Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
61/14.5TBSBG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SABUGAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 6 Nº 3 LEI Nº41/2013 DE 26/6, 46 Nº1 C), CPC, 703 NCPC
Sumário: 1. A aplicação do art. 703º do Novo CPC a todas as execuções interpostas posteriormente a 1 de Setembro de 2013, recusando a exequibilidade aos documentos particulares ainda que constituídos validamente em data anterior, não implica uma aplicação retroactiva da lei nova.

2. O art. 703º do Novo CPC, na parte em que elimina os documentos particulares do elenco dos títulos executivos, quando conjugado com o art. 6º, nº3 da Lei nº 41/2013, e interpretado no sentido de se aplicar aos documentos particulares anteriormente dotados de exequibilidade pela al. c), do nº1 do art. 46º, do anterior CPC, não é de considerar inconstitucional por violação do princípio da segurança e da protecção da confiança.

3. Em consequência, as execuções instauradas posteriormente a 1 de Setembro de 2013, não poderão basear-se em documento particular constituído em data anterior e a que fosse atribuída exequibilidade pelo regime vigente à data da sua constituição.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

Instaurada pela Massa Insolvente de G (…) & G (…) Lda., a presente execução com processo ordinário contra I (…) e M (…)

com base numa “Confissão de dívida”, assinada pelos executados, datada de 04 de Abril de 2012,

pelo juiz a quo foi proferido despacho a indeferir liminarmente a execução por falta de título, com fundamento em que, instaurada a presente execução em data posterior à entrada em vigor do Lei nº 41/2013, o acordo extrajudicial dado à execução não integra qualquer uma das categorias previstas no artigo 703º do CPC:

Inconformada com tal decisão, a exequente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

A. Serve de título à presente execução um documento particular, assinado pelos devedores, que, não obstante a entrada em vigor novo Código mantém, a sua força executiva.

B. Por força do artigo 6º, nº. 3 da Lei que aprovou o novo CPC, ainda que interpretado extensivamente, os títulos executivos que face ao antigo CPC tinham força executória, não perdem esse valor com entrada do novo CPC.

C. A norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos, quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

D. A eliminação dos documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelos devedores do elenco dos títulos executivos, constitui uma alteração no ordenamento jurídico que não era previsível.

E. Se, à data em que tais documentos foram constituídos os mesmos eram dotados de exequibilidade, é de esperar alguma constância no ordenamento no âmbito da segurança jurídica constitucionalmente consagrada. Assim, a alteração da ordem jurídica não era de todo algo com que se pudesse contar.

Daí que os titulares de documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que tinham a característica da exequibilidade conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46ºdo velho código, tivessem uma legítima expectativa da manutenção da anterior tutela conferida pelo direito.

F. Por conseguinte, a aplicação retroativa do artigo 703º do novo Código de Processo Civil, a títulos anteriormente tutelados com a característica da exequibilidade, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas.

G. Se a nova lei se aplicar aos documentos particulares validamente constituídos antes da data da sua entrada em vigor, existirão certamente situações em que o credor, mesmo sabendo que a partir de 31 de agosto de 2013 já não pode utilizar aquele documento para intentar a respetiva ação executiva, nada poderá fazer porque o cumprimento da obrigação está, por exemplo, fixado para um momento posterior à data da entrada em vigor da nova lei,

H. As expectativas dos credores (de que os documentos particulares com que se muniram eram já ou poderiam ser títulos executivos) não eram simples expectativas futuras, mas verdadeiros interesses legítimos dignos de tutela.

I. A retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos teve dois objetivos em vista: (i) diminuir o número de ações executivas; (ii) criar medidas para agilizar o processo executivo, libertando o mesmo de identificadas causas de protelamento e complexidade (v.g. oposições à execução).

J. Ora, as razões de interesse público subjacentes à opção da retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos, não prevalecem, do nosso ponto de vista, sobre as legítimas expectativas individuais geradas pelo próprio ordenamento jurídico.

