Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
611/09.9T2AGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: LIVRANÇA
TÍTULO EXECUTIVO
JUROS
Data do Acordão: 03/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 5º, 48º E 77º, Nº 1 DA LULL; 559º, Nº 1 DO C.CIV.
Sumário: Fundando-se a execução em livrança o exequente apenas pode exigir o montante do capital nela inscrito e os “juros legais” definidos no artº 559º, nº 1 do C. Civil, não lhe sendo lícito peticionar os juros convencionados no mútuo subjacente àquela livrança, ainda que desta conste que “titula esse mútuo”.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) – 1) - A Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de A..., em 29/03/1995, veio intentar, no Tribunal Judicial da Comarca de Albergaria-a-Velha, acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, contra B... e mulher, C..., com vista à cobrança coerciva da quantia de Esc. 2.937.973$00 (Dois milhões novecentos trinta sete mil novecentos setenta três escudos), acrescida de juros vincendos à taxa de 27% (23% de juros contratuais + 4% de juros pela mora) até efectivo e integral pagamento.

No requerimento executivo, alegou, entre o mais, o que consta dos art.ºs 2º, 3º, 5º, 20º e 23º, que têm o seguinte teor:

2º: “A 24 de Junho de 1993 os Executados, solicitaram à Exequente um empréstimo de esc. 2.000.000S00 - Doc. n°. 1.”;

3°: “Que formalizaram em proposta apresentada na mesma data (24/06/93) - Doc. n°. 1.”;

5º: ” A 28 de Junho de 1993 os Executados subscreveram a Livrança ora anexa sob o doc. n°. 3, com vencimento em 28 de Setembro de 1993, de que a Exequente é dona e legítima portadora.”;

20º: “A Exequente tem direito a agir contra os Executados - art°. 48° ex vi art°. 77°, 1 ambos da L.U.L.L. e art° 51° n° 1 do C P Civil.”;

23º: ” Nos termos do art°. 38° do Regime de Crédito Agrícola Mútuo, aprovado pelo Dec.-Lei n°. 231/82, de 17 de Junho, e art° 51° do C. P Civil, os documentos juntos sob os n°s. 1, 2, 3 e 4 são títulos executivos bastantes.”.

Com o requerimento executivo foram juntos, entre outros documentos, a proposta de crédito nº 290/93 a que se alude nos art.ºs 3º e 23º (doc nº 1), a “carta de aceitação” de 24/06/1993 (Doc nº 2), a nota de Lançamento do crédito de Esc. 2.000.000$00 na conta bancária dos executados (doc nº 4), bem como a livrança referida no art.º 5º (doc nº 3), desta constando escrita, no campo destinado ao “valor”, a seguinte expressão “Para titulação do processo nº 290/93”.

2) – Os executados foram citados e não deduziram oposição, tendo a execução prosseguido os ulteriores termos, com a realização de penhoras, nomeadamente, com a penhora do vencimento do executado.

3) - Tendo os executados, por requerimento entrado em juízo em 18/02/2009, vindo requerer que se apurasse o montante que estava ainda em débito, a exequente, por sua vez, referindo ter havido erro na liquidação que fora efectuada em 04/10/2007, requereu que fosse efectuada a respectiva correcção, fixando-se o valor da quantia exequenda e juros, com reporte a 23/02/2009, em € 35.283,24.

4) - Em 07/05/2010 foram os autos conclusos com a informação, do Sr. Funcionário, de que se lhe tinha suscitado dúvida a taxa de juro a considerar na liquidação (fls. 471);

5) - Notificada do teor daquela informação veio a exequente, a fls. 476, defender que a liquidação que efectuara estava correcta, tendo sido o acordado no âmbito do empréstimo titulado pela livrança dada à execução, conforme resulta da proposta de crédito junta com o requerimento executivo, o juro convencionado de 23%, acrescido, em caso de incumprimento, da sobretaxa de 4%, a título de cláusula penal.

Terminou requerendo que os juros fossem “…calculados nos termos contratualmente acordados, com penalização pela mora, ou seja, a 27% (23% de juros contratual + 4% pela mora)”.

