Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1606/08.5TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: COMPRA E VENDA DE IMÓVEL
PREÇO REAL
PROVA TESTEMUNHAL
Data do Acordão: 06/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 394º, Nº 1 DO CC.
Sumário: I - É admissível a produção de prova testemunhal visando infirmar a veracidade da declaração de um determinado preço e a sua quitação numa escritura de compra e venda, não obstante o disposto no artigo 394º, nº 1 do CC, quando exista um contrato-promessa de compra e venda, referente a essa compra e venda e que tenha sido assumido por ambos os contraentes, indicando este um preço distinto e relatando a razão de ser da diferença de valores. Tal contrato-promessa funciona como um “princípio de prova escrita” que legítima, segundo se vem entendendo, o recurso à prova testemunhal nestas situações;

II – Correspondendo o resultado probatório, alcançado numa oposição à execução, à indemonstração da tese do Exequente nessa execução, segundo a qual a dívida exequenda corresponderia a determinado negócio, deve este non liquet ser ultrapassado (decidido) contra a versão do Exequente, nos termos do artigo 342º, nº 1 do CC, sendo a ele que cumpre provar, em sede de oposição à execução, a existência do crédito exequendo.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Por apenso a uma execução proposta em 02/05/2008[1], veio o Executado, R… (que é o Apelado no presente recurso), deduzir oposição a essa execução nos termos do artigo 816º do Código de Processo Civil (CPC), dirigindo-a contra o Exequente J… (este é o Apelante neste recurso, já que a oposição veio a ser julgada procedente através da decisão aqui apelada).

            1.1. Para compreensão da situação sublinhamos que o Exequente, no requerimento executivo, ao qual anexou como título executivo um cheque, no valor de € 20.000,00 e emitido à sua ordem pelo Executado, incluiu, no campo documental inicial desse requerimento, as seguintes indicações destinadas a caracterizar esse título executivo:
“[…]
Título Executivo: Cheque
Valor da Execução: €20.336,56
Factos:
O exequente é o legítimo portador de um cheque sacado, preenchido, assinado e entregue pelo executado, com o nº…, sobre o Banco B…, agência de Viseu, datado de, respectivamente, 08/01/2008, no montante de €20.000,00.
Apresentado a pagamento no Banco… em Viseu, em 16/01/2008, foi o mesmo devolvido pela Câmara de Compensação com o falso motivo de «falta ou vício na formação da vontade», em 17/01/2008.
[…]
Destinava-se o cheque ora ajuizado ao pagamento de parte do preço dum imóvel que o executado (e terceira) havia adquirido ao exequente.
[…]”
[transcrição de fls. 6 do processo executivo, sublinhado aqui acrescentado]

1.2. No requerimento de oposição a esta execução (fls. 4/25) negou o Executado – e estamos a expor os respectivos argumentos, cingidos, todavia, aos aspectos relevantes para este recurso – que o valor do cheque se referisse ao pagamento de uma parte do preço do imóvel adquirido ao Exequente, estando tal valor – o acordado nessa venda – já integralmente satisfeito por ele Executado[2]. Acrescenta este que, diversamente do indicado no requerimento executivo, na base da emissão do cheque estaria, tão-só, o “caucionamento” do valor da construção de uma garagem adicional, anexa ao prédio vendido, encargo este assumido pelo Exequente mas ainda não realizado, não sendo devido, por isso (porque essa garagem, de facto, não foi construída) o valor inscrito no cheque[3]. Embora faltem ao mesmo cheque – e continuamos a expor argumentos do Executado na oposição – requisitos de autenticidade e de fidedignidade, verificar-se-ia, relativamente à exigibilidade do valor inscrito nesse título, uma invocada “excepção de não cumprimento” reportada, quid pro quo, à efectiva construção da garagem[4].

1.2.1. Contestou o Exequente a oposição (fê-lo a fls. 74/88), afirmando a correspondência do cheque, enquanto meio de pagamento, à parte residual do preço total do imóvel por ele vendido, que ascenderia, na realidade, a €150.000,00 e não aos €130.000,00 declarados na escritura de fls. 34/40, correspondendo assim os €20.000,00 inscritos no cheque à parcela exorbitante do valor declarado nessa escritura. Existe, aliás – afirma-o o Exequente –, um contrato-promessa referido ao valor real (junta-o o Exequente a fls. 90/91)[5] e um outro contrato do mesmo tipo, paralelo ao primeiro (junta-o a fls. 92/93), por ambos os contraentes assumido no texto desse (primeiro) contrato[6], ostentando o segundo contrato o valor (não real) de €130.000,00[7], sendo que a questão da construção da garagem, segundo o Exequente, exorbitaria da compra e venda do prédio, tratar-se-ia – di-lo o Exequente – de uma “obrigação natural” por ele assumida, e não corresponderia sequer ao valor de €20.000,00 inscrito no cheque[8].

1.3. Foi o processo saneado e condensado a fls. 110/122[9], avançando-se para o julgamento documentado a fls. 160/164 e a fls. 186/189, findo o qual, fixados que foram os factos por referência à base instrutória (isto no despacho de fls. 190/196), foi a oposição decidida, no sentido da procedência, pela Sentença de fls. 203/222 – esta constitui a decisão objecto do presente recurso – que absolveu o Executado do pedido exequendo.  

            1.4. Inconformado com o assim decidido, interpôs o Exequente a presente apelação, motivando-a a fls. 225/243, rematando esta peça com as seguintes conclusões:


“[…]

            1.4.1. O Executado respondeu a fls. 250/310, pugnando pela manutenção do decidido.


II – Fundamentação

            2. Relatado que está nos seus elementos essenciais o iter da execução e da oposição que conduziu à presente instância de recurso, e identificados que foram os traços fundamentais do litígio entre o Exequente e o Executado, quanto à origem do crédito titulado pelo cheque apresentado a pagamento e à execução (esta oposição expressa esta questão, resumindo-se ela à determinação da existência do crédito pretendido executar), relatado o desenvolvimento do processo, dizíamos, importa apreciar agora os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pelo Apelante/Exequente, a cuja transcrição procedemos no item anterior, operaram a delimitação temática do objecto do recurso.

É isto o que resulta dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC).

            Ora, compulsadas essas conclusões, verificamos que a apelação visa, à partida – no que constitui o seu primeiro fundamento (a) –, a matéria de facto, plasmada nas respostas aos itens 2º, 30º e 33º da base instrutória, pugnando o Apelante por uma resposta negativa ao primeiro (corresponde ele à tese do Executado, contrária à dele Exequente) e por respostas positivas aos outros dois quesitos (que respeitam à afirmação da tese do Exequente)[10]. Note-se que esta vertente da impugnação – e estamos a focar um assunto que, sendo algo marginal ao cerne do problema colocado pela impugnação dos factos, apresentará alguma relevância na subsequente exposição –, note-se que esta vertente do recurso, dizíamos, deixa intocada a decisão quanto ao tipo de prova admissível proferida pelo Tribunal a quo a fls. 164 (transcrevemo-la no final da nota 10, supra), sendo que isso significa que o Apelante se conformou com esse despacho (não o impugnou, deixando-o adquirir a cobertura do caso julgado formal, v. artigo 672º, nº 1 do CPC[11]), e, obviamente, com a consequência dele directamente decorrente: a exclusão da prova testemunhal da averiguação da matéria subjacente aos quesitos 30º a 33º. Assim, entenda-se o que se vier a entender sobre essa decisão (focaremos essa questão mais adiante, no item 2.2. (a) deste Acórdão), nunca essa consequência (a exclusão da produção de prova testemunhal quanto aos quesitos 30º a 33º) será revista nesta instância em termos de determinar, agora, o retorno do processo à instância precedente para aí ser produzida prova testemunhal.

Subsequentemente, prosseguindo na caracterização dos fundamentos da apelação, e com base nos factos emergentes do julgamento deste recurso, pretende o Apelante – no que constitui o segundo fundamento do recurso (b) – a reconsideração da existência do crédito resultante do título apresentado à execução, enquanto expressão das relações contratuais entre o Exequente e o Executado respeitantes à venda da moradia, no quadro das vicissitudes de um contrato de compra e venda (é a qualificação propugnada pelo Apelante, por oposição à de empreitada, como se pressupõe na Sentença)[12], lembrando-se aqui – e trata-se de um elemento consensual – estarmos, no que ao cheque/título executivo se refere, encarado este no plano do relacionamento entre o Exequente e o Executado, no domínio das chamadas “relações cartulares imediatas”, nas quais a abstracção do título cambiário não se manifesta (ou seja, o efeito de desligamento do título da causa à qual deve a sua origem, com o bloqueio da discussão dessa causa correspondente à relação subjacente), não tendo aqui aplicação no domínio dessas relações imediatas, portanto, o artigo 22º da Lei Uniforme Sobre Cheques[13], sendo sempre passível de discussão nesse quadro relacional em que o título não circulou, a tal relação subjacente[14], correspondendo esta aqui à causa da dívida atribuída ao valor inscrito no cheque, tendo ela que ver, enfim, com o elemento identitário do crédito pretendido executar. Podem, pois, estes dois sujeitos (o Executado, sacador, que emitiu o cheque e o entregou ao Exequente portador, que, por sua vez, o apresentou a pagamento ao Banco sacado), podem estes sujeitos, dizíamos, discutir entre si nesta oposição a existência ou as incidências do negócio que um e outro invocarem como estando na base da emissão desse cheque, podendo discutir, designadamente, a sua própria existência e outras incidências a ele ligadas.  

A subsistência da presente execução dependerá, pois, da demonstração da existência do crédito do Exequente titulado pelo cheque; do crédito que o Exequente caracteriza no requerimento executivo.

Daí que esta questão – a relevância da discussão da relação subjacente ao cheque – fique desde já pressuposta, na economia argumentativa do presente Acórdão, sem necessidade de maiores desenvolvimentos.  

            2.1. Os factos a considerar, e estamos a abranger, nos que tiveram uma expressão positiva na primeira instância, os factos impugnados no recurso, são os elencados na Sentença. Aqui os transcrevemos desde já, sublinhando, porém, a provisoriedade dessa enunciação decorrente do fundamento do recurso referido a esses factos poder vir a alterar esse elenco (e adiantamos desde já que ocorrerão alterações):
“[…]
1 –      O exequente é portador de um cheque emitido pelo executado à ordem do exequente, sacado sobre uma conta do Banco… de que o executado é titular, no valor de €20.000,00 e no qual foi aposta, de forma manuscrita, a data de 08-01-2008 no lugar destinado à indicação da data de emissão – A.
2 - Apresentado a pagamento em 16-01-2008, o cheque referido em A) foi devolvido na Compensação do Banco … em 17-01-2008 com indicação do motivo de «falta ou vício na formação da vontade» – B.
3 - O executado, juntamente com A…, outorgou em 4-01-2008 no Cartório Notarial em Viseu escritura pública de compra e venda com mútuo com hipoteca e fiança, na qual constam como primeiros outorgantes o exequente J… e a sua esposa – C.
4 - Na aludida escritura, o ora exequente e a esposa declararam já ter recebido o preço declarado de €130.000,00 – D.
5 - Foi através da celebração da aludida escritura pública que o executado e outra adquiriram ao exequente, a fracção autónoma designada pela letra «A», correspondente ao rés-do-chão e primeiro andar esquerdos, destinados a habitação, com logradouro localizado nos alçados principal, lateral esquerdo e posterior, que faz parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito …,sendo registada a aquisição daquela fracção a seu favor pela inscrição G, apresentação seis, de 12-05-2004, onde também se encontra registado o título constitutivo da propriedade horizontal pela inscrição F, apresentação seis, de 3-10-2007 – E.
6 - O valor de €130.000,00 mencionado na escritura pública foi pago na íntegra aos ora exequente e a esposa, que o receberam – F.
7 -        Exequente e executado assinaram o documento particular de fls. 90 e seg. do processo cujo teor aqui dou por reproduzido, intitulado “contrato promessa de compra e venda”, com data de 20-06-2006, no qual declararam, na cláusula terceira, que o preço total a pagar pela fracção da moradia em causa é de €150.000,00 e, na cláusula 8º, que “haverá um segundo contrato com o valor de venda de €130.000,00 (…) para entregar no Banco… para efeito do empréstimo que está a ser feito no mesmo, mas só para esses fins, pois o valor é de €150.000,00 (…)” – G.
8 -        Exequente e executado assinaram o documento particular de fls. 92 e seg. do processo cujo teor aqui dou por reproduzido, intitulado “contrato promessa de compra e venda”, com data de 20-06-2006, no qual declararam, na cláusula terceira, que o preço total a pagar pela fracção da moradia em causa é de €130.000,00 – H e resposta ao quesito 32.
9 - Foi acordada entre o executado e o exequente a construção, por parte deste, de uma garagem exterior à moradia adquirida pelo executado – resposta aos quesitos 1 e 40.
10 - O cheque emitido destinava-se, pelo menos em parte, ao pagamento do preço devido pela construção de uma garagem exterior à moradia, a executar pelo exequente ou a mando deste – respostas aos quesitos 2 e 40. [o Apelante pretende a supressão deste item no presente recurso, o que ocorrerá, nos termos indicados no item 2.2.1. (a), infra]
11 - A garagem referida em 10) [alterar-se-á esta resposta, adiante, para: “[a] garagem referida em 9)] nunca foi construída pelo exequente – resposta ao quesito 3.
12 - O exequente entregou o imóvel ao executado em Outubro de 2007 – resposta ao quesito 25.
13 - Depois da celebração da escritura de compra e venda o exequente não assinou qualquer declaração a assumir a obrigação de realizar trabalhos no prédio referido em 5) – resposta ao quesito 28.
14 - Depois da celebração da escritura de compra e venda o exequente não realizou quaisquer trabalhos no prédio referido em 5) – resposta ao quesito 29.
15 - O executado preencheu e entregou ao exequente o cheque em 04-01-2008 – resposta ao quesito 34.
16 - O executado colocou ao exequente o interesse na construção de uma garagem suplementar na moradia – resposta ao quesito 36.
17 - Tinha interesse em que tal construção se fizesse apenas após a vistoria e licenciamento camarário, já que a mesma não se encontrava prevista no projecto e pretendia dar fruição diferente à garagem existente – resposta ao quesito 37.
18 - A obra referida na resposta aos quesitos 16) e 17) não fazia parte do clausulado da compra e venda – resposta ao quesito 38.
19 - A alteração quanto à pré-instalação do ar condicionado foi feita a pedido do executado e da companheira – resposta ao quesito 43.
[…]”
            [transcrição de fls. 205/208]

            2.2. (a) Discute-se aqui a matéria de facto através do controlo, induzido pelo Apelante como fundamento do recurso, das respostas aos quesitos 2º, 30º e 33º da base.

            Questionava o primeiro destes (), enunciando a tese do Executado expressa na oposição quanto à “causa” da emissão do cheque, se “[este – o cheque preenchido pelo Executado – se destinava], na realidade, apenas a garantir o pagamento da [edificação] de uma garagem exterior à moradia, a construir nos termos e condições que viessem a ser acordadas” (fls. 115), tendo recebido este quesito a resposta especificada indicada a fls. 190 que viria a originar o item 10 do elenco fáctico: “[o] cheque emitido destinava-se, pelo menos em parte, ao pagamento do preço devido pela construção de uma garagem exterior à moradia, a executar pelo exequente ou a mando deste”.

            Os quesitos 30º e 33º, por sua vez, que receberam respostas negativas também contestadas pelo Apelante, condensam a tese oposta propugnada pelo Exequente quanto à causa desse cheque, tese que se articula em dois elementos aqui indicados utilizando a forma afirmativa: o preço global da moradia foi de €150.000,00 (isto diz o quesito 30º) e, por isso, o cheque teria sido emitido para pagar a diferença (€20.000,00) entre esse preço (o preço verdadeiro: €150.000,00) e o montante (o preço não verdadeiro declarado: €130.000,00) financiado pelo banco a título de crédito à habitação (é o que diz o quesito 33º).

