice em causa; porque o  alegado desconhecimento da omissão é imputável à ré;  e, em todo o caso, porque há abuso de direito da autora.

Destarte, e em conclusão final, a pretensão da  seguradora de anulação do contrato não é, sensata, razoável, e, equitativamente perspectivada a causa, aceitável.

Devendo ela, assim, assumir a suas responsabilidades perante o recorrente,  em função do contrato com este  firmado, pois que ele  tem de ter-se por válido e eficaz.

Procede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I - A não discriminação, nem no corpo das alegações, nem nas conclusões, quer do início e fim dos depoimentos na gravação, quer, muito menos, das concretas passagens dos mesmos em que o recorrente funda a sua pretensão, implica a liminar rejeição do recurso sobre a decisão da matéria de facto – artº 640º  nº 1 al. b) e nº2 al. a) do CPC.

II - A simples discordância, por exegese diferenciada,  do teor dos depoimentos não impõe – salvo lapso material ou  erro lógico patente do julgador na apreciação dos mesmos – a censura da sua convicção.

III -  No regime das CCG - DL446/85, de 25/10 –  o dever de comunicação do predisponente exige a entrega ao aderente da totalidade do clausulado contratual com a antecedência necessária a uma cabal apreensão e interiorização do mesmo por banda deste.

IV - A não prova do cumprimento de tal dever por parte do predisponente implica a exclusão do clausulado do contrato, com não atendimento do mesmo.

V - No contrato de seguro, a simples omissão de respostas a perguntas feitas sobre anteriores doenças do segurado não significa que o segurado mentiu, e apenas releva para efeitos da sua  anulabilidade se a seguradora provar que tal omissão foi culposa e intencional, no sentido de o omitente  pretender escamotear tais doenças.

VI - Ademais, se a seguradora aceita, ou não se dá conta, como  lhe era exigível, que tal omissão ocorreu, e outorga o contrato e recebe o valor do  prémio durante   vários anos, não pode, aquando do accionamento do seguro, e quanto mais não seja por atuação em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium,  por frustração da confiança, invocar a  sua anulabilidade com base naquela omissão.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revoga-se a sentença e condena-se a ré no pedido.

Custas pela ré.

Coimbra, 2019.09.10.

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos