Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
92/09.7IDVIS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONSUMAÇÃO DO CRIME
EFECTIVO RECEBIMENTO DO IMPOSTO A ENTREGAR À ADMINISTRAÇÃO FISCAL
Data do Acordão: 10/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.105.º DO RGIT; ART. 103.º, N.º 1, DA CRP
Sumário: I - São pois elementos constitutivos do tipo deste crime [abuso de confiança fiscal]:
[Tipo objectivo]

- Que o agente, estando legalmente obrigado a entregar à administração fiscal,

i) prestação tributária deduzida nos termos da lei,

ii) prestação deduzida por conta daquela prestação tributária, ou

iii) prestação que tendo recebido, tenha a obrigação legal de liquidar,

de valor superior a € 7.550 [limiar de tipicidade foi introduzido pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro] omita, total ou parcialmente, tal entrega;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal, posto que não se exige a verificação de um qualquer dolo específico.

II - A consumação do crime pressupõe necessariamente a verificação em concreto de todos os elementos do tipo do crime.

III - No caso específico do IVA, o tipo exige que o sujeito passivo tenha recebido a prestação tributária que tem a obrigação legal de liquidar.

IV - A não se entender como necessário ao preenchimento do tipo o prévio recebimento pelo sujeito passivo do imposto que deve entregar à administração fiscal, não se concebe a obrigação de entrega e muito menos a existência de abuso de confiança pois o depositário nada recebeu de que pudesse abusar.

V - Dúvidas não subsistem portanto, de que, agora e face à jurisprudência fixada [Acórdão Uniformizador n.º 8/2015], o fundamento jurídico que constitui a pedra angular do recurso interposto isto é, que o efectivo recebimento da prestação tributária deduzida não é elemento constitutivo do tipo de ilícito – deixou de ter “validade”.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


 

I. RELATÓRIO

No [já extinto] 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Mangualde [agora Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Mangualde – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1] o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, dos arguidos, A... e B... , Lda., com os demais sinais nos autos, a quem imputou a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 6º, nº 1, 7º, nº 1, 12º a 16º e 105º, nº 1, 4 e 7º do RGIT (na redacção da Lei nº 67-A/2007, de 31 de Dezembro, e actualmente, na redacção da lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro) e pelos arts. 30º, nº 2 e 79º, nº 1, ambos do C. Penal.

Por sentença de 17 de Outubro de 2013 foi declarado ‘descriminalizado’ o crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada imputado nos autos aos arguidos e declarada extinta a respectiva responsabilidade criminal.

            Inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, tendo esta Relação, por acórdão de 9 de Abril de 2014, declarado nula a sentença recorrida e determinado a sua substituição por outra, suprindo as nulidades de falta de fundamentação e de omissão de pronúncia.

Os autos baixaram à 1ª instância onde, por sentença depositada a 9 de Junho de 2014, foi mais uma vez declarado ‘descriminalizado’ o crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada imputado nos autos aos arguidos e declarada extinta a respectiva responsabilidade criminal.


*

            De novo inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

                1 – Tratando-se o crime de abuso de confiança fiscal de um crime omissivo, o pagamento do IVA liquidado e declarado à Administração Fiscal, é exigível assim que decorra o prazo para o efeito, tenha ou não o sujeito tributário recebido a quantia do cliente/devedor.

2 – Para efeitos de consumação do crime, refere o artigo 5º n.º 2 do RGIT que, as infrações tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários.

3 – Nestas infrações tributárias omissivas inclui-se o crime de abuso de confiança fiscal, ocorrendo a consumação no momento em que terminam os prazos referidos no n.º 4 do artigo 105º do RGIT.

4 – O IVA respeitante às faturas n.º 0664, 0660, e 0662, juntas aos autos, no montante de € 8.274,81 é devido desde a respetiva venda, faturação, liquidação e declaração aos serviços, pelos arguidos, e não desde o momento do pagamento da transação que lhes deu origem.

                5 – O crime de abuso de confiança fiscal previsto e punido no artigo 105º do RGIT prescinde de qualquer referência ao elemento subjetivo da intenção de obtenção de vantagem patrimonial indevida, ou de apropriação, nem faz parte dos elementos objetivos do tipo o recebimento e a apropriação da prestação tributaria deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário.

6 – A atual redação do artigo 105º do RGIT reduz o núcleo da infração ao denominador comum da não entrega.

7 – A obrigação do pagamento do imposto surge, deste modo, unicamente por força da lei e com um conteúdo moldado por esta, independentemente de qualquer manifestação de vontade do contribuinte.

8 – A sentença recorrida ao considerar que, no caso do IVA só comete o crime de abuso de confiança fiscal, o sujeito passivo que tendo efetivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, não o faça no prazo legalmente fixado para tal, violou o disposto nos artigos Arts. 7º, 16º, 22º, 26º, 36º e 40º, todos do Código do IVA e artigos 5º n.º 2 e 105º do RGIT.

9 – No caso em análise, impõe-se, pois, concluir que tendo resultado provados os factos imputados aos arguidos no despacho de acusação, constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal, deverão os arguidos serem condenados pela sua prática.

Nestes termos e naqueles mais que V.ªs Ex.ªs, se dignarão suprir, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, consequentemente, ser revogada a sentença proferida, e, serem os arguidos A... e B... , Lda condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p.p. pelos artigos 6º, nº 1, 7º, nº 1, 12º a 16º e 105º, nº 1, 4 e 7, todos do RGIT e ainda artigos 30º, n.º 2 e 79º n.º 1, ambos do Código Penal.

Porém, V.ªs Ex.as, decidindo, farão, como sempre, JUSTIÇA!


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            Respondeu ao recurso o arguido, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

               a) Da matéria de facto provada nos autos, e não impugnada em sede de recurso, resulta que o valor do IVA faturado e não entregue nos cofres do Estado importa no valor de € 14.178,07 e que deste montante somente foi efetivamente recebido e não entregue nos cofres do Estado o valor de € 5.903,06.

b) O dever legal de entregar as prestações devidas por dedução de IVA pressupõe sempre que estas tenham sido efetivamente recebidas.

c) No caso do IVA somente comete o crime de abuso de confiança fiscal previsto e punível pelo artigo 105º do RGIT, o sujeito passivo que, tendo efetivamente recebido montante superior a € 7.500,00, e estando obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça dentro do prazo legalmente fixado.

d) Sendo os valores de IVA efetivamente recebidos e não entregues dentro do prazo legal ao Estado de montante inferior a € 7.500,00, encontra-se a conduta do arguido descriminalizada em consequência da alteração introduzida no artigo 105º do RGIT pela Lei 64-A/2008, de 31 de dezembro, por a mesma ter eficácia retroativa e ser aplicável ao caso dos autos (artigo 2.º n.º 2 CP e 29.º n.º 4 CRP).

Nestes termos, e nos demais que serão objeto do mui douto suprimento de V. a Ex.as, deve o presente recurso improceder mantendo-se na integra a decisão recorrida.

Com o que se fará JUSTIÇA.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, onde, dando conta da divergência jurisprudencial quanto à questão de saber se para o preenchimento do tipo do crime de abuso de confiança fiscal basta a omissão do pagamento do IVA liquidado e declarado à Administração Fiscal ou se, para tanto, é ainda necessário o efectivo recebimento do IVA pelo devedor tributário do respectivo cliente, manifestou a sua adesão a esta última posição, e concluiu pelo não provimento do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

 

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

            Assim, atentas as conclusões formuladas pela Digna Magistrada recorrente, a questão a decidir é a de saber se o crime de abuso de confiança fiscal se consuma [como pretende a recorrente] com o termo do prazo para o pagamento de IVA liquidado e declarado sem que a prestação tributária tenha sido feita, independentemente do recebimento pelo arguido da quantia sujeita a este imposto e da qual deveria ter sido deduzida a prestação.


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            Para a resolução desta questão importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

            1. A arguida “ B... , Lda", sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, com sede em (...) – Mangualde, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Viseu sob o nº (...) , tem por objecto social a indústria de construção civil e obras públicas – cfr. certidão do teor da matrícula e de todas as inscrições em vigor de fls. 85 e seguintes, a que corresponde o CAE (Código de Actividade Económica) Principal 41200-R3, encontrando-se colectada por tal actividade nos Serviços de Finanças do concelho de Mangualde, sob o NIPC (Número Individual de Pessoa Colectiva) (...) , em IRC e em IVA.

2. O arguido A... iniciou as funções de sócio-gerente da arguida pessoa colectiva em 1995, cessou tais funções, por renúncia, em 01/04/2005, tendo sido novamente designado gerente em 16/07/2008, funções que exerceu até 12/05/2009, data em que renunciou novamente à gerência, e a arguida C... iniciou as suas funções de sócia-gerente em 31/12/07, tudo cfr. certidão do teor da matrícula e de todas as inscrições em vigor de fls 85 e seguintes, sendo certo que, durante todo o período contributivo que irá ser objecto de análise – 2º e 3º trimestres de 2008, o arguido A... , para além de ser sócio-gerente de direito da sociedade arguida, exerceu sempre, de facto, e de forma conjunta, as funções de gerente da mesma.

3. Como sujeito passivo de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), a sociedade arguida encontrava-se enquadrada no regime normal com periodicidade mensal, já que preenchia as condições para tal exigidas – arts 1º, 1, a), 2º, 1, a), 28º, 1, c), 40º, 1, a) e 41º do C.I.V.A..

4. Mercê do aludido regime normal mensal, a sociedade arguida estava sujeita à obrigação de enviar a declaração periódica do imposto e correspondentes meios de pagamento ao Serviço de Administração do IVA, até ao dia 20 do 2º mês seguinte àquele a que respeitam as operações, de harmonia com o disposto no arts 26º, 1, 28º, 1, c) e 40º, 1, a) do CIVA.

5. No exercício da sua actividade comercial, a arguida “ B... , Lda.”, no 2º trimestre de 2008, através do arguido, seu sócio-gerente, desenvolveu a referida actividade de indústria de construção civil e obras públicas, actividade sujeita a IVA, nos termos do art. 1º, 1, a) e 2º, 1, a) do CIVA, comercializando e vendendo os seus serviços, emitindo as competentes facturas, recebendo dos adquirentes os preços correspondentes, liquidando e recebendo também desses mesmos clientes o IVA incidente sobre tais operações.

6. Assim, a sociedade arguida emitiu as seguintes faturas e recibos:

- Maio de 2008: € 62.546,11 – Igreja Paroquial de (...) , cfr. factura 664, junta a fls 46, recibo nº 1011, junto a fls 47;

- Abril de 2008: € 2.838,15 – Freguesia de (...) – cfr. factura 659. junta a fls 71, e recibo 1009, junto a fls 72;

- Abril de 2008: € 15.264,90 – Freguesia de (...) – cfr. factura 660, a fls 74, e recibo 1024, a fls 75;

- Abril de 2008: € 12.999,00 – Freguesia de (...) – cfr. factura 662, junta a fls 76, e recibo 1026, junto a fls 77;

- Abril de 2008: € 2.514,75 – Freguesia de (...) – cfr. factura 661, junta a fls 80, e recibo 1010, a fls 79;

- Abril de 2008: € 6.601,87 – Freguesia de (...) – cfr. factura 663, junta a fls 78, e recibo 1025, junto a fls 81;

- Maio de 2008: € 10.622,59 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura 665, junta a fls 57, e recibo 1012, junto a fls 63;

- Maio de 2008: € 1.720,13 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura 666, junta a fls 58, e recibo 1013, junto a fls 64;

- Maio de 2008: € 3.267,00 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura nº 667, junta a fls 59, e recibo 1014, junto a fls 65;

- Junho de 2008: € 20.008,43 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura nº 668, junta a fls 60, e recibo 1015, junto a fls 66;

- Junho de 2008: € 5.384,50 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura nº 669, junta a fls 61, e recibo 1016, junto a fls 67;

- Junho de 2008: € 8.443,20 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura 670, junta a fls 62, e recibo 1017, junto a fls 68, num total de € 152.210,63,

7. Tendo sido apurado, de acordo com os elementos de análise, designadamente balancete geral de fls 33 e ss, extractos de conta-corrente de fls 38 e ss, e facturas e recibos apresentados, vindos de mencionar no artigo antecedente, IVA no montante de € 21.357,78, encontrando-se em dívida o montante de € 14. 178,07.