            No confronto entre estas duas versões (os €20.000,00 e o cheque foram para pagar parte do preço; os €20.000,00 e o cheque foram para pagar a garagem e não têm qualquer relação com o preço declarado na escritura) o Tribunal apelado, nos termos em que justificou estas respostas a fls. 191/196, considerou mais plausível a versão do Executado, acabando, no que aqui interessa, por sancionar positivamente a versão deste, através da resposta de pendor fundamentalmente positivo ao quesito 2º, e de sancionar negativamente a versão do Exequente, neste caso através das respostas tout court negativas aos quesitos 30º e 33º[15].

            Importará ter presente que o Tribunal a fls. 164 excluiu (conforme pronunciamento que se transcreveu na nota 10, supra e ao qual já nos referimos anteriormente) da produção de prova testemunhal a matéria dos quesitos 30º a 33º, nos termos do artigo 394º do Código Civil (CC).

Vale esta exclusão – que, como dissemos, se consolidou neste processo – pela consideração de que possíveis depoimentos de testemunhas a tal respeito traduzir-se-iam em prova – rectius, visariam a prova –, por esse meio, de convenções contra o conteúdo de um documento ou para além do conteúdo expresso nesse documento[16]. Corresponde o documento em causa à escritura de compra e venda de fls. 34/40, na qual é declarado o valor de venda de €130.000,00 – e este é declarado como já pago –, referindo-se tematicamente o bloqueamento de tal prova ao valor extradocumental exorbitante deste, ou seja aos €150.000,00 que o Exequente indica como representando o valor em função do qual alcançaríamos, imputando-o ao cheque, no quadro da apreciação da relação subjacente a este, a importância de €20.000,00 aqui correspondente à quantia executada.

            É certo que a lei afirma (artigo 394º, nº 1 do CC) uma exclusão da prova por testemunhas “[…] se [esta] tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º [do CC], quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”[17]. Todavia, isso não inviabiliza a legitimidade do uso da prova testemunhal face à existência daquilo que se qualifica como um “princípio de prova escrita”[18], o que aqui nos remete – e trata-se de prova escrita particularmente expressiva – para os dois contratos-promessa simultâneos de fls. 90/91 e 92/93, ambos consensualmente assumidos, na sua subscrição, pelo Executado e pelo Exequente, sendo que o primeiro destes contratos reporta (assume), expressamente, na respectiva cláusula 8ª[19], a razão de ser da indicação de um valor (preço) alegadamente não real na escritura de compra e venda[20].

Funcionaria este contrato-promessa, globalmente e nessa particular cláusula, como o tal “princípio de prova escrita” que tornaria lícito determinar aqui, recorrendo para o efeito à prova testemunhal, a realidade exorbitante do teor do documento considerado[21], afastando de alguma forma a asserção presente no despacho de fls. 164.

Note-se que o entendimento aqui sustentado quanto à possibilidade de valorar (e logo de produzir) prova testemunhal a propósito da matéria em causa nos quesitos 30º e 33º, na sua concreta incidência neste julgamento, não nos conduzirá, como indicámos no item 2., supra, a uma situação em que tivéssemos que fazer retornar o julgamento desta causa (desta oposição) a um estádio anterior em que houvesse que ser admitida prova testemunhal com essa incidência, o que, aliás, nem sequer é pedido pelo Apelante[22]. Com efeito, assim o entendemos e sustentamos, sublinhando que o rol de testemunhas do Exequente foi elaborado (e foi-o antes de ser proferido o despacho de fls. 164) na perspectiva de poder abranger, na prova testemunhal proposta, os indicados quesitos 30º e 33º e, na prática, as testemunhas referiram-se a essa incidência – e a gravação do julgamento confirma inteiramente o que aqui afirmamos[23] – referindo o que entendiam a esse respeito, tornando clara a inexpressividade da prova testemunhal para nos fornecer um quadro referencial minimamente seguro quanto ao efectivo valor da venda corresponder, alternativamente segundo cada uma das teses em confronto nesta oposição, a €150.000,00 ou a €130.000,00, da mesma forma que não permite essa mesma prova testemunhal, conforme o entende esta Relação, alicerçar a resposta fornecida pelo Tribunal a quo ao quesito 2º, nos termos que viriam a originar o ponto 10 da base instrutória, neste caso quanto à referenciação do cheque ao pagamento da garagem não construída, num aditamento de €20.000,00 a um preço que se esgotava em €130.000,00, ou do destacamento de €20.000,00 de um preço de €150.000,00, sempre dependente, fosse esse preço qual fosse, da efectiva construção dessa garagem.

A este respeito – a respeito das asserções positivas presentes nos quesitos 2º, 30º e 33º –, não existem elementos significativos na prova testemunhal que permitam fundar racionalmente, isto na valoração directa que esta Relação faz de toda essa prova (testemunhal), respostas positivas, ou respostas de pendor positivo como a expressa ao quesito 2º. Com efeito, com base na prova testemunhal, só poderemos ser conduzidos a uma situação de dúvida razoável – não vê esta Relação espaço para mais do que isso – quanto ao verdadeiro preço da moradia e quanto à referenciação do cheque a um preço adicional fixado para uma segunda garagem, como indica o Executado.

A realidade é, a tal respeito, que nenhuma testemunha, excluindo a esposa do Executado[24], afirmou consistentemente, com base em algo distinto do que teriam ouvido dizer ao Exequente, que os €150.000,00 correspondessem ao preço da moradia, da mesma maneira que nenhuma testemunha sustentou com uma base distinta (distinta do ouvir dizer ao Executado) que a emissão do cheque tenha correspondido a um pagamento específico (a construção de uma segunda garagem) de uma obra adicionalmente encomendada ao Exequente, enquanto empreiteiro-vendedor, embora exista prova de que o Exequente assumiu algum tipo de compromisso quanto à construção dessa segunda garagem[25].

Somos assim conduzidos, na valoração da prova produzida no âmbito desta oposição, à interpretação lógica da prova documental existente, concretamente do sentido dos dois contratos-promessa simultâneos, sugerindo estes que o valor da venda poderá ter sido o de €150.000,00, a par da inferência lógica, indicada na fundamentação das respostas, da pouca plausibilidade da afirmação do Exequente de que a segunda garagem seria uma “oferta” sua ao Executado, pela qual não seria devido qualquer pagamento. Note-se, aliás, que, mesmo no quadro da consideração do valor global da venda por €150.000,00, haveria espaço lógico para a imputação dos €20.000,00 ao valor da garagem ainda não construída e para a referenciação do cheque nesse contexto.

Seja como for – seja lá como tenha sido – o que aqui temos, valorados todos os elementos de prova, são elementos de significado ambíguo, marcando pontos em favor das duas teses em confronto, e que, nesse sentido, não nos permitem ultrapassar um patamar de dúvida razoável quanto à afirmação de qualquer das duas teses aqui em confronto. Com efeito, e assim se expressa a essência da operação de valoração de todos os elementos de prova neste caso, não é absolutamente seguro qual o valor da venda; mesmo tomando o valor de €150.000,00 – e este elemento é decisivo para a posição de dúvida assumida a este respeito neste Acórdão – não é seguro que esse valor não tenha sido satisfeito ou que, não o tendo sido numa parcela de €20.000,00, isso não corresponda ao valor adicional de uma garagem ainda não construída, não se sabendo, enfim, qual o negócio subjacente à emissão do cheque apresentado como título executivo – que o mesmo é dizer que não se sabe se esse negócio é o indicado pelo Exequente (o que daria sentido ao título executivo) ou o negócio oposto pelo Executado (o que retiraria sentido a esse mesmo título), sendo que se trata aqui, como referimos no final do item 2, supra, de uma situação em que a discussão da relação subjacente ao título de crédito é relevante e apta a determinar o destino da execução.

