Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
68/10.1TBFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
OBJECTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS.342, 1360, 1362, 1543, 1550 CC
Sumário: 1.- O benefício que a «servidão de vistas» – artigo 1362.º do Código Civil – confere ao prédio dominante não consiste na possibilidade do seu titular olhar em direcção ao prédio vizinho, até onde a vista alcançar, mas apenas facultar luz e ar ao prédio dominante.

2.- O respeito pela servidão de vistas por parte do titular do prédio serviente implica que este não possa construir, salvo respeitando a distância (profundidade) referida no n.º 1 do artigo 1360.º do Código Civil, defronte e imediatamente acima das janelas existentes no prédio dominante, porque esta construção afectaria a entrada de ar e luz no prédio dominante, nem ao mesmo nível ou, inclusive, em certos casos, imediatamente abaixo, se as construções, dadas as circunstâncias, prejudicarem a entrada de luz e ar no prédio dominante.

3. Se não constar do processo a cota a que se encontra o topo na nova construção feita pelos réus no prédio serviente, em relação à cota da soleira das janelas (têm a configuração de uma porta) do prédio dominante, nem a altura a que se encontrava o antigo edifício existente no prédio serviente em relação às ditas soleiras, nem identificada a parte da construção existente no prédio serviente que ficava em frente às mencionadas janelas, deve anular-se a resposta à matéria de facto pertinente e a sentença, ao abrigo do disposto no artigo 712.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, com vista a averiguar estes factos.

Decisão Texto Integral: Recorrentes/Autores    MC (…) e marido JM (…), residentes em ... Figueiró dos Vinhos.

Recorridos/Réus……JC (…) e esposa ON (…), residentes em ... Carregado


*

I. Relatório.

 a) As questões que opõem Autores a Réus no presente processo resultam do facto de uns e outros serem proprietários de prédios confinantes e dos respectivos direitos e obrigações emergentes de relações de vizinhança terem entrado em colisão.

Assim, os autores (…) pretendem com a presente acção, no confronto como os réus (…) ver reconhecido, a seu favor, um direito de servidão sobre o prédio vizinho dos réus, cujo respectivo leito vai desde as traseiras do prédio urbano dos autores até à rua que passa a Sul em direcção ao centro da localidade e, por via da declaração da existência de tal servidão, serem os réus condenados a não construírem a obra que têm projectada, a qual, se for construída, irá ocupar o leito desta servidão de passagem.

Por outro lado, pretendem a condenação dos réus no sentido de destruírem parte de uma construção que fizeram no seu prédio e que consistiu em terem alteado uma construção aí existente, na medida em que esse aumento em altura violou uma servidão de vistas constituída sobre o prédio dos réus em benefício do prédio dos autores.

b) Os réus, por sua vez, contestaram a existência das mencionadas servidões de passagem e de vistas e deduziram reconvenção com o fim de obterem a condenação dos autores no sentido de não existir a alegada servidão de passagem ou, para o caso de vir a ser reconhecida, que se julgue a mesma extinta por desnecessidade. E quanto à servidão de vistas pedem que se declare a mesma inexistente e se condenem ainda os autores a fechar quer a porta que têm aberta nas traseiras do seu prédio, quer as janelas que abriram na parede contígua ao prédio dos réus.

Ambas as partes formularam ainda pedidos de indemnização recíprocos por danos não patrimoniais.

c) No final foi proferida a seguinte decisão:

Os réus foram condenados (1) a reconhecerem os autores como proprietários do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo predial de Castanheira de Pêra, sob o n.º x...;

(2) a reconhecerem a existência da servidão legal de passagem descrita em 4. e 5. dos factos provados, constituída por destinação de pai de família e instituída a favor do prédio acabado de identificar e que onera o prédio dos réus referido em 7. dos factos provados;

(3) a absterem-se de realizar qualquer obra que atente contra a existência da referida servidão e, ainda

(4) a reconhecerem a existência da servidão de vistas mencionada em 14 e 39 a 44 dos factos provados em favor do identificado prédio dos autores e que onera o seu prédio identificado em 12 dos factos provados.

Os réus foram absolvidos dos restantes pedidos.

Quanto à reconvenção, foi julgada totalmente improcedente.

d) É desta decisão que os autores recorrem e fazem-no por não se conformarem com a decisão tomada pelo tribunal no sentido de não ter ordenado a demolição da parte da construção acrescentada pelos réus.

Formulam as seguintes conclusões:

«a) Impugna-se parcialmente a decisão da matéria de facto vertida na douta sentença, nomeadamente:

b) A resposta no julgamento da matéria de facto ao Art.º 33.º, deveria ter sido:

Provado apenas que há 9/10 anos os RR ampliaram a casa referida em M) em altura exacta e não apurada, mas em todo o caso a correspondente a um piso” ;

c) Isto porque a resposta a tal facto não pode ser alheia ao facto assente em N): “Há 9/10 anos os RR ampliaram a altura da casa referida em M) – provado por acordo das partes.

d) É indiscutível que se trata da mesma casa, a referida em M), e aquela que foi ampliada a menos de metro e meio das aberturas na casa dos AA (veja-se os factos assentes em O) e Q) e a questão de facto em 34.º e respectiva resposta);

e) O facto 33.º apenas é controvertido quanto à altura da ampliação. O mesmo será dizer que o mesmo deveria ter sido enunciado sem a referência temporal que já está assente em N). E é nesta rigorosa medida que o mesmo deveria ter sido considerado, sob pena de contradição;

f) Além do mais, os RR falam sempre no decurso de 11 anos, como se vê a 60.º, 62.º e 64.º da contestação, não obstante terem referido 1989 no Art.º 55.º, aqui, por lapso manifesto;

g) Ou seja, onze anos decorrem entre 1999 e 2010 e não entre 1989 e esta data;

h) Por outro lado os RR juntam aos autos o documento 5 onde defende que a obra se realizou em 1995;

) Tudo indica, pois, que a data é à volta de 1999 e não 1989, e daí assente que a obra foi alteada há 10/11 anos como referido em N) dos factos assentes;

j) Devendo a resposta ao Art.º 33.º da Base Instrutória ser: “Provado apenas que há 9/10 anos os RR ampliaram a casa referida em M) em altura exacta e não apurada, mas em todo o caso a correspondente a um piso”;

k) Considera o tribunal a quo que efectivamente se mostra constituída por usucapião servidão de vistas onerando o prédio dos RR, relativamente às aberturas deitando a menos de metro e meio (15 cm) para o prédio destes (al. d) do dispositivo);

l) Porém, não obstante o peticionado na al. g) do pedido alterado na réplica e aquela decisão, não condenou o tribunal os RR a demolirem a sua construção em contravenção com a lei atenta a referida servidão de vistas;

m) Com base em 3 argumentos que a nosso ver devem improceder:

n) Quanto ao primeiro argumento: que não resultou provado que a construção dos RR tenha perturbado o direito dos AA, além de que o avistamento ainda é possível não obstante a construção, “o que não se presume e até parece” desmentido pelas fotos junto do procedimento cautelar;

o) Ficou provada a construção em contravenção a 15 cm das aberturas;

p) Nunca foi invocado o contrário pelos RR, ou que a construção não perturba a vista luz e ar que devem ser desfrutados pelas aberturas;

q) O facto é que a construção tapa efectivamente as janelas, e se ainda entra luz por cima ou lateralmente, como em qualquer situação similar de construção a menos de metro e meio, a verdade é que os AA não podem desfrutar das vistas de que sempre desfrutaram até aqui, nem beneficiar de ar e da mesma luz de outrora, como nunca poderiam com uma parede a 15 cm;

r) Também não é verdade que os AA possam desfrutar do avistamento e das vistas como sempre desfrutaram, mesmo de pé, o que não resulta provado em parte alguma dos autos;

s) O que resulta provado é que a construção foi efectivamente erguida a menos de metro e meio. Mais: a 15 cm, quase colada à abertura! Como se pode pressupor que tal construção não causa prejuízo ao titular do direito?

t) A abertura dos AA está pois eliminada com a construção dos RR, de resto em excessiva proximidade, o que por si constitui um prejuízo só reparável com a demolição estritamente necessária ao exercício do direito dos AA;

u) Invoca depois a douta sentença o instituto da colisão de direitos. Acontece que, não se vê onde cedem os RR, na medida do necessário, ao manterem intocável a sua construção, enquanto os AA ficam com uma parede a 15 cm da janela;

v) Não constitui, pois, fundamento para a alegada colisão de direitos pelo Mmo juiz a quo, nem existe alegação e demonstração suficiente para tal colisão;

w) De resto, em parte alguma dos autos os RR concretizaram prejuízo na eventualidade de demolirem parte da parede que levantaram, na estrita medida do respeito pelo direito dos AA.;

x) Além do mais, os RR bem sabiam que quando construíam, como construíram, a 15 cm da janela vizinha, estavam a violar de forma grosseira o direito alheio, não se coibindo de o fazer, pelo é justo e adequado que reponham a situação nos termos em que se encontrava anteriormente.

y) É inaceitável a decisão que ao mesmo tempo que reconhece o direito dos AA deita por terra a possibilidade do seu exercício e não exige qualquer sacrifício aos RR, violadores da lei;

z) Por fim, argumenta-se que os AA. nada fizeram durante 10 anos, e que, como tal, renunciaram ao seu direito, pelo que jamais poderiam vir peticionar a demolição;

aa) Por fim, argumenta-se que os AA. nada fizeram durante 10 anos, e que, como tal, renunciaram ao seu direito, pelo que jamais poderiam vir peticionar a demolição;

bb) Ora, não é verdade que os AA tenham permitido a situação pelo menos durante 10 anos;

cc) Com efeito, como supra em I se defende, a construção foi levantada à volta de 1999, há cerca de 9/10 anos antes da entrada da acção;

dd) Mas também é facto que em 2004 correu processo de ratificação judicial de embargo de obra nova, como se refere a 45.º da p.i. e referido na p.i.. Esse processo, como não poderia deixar de ser, esteve apenso à acção n.º 6/05.3TBFVN, que deu entrada no tribunal a quo em 20/12/2004, cujos termos se extinguiram enquanto se tentou chegar a acordo, e daí a presente acção;

ee) Já nesses autos se insurgiram os AA contra a construção e defenderam a servidão de vistas e a demolição;

ff) Não após 10 anos mas menos de 4 sobre a edificação da mesma, e depois de nada terem conseguido extrajudicialmente;

gg) Além do mais, inexiste facto provado que permita concluir pela renúncia do direito por parte dos AA. De resto, sempre poderiam os mesmos exercer o direito que lhe competia antes de expirado o prazo de 20 anos, que faz extinguir as servidões pelo não uso;

hh) Diga-se ainda, que o normativo invocado pelo tribunal a quo a propósito da renúncia, refere-se à renúncia ao exercício de servidões. No presente caso foi decidido o reconhecimento da servidão de vistas, como enunciado em d) do dispositivo da douta sentença, pelo que não se pode dar por bom que a ela tenham os AA renunciado;

ii) Ficou provado que os comportamentos dos RR. causaram aborrecimento  aos AA;

jj) Ora, tendo em conta a dimensão dos danos como acima exposto, tal aborrecimento é notoriamente forte e merecedor de compensação;

kk) Se não nos termos peticionados, pelo menos em valor que o prudente arbítrio do tribunal deve considerar.

ll) Foram violadas as normas constantes dos Arts.º 653.º, 655.º, 659.º, 668.º, n.º 1 al. c), do Código de Processo Civil, Arts.º 1360.º, 1362.º e 1569.º do Código Civil

Termos em que (…)

Dever-se-á proceder à alteração da decisão sobre a matéria de facto nos termos supra-expostos;

ii. E revogar-se a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra em que se considere procedente o pedido dos AA. em g), no sentido de serem os RR. condenados a demolirem a parte do seu prédio urbano que perturbe o exercício do legítimo direito dos AA. à servidão de vistas reconhecida;

iii. E condenando-se ainda os RR em indemnização a fixar segundo o ponderado arbítrio do tribunal…».

e) Os réus contra-alegaram começando por referir que o recurso foi interposto depois de decorrido o respectivo prazo, não devendo ser recebido.

Fundamentam este entendimento no facto dos autores terem sido notificados da sentença em 18 de Abril de 2012, de terem apresentado as legações no tribunal em 23 de Maio seguinte, mas terem apenas notificado das mesmas os réus em 6 de Julho de 2012 e de terem remetido para tribunal também nesta data o comprovativo de tal notificação, só se tendo completado, por isso, nesta data, a actuação processual relativa à interposição do recurso, portanto, já fora de prazo.

Quanto ao mérito do recurso, pugnam pela manutenção da sentença referindo que efectivamente não se mostra que a construção executada pelos réus, que se limitou a altear a que aí já existia no mesmo lugar, viole a servidão de vistas invocada pelos autores, uma vez que não impede a visão ou a entrada de luz para o interior do prédio dos autores, sendo ainda certo que a construção em causa foi efectuada com o consentimento dos apelantes o que, juntamente com o facto de terem decorrido 10 anos sobre a feitura da construção por parte dos réus mostra que os autores agem com abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

II. Objecto do recurso.

Em primeiro lugar, cumpre verificar se o recurso foi interposto depois de decorrido o prazo.

Em segundo lugar, apreciar-se-á a impugnação da matéria de facto quanto à resposta dada ao quesito 33.º, pretendendo os recorrentes que a data constante da resposta dada seja harmonizada com a que consta já da alínea M) dos factos provados, ou seja, que a alteração da altura da habitação dos Réus ocorreu há 9/10 anos e não em 1989.

Em terceiro lugar, coloca-se a questão de saber se, estando reconhecida a existência da servidão de vistas, devem os réus ser condenados a demolir a construção que efectuaram de novo ou deve manter-se a sentença segundo a qual os réus podem manter a parte da construção que acrescentaram.

Por fim, cumpre averiguar se os factos sustentam a condenação dos Réus em indemnização a favor dos autores por danos não patrimoniais.


*

Estas duas últimas questões só serão afrontadas se, porém, não houver lugar à ampliação da matéria de facto, como poderá ser o caso, pois a matéria de facto provada nos autos mostra-se insuficiente para apreciar o mérito da causa.

III. Fundamentação.

a) Vejamos, em primeiro lugar, a questão relativa à extemporaneidade do recurso.

Verifica-se que o recurso foi interposto em tempo.

Rege nesta matéria o artigo 684.º-B (Modo de interposição do recurso)
do Código de Processo Civil, que tem esta redacção:

«1 - Os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, no qual se indica a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto e, nos casos previstos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 678.º, no recurso para uniformização de jurisprudência e na revista excepcional, o respectivo fundamento.

2 - O requerimento referido no número anterior deve incluir a alegação do recorrente.

3 - Tratando-se de despachos ou sentenças orais, reproduzidos no processo, o requerimento de interposição pode ser imediatamente ditado para a acta».

Verifica-se que o recurso é interposto perante o tribunal que proferiu a decisão e, por isso, está interposto quando o recorrente apresenta o respectivo requerimento na secretaria desse tribunal.

Neste momento o recurso está interposto, pelo que não assiste razão ao recorrente.

b) Passando à questão relativa à impugnação da matéria de facto.

Esta questão tem a ver com a resposta dada ao quesito 33.º, pretendendo os recorrentes que a data constante da resposta dada a este quesito seja harmonizada com a que consta já da alínea M) dos factos provados, ou seja, que a alteração da altura da habitação dos Réus ocorreu há 9/10 anos e não em 1989.

A resposta ao quesito 33.º foi esta: «Em 1989 os RR. ampliaram a casa referida em 12. em altura exacta não apurada, mas em todo o caso correspondente a um piso».

A al. M) tem esta redacção: «Há 9/10 anos os RR. ampliaram a altura da casa acabada de referir».

Verifica-se, pois, que existe a apontada contradição.

Estando já provada por acordo a circunstância temporal do facto e estando apenas em dúvida a a parte relativa ao alteamento da construção, suprimir-se-á infra, no facto n.º 45, a referência ao ano de 1989 na resposta ao quesito 33.º, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, ficando sanada a contradição.

Passa-se, por conseguinte, à indicação da matéria de facto provada.

c) Matéria de facto provada.

1. Sob o n.º x... da Conservatória do Registo Predial de Castanheira de Pêra, encontra-se descrito o prédio urbano composto de casa de r/c com duas divisões e duas portas, primeiro andar com quatro divisões, sete janelas e duas portas, confrontando a Norte com o proprietário, Nascente com rua, Sul com proprietário e Poente com J....

2. Nas traseiras da casa referida, a Poente, na zona de arrumos, existe uma porta para o exterior.

3. Tal porta dá para uma passagem que desce, à esquerda, e segue até à rua.

4. A passagem acabada de referir principia com 1,5 metro de largura e alarga ligeiramente até 1,90 metro, em sentido descendente atento o declive do terreno.

5. Aí, vira a Nascente e depois a Sul, terminando com cerca de 1,60 metro de largura, junto à estrada, num comprimento total de 10,90 metros.

6. Encontra-se inscrita, através da Ap. G-1, de y.../22082003, a favor de JC (…)  casado com ON (…), a aquisição por compra do prédio urbano sito no Carapinhal, composto de casa com logradouro, com superfície coberta de 27 m2 e logradouro de 48 m2, confrontando a Norte com M..., Nascente e Sul com rua e Poente com J..., descrito sob o n.º w.../22082003.