8. Foram as seguintes as prestações tributárias por conta de IVA, efectivamente liquidadas e recebidas pela sociedade arguida:

- Abril de 2008: € 2.838,15 – Freguesia de (...) – cfr. factura 659. junta a fls 71, e recibo 1009, junto a fls 72;

- Abril de 2008: € 2.514,75 – Freguesia de (...) – cfr. factura 661, junta a fls 80, e recibo 1010, a fls 79;

- Abril de 2008: € 6.601,87 – Freguesia de (...) – cfr. factura 663, junta a fls 78, e recibo 1025, junto a fls 81;

- Maio de 2008: € 10.622,59 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura 665, junta a fls 57, e recibo 1012, junto a fls 63;

- Maio de 2008: € 1.720,13 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura 666, junta a fls 58, e recibo 1013, junto a fls 64;

- Maio de 2008: € 3.267,00 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura nº 667, junta a fls 59, e recibo 1014, junto a fls 65;

- Junho de 2008: € 20.008,43 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura nº 668, junta a fls 60, e recibo 1015, junto a fls 66;

- Junho de 2008: € 5.384,50 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura nº 669, junta a fls 61, e recibo 1016, junto a fls 67;

- Junho de 2008: € 8.443,20 – Centro Social Paroquial de (...) – cfr. factura 670, junta a fls 62, e recibo 1017, junto a fls 68.

9. Certo é porém, que a sociedade arguida não incluiu estes valores de IVA apurados, liquidados e por ela efectivamente percebidos, na declaração mensal relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade, no decurso do segundo mês precedente, a entregar no Serviço de Administração do IVA, o que deveria ter feito com a indicação do imposto devido e dos elementos que serviram de base ao respectivo cálculo, nem fez a entrega simultânea do montante do imposto por ela percebido, na Direcção de Serviços de Cobrança do IVA, como também era sua obrigação.

10. Na verdade, a arguida estava obrigada a fazer simultaneamente a sobredita declaração e a entrega do montante do imposto, até ao dia 10 do 2º mês seguinte àquele a que respeitavam as operações pela quais liquidara e cobrara efectivamente IVA aos clientes, tudo como era do perfeito conhecimento do arguido A... .

11. Obrigações essas que o arguido, todavia, não cumpriu, já que não só não fez a referida declaração de imposto, como também não procedeu à entrega do IVA por ele liquidado e efectivamente recebido, no prazo legal, nem nunca até hoje o fizeram.

12. Quantia de I.V.A. esta, que o arguido A... se apoderou, fazendo-a reverter para os Cofres da arguida “ B... , Lda”, e utilizando-a em proveito desta, bem sabendo que a arguida “ B... , Lda.” havia liquidado e recebido tais quantias de terceiros (clientes) a título de I.V.A., com obrigação de as entregar nos Cofres do Estado, a quem pertenciam.

13. Em toda a actuação descrita, agiu o arguido A... sempre em nome e em representação da sociedade arguida, com o propósito conseguido de ocultar a percepção e dedução do sobredito imposto, e de integrar na esfera patrimonial própria da arguida “ B... , Lda” as referidas prestações tributárias por ele efectivamente recebidas, não obstante saber que estava legalmente obrigado a declará-las e entregá-la nos Cofres do Estado, causando a este, com a sua actuação, prejuízo patrimonial.

14. Após a primeira omissão de declaração e entrega do imposto devido, o arguido A... , verificando que não tinha sido sujeito a inspecção tributária, e confiando que a sua actuação criminosa não iria ser detectada, continuou a delinquir, omitindo a declaração e a entrega das outras prestações de IVA, aproveitando-se assim, de um quadro de circunstâncias exteriores que facilitaram a reiteração da sua conduta.

15. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que toda a sua conduta era criminosa.

16. Já decorreram mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega das prestações referidas, sem que, até hoje, tenha sido entregue nos Cofres do Estado, qualquer quantia para seu pagamento.

17. A arguida pessoa colectiva e o arguido pessoa singular foram notificados para, em 30 dias, procederem ao pagamento do IVA em dívida, acrescido dos juros e do valor da coima, com a advertência de que, se o não fizessem, seria instaurado o competente procedimento criminal – art. 105º, 4, b) do RGIT – fls 136-146, não tendo sido efectuado pagamento algum, nem naquele prazo, nem em qualquer outro. 

18. No que respeita à fatura n.º 0664, datada de 08.05.2008 e emitida à Fabrica da Igreja Paroquial de (...) , encontra-se por liquidar o montante de 39.925,47 €, sendo o IVA correspondente em débito de 6.928,81 €.

19. A fatura n.º 0660, datada de 04.04.2008 e emitida à Freguesia de (...) encontra-se por liquidar, sendo o IVA correspondente em débito de 726,90 €.

20. A fatura n.º 0662, datada de 04.04.2008 e emitida à Freguesia de (...) encontra-se por liquidar, sendo o IVA correspondente em débito de 619,00 €.

                21. O arguido não tem quaisquer rendimentos, vive com a mulher e os e filhos na mesma casa, com a ajuda destes.

22. O arguido tem antecedentes criminais constantes de fls.275 a 278.

(…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

            - foram as seguintes as prestações tributárias por conta de IVA, efectivamente liquidadas e recebidas pela sociedade arguida:

- Maio de 2008: € 62.546,11 – Igreja Paroquial de (...) , cfr. factura 664, junta a fls 46, recibo nº 1011, junto a fls 47;

- Abril de 2008: € 15.264,90 – Freguesia de (...) – cfr. factura 660, a fls 74, e recibo 1024, a fls 75;

- Abril de 2008: € 12.999,00 – Freguesia de (...) – cfr. factura 662, junta a fls 76, e recibo 1026, junto a fls 77.

- tendo sido liquidado aos clientes, IVA no montante de € 21.357,78, que foi efectivamente recebido pela sociedade arguida.

(…)”.

C) Dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

A convicção do tribunal sobre a matéria de facto provada resultou dos documentos juntos aos autos referidos na acusação e ainda juntos a fls. 129 a 131 e 521 e 522, na letra de câmbio exibida em audiência de julgamento e ainda no depoimento da testemunha D... , Presidente da Junta de Freguesia de (...) e C.R.C. do arguido.

(…)”.

D) E dela consta a seguinte fundamentação de direito:

“ (…).

A) Ao arguido A... vem imputada a pratica de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. à data da sua prática, nos termos dos arts. 6º, 1, 12º a 16º e 105º, 1, 4 e 7 da Lei n.º15/2001, de 05/06 – Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), com a redacção introduzida pela Lei 67-A/2007, de 31/12, e, atualmente, p. e p. nos termos dos arts. 6º, 1, 12º a 16º e 105º, 1, 4 e 7 da Lei 15/2001, de 05/06 – Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), com a redacção introduzida pela Lei 55-A/2010, de 31/12, e arts 30º, 2 e 79º, 1, ambos do C. Penal e à arguida “ B... , Lda” a prática do mesmo crime, nos termos dos arts 7º, 1, 12º, 13º, 15º e 16º do RGIT, com qualquer das apontadas redacções.

Em primeiro lugar teremos que saber de que se fala quando se fala de crime de abuso de confiança fiscal (ou, o que é o mesmo, quais são os seus requisitos) no que respeita às condutas de não entrega dos valores de IVA, por parte do sujeito passivo.

a) Sobre os requisitos do tipo de crime de abuso de confiança fiscal.

As sucessivas alterações legislativas ao tipo legal de abuso de confiança fiscal devem ser explicitadas para se perceber o que está actualmente em causa no tipo de crime quais os seus requisitos.

O crime de abuso de confiança fiscal, na versão inicial do RJIFNA (Decreto lei n.º 20-A/90 de 15 de Janeiro, publicado ao abrigo da Lei n.º 89/99 de 11 de Setembro, «Autorização ao Governo para legislar em matéria de infracções fiscais») assumia a seguintes estrutura: «Quem, com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida e estando legalmente obrigado a entregar ao credor tributário a prestação tributária que nos termos da lei deduziu, não efectuar tal entrega total ou parcialmente será punido com pena de multa até 1000 dias».

Com esta incriminação quis o legislador criminalizar a conduta de quem «não entrega, com intenção de assim obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida, de todo ou parte do imposto ou prestação tributária que hajam sido retidos na fonte, ainda que por conta da prestação devida ou que, tendo sido recebidos, haja a obrigação legal de os liquidar». É isso que decorre da Lei de alteração legislativa n.º 89/99 de 11 de Setembro, artigo 2.º, n.º 2, lei autorizadora da versão original do RJIFNA.

Protege-se assim, com tal incriminação, o dever de pagar impostos que como é dito no Acórdão do TC n.º 554/2004, «é essencial para a realização dos fins do Estado, quer para prover à satisfação das suas necessidades financeiras, quer também para prosseguir o objectivo de uma repartição justa de rendimentos e riqueza, constitucionalmente consagrado».

Com a alteração ao RJINFA decorrente do Decreto lei nº 394/93, de 24 /11, o crime de abuso de confiança passou a ter a seguinte estrutura típica «Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido».

Foi esta alteração de 1993 que veio exigir a necessidade da apropriação das quantias, «com integração na esfera patrimonial do sujeito passivo ou do substituto tributário» (cf. neste sentido Alfredo José de Sousa in Infracções Fiscais não aduaneiras, Almedina, Coimbra, 1997, p. 108).

Em 2001, com o RGIT aprovado pela Lei n.° 15/2001 de 5 de Junho, (que revogou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras e também do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras) foi revogado o antigo crime de «Abuso de confiança fiscal».

O RGIT, no que respeita ao crime de abuso de confiança fiscal, regressou ao sistema inicial do RJINFNA, eliminando a exigência de apropriação como elemento típico do crime de abuso de confiança fiscal exigindo-se apenas a não entrega do imposto.

Na versão inicial do RGIT (Lei n.° 15/2001 de 5 de Junho) o tipo e crime «abuso de confiança fiscal» estabelecia que “1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. 3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente. 4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação….”.

Por sua vez a alteração introduzida pela Lei n.º 53/2006, de 29 de Dezembro veio modificar e acrescentar ao n.º 4 uma alínea b) que cumulando com a epigrafe do artigo que passou a aliena a) estabelece que b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. 5 – Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas. 6 – Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária. 7 –  Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Com a modificação imposta pela Lei n.° 64-A/2008, de 31 de Dezembro o tipo de crime passou a ser o seguinte: “1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. 3 – É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente. 4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. 5 – Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.6 – (Revogado pela Lei n.° 64-A/2008, de 31 de Dezembro). 7 – Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”

Independentemente das alterações legislativas citadas, constituem assim elementos objectivos do tipo desde 2001: 1.º a não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária; 2.º que o agente estava legalmente obrigado a entregar (de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei, após a reforma de 2008).

Configuram condições objectivas de punibilidade, indicadas no n.° 4 do art.° 105.° : (i) tiver decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega prestação; (ii) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (em sentido diferente, configurando as circunstâncias do nº 4 como elementos integrantes do tipo de crime, e não como condição objectiva de punibilidade, Taipa de Carvalho, O crime de abuso de confiança fiscal. Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p.40).

Como elemento subjectivo típico, torna-se necessário o conhecimento e vontade de praticar tais actos, sabendo que os mesmos constituíam a prática de um crime.

A obrigação de entrega da prestação tributária, sendo um dever para todos os que estão obrigados a pagar impostos e que é hoje inequivocamente tutelada criminalmente pelo crime de abuso de confiança fiscal, com as limitações decorrentes das clausulas de inexigibilidade estabelecidas nos artigos 4.º e 5.º do artigo 105.º do RGIT.

Daí que, como refere Costa Andrade e Susana Aires de Sousa in «As metamorfoses e desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto – Reflexões criticas a propósito da alteração introduzida pela Lei n.º 53-A/2006 de 29 de Dezembro), Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 17, n.º 1 p.54) «nem sequer se exige – como acontecia na versão originária do RJIFNA – uma intenção de apropriação.

Para se consumar o crime, basta, agora a mera violação do dever legal de entrega das prestações deduzidas ou retidas, que no entanto, insiste-se, não se confunde com qualquer intenção de apropriação. Posição que tem igualmente vindo a ser defendida pela jurisprudência.

Mas se não é exigível uma intenção de apropriação, é todavia exigível, nos casos em que a prestação tributária pressuponha uma autoliquidação, que quem tenha o dever de entrega, tenha recebido a prestação tributária que é devida (neste sentido, veja-se inequivocamente Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª edição, Almedina, IDEF, Coimbra, 2007, p. 168 e a mesma autora (sublinhando a sua posição) em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo Pitta e Cunha, Almedina, Coimbra, II Volume, 2009, p. 260 e Paulo Marques, Infracções Tributárias, Volume I, Ministério da Finanças e da Administração Pública, Lisboa, 2007 p. 13).