É este, pois, o resultado probatório que extraímos da acção: um non liquet quanto a qualquer das duas versões em confronto

            2.2.1. (a) Assim, a consequência induzida por este non liquet na matéria de facto aqui considerada, passa pela confirmação das respostas negativas aos quesitos 30º e 33º (contrariamente ao que sustenta o Apelante), mas passa igualmente (desta feita atendendo a pretensão do Apelante) pelo afastamento da resposta especificada ao quesito 2º, substituída por uma resposta – a resposta que esta Relação formula, no quadro dos poderes previstos no artigo 712º, nº 1 do CPC – pura e simplesmente negativa[26], que eliminará o item 10 dos factos acima indicados[27] e adaptará o item 11 desse mesmo elenco (a resposta ao quesito 3º) à seguinte formulação: “[a] garagem referida em 9) nunca foi construída pelo Exequente”.

            São estes os factos – os fixados pela primeira instância com a subtracção do indicado ponto 10 – a considerar por esta Relação na apreciação do subsequente fundamento do recurso[28].

            2.3. (b) Lembramos aqui – entrando na apreciação do segundo fundamento do recurso enunciado no item 2., supra – que está em causa a discussão da relação subjacente ao cheque apresentado como título executivo pelo Executado/Apelante, sendo que essa discussão se refere à realidade da caracterização (à veracidade; à efectiva existência) dessa relação indicada pelo Exequente no requerimento executivo, dando aí cumprimento ao disposto na alínea b) do nº 3 do artigo 810º do CPC: “[e]xposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo”.

            E foi esta indicação que o Exequente realizou no requerimento executivo ao mencionar que o cheque se destinou “[…] ao pagamento de parte do preço dum imóvel que o executado (e terceira) havia adquirido ao exequente”. Este pagamento – este alegado pagamento – correspondeu, pois, à relação subjacente ao título de crédito dado à execução, assumindo ela o carácter de facto fundamentador do pedido e devendo ter-se em conta que, nos termos do artigo 816º do CPC, estando em causa título executivo extrajudicial, “[…] podem ser alegados [na oposição] quaisquer outros [fundamentos] que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração”[29], o que aqui se traduziu na invocação pelo Executado da inexistência da dívida caracterizada pelo Exequente no requerimento executivo.

            Correspondendo o resultado probatório alcançado na oposição à indemonstração de qualquer das teses em confronto – da tese do Exequente no requerimento executivo e da tese do Executado na oposição –, correspondendo, portanto, a um non liquet, adquire valor de elemento indutor da “regra de decisão” a considerar – com a qual o Tribunal preenche a sua obrigação constitucional de julgar o litígio que lhe foi submetido –, funciona como “regra de decisão”, dizíamos, a concreta alocação que efectuemos do ónus da prova, no quadro do enxerto declarativo correspondente à oposição à execução, correspondendo tal regra ao privilegiamento decisório de uma dessas versões em confronto (da versão que não está carregada com o ónus da prova), pelos artigos 342º do CC e 516º do CPC[30].

            2.3.1. (b) Ora, perscrutando a quem incumbe o ónus da prova da existência do crédito executado no quadro da presente oposição à execução (onde se discute a relação subjacente ao título executivo), somos conduzidos à alocação desse ónus ao Exequente, aqui Apelante, valorando contra ele – é este o sentido da falada regra de decisão – o fracasso (o fracasso dele Exequente) em provar o fundamento do respectivo pedido executivo e, necessariamente, a existência do crédito executado.

            Lembramos aqui – seguindo o Acórdão do STJ (Lopes do Rego) de 09/02/2011[31] – que:
“[…]
No que se refere ao ónus da prova dos factos invocados como fundamento da oposição à execução, valem inteiramente as regras gerais estabelecidas no CC, cabendo ao executado que deduz oposição a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos que opõe à pretensão do exequente e a este [ao exequente] a prova dos factos constitutivos do direito exequendo, por força do preceituado no artigo 342º do CC.
Na verdade, a peculiar natureza procedimental da oposição à execução que – por um lado – poderia sem esforço configurar-se como verdadeira acção de simples apreciação negativa do crédito exequendo e, por outro, assume a função processual de «contestação» da pretensão do exequente, assente desde logo no título executivo que a suporta, não deve determinar a aplicação da regra especial vigente naquelas acções, por força do disposto no nº 1 do artigo 343º do CC (veja-se, por ex., o Ac. do STJ de 02/06/1999, proferido no p. 99B319): é que, ao contrário do que ocorre naquelas acções de mero «acertamento», o exequente/requerido na oposição já tratou de fundamentar o seu direito no momento em que apresentou o requerimento executivo e juntou o título que suporta a execução e faz presumir o direito exequendo, nessa medida cumprindo antecipadamente ao momento da dedução da oposição pelo executado o ónus de alegação e prova a seu cargo, quanto aos elementos constitutivos do crédito que pretende realizar coercivamente.
Ora,
da aplicação das regras gerais sobre o ónus da prova, contidas no referido artigo 342º, decorre que nem sempre recai sobre o opoente à execução o ónus de provar todos os fundamentos da oposição que deduz: será efectivamente assim quando o executado estruture a sua oposição numa defesa por excepção, invocando como suporte desta factos «novos», de natureza impeditiva, modificativa ou extintiva que lhe cumprirá naturalmente provar, - mas já não quando se limite estritamente a impugnar os factos constitutivos do crédito do exequente, documentado pelo título executivo, eventualmente completado pela alegação constante do requerimento executivo.
Tal defesa por impugnação – e não por excepção – poderá, desde logo, ter como objecto os factos complementares ao título executivo, que, por deste não constarem, o exequente tenha alegado no requerimento executivo, nos termos previstos na alínea
b) do nº 3 do artigo 810º do CPC: sendo estes negados pelo opoente/executado – e não estando obviamente cobertos pela força probatória que dimana do título executivo - é evidente que recairá inteiramente sobre o exequente o respectivo ónus probatório, enquanto elementos constitutivos do direito que pretende realizar coercivamente, impugnados pela parte contrária.
Para além disto, pode evidentemente o opoente deduzir impugnação que abale a força probatória de primeira aparência de que gozava o título executivo em que se fazia assentar a própria execução – e que, ao menos nos títulos desprovidos de natureza judicial, tem de ser naturalmente atacável pelo executado, ficando afectada quando este consiga abalar com a sua oposição o grau de certeza quanto à existência do crédito exequendo que normalmente lhes subjaz, passando, consequentemente, a incidir sobre o exequente/requerido na oposição – destruída que esteja a presunção de existência do direito que decorreria do título dado à execução – o ónus de prova de factos constitutivos do crédito exequendo.

[…]”
            [sublinhado acrescentado]

            Assim, correspondendo o ónus da prova ao Exequente, que afirmou (afirmou na execução) um determinado crédito como executivamente acertado pelo cheque que apresentou como título, não logrando, porém, provar a existência desse mesmo crédito na oposição, sendo as coisas assim, e correspondendo o resultado probatório alcançado a um non liquet dessa tese, a solução da questão colocada na oposição corresponderá à ficção da realidade da tese do Executado (da tese contrária à do Exequente), com a consequente prolação de uma decisão favorável ao Executado/Apelado, o que aqui corresponde ao afastamento da relevância do título executivo apresentado, sendo que ao afastamento da execução corresponderá, enfim, a procedência da oposição.

            É esse resultado que importará afirmar decisoriamente, se bem que ele tenha sido alcançado com base em fundamentos em muitos aspectos não coincidentes com o percurso argumentativo constante da Sentença apelada (aqui não considerámos corresponder o cheque ao valor da garagem não construída, considerámos inexistir prova que ele titule uma parte do preço em dívida pelo Executado).

            2.3.1.1. (b) Ainda neste quadro argumentativo, pese embora tratar-se de uma questão algo descentrada dos elementos que propiciaram a decisão deste recurso expressa no antecedente percurso argumentativo, tendo presente, todavia, que o Apelante foca esse problema nas conclusões 7 e 8 da motivação, não deixaremos de observar a correcção do enquadramento da situação correspondente ao contrato celebrado entre o Exequente (que construiu e vendeu a casa) e o Executado (que a comprou àquele) como de empreitada – ou, se preferirmos, como recondutível ao regime da empreitada – e não de compra e venda.

            Estamos, claramente, perante a figura da chamada “promoção imobiliária” (construção de imóvel para venda) relativamente à qual se projecta, por força da extensão operada pelo nº 4 do artigo 1225º do CC (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro), o regime da empreitada[32].

            Vale isto por afastar – e assumimos estar a elaborar, quanto à decisão deste recurso, no quadro da afirmação de um obiter dictum – a relevância da pretensão do Apelante de reconduzir a situação ao quadro da compra e venda, impedindo a aplicação do nº 2 do artigo 1211º do CC. Com efeito, fosse essa questão aqui operante, seria esse o enquadramento temporal do problema do pagamento do preço da empreitada referida à construção da moradia ou só da garagem.

            2.4. Aqui chegados, percorridos que estão os fundamentos do recurso, alcançamos, embora por via de argumentos não totalmente coincidentes com os da primeira instância, o mesmo resultado decisório expresso na Sentença apelada: a procedência da oposição à execução.

            É o que nos resta consignar (confirmando, portanto, a Sentença), sumariando antes as linhas fundamentais deste Acórdão:


I – É admissível a produção de prova testemunhal visando infirmar a veracidade da declaração de um determinado preço e a sua quitação numa escritura de compra e venda, não obstante o disposto no artigo 394º, nº 1 do CC, quando exista um contrato-promessa de compra e venda, referente a essa compra e venda e que tenha sido assumido por ambos os contraentes, indicando este um preço distinto e relatando a razão de ser da diferença de valores. Tal contrato-promessa funciona como um “princípio de prova escrita” que legítima, segundo se vem entendendo, o recurso à prova testemunhal nestas situações;
II – Correspondendo o resultado probatório, alcançado numa oposição à execução, à indemonstração da tese do Exequente nessa execução, segundo a qual a dívida exequenda corresponderia a determinado negócio, deve este non liquet ser ultrapassado (decidido) contra a versão do Exequente, nos termos do artigo 342º, nº 1 do CC, sendo a ele que cumpre provar, em sede de oposição à execução, a existência do crédito exequendo.


III – Decisão

            3. Pelo exposto, na improcedência da apelação, decide-se confirmar a Sentença recorrida.

            Custas do recurso pelo Apelante.



 

J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Existem duas questões de enquadramento legal adjectivo que importa esclarecer preambularmente:
(A) Porque esta execução, como indicámos no texto, se iniciou em 2008 (é, pois, posterior a 01/01/2008) estamos no domínio de aplicação do regime dos recursos emergente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto. São aqui aplicáveis, pois, as alterações ao Código de Processo Civil introduzidas pelo citado Diploma (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1).
(B) Paralelamente, coloca este processo outra questão relevante de aplicação da lei no tempo, respeitante à tramitação da acção executiva. Estando-se perante execução instaurada em Maio de 2005, aplica-se a redacção das normas do Código de Processo Civil disciplinadoras da execução resultantes do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março (não têm aqui aplicação, pois, as alterações introduzidas no Código de Processo Civil, sucessivamente, pelo Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho e pelo Decreto-Lei nº 226/2008, de 20 de Fevereiro).

[2] Aí referiu a tal respeito o Executado:
“[…]
15

O ora executado R…, juntamente com A…, outorgou, em 4 de Janeiro de 2008, no Cartório Notarial em Viseu, Escritura Pública de Compra e Venda e Mútuo Com Hipoteca e Fiança, na qual constam como Primeiros Outorgantes o aqui, exequente, J… e a sua esposa, conforme se pode constar através da junção de cópia como Doc nº 1 […].

16

Na aludida escritura, os Primeiros Outorgantes, o ora exequente (e a esposa) declararam já ter recebido o preço de €130.000,00,

17

valor este que corresponde ao preço acordado, por ambas as partes, pela venda do imóvel objecto da referida escritura pública.

18

Assim, foi através da celebração da aludida escritura pública que o executado adquiriu ao exequente, a fracção autónoma designada pela letra «A», correspondente ao rés-do-chão e primeiro andar esquerdos, destinados a habitação, com logradouro localizado nos alçados principal, lateral esquerdo e posterior, que faz parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito …, descrito na segunda Conservatória do Registo predial de Viseu sob o numero … e ali registada a aquisição daquela fracção a seu favor, pela inscrição G, apresentação seis, de doze de Maio de dois mil e quatro, onde também se encontra registado o titulo constitutivo da propriedade horizontal pela inscrição F, apresentação seis, de três de Outubro de dois mil sete.

19

Verdade é que as partes acordaram que o preço total a pagar pela referida fracção seria de €130.000,00, tal como consta da escritura pública outorgada,

20

e que o referido valor foi pago, na integra, pelo ora executado ao exequente, facto este que também consta da referida escritura pública.

21

Ora, conforme se pode verificar através da junção da cópia da referida escritura pública (já junto como Doc nº 1), o próprio exequente declarou na mesma já ter recebido o preço de €130.000,00,

22

declarando assim como quitada a divida existente até então,

[…]


24

Assim, posto isto e pelo facto de o preço estipulado pela aquisição da referida fracção se encontrar integralmente pago, não se verifica a existência de qualquer dívida do executado perante o exequente.

[…]


27

Não existindo, desde logo, causa de pedir da presente acção executiva, pelo que a mesma de improceder.

[…]”

            [transcrição de fls. 6/8]
[3] Esta vertente da argumentação do Executado foi desenvolvida no requerimento de oposição nos seguintes termos:
“[…]

34

Ora, a realidade é que foi acordado entre o executado e o exequente a construção, por parte deste, de uma garagem exterior à moradia adquirida pelo executado,
35
e foi apenas neste sentido que o ora executado emitiu o referido cheque à ordem do ora exequente.
36

Assim, o cheque emitido destinava-se, na realidade, a garantir o pagamento da construção de uma garagem exterior à moradia, a construir nos termos e condições que viessem a ser acordadas,
37
Garagem a qual, acresce que, nunca foi construída pelo Exequente (até ao presente dia).
38

Ora, facto real é que o acordo quanto à construção da garagem e a emissão do referido cheque, em consequência deste e enquanto garantia do seu pagamento em nada esteve relacionada com o preço estipulado pela moradia, nem tão pouco com o pagamento desta (nem outro relato da realidade poderá proceder).

[…]”

            [transcrição de fls. 9]
[4] Diz neste particular o Executado no requerimento de oposição:
“[…]

81

Como supra exposto, o executado acordou com o exequente a construção de uma garagem no exterior da moradia, imóvel que adquiriu ao exequente.

82

Neste sentido, e como garantia de pagamento da referida garagem o ora executado emitiu o cheque constante dos autos como titulo executivo,

[…]


84

Contudo, o ora exequente nunca procedeu à construção da referida garagem (até à presente data),

85

pelo que, também neste sentido, não se verificado a existência de qualquer divida do executado perante o exequente.

86

Assim sendo, o exequente não procedeu, de facto, à realização de qualquer obra, não tendo realizado nenhuma prestação susceptível de pagamento,

87

pelo que, razão nenhuma assiste ao exequente para este se arrogar como credor do executado, invocando-se desde já, a excepção de não cumprimento.

88

Ou seja, mesmo que se entendesse que a emissão e subsequente entrega do cheque correspondia a uma obrigação tal obrigação não pode ser exigida enquanto não se iniciar a construção da garagem acordada.

[…]”

                [transcrição de fls. 16/17]
[5] Desta promessa, datada de 20/06/2006 (junta a fls. 90/91), consta a seguinte cláusula:
“[…]

O preço total a pagar pelos segundos outorgantes [nos quais se inclui o ora Executado] aos primeiros [nos quais se integra o Exequente] pela fracção da moradia em causa é de €150.000,00 que serão pagos da seguinte forma:
€20.000,00 na assinatura do presente contrato, a título de sinal e princípio de pagamento, €25.000,00 em Setembro do ano corrente e o restante será pago aquando da realização da escritura pública que deverá ser outorgada num dos Cartórios Notariais de Viseu até Maio de 2007, com uma tolerância de noventa dias, no caso de surgir algum imprevisto, cujo dia certo os primeiros comunicarão com uma antecedência mínima de oito dias aos segundos.
[…]”
                [transcrição de fls. 90, destaque do preço acrescentado]
[6] Inclui esse contrato-promessa (aqui designado primeiro contrato, sendo ele o de fls. 90/91 que é mencionado na anterior nota) a seguinte cláusula:
“[…]
Haverá um segundo contrato com o valor de venda de €130.000,00 devidamente assinados por todos os outorgantes, com reconhecimento notarial das suas assinaturas para entregar ao Banco…, para efeito do empréstimo que está a ser feito no mesmo, mas só para esses fins, pois o valor é de €150.000,00.
[…]”
                [transcrição de fls. 91]
[7] Como se indicou no texto, refere-se este segundo contrato (também datado de 20/06/2006) ao documento de fls. 92/93, contendo este, quanto ao preço do imóvel, a seguinte cláusula:
“[…]
O preço total a pagar pelos segundos outorgantes [nos quais se inclui o ora Executado] aos primeiros [nos quais se integra o Exequente] pela fracção da moradia em causa é de €130.000,00 que serão pagos da seguinte forma:
€20.000,00 na assinatura do presente contrato, a título de sinal e princípio de pagamento, €25.000,00 em Setembro do ano corrente e o restante será pago aquando da realização da escritura pública que deverá ser outorgada num dos Cartórios Notariais de Viseu até Maio de 2007, com uma tolerância de noventa dias, no caso de surgir algum imprevisto, cujo dia certo os primeiros comunicarão com uma antecedência mínima de oito dias aos segundos.
[…]”
                [transcrição de fls. 92, destaque do preço aqui acrescentado]
A questão dos dois contratos e dos dois preços é explicitada pelo Exequente na sua contestação à oposição nos termos seguintes:
“[…]
13º

O preço de venda do imóvel referido na execução acordado pelas partes foi de € 150.000,00 € (cento e cinquenta mil euro) e não de € 130.000,00. Para tanto,

14º

As partes outorgaram um contrato promessa de compra e venda tendo como objecto o referido prédio, que se junta e se dá aqui por inteiramente reproduzido (Doc. 1). Tão só e porque

15º

Com toda a probabilidade o Banco não financiaria a totalidade do capital necessário à aquisição do imóvel através de crédito à habitação

16º

A pedido do executado e da comproprietária foi efectuado um outro contrato promessa destinado exclusivamente à instrução do processo de crédito bancário (doc. 2).

17º

As cláusulas 3ª e 8ª do documento ora junto sob o nº 1 são lapidares: não só afirmam o preço global contratualizado e sua forma de pagamento

18º

Como declaram a existência de um outro contrato (o Doc. 2 ora junto) destinado a fins exclusivamente bancários, tendo todos os outorgantes renunciado ao reconhecimento notarial das respectivas assinaturas.

19º

Titula, pois, o cheque ajuizado a diferença entre os montantes recebidos e o montante total do preço acordado pelas partes. […]”

            [transcrição de fls. 75/76]
[8] A questão da garagem é explicada pelo Exequente na contestação, sempre dissociando-a do cheque, nos seguintes termos:
“[…]


57º

Anteriormente à assinatura do contrato promessa de compra e venda mas depois do acordo quanto às cláusulas gerais do negócio, preço incluído, e antes do surgimento dos dissensos infra alegados

58º

O executado colocou ao exequente o interesse na construção duma garagem suplementar na moradia. No entanto

59º

Tinha interesse em que tal construção se fizesse apenas após a vistoria e licenciamento camarário, já que a mesma não se encontrava prevista no projecto, e pretendia dar fruição diferente à garagem já existente.

60º

A obra em questão não fazia parte do clausulado da acordada compra e venda pelo preço de € 150.000,00. Porém,

61º

O exequente, atento o reduzido valor dessa alteração em ralação ao valor total da venda – repete-se não compreendida no preço estabelecido – aceitou efectuá-la gratuitamente após tal vistoria. Aliás,

62º

Tal intervenção não custaria mais do que € 2.500,00, conforme orçamento que solicitou para o efeito, se junta e se dá por inteiramente reproduzido, para todos os efeitos legais (Doc. 4).

63º

Valor este mais do que razoável e muito longe do alegado como fundamento da emissão do cheque, aliás, mais do que o valor de uma garagem fechada em imóvel no centro da cidade. Repete-se,