K. Ponderando-se os dois interesses em confronto – os particulares têm interesse na estabilidade da ordem jurídica e das situações jurídicas constituídas a fim de organizarem os seus planos de vida, evitando-se o mais possível a frustração das suas expectativas fundadas; o interesse público preocupa-se com a transformação da ordem jurídica de modo a adaptá-la o mais possível às necessidades sociais – o método do juízo de avaliação e ponderação dos interesses relacionados com a proteção da confiança é igual ao que se segue quando se julga sobre a proporcionalidade ou adequação substancial de uma medida restritiva de direitos. Mesmo que se conclua pela premência do interesse público na mudança e adaptação do quadro legislativo vigente, ainda assim é necessário aferir, à luz de parâmetros materiais e axiológicos, se a medida do sacrifício é «inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa» (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 862/13 e n.º 287/90).

L. Em suma, consideramos que a norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos, quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

M. Posto isto, ao documento apresentado com o requerimento executivo foi conferida a característica da exequibilidade por força do disposto no artigo 46º, nº1, alínea c) do anterior Código de Processo Civil. E, considerando a inconstitucionalidade da norma que retirou essa característica da exequibilidade, conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, na interpretação supra identificada, a mesma é inaplicável, pelo que se mantém o regime anteriormente previsto e, como tal, os documentos apresentados pela exequente constituem um título executivo que, como tal deverão ser aceites, devendo a execução prosseguir a sua normal tramitação.

N. O presente sentença viola o disposto no artigo 12º do C. Civil; artigo 703º, nº1 alínea d) do CPC; artigo 9º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20/8 e artigos 2º, 13º e 18º n.º 2 da Lei Fundamental.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se um documento particular (confissão de dívida) emitido em data anterior à entrada em vigor da Lei nº 41/2013, pode, ou não, ser reconhecido como título executivo numa ação executiva instaurada ao abrigo do Novo CPC.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A presente execução deu entrada em tribunal em data posterior à entrada em vigor do Novo CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, tendo por base um documento particular pelo qual os aqui executados se reconheceram devedores de determinada quantia, obrigando-se a proceder ao respetivo pagamento em prestações.

Com a Reforma de 2013, o legislador deixa de reconhecer força executiva aos documentos particulares assinados pelo devedor e que importem a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação, eliminando-os do elenco dos títulos executivos enumerados taxativamente no artigo 703º do Novo CPC[1].

Tal restrição, respondendo à censura exercida pela doutrina relativamente ao facto de o ordenamento jurídico português ser um dos mais generosos na concessão de exequibilidade a títulos não judiciais[2], teve por objetivo a dignificação dos títulos executivos, com vista a atribuir uma maior segurança jurídica à ação executiva e evitar oposições à execução unicamente para a discussão do documento particular e da relação subjacente.

O legislador explicou longamente os motivos de tal opção[3] na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII: “É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respetivo portador o imediato acesso à ação executiva. Se é certo que tal solução teve por efeito reduzir significativamente a instauração de ações declarativas, a experiência mostra que também implicou o aumento do risco das execuções injustas, risco este potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório. Associando-se a isto uma realidade que, embora estranha ao processo civil, não pode ser ignorada, como seja o funcionamento um tanto desregrado do crédito ao consumo, suportado em documentos vários cuja conjugação é invocada para suportar a instauração de acções executivas, é fácil perceber que a discussão não havida na acção declarativa (dispensada a pretexto da existência de título executivo) acabará por eclodir mais à frente, em sede de oposição à execução. Afigura-se controverso o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório.

Considerando-se que, neste momento, funciona adequadamente o procedimento de injunção, entende-se que os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título assim formado. Como é evidente, se houver oposição do requerido, isto implicará a conversão do procedimento de injunção numa ação declarativa, que culminará numa sentença, nos termos gerais. Deste modo, relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalvam-se os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respetivo credor poder aceder logo á via executiva. Ainda dentro dos títulos de crédito, consagra-se a sua exequibilidade como meros quirógrafos, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente.”

Quanto à aplicação no tempo da lei processual civil, a regra é a da aplicação imediata da nova lei. De modo a evitar a retroatividade da lei, o legislador consagrou uma norma transitória – nº3 do artigo 6º, da Lei nº 41/2013 –, ressalvando da regra da sua aplicação imediata às execuções pendentes, entre outras, as alterações introduzidas relativamente aos títulos executivos, determinando a sua aplicabilidade unicamente às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor, ou seja, 1 de Setembro de 2013.

Quanto às execuções instauradas a partir de 1 de Setembro de 2013, só poderão ter por base os documentos referidos nas diversas alíneas do artigo 703º do Novo CPC.

Com a aplicação da lei nova, os documentos particulares constitutivos de obrigações e assinados pelo devedor anteriormente a 1 de Setembro de 2013 – que até essa data e pela lei vigente à data da sua constituição gozavam de força executiva –, perdem a sua exequibilidade.

Assim sendo, e partindo da ideia de que a eliminação, no elenco dos títulos executivos, dos documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor da lei nova, configura um caso de aplicação retroativa a factos jurídicos pré-existentes ou, pelo menos, aos efeitos jurídicos que resultam de tais factos jurídicos, Maria João Galvão Teles[4], no que foi seguida por alguma jurisprudência[5], veio defender a inconstitucionalidade de tal solução, por violação do princípio da segurança e da proteção da confiança ínsito no art. 2º da Constituição da República Portuguesa.

Segundo a referida autora, “o facto de aqueles documentos revestirem a forma de título executivo pode ter sido essencial para a formação da vontade dos credores aquando da celebração daquele negócio jurídico ou da constituição daquela relação jurídica em particular. A aplicação da lei nova, sem mais, aos títulos executivos formados ao abrigo da lei anterior e ainda subsistentes lesa direitos adquiridos dos credores que apenas a prossecução de um elevado interesse público poderia revogar[6]”.

Também Elisabeth Fernandez[7] defende, mesmo contra a disposição transitória contida no nº3 do art. 6º da Lei nº 41/2013, que um documento particular assinado antes do dia 1 de Setembro de 2013 mantém a sua força executiva independentemente do momento em que vier a ser instaurada a ação executiva: “o reconhecimento de força executiva a um documento não é uma qualificação processual ou formal, mas material ou substantiva. E, se assim é, não pode deixar de servir de base à execução um documento que, no momento em que foi criado, tinha força executiva, nem passará a servir de base à execução um título que não o tinha quando foi criado”. Segundo tal autora, interpretação em sentido diverso importará a inconstitucionalidade de tal norma transitória, por restrição retroativa do direito à tutela judicial efetiva.

Na doutrina, várias vozes se têm levantado contra tal posição.

Miguel Teixeira de Sousa[8] contesta, desde logo, que tal situação configure um caso de aplicação retroativa da lei: “não se trata de retroatividade, mas tão só de aplicação imediata do NCPC aos títulos executivos que se formaram na vigência do ACPC. Para que se pudesse falar de retroatividade era necessário que o art. 6º, nº3 da Lei nº41/2013 tivesse retirado carater executivo a títulos que tinham produzido a sua eficácia no passado, isto é, teria sido necessário que o preceito tivesse atingido execuções baseadas em títulos que deixaram de o ser de acordo com o NCPC. Não é evidentemente isto que resulta do art. 6º, nº3, L 41/2013: o que decorre deste preceito é uma aplicação imediata para o futuro do novo elenco dos títulos executivos, deixando intocados todos os efeitos que os agora ex-títulos produziram no passado. A seguir-se a conceção de retroatividade utilizada no acórdão, haveria que qualificar como retroativa toda a lei que afetasse qualquer situação duradoura que transitasse do domínio da lei antiga para a lei nova (como, por exemplo, uma nova lei sobre o regime do arrendamento que fosse aplicável aos contratos subsistentes à sua entrada em vigor”.