Sublinhe-se que a intenção de apropriação, actualmente não exigida, não é sobreponível ao recebimento das quantias.

Sendo esta a estrutura típica do crime de abuso de confiança, algumas dúvidas tem provocado a sua configuração quando estão em causa as condutas que envolvem o IVA.

Importa por isso atentar sobre a estrutura deste imposto e da sua forma de liquidação, tendo em conta que é sobre ele que incide o recurso.

O IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) tem como sujeitos passivos as pessoas singulares ou colectivas que, com carácter de habitualidade, exerçam transacções de produtos em geral, tendo como objectivo tributar todo o consumo em bens materiais e serviços. Abrange, na sua incidência, todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho e repercute-se no consumidor final.

A base tributável fica limitada ao valor acrescentado em cada fase, e determina-se aplicando a taxa ao valor global das transacções da empresa em determinado período, deduzindo o imposto suportado pela empresa nas compras desse mesmo período, revelado nas facturas de aquisição. Daí que, na fase retalhista, este mecanismo represente uma repercussão do imposto para a frente, correspondente a uma taxa tributada e efectuada de uma só vez.

Trata-se de um imposto de auto-lançamento, ou auto-liquidação, por a mesma caber ao próprio contribuinte. Normalmente, aplica-se a taxa ao valor global das transacções da empresa, em determinado período, deduzindo-se a esse montante o imposto suportado por ela através de aquisições durante esse mesmo período; é o designado método do crédito do imposto; outras vezes, excepcionalmente, adopta-se o método subtractivo directo, que consiste em se aplicar a taxa apenas à diferença entre o valor da alienação e o valor da aquisição dos bens e serviços.

Incumbe ao contribuinte enviar, mensalmente ou trimestralmente, consoante o regime, ao Serviço de administração do IVA, uma declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade desse mês precedente, já acompanhada do pagamento do montante do imposto respectivo (Arts. 16º, 22º, 26º, 36º e 40º, do Código do IVA).

Assim, o imposto de um determinado período é pagável até ao último dia do segundo mês seguinte ao apuramento do valor do respectivo imposto, nas empresas cujo volume anual de negócios exceda ou não o valor mencionado no CIVA.

O IVA é devido, logo que liquidado, isto é, logo que a transacção a ele sujeita se efectiva e se realiza – cf. artigos 16º a 40º, do C.I.V.A.

Como se diz no Ac. do STA de 10-12-2008, processo n. 0579/08, (também no Ac STA nº 542/08 da mesma data e na mais recente jurisprudência daquele Tribunal, nomeadamente nos acórdãos de 28/5/2008, 11/2/2009, 2/12/2009 e de 21/4/2010, proferidos nos recursos n.ºs 279/08, 578/08, 887/09 e 85/10.) «sem prejuízo do disposto no regime especial referido nos artigos 60º e seguintes do código do IVA, os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19.º a 25.º e 71.º, na Direcção de Serviços de Cobrança do Imposto sobre o Valor Acrescentado, simultaneamente com as declarações a que se refere o artigo 40.º, ou noutros locais de cobrança legalmente autorizados.), independentemente de ter sido efectuado pelos adquirentes de bens ou utilizadores de serviços o pagamento da quantia facturada. O regime do art. 71.º, n.ºs 8 e 9, relativamente à possibilidade de dedução de imposto respeitante a créditos incobráveis ou de pagamento retardado confirma que a obrigação de pagamento do imposto pelo sujeito passivo não depende de ter sido paga a quantia liquidada pelo adquirente de bens ou utilizador de serviços. Nestas situações, o imposto que deve ser entregue não é o imposto que foi liquidado, mas sim o eventual saldo positivo a favor da administração tributária que se registe após confrontação do volume global do imposto liquidado (recebido ou não) e do imposto que foi pago pelo sujeito passivo aos seus fornecedores ou prestadores de serviços (arts. 19.º a 25.º do CIVA)».

Mas se esta é a obrigação, outra questão é a patologia que o seu não cumprimento acarreta.

Se não há dúvidas dogmáticas e jurisprudenciais no que respeita a esta estrutura, já no que respeita às consequências do não pagamento do IVA, algumas divergências têm sido evidenciadas, nomeadamente quando está em causa o tipo de patologia dessas condutas por referência ao RGIT, nomeadamente saber se estamos em presença de uma contra-ordenação ou de um crime de abuso de confiança fiscal.

Ora há que interpretar globalmente o sistema sancionatório fiscal, quer contra-ordenacional quer criminal, para de uma forma harmónica se entender quais as patologias em causa.

Ora além do já citado crime de abuso de confiança estabelece-se no artigo 114.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, no seu n.º 1 que «A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido».

Conforme é referido no Ac. do STA referido, «A conduta de quem não entrega IVA liquidado nas facturas mas não recebido dos adquirentes das mercadorias ou utilizadores de serviços estava expressamente punida no art. 95.º do CIVA, em que se previa como transgressão «a falta de entrega ou a entrega fora dos prazos estabelecidos de todo ou parte do imposto devido». Porém, este art. 95.º, inserido no Capítulo VIII do CIVA, está expressamente revogado pela alínea c) do art. 2.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho. Por outro lado, as referências à «prestação tributária que nos termos da lei deduziu» e à «prestação tributária deduzida nos termos da lei», que se utilizam no art. 114.º do RGIT, têm um evidente alcance restritivo em relação à expressão «imposto devido», que era utilizada no referido art. 95.º do CIVA, pois as primeiras apenas abrangem situações em que o sujeito passivo procede à dedução do imposto, subtraindo-a de uma quantia global».

Daí que se conclua, no referido Acórdão, que «não tendo havido recebimento do imposto anterior à entrega à administração tributária da declaração periódica está afastada a possibilidade de preenchimento da hipótese do art. 114.º, n.º 2, do RGIT (que se reporta à conduta prevista no n.º 1 do mesmo artigo)».

Ora sendo esta jurisprudência aquela que vem sendo seguida pelo STA no que respeita ao regime contra-ordenacional, não fará qualquer sentido – nem isso decorre do tipo de crime – exigir uma interpretação mais ampla no que respeita à conduta criminal que configurasse o tipo de crime sustentado na mera não entrega de quantias putativamente recebidas. Exige-se, por isso, que se demonstre o recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado.