64º

Não se verifica a excepção porque o cheque não se destinava a pagar garagem alguma e muito menos a referida pelo executado. […],
[…]”
                [transcrição de fls. 81/82]
[9] No final da base instrutória, a fls. 122, foi indicado o seguinte: “[d]esde já se alertam as partes para a inadmissibilidade da prova por testemunhas no que se refere aos factos abrangidos pela previsão do artigo 394º, nº 1 e 2 do Código Civil, já que o acordo simulatório e o negócio dissimulado, quanto ao preço da compra e venda, são invocados por um dos simuladores (Exequente) contra outro dos simuladores (Executado)”.
Relativamente a esta questão, no julgamento, durante a inquirição de uma testemunha (na acta a fls. 164), indicou a Exma. Juíza o seguinte: “[d]ecido excluir da prova testemunhal a matéria dos quesitos 30º a 33º, bem como o preço mencionado no quesito 38º da base instrutória, uma vez que os mesmos se referem ao acordo efectuado entre as partes, sendo inadmissível a prova por testemunhas quanto a tais factos nos termos do artigo 394º do Código Civil”.
[10] Estamos a referir-nos aos pontos de vista veiculados por ambas as partes e não a proceder à distribuição do ónus da prova por cada uma delas, questão esta que abordaremos mais tarde neste Acórdão (item 2.3., infra).
[11] Poderia o Apelante tê-lo impugnado desde logo (artigo 691º, nº 2, alínea i) do CPC) ou, eventualmente, no recurso da decisão final (artigo 691º, nº 3 do CPC).
[12] Na motivação do recurso, com expressão condensada na conclusão 6 acima transcrita, a Sentença apelada é caracterizada como nula, por referência ao desvalor da alínea c) do nº 1 do artigo 668º do CPC (fundamentos em oposição com a decisão). Ora, sendo evidente, lendo a motivação, estar na base de tal crítica uma discordância com o sentido do julgamento – não com a construção lógica que conduziu a esse julgamento com aquele sentido –, trataremos este afirmado desvalor decisório como crítica ao sentido da decisão e não como crítica ao acto de elaboração da Sentença.
[13] Que diz:
Artigo 22º
As pessoas accionadas em virtude de um cheque não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador ao adquirir o cheque tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor.
[14] “Nas relações imediatas, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Essa obrigação fica sujeita às excepções que, nessas relações pessoais, se fundamentam.
[…]
O cheque está no domínio das relações imediatas, quando está no domínio das relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato, isto é, nas relações das quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente das convenções extracartulares.
O cheque está no domínio das relações mediatas, quando está na posse duma pessoa estranha às convenções extracartulares.
[…]” (Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme Sobre Cheques anotada, 4ª ed., Lisboa, 1983, pp. 153/155).
[15] Disse-se em sede de fundamentação, abrangendo as três respostas aqui criticadas pelo Apelante:
“[É] consensual que o preço da compra e venda (seja ele o invocado pelo Executado – €130.000,00 –, seja ele o invocado pelo Exequente – €150.000,00) não inclui a garagem «extra» (em relação à prevista no projecto) cuja construção foi acordada entre as partes, é consensual que a construção de tal garagem ficou a cargo do Exequente.
Ora, contraria as regras normais da experiência comum a versão dos factos aduzida pelo Exequente segundo a qual teria oferecido, sem qualquer contrapartida, a dita garagem ao Executado e à companheira, ficando moralmente obrigado a construi-la quando bem entendesse.
Na verdade, não é comum nem é normal um vendedor e/ou construtor oferecer, sem mais, a construção de uma garagem quando – na versão do Exequente – já teria ajustado com os compradores o preço que pretendia pela venda da fracção, ou seja, os €150.000,00 invocados e que, na versão do mesmo, não incluíam a dita garagem.
Já a versão dos factos apresentada pelo Executado e corroborada pela sua companheira, no sentido de que o cheque se destinava a financiar trabalhos extra da responsabilidade do Exequente e a executar depois da celebração da escritura, apresenta, nessa parte, mais consistência e congruências (razão pela qual mereceu credibilidade), permitindo enquadrar a construção da garagem «extra» pelo Exequente na medida em que não é crível, pelas razões atrás expostas, que tal obra, ainda por executar, tenha sido oferecida ao Executado e à companheira [deste] pelo Exequente, sem qualquer contrapartida e limitação temporal para concretização de tal «presente»” (transcrição de fls. 195/196).  
[16] A questão suscitada corresponde à ultrapassagem do conteúdo do documento, numa concreta manifestação nele contida, a respeitante ao preço: o verdadeiro preço seria, portanto, distinto do declarado no próprio documento.
Poderíamos qualificar a situação como simulação (artigo 240º, nº 1 do CC) – porventura poderemos até qualificá-la assim –, afirmando, na perspectiva em que o Exequente coloca as coisas, uma divergência entre uma declaração não real referida ao preço e uma vontade divergente, mas consensual (que representaria a vontade real), extradocumentalmente expressa, quanto a esse preço. Esta visão, pressuporia, todavia, que o elemento aparentado (o preço não verdadeiro) fosse teleologicamente dirigido a enganar o terceiro aqui representado pelo Banco.
Note-se, desde logo, que estamos perante uma situação em que o aprofundamento do significado da divergência como simulação ou como simples convenção contra o conteúdo de um documento acaba por não conduzir a distintos resultados e, nesse sentido, não assume uma relevância particular, tratando-se, como se trata, de expressar uma consequência (exclusão da prova testemunhal) presente nas duas caracterizações (v. o artigo 394º, nº 2 do CC).
Todavia, apontando, em última análise, no sentido da exclusão da abordagem do problema por referência à simulação – se acaso fosse necessário aprofundar o problema –, teríamos, para além de nenhum dos “simuladores” a ter invocado, o elemento significativo, decorrente da prova testemunhal, de o Banco B… ter “afirmado” aqui, pela voz da testemunha … (ex-funcionário do Banco e gestor do empréstimo ao Executado), que o negócio foi intuído pelo Banco como representando um valor global de €150.000,00 (€130.000,00+€20.000,00), repartidos por distintos instrumentos de financiamento (a testemunha falou em empréstimo multifunção), valendo isto pela constatação da inexistência real de um engano, reportado ao Banco, independentemente das razões que pudessem ter estado na base de qualquer das versões aqui colocadas em confronto. 
[17] Note-se que o nosso Código Civil, contrariamente ao que sucede com a Lei italiana (v. os artigos 2722º e 2723º do Codice Civile), não distingue as convenções anteriores ou contemporâneas do documento (artigo 2722º do Código italiano, que proíbe, pura e simplesmente, a prova testemunhal: “[l]a prova per testimoni non è ammesa se há per oggetto patti aggiunti o contraria al contenuto di un documento, per i quali si alleghi che la stipulazione è stata anteriore o contemporanea”) das convenções posteriores à formação do documento (quanto a estas o artigo 2773º do Código italiano permite ao juiz autorizar, em função das circunstâncias, a produção de prova testemunhal: “[q]ualora si alleghi che, dopo la formazione di un documento, è stato stipulato un patto aggiunto o contrario al contenuto di esso, l’autorità giudiziaria puo consentir esa prova per testimoni soltanto se, avuto riguardo alla qualità delle parti, alla natura del contratto e a ogni altra circostanza, appare verosimile che siano state fatte aggiunte o modificazione verbali”, v. Salvattore Patti, “Prova testimoniale. Presunzioni”, in Commentario del Codice Civile Scialoja-Branca, Bolonha, Roma, 2001, pp. 34/56).
[18] V., entre outros exemplos possíveis, o Acórdão do STJ de 16/04/1997 (Carvalho Pinheiro), proferido no processo nº 96S221, disponível na base do ITIJ, directamente, no endereço seguinte:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e942409a567af2b9802568fc003b442c.
No ponto que aqui nos interessa, refere-se no sumário deste:
“[…]
I - É admissível prova testemunhal tendo por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo dos documentos particulares mencionados nos artigos 373 a 379 do CCIV66, quando haja um princípio de prova escrita legitimando a admissibilidade de prova testemunhal complementar, ou quando tenha sido impossível, moral ou materialmente, ao contraente obter uma prova escrita, ou quando se tenha perdido, sem culpa do contraente, o documento que fornecia a prova.
[…]”.
[19] Repete-se aqui a transcrição do teor desta:
“[…]
Haverá um segundo contrato com o valor de venda de €130.000,00 devidamente assinados por todos os outorgantes, com reconhecimento notarial das suas assinaturas para entregar ao Banco B…, para efeito do empréstimo que está a ser feito no mesmo, mas só para esses fins, pois o valor é de €150.000,00.
[…]”
                [transcrição de fls. 91]
[20] Embora existam na prova (em todas as provas produzidas) elementos de sentido contraditório, confirmando e desmentindo cada uma das teses em confronto, o depoimento do ex-funcionário do Banco B…, que actuou como gestor da operação bancária global referida ao Executado – a testemunha … –, denotou conhecimento da situação subjacente aos dois contratos-promessa simultâneos, assumindo que para o Banco o valor global da operação seria de €150.000,00, com o destaque da parcela exorbitante dos €130.000,00 do crédito à habitação. Note-se que a documentação bancária de fls. 171/174 revela a existência, paralela ao crédito à habitação no valor de €130.000,00, de uma operação de crédito ao consumo cujo montante deverá ter sido próximo dos €20.000,00 (v. fls. 174 vº).
[21] A limitação à admissibilidade de prova testemunhal respeitante ao conteúdo de um negócio documentalmente expresso, numa incidência extradocumental (a tal convenção contrária ou adicional ao conteúdo), tem entre nós uma base doutrinária que é comummente aceite (v. o Acórdão indicado na nota 18), decalcada do regime do artigo 2724º do Codice Civile italiano (v. nota 17, supra).
Com efeito, entre nós, na sequência da publicação do Código Civil de 1967, Adriano Vaz Serra, sempre sublinhou a impossibilidade de um “alcance absoluto” da proibição de prova emergente dos artigos 394º e 395º do CC, por referência a uma reconstrução racional interpretativa destas disposições nos casos elencados no Direito italiano no artigo 2724º. Assim, citando esta disposição, referia o Prof. Vaz Serra:
“[…]
 Os artigos 394º e 395º não formulam expressamente excepções às regras neles consignadas.
Mas não quer isso dizer que tais regras sejam sempre aplicáveis, pois da razão de ser destas conclui-se que não têm alcance absoluto, havendo que ressalvar algumas hipóteses em que a prova testemunhal será admissível apesar de ter por objecto uma convenção contrária ou adicional ao conteúdo do documento.
[…]” (anotação na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103º/1970, p. 13).
[22] Que em sede de recurso não contestou a asserção decisória presente no despacho de fls. 164 (v. nota 12, supra) e argumentou, ao indicar, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 690º-A do CPC, os meios de prova que impunham decisão diversa, por referência exclusiva à interpretação da prova documental.
[23] Na prática, todas as testemunhas, dos dois lados da prova, acabaram por ser perguntadas quanto ao preço da moradia e à funcionalidade do cheque relativamente a esse preço, acabando por se referir a essas questões – a Exma. Julgadora, embora tenha começado por cortar essas perguntas, acabou, na prática, por tolerar referências a essas situações que, em certo sentido se traduziram em respostas a essa matéria –, acabando assim as testemunhas por fornecer ao Tribunal o que se lhes oferecia dizer a tal respeito, mesmo quanto isso passava, como quase invariavelmente sucedeu, por uma afirmação de ignorância de qual teria sido o preço e o fim da emissão do cheque, ou pela transmissão do que uma ou outra parte lhes teria indicado a tal respeito, configurando esses depoimentos como absolutamente indirectos.
[24] Directa interessada no resultado da acção e cujo depoimento deve ser encarado com um estatuto substancial idêntico ao de um depoimento de parte, totalmente imprestável para provar factos favoráveis a quem depõe.
[25] Prova por confissão do Exequente (v. a assentada de fls. 161 quanto ao quesito 1º) e, também, prova testemunhal.
[26] Na prática responde-se não provado aos quesitos 2º e 40º (cfr. a resposta remissiva dada a este último pelo Tribunal a quo a fls. 190).
[27] Deixa de existir aqui a seguinte asserção de facto: “[o] cheque emitido destinava-se, pelo menos em parte, ao pagamento do preço devido pela construção de uma garagem exterior à moradia, a executar pelo Exequente ou a mando deste” (transcrição de fls. 207).
[28] Optámos aqui, apreciando nesses termos o recurso incidente sobre a matéria de facto, por uma visão “[…] ampla sobre a natureza e a intensidade do padrão de controlo efectuado pela Relação sobre a decisão da 1ª instância respeitante à matéria de facto”, visão (ampla) esta que corresponde ao paradigma indicado por J. P. Remédio Marques, como “[…] tese do poder-dever da Relação formar uma convicção própria sobre os factos impugnados” (v. “Um breve olhar sobre o duplo grau de jurisdição em matéria de facto”, in Cadernos de Direito Privado, número especial 01, Dezembro, 2010, pp. 80/90).
[29] Como se refere no Acórdão do STJ (Hélder Roque) de 14/07/2009, proferido no processo nº 379/09.9YFLSB, disponível no sítio do ITIJ, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c90b3574f4ebdc3d802575f600315d12:
“[…]
I - Tratando-se de oposição à execução baseada em título executivo extrajudicial, pode o oponente invocar, sem qualquer limite temporal, todas as causas impeditivas, modificativas ou extintivas do direito do exequente, e até, por vezes, negar os factos constitutivos do mesmo direito, achando-se na mesma posição em que se encontraria perante a petição inicial de uma acção declarativa.
[…]” (transcrição do sumário).
[30] Subjaz aos artigos 342º do CC e 516º do CPC, a construção teórica chamada “teoria das normas”. Tal teorização tem origem nos trabalhos do processualista alemão Leo Rosenberg (1879-1963), no início do Século XX, e já foi qualificada como “direito consuetudinário mundial”, assentando na consideração “[…] de que nenhuma norma pode ser aplicada sem que o juiz se convença da verificação de todos os seus pressupostos [, extraindo-se] daí que a recusa de aplicação sucederá tanto quando o juiz se convença da não verificação de um ou mais dos elementos da facti species (Tatbestand) da norma a aplicar, quanto quando o juiz não se convença quanto à sua não verificação. Quer isso dizer, então, que «a parte cuja pretensão processual não pode ter sucesso sem a aplicação de determinada norma jurídica suporta o ónus da alegação e da prova de que os elementos da facti species dessa norma se verificaram de facto na situação» […]” (Pedro Ferreira Múrias, Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 18 e 43/44; importa sublinhar que este Autor expõe a chamada “teoria das normas” numa perspectiva crítica, caracterizando-a como inadequada a uma série de situações, o que, todavia, não sucede com o absoluto fracasso probatório da A. que aqui nos cumpre apreciar).
“No caso de um non liquet – portanto: de não se ter podido apurar, afinal, o que aconteceu, com referência aos factos em litígio – o juiz ficaria, na falta de outra regra, impedido de proceder quer à aplicação positiva, quer à negativa. Mas a decisão não pode ser omitida. O ónus da prova torna-se, nessa altura, numa norma de decisão do caso. E a decisão cairá contra quem, invocando os factos decisivos, não logre demonstrá-los “ (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Coimbra, 2005, p. 466).
Não obstante a perspectiva crítica que tem da “teoria das normas”, é adequado citar aqui a caracterização que faz Pedro Ferreira Múrias do conceito de “normas de decisão”: “[…] as normas do ónus da prova, em cuja facti species se encontra a incerteza processual sobre um elemento que preenchesse a previsão da norma material […, são] normas de decisão […], são «quanto à questão da [sua] eficácia», apenas um meio auxiliar da decisão de mérito que autoriza o juiz a decidir como se tivesse obtido um resultado positivo ou negativo quanto à verificação de certo facto, i. e., através da ficção […]” (Por Uma Distribuição Fundamentada…, cit., pp. 62/63).
[31] Proferido no processo nº 2971/07.7TBAGD-A.C1.S1, disponível na base do ITIJ, directamente, em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0999c8be160b482c8025783a00327bfb.
No que aqui interessa regista este aresto o seguinte sumário:
“[…]
2. O ónus da prova dos factos invocados como fundamento da oposição à execução rege-se inteiramente pelas regras gerais estabelecidas, desde logo, no art. 342º do CC, cabendo ao executado que deduz oposição a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos que, mediante defesa por excepção, opõe à pretensão do exequente e a este a prova dos factos constitutivos do direito exequendo, impugnados pelo executado, em termos de abalar a força probatória de primeira aparência que dimanava do título executivo.
3. A aplicação das regras substantivas, definidas para a prova documental no art. 374º do CC, conduz a que – impugnando o executado/opoente a assinatura do documento particular não reconhecido notarialmente, sustentando que ela lhe não pertence ou que – quando tal assinatura lhe não seja imputada – não sabe se é verdadeira, passe a recair sobre o apresentante de tal documento – ou seja, sobre o exequente – o ónus de prova da veracidade da assinatura impugnada.