6) - Em 13/10/2010 (fls. 480 e 481) foi proferido despacho, no qual a Mma. Juiz da Comarca do Baixo Vouga, Águeda – Juízo de Execução[1], considerando que o título executivo não era o contrato de crédito, mas sim a própria livrança, decidiu que os juros devidos eram apenas os “juros legais”, pelo que a taxa de juro a aplicar não era a indicada pela exequente, nem a prevista no artigo 48/2 da LULL, mas sim a taxa de juro cível, nos valores que referiu, mais tendo determinado que, assim se considerando, se procedesse à elaboração da conta.

7) - Desse despacho recorreu a exequente, recurso esse que foi admitido como agravo, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

B) - É esse agravo que ora cumpre decidir e cujas respectivas alegações, a Recorrente finda com as seguintes conclusões:

[…]

Terminou pugnando pelo provimento do Agravo e revogação do despacho recorrido, com fixação da taxa de juros aplicável em 23% de taxa contratual acrescida de 4% pela mora.

Os executados, na respectiva contra-alegação, defendem que seja negado provimento ao recurso e mantido o despacho impugnado.

A 1.ª Instância sustentou a decisão agravada.

C) - Em face do disposto nos art.ºs 684º, nºs. 3 e 4, 690º, nº 1 do CPC[2] (aplicáveis ao agravo, “ex vi” do art.º 749º do mesmo Código), o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2., “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr. Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [3]).

E a questão que cumpre solucionar no presente recurso consiste em saber se a ora Agravante poderia exigir, na execução, os juros que peticionou.

II - A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I-A) – supra, sendo de considerar assente, outrossim, porque não impugnada, a seguinte matéria do requerimento executivo:

[…]

B)- Está em causa uma acção executiva que já se encontrava pendente em 01/01/1997, aquando da entrada em vigor da revisão do CPC de 95/96, introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12/12 (com as alteração da Lei n.º 6/96, de 29/2 e do DL nº 180/96, de 25/9).

Embora a regra constante do artigo 16º do Decreto-Lei nº 329-A/95, fosse a da aplicação dos preceitos do Código Revisto aos processos iniciados depois de 1 de Janeiro de 1997, dispunha o 26º, nº 3, que a lei nova também era aplicável nas acções executivas pendentes nessa data em que não se tivessem ordenado ou iniciado as diligências necessárias para a realização do pagamento.

No caso “sub judice”, já que em 01/01/1997, tais diligências não se tinham iniciado, ou sido ordenadas, sendo manifesta a inaplicabilidade na reforma introduzida pelo DL n.º 38/2003, de 8/3, é aplicável à execução, pois, o regime resultante daquela revisão de 95/96.

Do exposto resulta a aplicabilidade, pois, do art.º 820º do CPC, na redacção decorrente da reforma de 95/96, ou, dito de outro modo, como o disse a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, que invocou o preceito para proferir a decisão recorrida, “na redacção anterior ao DL 38/2003 de 08.03.”.

Não merece reparo o entendimento da Mma. Juiz do Tribunal “a quo” quando refere - com apoio no Assento nº4/92 de 13/7, in D.R. nº 290-I Série-A, de 17.12.1992, hoje com valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (art.º 17º, nº 2 do DL 329-A/95, de 12/12), e nos art.ºs 48º, nº 2 e 77º da LULL, 4° do DL nº 262/83, de 16/06, 559º do Código Civil - que, sendo o título executivo uma livrança, o exequente, seu portador, só pode exigir quando o respectivo pagamento estiver em mora, que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais; Ou seja, só pode exigir os juros civis, nos termos do art.º 559º do Código Civil, que, “in casu”, se concretizam nas taxas descriminadas na decisão recorrida. Vão nesse sentido, a acrescer aos indicados nessa decisão, entre outros arestos, os Acórdãos da Relação do Porto de 15/03/2007 (Apelação nº 0730956) e de 29/05/2006 (Agravo nº 0652688)[4], de 15/03/2007 (Apelação nº 0730956), o Acórdão da Relação de Guimarães de 26/04/2006 (Agravo nº 645/06-1)[5], o Acórdão do STJ de 23/10/2007 (Revista nº 07A3049) e o Acórdão da Relação de Évora de 11/04/2000 (Colectânea de Jurisprudência, Tomo II/2000, pág. 277).