7. Por escritura, outorgada em 30 de Maio de 2003, no Cartório Notarial de Figueiró dos Vinhos, (…) e mulher (…), na qualidade de primeiros outorgantes, declararam que «são, com exclusão de outrem, donos e legítimos possuidores do prédio seguinte, sito na freguesia e concelho de Figueiró dos Vinhos: Casa com a área coberta de vinte e sete metros quadrados sita em Carapinhal, que confronta de norte com MS..., nascente e sul com a rua e poente com Conceição Costa, inscrita na matriz em nome do justificante marido e em mil novecentos e trinta e sete sob o artigo k... (…) e omisso na Conservatória do registo Predial deste concelho. O referido prédio veio à posse deles, justificantes, por compra e venda verbal que em mil novecentos e setenta fizeram a (…)(…). Que desde essa data, eles justificantes, começaram a possuir o referido prédio em nome próprio e durante mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o início, posse que sempre exerceram ostensivamente, com o conhecimento de toda a gente do lugar e a prática reiterada dos actos habituais de um proprietário pleno recolhendo na casa alfaias agrícolas e produtos hortícolas, extraindo da mesma todas as suas utilidades, pelo que sendo uma posse pacífica, pública, contínua e de boa fé, durante aquele período de tempo, adquiriram o prédio por usucapião (…). Que, pela presente escritura e pelo preço de QUATRO MIL DUZENTOS E TRINTA E NOVE EUROS E SETENTA E OITO CÊNTIMOS, que já receberam do terceiro outorgante, a este vendem o prédio atrás referido».

8. Mais declarou o R., na qualidade de terceiro outorgante «Que aceita esta venda».

9. O prédio referido em 6. é contíguo à passagem referida em 3 a 5.

10. Em Novembro de 2004 os réus deram início a obra no prédio referido em 7, com remoção de telhas e entulho.

11. E demoliram e ocuparam a zona referente à passagem referida em 3 a 5, com construção que pretendiam encostar à porta do edifício referido em 1.

12. Encontra-se inscrito na matriz predial de Figueiró dos Vinhos, sob o artigo z..., um prédio composto de casa com quintal, com superfície coberta de 48 m 2, confrontando a Norte com MS..., a Sul com estrada, a Nascente com AS... e a Poente com quintal, sita em Carapinhal, Figueiró dos Vinhos, constando como titular dos rendimentos o réu JC (…).

13. Há 9/10 anos os réus ampliaram a altura da casa acabada de referir.

14. Na casa referida em 1 existem, na parede correspondente ao seu alçado posterior, duas aberturas para o exterior com as dimensões de 1,15 X 2 metros, servidas por uma varanda com grade em ferro.

15. Tais aberturas são dotadas de caixilhos em metal, susceptíveis de permitir a sua abertura.

16. Sendo que a abertura existente mais a poente sempre deitou directamente para o prédio referido em 12.

17. A casa referida em 1 tem sido habitada pelos autores e pelos seus antecessores há mais de 70 anos.

18. Os autores e seus antecessores, desde a altura referida em 1, nela cozinham, tomam refeições, dormem, passam momentos de lazer e recebem familiares e amigos.

19. E têm utilizado as suas diversas dependências para guardar lenha, produtos e alfaias agrícolas.

20. E sempre actuaram como descrito na firme convicção de que não lesam direitos de terceiros, exercendo um direito próprio.

21. Dia após dia.

22. À vista da generalidade das pessoas.

23. Ininterruptamente.

24. Sem oposição ou intromissão de quem quer que seja.

25. A passagem referida em 3 a 5 existe desde tempo exacto não apurado, mas em todo o caso há mais de 70 anos, servindo, também, a habitação referida em 1 para acesso à estrada e servindo de passagem para outro prédio urbano, que existe em frente e que, em tempos pertencia aos antepassados da autora, proprietários dos prédios circundantes.

26. A passagem é delimitada pela parede de parte do prédio referido em 1, pelo que resta de uma parede de pedra antiga, pelas paredes dos prédios referidos em 7 e 12 e por uma vala que a separa de um prédio vizinho, já junto à estrada.

27. Em tempos mais recuados encontra-se calcada em toda a sua extensão e actualmente, o seu leito apresenta-se em parte em terra calcada e noutra em cimento.

28. Sempre apresentou marcas de passagem a pé e trilhos de carros-de-mão.

29. Durante o ano todo e com mais incidência nos períodos de sementeiras e recolha de produtos hortícolas.

30. Há mais de 70 anos, com excepção do período em que a porta que da sua habitação deita para a dita passagem esteve fechada, nos termos a que infra se fará se referência, os autores, por si e seus antecessores limpam a passagem referida e aí cortam ervas e removem lixos, se fazem passar por aquele caminho, fazendo-se passar sempre pela porta referida em 2 para acesso à dita passagem referida.