[…]”
[32] Como observa Pedro Romano Martinez:
“A construção e a transferência da propriedade de edifícios (em especial, andares e moradias) podem estar relacionadas com um contrato de promoção imobiliária.
Considera-se promotor imobiliário aquele que constrói, por conta própria ou mediante contrato de empreitada, o prédio e promove a sua venda, normalmente por andares, antes ou depois da respectiva construção” (Direito das Obrigações, Coimbra, 2000, p. 311).
A especificidade desta situação contratual, não obstante ela se expressar, algo indiferenciadamente, num simples contrato de compra e venda celebrado entre o “promotor” e o adquirente do imóvel, a especificidade desta situação, dizíamos, decorre da combinação na mesma pessoa (o promotor imobiliário), relativamente ao comprador, da qualidade, própria ou alcançada através de terceiro, de construtor com a de vendedor, sendo que, no que tange ao primeiro elemento circunstancial (ser o vendedor o construtor), o modelo da empreitada se apresentar, no caso de defeitos do imóvel, como o mais adequado. A tendência da jurisprudência portuguesa distanciou-se, na não consideração autónoma desta figura da promoção imobiliária, do caminho seguido noutras ordens jurídicas, sendo esta a razão da compatibilização dos prazos de garantia entre a compra e venda e a empreitada, estando em causa imóveis, nos termos decorrentes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 267/94 aos artigos 916º e 1225º do CC (v. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, cit., pp. 311/314; cfr., do mesmo Autor, antes da edição do Decreto-Lei nº 267/94, Cumprimento Defeituoso. Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra, 2001, pp. 153/157).
Neste sentido – embora na situação inversa –, v. o Acórdão desta Relação de 31/05/2011, proferido pelo ora relator, no processo nº 2672/07.6TBAGD.C1, disponível na base do ITIJ, directamente, no endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/8538bc279cde6cfe802578af004ea041.