E não adianta defender, enquanto permitido pela livrança que funda a execução, ainda que por remissão, efectuada com a expressão “Para titulação do processo nº 290/93”, para os termos do empréstimo que lhe está subjacente, o acordado quanto a juros desse empréstimo, uma vez que, de acordo com o 5º da LULL, aplicável às livranças por força do art. 77, estando-se, como é o caso, perante livrança pagável em época determinada, ou seja, na data do seu vencimento, a estipulação de juros convencionais teria de ser considerada como não escrita.

Esta regra, estabelecida pelo referido art.º 5º, é compreensível, já que, como se salienta no citado Acórdão da Relação de Évora de 11/04/2000 «… está em causa a obrigação, assumida por promessa declarada, de pagamento de quantia determinada, logo, importa vedar estipulações de juros que tomem indeterminado ou introduzam factores de indeterminação no montante do título, com o que também se facilita a sua circulação.

A estipulação de juros torna incerto o montante da letra, por ser necessário efectuar cálculos; daí a proibição legal de estipulação de juros nos títulos (letras e livranças) com vencimento fixo, apesar de serem estes aqueles em que seria mais fácil fazer o cálculo dos juros, a apagar no vencimento), porque o quantitativo dos mesmos pode logo ser incluídos no montante do título, sabida como é a data do vencimento (Cfr. Vaz Serra, Títulos de Crédito, BMJ 60, p. 88-89).».

É claro que isto não obsta a que no negócio fundamental se acordem juros em taxa superior à dos juros civis, nem obsta, também, por exemplo, a que se englobem estes na quantia calculada de harmonia com essa taxa convencionada e que venha a ser aposta na livrança em conformidade com pacto de preenchimento firmado pelos contraentes.

O que não se pode é, exigindo-se o capital correspondente ao valor constante do título cambiário dado à execução, peticionar-se juros a taxa superior à dos juros civis, convencionada no âmbito do negócio subjacente.

Pode suceder, porém, que o mutuante, portador do título cambiário, tenha um outro título executivo v.g., o documento particular onde esteja formalizado o empréstimo que lhe permita exigir os juros remuneratórios e moratórios que convencionou com o mutuário.

A Agravante defende, precisamente, que, tendo dado à execução, como título, não só a referida livrança, mas, também, a proposta de crédito que integrou o empréstimo subjacente a essa livrança, lhe era lícito peticionar os juros acordados no âmbito desse contrato.

Os agravados sustentam que o título dado à execução foi a livrança e não a proposta de crédito, que, adiantam, nem sequer constitui título executivo.

Em face do estatuído no regime jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola (DL 24/91, de 11/01[6]), designadamente no art.º 33º, nº 1, que dispõe que, para efeito de cobrança coerciva de empréstimos vencidos e não pagos, seja qual for o seu montante, servem de prova e título executivo as escrituras, os títulos particulares, as letras, as livranças e os documentos congéneres apresentados pela caixa agrícola exequente, desde que assinados por aquele contra quem a acção é proposta, afigura-se que uma proposta de crédito pode consubstanciar título executivo.

Só que, no caso “sub judice”, constatando-se que a proposta de crédito se encontra assinada apenas pelo executado, só quanto a ele poderia valer como título executivo, não abarcando, pois, a executada C.....

Todavia, embora a exequente, no requerimento inicial, haja afirmado (art.º 23º) que os documentos juntos sob os n°s. 1, 2, 3 e 4, ou seja, todos aqueles que juntou, incluindo, pois, a proposta de crédito, eram “títulos executivos bastantes”, afigura-se-nos que, na verdade, só a livrança elegeu como título legitimador do accionamento executivo, servindo os restantes documentos de elementos probatórios, em consonância, aliás, com a função que também lhes habilitava, quer o citado art.º 33º, n.º 1, quer o nº 2 deste artigo.