Isso mesmo já decorria da jurisprudência estabelecida no Acórdão do STJ de 21/5/2006 que, por outras palavras, dizia o mesmo: «No RJIFNA exigia-se a apropriação indevida por inversão do título da posse, com censurável animus rem sibi habendi; no RGIT basta-se a não entrega, mas subjacentemente, embora a tónica se tenha deslocado, na lei nova, para a simples não entrega, continua a estar presente a ideia de apropriação, pois que quem recebe das mãos de terceiro prestações tributárias, ficando investido na qualidade de seu depositário, e não as entrega, em via de regra é porque delas se apropriou, conferindo-lhes um destino não legal.

Ou seja, o dever legal de entregar as prestações devidas (por dedução) pressupõe sempre que estas tenham sido efectivamente recebidas.

Pelo exposto, o que se conclui é que, no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º do RGIT, aquele sujeito passivo que tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal.

                Ora, da factualidade provada resulta que, à data em que foi deduzida a acusação, a sociedade arguida era devedora do montante de 14.178,07 € respeitante a IVA que deveria ter entregue à administração tributária.

                Resulta também que a fatura n.º 0664, datada de 08.05.2008 e emitida à Fabrica da Igreja Paroquial de (...) , encontra-se por liquidar o montante de 39.925,47 €, sendo o IVA correspondente em débito de 6.928,81 €, a fatura n.º 0660, datada de 04.04.2008 e emitida à Freguesia de (...) encontra-se por liquidar, sendo o IVA correspondente em débito de 726,90 € e a fatura n.º 0662, datada de 04.04.2008 e emitida à Freguesia de (...) encontra-se por liquidar, sendo o IVA correspondente em débito de 619,00 €. Daqui resulta que a sociedade arguida não recebeu a quantia de 8.274,81 € respeitante ao IVA daquelas faturas.

De acordo com o que atrás fica exposto, teremos que ter em conta que este montante não foi efetivamente recebido pela sociedade arguida, pelo que, é nosso entendimento que, quanto a ele, não se verifica a existência de crime.

Ora, assim sendo, se ao valor em dívida do IVA por parte da sociedade arguida que se cifra em 14.178,07 € for subtraído o valor de 8.274,81 € referente ao valor do IVA não efetivamente recebido pela sociedade arguida, obtemos o valor de 5.903,36 €, o qual temos que considerar a fim verificar se se encontram preenchidos os elementos do tipo de crime que aos arguidos vem imputado.

                Sucede que, com a entrada em vigor da Lei n.º 64-A/2008 de 31 de Dezembro, o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105.º do RGIT sofreu uma alteração significativa, que se traduz na exclusão da tutela penal quando estão em causa prestações tributárias de valor igual ou inferior a 7500,00 €.

                Dispõe agora o n.º 1, do artigo 105.º, do RGIT, que “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a 7500,00 €, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar à punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.

                Sendo que dispõe o n.º 2, do artigo 105.º, do RGIT, que “para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada a apresentar à administração tributária ”.

                Compulsados os autos, verificamos que o valor das prestações não entregues ao Estado em causa nos autos, não excedeu o valor de 7.500,00 euros, pelo que, entendemos que tal conduta se encontra descriminalizada com a entrada em vigor da Lei 64-A/2008, de 31/12/2008.

                A descriminalização ora operada tem eficácia retroactiva – art. 29º, nº 4, in fine, da Constituição da República Portuguesa e art. 2.º, n.º 2, do Código Penal, extinguindo-se a responsabilidade penal derivada do facto praticado antes do início da Lei Nova.

                Com efeito, dispõe o n.º 2 do art. 2.º do Código Penal que “o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infrações; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a sua execução e os seus efeitos penais.”

Pelo exposto, declara-se descriminalizado o crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada imputado nos presentes autos aos arguidos A... e “ B... , LDA”, declarando-se assim extinta a responsabilidade criminal dos mesmos.

(…)”.


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Questão prévia

            Como se deixou dito, da sentença de 17 de Outubro de 2013 foi interposto recurso e, dele conhecendo, a Relação de Coimbra, por acórdão de 9 de Abril de 2014, declarou nula a sentença e determinou a sua substituição por outra que suprisse as apontadas nulidades de falta de fundamentação e de omissão de pronúncia. Na sequência do determinado pelo tribunal superior, com data de depósito de 9 de Junho de 2014, foi proferida nova sentença, iniciada da seguinte forma: «Em cumprimento do Acórdão da Relação de Coimbra profere-se a seguinte: Sentença (…)».

Acontece que a sentença depositada em 9 de Junho de 2014 e agora em crise, constitui apenas e só, cópia integral da sentença proferida em 17 de Outubro de 2013, com excepção da frase introdutória, supra transcrita. Cremos que se trata de lapso, eventualmente, cometido na selecção e impressão do texto e não, de incumprimento deliberado de decisão de tribunal superior.

Não obstante, certo é não se mostrarem supridas na sentença recorrida, as nulidades apontadas à primeira sentença proferida, situação que determinaria, em princípio e sem mais, a revogação daquela sentença e a determinação da baixa dos autos à 1ª instância para o devido cumprimento do ordenado no acórdão da Relação de 9 de Abril de 2014, nos termos dos arts. 4º, nº 1 e 42º, nºs 1 e 3 da Lei da Organização do Sistema Judiciário [Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto].

Sucede que a jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 8/2015 (DR nº 106, I, de 2 de Junho de 2015), entretanto publicado, veio tornar irrelevantes as nulidades em questão, face aos termos em que a acusação foi proferida pelo que, a baixa do processo se traduziria apenas na sobreposição da forma à substância e, de alguma forma, na prática de actos sem relevo para a decisão final e portanto, de actos inúteis.

Assim, feito o reparo, atentas as razões que se deixaram alinhadas e que melhor se entenderão no que segue, passamos a conhecer da questão suscitada no recurso pela Digna Magistrada recorrente.