Manifestando a sua adesão à opinião emitida por Teixeira de Sousa, afirma José Lebre de Freitas[9]: “Sempre se considerou que a exequibilidade é definida pela lei em vigor à data da execução – e bem: não se trata da produção de efeitos dum ato jurídico, mas da opção do legislador sobre a suficiência de documento que permita prescindir da ação declarativa (ou, como bem nota o Prof. Teixeira de Sousa, da injunção). Também quando se alarga o elenco dos títulos é a nova lei – e sempre se considerou ser – de aplicação imediata (a não confundir com retroatividade)”.

Como se sustenta no Assento nº 9/93 de 10.11.1993[10], trata-se de uma típica norma direito processual que não interfere com a validade e força probatória dos documentos em causa nem com o conteúdo ou substância dos direitos subjetivos por eles conferidos, o que é regulado pela lei substantiva, mas apenas com o modo de realização ou tutela desses direitos, o que é próprio da lei processual.

Quanto à questão da eventual inconstitucionalidade da aplicação para o futuro do elenco dos títulos executivos constantes do art. 703º do NCPC e a consequente exclusão daqueles que o eram em face do art. 46º do anterior CPC e que deixaram de o ser a partir de 1 de Setembro de 2013, para que seja conforme ao princípio da proteção da confiança, inerente ao Estado de direito (art. 2º) da CRP), “a lei nova só tem de respeitar direitos e não simples expetativas”. As novas normas que dispõem sobre a força executiva dos documentos particulares “apenas regulam o modo de realização judicial de um direito, sem afetarem o direito litigado ou importarem uma diferente valoração jurídica dos factos que lhe deram origem[11]”.

Ou, como refere Miguel Teixeira de Sousa[12], “a CRP garante, no seu art. 20º, nº1, o direito de acesso aos tribunais, mas não garante o direito a um tipo de processo. Em particular, é muito duvidoso que a atribuição de carater executivo a um documento particular por uma lei revogada tenha de ser respeitada até se extinguir a última execução instaurada com fundamento no último desses títulos ainda por executar”.

A proteção da confiança dos particulares relativamente ao legislador move-se no confronto entre dois valores igualmente acolhidos na Constituição: por um lado, a proteção da confiança dos particulares em não verem frustradas expetativas legítimas quanto à manutenção de um determinado quadro legislativo; e por outro, a exigência de que o legislador, democraticamente eleito, disponha de uma ampla margem de conformação (e revisibilidade) da ordem jurídica infraconstitucional, com vista à prossecução do interesse público a que está vinculado[13].

No caso em apreço, a ponderação dos interesses em jogo oscila, por um lado, entre a expectativa individual dos credores que acautelaram os seus interesses agindo de acordo com a lei vigente e, por outro lado, os objetivos visados pelo legislador com a eliminação dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos: i) intensão de proteger os executados de execuções injustas; ii) intensão de descongestionamento dos tribunais, diminuindo o número de ações executivas nomeadamente, daquelas em que é deduzida oposição à execução, (por a discussão não havida em sede declarativa, dispensada a pretexto da existência de título executivo, vir a eclodir mais à frente em sede de oposição à execução).

Ora, não nos parece que o interesse público da segurança jurídica que esteve na base da supressão dos documentos particulares (para além do interesse do devedor a não ser executado senão com base na existência de um título que dê garantias bastantes da constituição da dívida) deva ceder perante o interesse daqueles que terão optado pela formalização de acordos com base em documentos particulares confiando na sua suscetibilidade de servirem de base a uma execução[14].