31. Transportando, desde a estrada pública produtos agrícolas e lenha para armazenarem em casa.

32. A pé e com carro de mão.

33. Praticando os referidos actos referidos na convicção de que com eles não lesam os direitos de terceiros e que actuam um direito próprio.

34. Dia após dia.

35. À vista da generalidade das pessoas.

36. Ininterruptamente, com excepção do período em que a porta que da sua habitação deita para a dita passagem esteve fechada, nos termos a que infra se fará se referência.

37. Sem oposição ou intromissão de quem quer que seja.

38. Os prédios referidos em 1 e 7 eram ambos pertença dos avós da autora e passaram os dois, incluindo a passagem referida para os seus herdeiros.

39. Os autores, por si e seus antecessores, há mais de 70 anos, vêm fruindo das aberturas referidas em 14 e vistas, usando a varanda referida em 14.

40. Ignorando que com tal utilização lesavam direito de outrem.

41. Convencidos de que exerciam um direito próprio e de que não prejudicavam quem quer que fosse.

42. Sem oposição ou intromissão de quem quer que seja.

43. À vista de toda a gente.

44. Ininterruptamente.

45. Os réus ampliaram a casa referida em 12 em altura exacta não apurada, mas em todo o caso correspondente a um piso.

46. Procedendo a cerca de 15 cm da abertura referida em 14.

47. A divergência que mantêm com os réus traz os autores aborrecidos.

48. Em data exacta não apurada, mas em todo o caso situada cerca de um ano e meio ou dois anos antes de 2004, os autores fecharam com blocos e cimento a porta existente a poente do prédio mencionado em 1.

49. No ano de 2004, os autores voltaram a abrir a dita porta.

50. Tal porta deita directamente para o local da passagem a que se tem vindo a mencionar, após a qual se situa, a distância exacta não apurada o logradouro do prédio referido em 7.

51. Após reabrirem a porta referida em 2 os autores voltaram a usar a passagem supra mencionada em direcção à rua, situada a Sul.

52. O prédio mencionado em 1 tem uma fachada, com número exacto de metros não apurado, que deita directamente para a via pública.

53. Na dita fachada tem um portão e uma porta que deitam directamente para a via pública.

54. A porta referida em 2 acede directamente à arrecadação dos autores, enquanto que, vindo das aberturas existentes no alçado principal, para se alcançar tal acesso têm que se ultrapassar vários anexos, incluindo uma zona para estendal de roupa, as imediações de uma cozinha e que ultrapassar dois degraus, o que dificulta o acesso a essa zona com lenhas, produtos hortícolas e adubos em carros de mão.

55. Os réus decidiram demolir o prédio referido em 7 para a construção de outro.

56. A abertura da porta referida em 2 obsta à realização da obra projectada pelos réus da forma como a pensaram, já que está projectada para encostar ao imóvel dos AA.

d) Apreciação das restantes questões objecto do recurso.

1 – Vejamos, então, se estando reconhecida a existência de uma servidão de vistas, devem os réus ser condenados a demolir a construção que efectuaram de novo.

a) Olhando para a matéria de facto coloca-se logo esta questão: a nova construção feita pelos réus subiu até interceptar uma linha horizontal imaginária tirada a partir da soleira das aberturas existentes no prédio dos réus?

A resposta é «não se sabe».

Com efeito, a este respeito, apenas consta da matéria de facto que «Os réus ampliaram a casa referida em 12 em altura exacta não apurada, mas em todo o caso correspondente a um piso» e «Procedendo a cerca de 15 cm da abertura referida em 14».

Verifica-se que a determinação da posição exacta em que se encontra a parte nova edificada pelos réus, em relação às janelas da casa dos autores, tem importância, sendo aliás, fundamental, como resultará daquilo que vai ser dito a seguir.

b) Uma servidão, como foi sendo referido ao longo do processo e consta do artigo 1543.º do Código Civil, consiste num encargo imposto a um prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, podendo, nos termos do artigo 1543.º do mesmo Código, «…ser objecto da servidão quaisquer utilidades (…) susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante…».

No caso dos autos, a materialidade física que dá corpo à servidão reconhecida aos autores na sentença sob recurso são «…duas aberturas para o exterior com as dimensões de 1,15 X 2 metros, servidas por uma varanda com grade em ferro».