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            Da consumação do crime de abuso de confiança fiscal [bastando o decurso do prazo para o pagamento de IVA liquidado e declarado sem que a prestação tributária tenha sido feita ou sendo ainda exigível o efectivo recebimento pelo arguido da quantia sujeita a este imposto e da qual deveria ter sido deduzida a prestação]

            1. Defende a Digna Magistrada recorrente – conclusões 1 a 3 – que sendo o abuso de confiança fiscal um crime omissivo, nos termos do art. 5º, nº 2 do RGIT se considera praticado na data em que terminam os prazos previstos no nº 4 do art. 105º do mesmo diploma, independentemente de ter ou não o sujeito tributário recebido a quantia do cliente devedor.

            Diferente, quanto a este aspecto, foi o entendimento da sentença recorrida que, seguindo de muito perto o acórdão desta Relação de 15 de Dezembro de 2010, proc. nº 24/06.4IDGRD.C1 (in, www.dgsi.pt), decidiu que o tipo do crime só se preenche quando o obrigado ao dever de entrega da prestação tributária a tenha efectivamente recebido e não a entregue no prazo legal.

            Vejamos então a quem assiste razão.

            A Constituição da República dispõe, no seu art. 103º, nº 1 que o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. Como se intui, o sistema fiscal é o conjunto dos impostos, constituindo estes, uma das raras obrigações públicas dos cidadãos com assento constitucional.

            Os impostos constituem as mais importantes receitas do Estado, que com eles assegura a realização dos fins que lhe estão constitucionalmente atribuídos. Nesta decorrência, o crime de abuso de confiança fiscal tutela o bem jurídico património fiscal do Estado relativo ao conjunto das receitas fiscais com as quais prossegue a satisfação das suas necessidades financeiras e de outras entidades públicas e a justa repartição dos rendimentos e da riqueza.

O abuso de confiança fiscal encontra-se previsto no art. 105º do RGIT que, na data da prática dos factos objecto dos autos, tinha a seguinte redacção [a resultante da Lei nº 60-A/2005, de 30 de Dezembro e da Lei nº 53-A/06, de 29 de Dezembro]: 

1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 – É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

5 – Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 para as pessoas colectivas.

6 – Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder € 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.

7 – Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Com a Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, o art. 105º do RGIT passou a ter a seguinte redacção:

1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 – É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

5 – Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 para as pessoas colectivas.

6 – (Revogado).

7 – Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

São pois elementos constitutivos do tipo deste crime:

[Tipo objectivo]

- Que o agente, estando legalmente obrigado a entregar à administração fiscal,

i) prestação tributária deduzida nos termos da lei,

ii) prestação deduzida por conta daquela prestação tributária, ou

iii) prestação que tendo recebido, tenha a obrigação legal de liquidar,  

de valor superior a € 7.550 [limiar de tipicidade foi introduzido pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro] omita, total ou parcialmente, tal entrega;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal, posto que não se exige a verificação de um qualquer dolo específico.

Trata-se, portanto, de um crime específico – só pode ser seu autor o obrigado pela lei fiscal ao cumprimento do dever pressuposto na incriminação, in casu, o dever de entrega da prestação tributária – e de um crime próprio de omissão – a conduta típica é preenchida por uma omissão, a não entrega da prestação tributária. 

2. Definido o tipo legal em análise, detenhamo-nos agora em algumas particularidades do seu desenho e regime legal, elementos que mais adiante permitirão definir a questão fundamental proposta no recurso.

i) Como se viu, a omissão de entrega tem por objecto uma prestação tributária, que o art. 11º, a) do RGIT, define como, os impostos, incluindo os direitos aduaneiros e direitos niveladores agrícolas, as taxas e demais tributos fiscais ou parafiscais cuja cobrança caiba à administração tributária ou à administração da segurança social.

A prestação tributária deve ter sido deduzida, por conta ou a título definitivo, como acontece, v.g., com o IRS, onde as entidades patronais estão obrigadas, no acto do pagamento dos vencimentos dos seus colaboradores, a reter ou a deduzir as importâncias correspondentes de imposto por estes devido, e a entregá-las ao credor tributário no prazo assinalado na lei (cfr. arts. 98º a 100º do CIRPS), ou deve ter sido recebida por quem tem a obrigação de a liquidar, como sucede, v.g., com o IVA – que visa tributar o consumo em bens materiais e serviços, abrange na sua incidência todas as fases do circuito económico, e tem como base tributável o valor acrescentado em cada fase (arts. 1º e 16º do CIVA) – liquidado e recebido ou cobrado aos respectivos clientes pelos fornecedores de bens e serviços.

ii) Contrariamente ao que sucedia na vigência do RJIFNA [cfr. art. 24º, nº 1 deste Regime, na redacção do Dec. Lei nº 394/93, de 24 de Novembro], onde era elemento constitutivo do tipo a apropriação, a inversão do título da posse, tal como sucedia e sucede com o crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205º do C. Penal, no regime actual, a apropriação ilegítima deixou de integrar o tipo do abuso de confiança fiscal, previsto no art. 105º, nº 1 do RGIT, o qual foi desenhado com estrutura meramente formal, bastando-se com a simples falta de entrega pelo agente da prestação tributária de que é depositário.

 

iii) O art. 5º, nº 2 do RGIT prevê o critério definidor do momento da consumação relativamente às infracções tributárias omissivas, considerando-as praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários. Sendo, como se disse, o abuso de confiança fiscal um crime puro de omissão ou, preferindo-se, um crime de omissão pura, a sua consumação ocorre então no termo do prazo legal de entrega da respectiva prestação tributária [nesta questão, com entendimento algo diferente, pode ver-se Taipa de Carvalho, para quem o tempus delicti deste crime ocorre no primeiro dia útil após o termo do prazo previsto na alínea a), do nº 4 do art. 105º do diploma em referência, relativamente às omissões de entrega de prestações deduzidas e não comunicadas, ou no primeiro dia útil após o termo do prazo na alínea b) do mesmo número e artigo, relativamente às omissões de entrega de prestações deduzidas e comunicadas (O Crime de Abuso de Confiança Fiscal, Coimbra Editora, 2007, pág. 50º e ss.)].

Em qualquer caso, o que se temos por seguro é que a consumação do crime pressupõe necessariamente a verificação em concreto de todos os elementos do tipo do crime.  