Esta conclusão a que se chega por via da interpretação dos requerimentos da exequente, v.g., do requerimento inicial e do requerimento de fls. 474, resulta, não só do facto de a exequente não ter individualizado a proposta de crédito como título executivo, relativamente a outros documentos que, “per se”, não podem, manifestamente, ser tidos como tal - com é o caso da “carta de aceitação” de 24/06/1993 (Doc nº 2), e da nota de Lançamento do crédito de Esc. 2.000.000$00 na conta bancária dos executados (doc nº 4) -, como, principalmente, da circunstância de, já sem qualquer referência ao artº 38º do Regime do Crédito Agrícola Mútuo (aprovado pelo DL. nº. 231/82 de 17 de Junho e que veio a ser revogado pelo citado DL 24/91), a exequente ter expressamente alicerçado o seu “direito de agir contra os Executados” em preceitos que respeitam à livrança e à sua consideração como título executivo: os artºs 48° e 77°, nº 1, ambos da L.U.L.L. e 51° n° 1 do CPC Civil (art.º 20º do Req. Executivo).

E é natural que a exequente tenha pretendido utilizar, como título legitimador da presente execução, a livrança, e não a “proposta de crédito”, dado que, como se viu, só aquela e não também esta poderia servir de título em relação a ambos os executados.

E isto mesmo é acentuado pelo facto de a exequente, no requerimento de fls. 474 (I-A-5) “supra”), jamais se ter referido à proposta de crédito como constituindo o título que fundava a presente execução, mas antes, argumentando em termos que espelham pretender tirar daquela proposta uma utilidade probatória, complementar da livrança ajuizada, ter evidenciado a função da livrança enquanto título, dizendo, designadamente (ponto I): «Os Juros praticados por toda e qualquer instituição bancária, para os financiamentos que concede, ainda que tenham também, mas não só, como suporte uma Livrança (como é o caso), são os juros contratuais,»..

A exequente atribuiu, pois, à livrança, embora que não exclusivamente - dado os juros convencionado estarem definidos na proposta de crédito, para onde remete a expressão “Para titulação do processo nº 290/93”, constante daquele título -, o papel de suporte dos juros que peticiona.

Só que, como se viu já, a livrança apenas admite que se exija o montante que nela está inscrito e os juros legais, não permitindo, adicionalmente a tal montante, o pagamento dos juros acordados no contrato de mútuo que integra a relação fundamental ou subjacente.

Assim, os juros que a exequente podia peticionar eram os “juros civis” às taxas definidas no despacho impugnado, havendo, quanto ao que os excede, falta de título executivo, o que legitimava o indeferimento parcial do requerimento, que foi, afinal, o que acabou por fazer nesse despacho a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, embora sem assim o dizer, mas com arrimo certo no disposto no art.º 820º do CPC, que invocou.

A conclusão a que se chega é, pois, a de que no despacho recorrido não se infringiu qualquer dos preceitos legais cuja violação a recorrente lhe imputa, sendo de negar provimento ao Agravo.

Sumário: «Fundando-se a execução em livrança o exequente apenas pode exigir o montante do capital nela inscrito e os "juros legais" definidos no artº 559º, nº 1 do Código Civil, não lhe sendo lícito peticionar os juros convencionados no mútuo subjacente àquela livrança, ainda que desta conste que “titula” esse mútuo.».

III - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao Agravo e manter o despacho recorrido.

Custas pela Agravante.


Falcão de Magalhães (Relator)
Regina Rosa
Artur Dias


[1] Tribunal este para onde os autos haviam transitado.
[2] Código de Processo Civil, aplicável, no que ao regime de recurso respeita, na redacção que antecedeu a introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/08 (Cfr. art.º 25º, nº 1, do DL nº 329-A/95, de 12/12, com as alteração da Lei n.º 6/96, de 29/2 e do DL nº 180/96, de 25/9, bem como os art.ºs 11, nº 1 e 12º, nº 1, do referido DL n.º 303/07).
[3] Consultáveis na Internet, através do endereço http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, tal como todos os Acórdãos do STJ ou os respectivos sumários que adiante forem citados sem referência de publicação.
[4] Que, tal como os restantes Acórdão dessa Relação que vierem a ser citados sem referência de publicação, pode ser consultado em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/”.
[5] Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf?OpenDatabase”.
[6] Que veio a sofrer alterações, sem significado, porém, na matéria que está aqui em causa, introduzidas pelo DL 230/95, de 12 de Setembro, pelo DL 320/97, de 25 de Novembro, e pelo DL 102/99, de 31 de Março.