Vejamos então quais são as utilidades que uma servidão de vistas confere ao prédio dominante.

O Código Civil na parte dedicada especificamente às servidões legais referiu-se apenas às servidões de passagem e de águas (artigos 1550.º a 1563.º), mas, apesar disso, dedicou à servidão de vistas o artigo 1362.º, cujo teor é o seguinte:
«1 - A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião.
2 - Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.º 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras».

O teor deste artigo tem de ser conjugado com o disposto no artigo 1360.º (Abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes) do mesmo Código onde se diz:

«1. O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio.

2. Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela.

3. Se os dois prédios forem oblíquos entre si, a distância de metro e meio conta-se perpendicularmente do prédio para onde deitam as vistas até à construção ou edifício novamente levantado; mas, se a obliquidade for além de quarenta e cinco graus, não tem aplicação a restrição imposta ao proprietário».

Face ao exposto e tendo em consideração a situação dos autos, os autores são titulares de uma servidão de vistas sobre o prédio dos réus.

O termo «servidão de vistas» é a designação tradicional dada ao caso, mas não é o mais adequado, pois o benefício que a servidão confere não consiste na possibilidade de olhar em direcção ao prédio vizinho, até onde a vista alcançar, mas sim facultar luz e ar ao prédio dominante.

Neste sentido, e para situações como a dos autos, Cunha Gonçalves referia que «A inacção do proprietário vizinho, porém, dá lugar ùnicamente à servidão de ar e de luz» ([1]) O mesmo sustentava Pires de Lima, ao dizer que «…o proprietário vizinho pode em qualquer altura levantar edificação, ainda que com ela tape as vistas ao prédio vizinho; o que não pode é tirar o ar ou vedar a luz porque estas ficam constituindo verdadeiras servidões» ([2]). Na mesma linha de orientação, Pires de Lima/Antunes Varela referiram que: «O objecto da restrição não é propriamente a visita sobre o prédio vizinho, mas a existência da porta, da janela, da varanda do terraço, do eirado ou de obra semelhante, que deite sobre o prédio nas condições previstas no artigo 1360.º Não se exerce a servidão com o facto de se disfrutarem as vistas sobre o prédio, mas mantendo-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho. Pode a janela ou a porta estar fechada, desde que o não seja, definitivamente, com pedra e cal, que a servidão não deixa de ser exercida. Por isso, pelo que respeita à sua extinção pelo não uso, é aplicável o disposto na segunda parte do n.º1 do artigo 1570.º» ([3]).

Verifica-se, como dizem estes autores, que o conteúdo da servidão que onera o prédio dos réus consiste, não no direito dos autores estenderem as vista sobre o prédio dos réus e inclusive mais além, se não houver obstáculos, mas sim na fruição do ar e da luz no interior do prédio dos autores, através das duas janelas.

Por conseguinte, nos termos do n.º 2, do artigo 1362.º do Código Civil, constituída a servidão de vistas, ao proprietário vizinho, no caso os réus, só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras que importam a servidão de vistas o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras.

O proprietário do prédio serviente pode, apesar da existência da servidão, construir no seu prédio, desde que não ofenda esta servidão.

Assim, nas palavras de Cunha Gonçalves, «…o proprietário do prédio serviente não fica inibido de levantar neste, a todo o tempo, qualquer edifício ou construção, ficando sujeito contudo a deixar o interstício de 1m,50, mas somente defronte da janela, porta, varanda ou outra obra contra a qual não se opôs durante dez anos, como ainda dispõe o citado § 3.º do art. 2325.º; e no restante espaço os dois prédios podem até ser encostados um ao outro» ([4]).

O respeito pela servidão implica que não se possa construir imediatamente acima das janelas, porque esta construção afectaria a entrada de ar e luz no prédio dominante, nem ao mesmo nível ou, inclusive, em certos casos, imediatamente abaixo, pois, como assinalam Pires de Lima/Antunes Varela, transcrevendo um texto da Revista de Legislação e de Jurisprudência (ano 96.º, pág. 334), «Também não há, em princípio, impedimento a que se construa na parte inferior, desde que as obras não importem, de per si, violação do artigo 2325.º, ou prejudiquem a função normal das janelas (…).

É necessário, quanto a estas construções baixas, notar que elas podem em certas circunstâncias, prejudicar o exercício da servidão. A janela deixará, por exemplo, de exercer a sua função normal, se o vizinho fizer um levantamento do terreno que o coloque ao nível do exterior ou a nível aproximado. Como poderá continuar a janela a assegurar a entrada de e luz se tiver, transformada praticamente em porta, de se fechar para evitar que a casa seja devassada?