3. Já sabemos que o IVA tributa o consumo, abrangendo a sua incidência todas as fases do circuito económico, tendo como base tributável o valor acrescentado em cada fase. Acrescentamos agora que são seus sujeitos passivos, na parte em que agora releva, as pessoas singulares e colectivas que habitualmente exercem actividades de produção, comércio ou prestação de serviços (art. 2º, nº 1, a) do CIVA), os quais estão obrigados a enviar à administração tributária, mensal ou trimestralmente, dependendo do regime a que estão sujeitos, uma declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade (arts. 28º, nº 1, c) e 40º, nº 1 do CIVA), sendo o tributo devido logo que liquidado ou seja, e na parte em que ora releva, no momento em que os bens transmitidos são postos à disposição do adquirente, ou no momento da realização das prestações de serviços (arts. 7º, nº 1, 26º, nº 1 e 2, 35º, nº 1 do CIVA).

Assim, em regra, o sujeito passivo deve entregar o montante de imposto apurado juntamente com as declarações periódicas relativas às operações efectuadas no exercício da sua actividade, tenha ou não recebido dos seus clientes – seja pela transmissão de bens, seja pela prestação de serviços – o pagamento das quantias facturadas.

Dir-se-ia, portanto, que o incumprimento da obrigação de entrega do IVA pela ultrapassagem do respectivo prazo legal conduziria, face ao disposto no art. 5º, nº 2 do RGIT, à consumação do crime.

Mas não é assim pois, como ficou referido, a consumação não prescinde da verificação de todos os elementos do tipo. Ora, como se disse, no caso específico do IVA, o tipo exige que o sujeito passivo tenha recebido a prestação tributária que tem a obrigação legal de liquidar (cfr. art. 105º, nº 2 do RGIT) o que significa que terá que ter recebido dos seus clientes as quantias facturadas pela transmissão de bens ou pela prestação de serviços [nas quais se inclui a parte correspondente ao imposto]. A não se entender como necessário ao preenchimento do tipo o prévio recebimento pelo sujeito passivo do imposto que deve entregar à administração fiscal, não se concebe a obrigação de entrega e muito menos a existência de abuso de confiança pois o depositário nada recebeu de que pudesse abusar.

O entendimento exposto, com apoio em parte significativa da jurisprudência e da doutrina (cfr., por todos, Acs. do STJ de 18 de Dezembro de 2008, processo nº 07P020, e desta Relação de 29 de Fevereiro de 2012, processo nº 1638/09.6IDLRA.C1 e de 28 de Março de 2012, processo nº 1133/10.0IDLRA.C1, in www.dgsi.pt, e Tolda Pinto e Reis Bravo, Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais Anotados, Coimbra Editora, 2002, pág. 334 e ss. e Isabel Marques da Silva, Cadernos IDEFF, nº 5, Almedina, pág. 168), não era único. E o nosso mais Alto Tribunal, chamado a decidir, pôs fim à dissensão verificada, através do Acórdão Uniformizador nº 8/2015, que fixou a seguinte jurisprudência:

A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 nº 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido.

Dúvidas não subsistem portanto, de que, agora e face à jurisprudência fixada, o fundamento jurídico que constitui a pedra angular do recurso interposto isto é, que o efectivo recebimento da prestação tributária deduzida não é elemento constitutivo do tipo de ilícito – deixou de ter ‘validade’.

4. Revertendo agora para a questão sub judice, cumpre, em primeiro lugar, realçar que a Digna Magistrada recorrente não impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, aceitando, os factos provados e os factos não provados tal como constam da sentença.

Nos termos da acusação, depois de operada a alteração requerida pela Digna Magistrada do Ministério Público e deferida pelo despacho de 12 de Setembro de 2013 [cfr. acta da audiência de julgamento, a fls. 515], passou a constar dos seus arts. 9º e 14º [embora a rectificação não se mostre materialmente feita, como resulta da acusação de fls. 246 e ss.] que o valor do IVA efectivamente recebido e apropriado pelos arguidos é de € 14.178,07.

O valor de € 14.178,07 no ponto 7 dos factos provados como sendo o montante de IVA em dívida, do IVA apurado no montante de € 21.357,78, liquidado nas facturas identificadas no ponto 6, a saber, as facturas com os nºs 664, 659, 660, 662, 661, 663, 665, 666, 667, 668, 669 e 670. A explicação desta divergência de valores [não dada, nem na acusação, nem na sentença recorrida], como se pode ler a fls. 129 a 131 [Parecer previsto no art. 42º, nº 3 do RGIT], é a de que o montante de € 14.178,07 resulta do abatimento, ao IVA liquidado, do IVA dedutível e das regularizações a crédito existentes [desconhecendo-se, quer os valores do IVA dedutível, quer os valores das ditas regularizações]. Pois bem.

Resulta do confronto dos pontos 6, 8, 18, 19 e 20 dos factos provados, conjugados com o ponto único dos factos não provados, não se ter provado que os montantes, IVA incluído, que constam das facturas nºs 664, 660 e 662, foram efectivamente recebidos pela sociedade arguida, tendo-se, por outro lado, provado, que as facturas nºs 660 e 662 se encontram por liquidar, e que da factura nº 664 se encontra por liquidar o montante de € 39.925,47.

Resulta igualmente provado dos pontos 18, 19 e 20 dos factos provados que o montante de IVA liquidado nas facturas nºs 660 e 662 é de € 726,90 e de € 619, e que o IVA correspondente ao valor da factura nº 664 ainda por liquidar é de € 6.928,81 [o valor exacto, seria antes, o de € 6.929,21, sendo irrelevante, no entanto, a diferença].

Deste modo, o montante de IVA liquidado mas não recebido pela sociedade arguida totaliza [€ 726,90 + € 619 + € 6.928,81=] € 8.274,71, o que significa que a observância do Acórdão Uniformizador nº 8/2015 exige a sua dedução ao valor de € 14.178,07 que, como vimos, corresponde ao IVA em dívida calculado pela Administração Tributária e consta do ponto 7 dos factos provados.

Efectuada a apontada operação [€ 14.178,07 – € 8.274,71=] obtemos o valor de € 5.903,36, inferior portanto, ao limiar de tipicidade previsto no art. 105º, nº 1 do RGIT, na redacção da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, o que significa que a conduta dos arguidos, atento o disposto no art. 2º, nº 2 do C. Penal, foi descriminalizada pela Lei Nova.

Assim, com a improcedência das conclusões do recurso, deve manter-se a decidida extinção do procedimento criminal.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.


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Recurso sem tributação.

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Coimbra, 14 de Outubro de 2015


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)