Como referem Paulo Ramos de Faria e Ana Loureiro, “a vontade das partes pode ser coincidente com o efeito que a lei reconhece ao seu ato; mas não é esta vontade que a lei tutela. Sendo coincidente, podem as partes admitir que este efeito perdure, enquanto perdurar a sua relação contratual; mas não podem justificadamente contar com uma tutela legal desta simples expetativa[15]”.

Concluindo, não subscrevemos o juízo de inconstitucionalidade formulado por Maria João Galvão Teles e invocado pelos apelantes nas suas alegações de recurso, no sentido de que a norma que elimina os documentos particulares do elenco dos títulos executivos, em conjugação com o nº 3 do art. 6º da Lei nº 41/2013, quando interpretada no sentido de se aplicar aos documentos particulares validamente constituídos antes da entrada em vigor da lei nova, deva ser julgada inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança ínsito no art. 2º da CRP.

A apelação será de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelos apelantes.                  

                                                                            Coimbra, 7 de Outubro de 2014

 Maria João Areias ( Relatora )

Fernando Monteiro

 Inês Moura


[1] De entre os documentos particulares assinados pelo devedor, apenas os títulos de crédito constituem títulos executivos, ainda que meros quirógrafos da obrigação.
[2] Entre outros, José Lebre de Freitas, “Os Paradigmas da Acção Executiva”, estudo publicado in ROA 2001, II, págs. 543 e ss), igualmente disponível in www.dgpj.mj.pt/sections/informações.
[3] Atentar-se-á em que o projeto inicial da reforma, apresentado em finais de 2011 (projeto disponível no Portal Citius), mantinha, na al. c) do art. 46º, os documentos particulares como títulos executivos, acrescentando-se, tão só, a exigência do caracter expresso e inequívoco do reconhecimento da obrigação ou da sua constituição.
[4] “A Reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos”, Julgar on line – 2013, pág. 4
[5] Acórdãos do TRE de 27.02.2014, relatado por Paula Caroço, e de 10.04.2014, relatado por Mata Ribeiro, e do TRL de 26.03.2014, relatado por Paula Santos, disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] Artigo e local citados, pág. 4.
[7] “Um Novo Código de Processo Civil?, Em busca das diferenças”, Vida Económica 2014, págs. 157 e 158.
[8] In Blog do IPPC, de 25.03.2014.
[9] In Blog do IPPC, de 26.03.2014, em resposta à publicação do prof. Teixeira de Sousa.
[10] Assento publicado no DR nº 294, de 18.12.1993, hoje com o valor de acórdão para fixação de jurisprudência, defendendo a aplicação imediata da alteração ao art. 51º do CPC, que veio dispensar a assinatura do devedor nas letras, cheques e livranças como título executivo.
[11] Batista Machado, citado por Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma”, Vol. II, Almedina 2014, pág. 191, notas 467 e 468.
[12] Blog do IPPC, já citado.
[13] Cfr., neste sentido, JORGE REIS NOVAIS, “Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa”, Coimbra Editora 2004, págs. 263 e 264.
[14] Sendo que, o novo regime apenas implica que o credor que detinha um título executivo tenha de recorrer a um procedimento de injunção ou à propositura de uma ação declarativa para obter um título que seja válido face às novas exigências. Também Rui Pinto parece apontar nesse sentido, ao propor que o melhor será, a montante, o credor se precaver promovendo a autenticação por termo, do documento particular, ou se tal não for possível, a jusante, obter injunção ou sentença de condenação – “Manual de Execução e Despejo”, Coimbra Editora, pág. 184.
[15] “Primeiras Notas (…)”, pág. 191, dando como ex., que o credor que aceita um cheque pode ter em conta a sua tutela penal, mas se o cheque não obtiver pagamento por falta de provisão da conta sacada, não pode, obviamente, invocar esta simples expectativa para perseguir criminalmente o devedor, se uma lei nova vier entretanto descriminalizar a emissão do cheque sem provisão.