Mas estes casos são excepcionais» ([5]).

Face ao que fica dito, torna-se claro que é necessário estar na posse dos seguintes três factos para decidir o presente litígio:

Um deles consiste em saber a que cota se encontra o topo na nova construção feita pelos réus em relação à cota da soleira das janelas (como são dotadas de varanda não têm parapeito, mas sim soleira), isto é, se o topo da construção alteada pelos réus chega ao nível dessa soleira, se fica em plano mais baixo ou então mais alto e, em qualquer caso, a que distância (indicada em centímetros).

Este facto é importante na medida em que a altura da construção feita pelos réus pode não chegar à soleira das janelas e, apesar disso, como se viu acima, prejudicar o exercício da servidão.

Um segundo facto consiste em apurar a que altura, em relação às ditas soleiras das janelas se encontrava o antigo edifício existente no prédio dos réus.

O terceiro facto consiste em verificar que parte da construção existente no prédio dos réus fica em frente às janelas, pois só a parte da construção que fica defronte infringe a servidão, já não aquela que é lateral.

Verifica-se, porém, que a matéria de facto provada constante da sentença não fornece estes factos.

Aliás, nem a matéria alegada os fornece, pois os autores limitaram-se a dizer que os réus acrescentaram ao edifício metro e meio em altura (artigo 53.º da petição) e este situa-se a quinze centímetros das janelas (artigo 65.º da petição).

Ora, no campo das hipóteses, os réus podem ter acrescentado, em altura, mais metro e meio ao edifício antigo e não haver violação da alegada servidão de vistas, pois, como se viu, o que importa é saber se a parte construída de novo lesiona o exercício da servidão, mas para isso é necessário estar na posse dos factos acima mencionados.

Dir-se-á que não houve formalmente alegação dos factos necessários por parte dos autores e é o caso, como se viu.

Porém, tendo-se alegado que a nova construção mede metro e meio em altura, e viola a servidão de vistas e dado como provado que não se apurou exactamente a medida do alteamento, mas que correspondeu a «um piso», os restantes factos resultam implícitos e podem ser verificados no local, pois, indo ao local, pode ver-se aí se o topo da construção coincide com a cota da soleira das janelas ou se fica a nível superior ou inferior em relação a essa soleira e qual a extensão da construção que fica defronte das mencionadas janelas.

Afigura-se, pois, que é caso para anular a decisão, nomeadamente a resposta dada ao quesito 33.º, devendo dar-se uma resposta que traduza, em centímetros, o «um piso» constante da resposta a este quesito e averiguando-se, no local, os restantes factos acima mencionados que serão levados à matéria de facto provada, como o permite o disposto no n.º 3 do artigo 264.º do Código de Processo Civil.

Sugere-se o exame da parede, quer pelo interior quer pelo exterior, com o fim de verificar a diversidade de materiais correspondentes à parede antiga e à nova, isto para o caso das próprias partes não chegarem a acordo acerca do ponto onde, em altura, chegava a parede primitiva.

E no próprio local se estabelecerão os outros factos que embora não alegados expressamente estão pressupostos na causa de pedir e estão «à vista» no local.

IV. Decisão.

Considerando o exposto, ao abrigo do disposto no artigo 712.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, decide-se anular a sentença, bem como a resposta ao quesito 33.º, para serem apurados estes factos:

 Cota a que se encontra o topo na nova construção feita pelos réus em relação à cota da soleira das janelas, isto é, se o topo da construção alteada pelos réus chega ao nível dessa soleira, se fica em plano mais baixo ou então mais alto e, em qualquer caso, a que distância, indicada em centímetros.

 Altura, em relação às ditas soleiras das janelas, a que se encontrava o antigo edifício existente no prédio dos réus.

 Parte da construção existente no prédio dos réus que fica em frente às mencionadas janelas.

Custas pela parte vencida a final.


*

 Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )

 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

 Maria Inês Carvalho Brasil de Moura



[1] Tratado de Direito Civil, Vol. XII. Coimbra, Coimbra Editora, 1938, pág. 87.
[2] Lições de Direito Civil (Direitos Reais), coligidas por Elísio Vilaça e David A. Fernandes. Coimbra: Atlântida Livraria Editora, 1933, pág. 229/230.
[3] Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição revista e actualizada (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 1987, pág. 219.
[4] Ob. cit., pág. 87.
[5] Ob. cit., pág. 221-222.