Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45/07.0GASJP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: ARGUIDO
CONSTITUIÇÃO
INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 01/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – JIC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 58º, N.º 1, AL. A) , 272º,287º DO CPP
Sumário: 1. Com as alterações introduzidas ao CPP pela Lei n.º 48/2007, de 29-8, a constituição de arguido em inquérito deixou de ter carácter automático .
2. O Juiz, o Ministério Público ou o órgão de polícia criminal não têm de constituir arguida e interrogar como tal a pessoa determinada contra quem corre inquérito se não houver suspeita fundada da prática de crime.
3. A falta de constituição de arguido não inviabiliza o requerimento de abertura de instrução do assistente contra pessoa denunciada.
4. Relativamente à identificação da pessoa a quem são imputados os factos no requerimento de abertura de instrução é admissível o convite ao seu aperfeiçoamento.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

R..., assistente nos autos, veio interpor recurso do despacho judicial, de fls. 344/347 que, por inadmissibilidade legal da instrução, rejeitou o requerimento para abertura de instrução por si apresentado.

São as seguintes as conclusões da motivação de recurso:
I- O Assistente, na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, requereu tempestivamente a Abertura de Instrução, na qual narrou os factos plenamente censuráveis, dando indicações tendentes à identificação de quem os cometeu, e para tal apresentou e requereu a correspondente produção de prova.
II- Tal requerimento veio a ser rejeitado pelo Exmo. Juiz de Instrução a quo, em síntese, com os seguintes fundamentos: "em face da falta de constituição de arguido nos autos e da falta de identificação do mesmo no requerimento de abertura de Instrução, sem saber quem pretende o assistente ver pronunciado, sendo que a identificação do arguido não pode caber ao Tribunal de acordo com a interpretação que o Tribunal faça dos elementos constantes dos autos ". Entendeu igualmente não ser admissível o convite ao aperfeiçoamento para suprir a falta de identificação do arguido por contender com o direito de defesa do erguido.
III- Mau grado, infortunadamente, se ter omitido o nome do agente (Dr. A...), que se pretende ver pronunciado em sede de Instrução, a verdade é que não existe a menor dúvida acerca da pessoa contra quem se pretende ver prosseguido procedimento criminal, por via da acusação que deduziu no seu requerimento instrutório, posto que do texto onde constam os fundamentos para a abertura de instrução se deduz claramente que se trata do Dr. A....
IV- Em causa está, como se reconhece na decisão recorrida, unicamente da falta de identificação do arguido, requisito da alínea a) do n.º 3 do art. 283°, para o qual não há qualquer remissão daquele art. 287°.
V- Na elaboração da acusação, impõe-se somente que constem as indicações tendentes à identificação do arguido, que o recorrente produziu no teor do seu requerimento relativamente ao suspeito Dr. A..., nos termos constantes no venerando Ac. do T.R.L, de 03-02-2010, no âmbito do proc. n.º 3261/08.3TDLSB.Ll-3 em que é Relator o Mmo. Juiz Desembargador Fernando Estrela: A alínea a) do actual n.º 3 do art. 2830 do CPP, não refere "nome ", nem a "identificação", mas apenas as "indicações tendentes" à identificação do arguido. É uma redacção de caso pensado. Essencial é que não haja equívocos quanto à pessoa que se quis acusar."
VI- No caso em presença, não há, nem pode haver, equívocos, quanto à pessoa contra quem se dirige a acusação do assistente, porquanto são apresentadas no requerimento de abertura de Instrução diversas indicações tendentes à identificação do suspeito, as quais se transcrevem na motivação, de que são exemplo:
a) ..... ao denunciado não restava outra alternativa que não fosse deixar que a mesma continuasse com a medicação, (...) e não, como fez, mandar suspender a sua toma,";
b) "O próprio denunciado, em declarações realça que (...)";
c) "(...) a vítima passou a ser seguida na Casa de Saúde de S. X... pelo médico aqui arguido (...)"
d) "Na consulta de 16/04/2007, (...) foi atendida pelo médico arguido (...)".
VII- Aquando da denúncia não conhecia o ofendido a verdadeira identificação do denunciado, apenas sabendo-se que a falecida mulher do ofendido, em consulta na Clínica S. X... em Viseu, foi aconselhada pelo médico que aí a assistiu a reduzir o período de toma das injecções que estava à data a tomar.
VIII- No despacho de arquivamento figuram, de forma especificada, os elementos tendentes à identificação do suspeito da prática dos factos criminosos, referindo-se por diversas vezes o nome do suspeito, Dr. A...
IX- As provas solicitadas no requerimento de abertura de instrução, juntamente com as solicitadas em sede de Inquérito, são essenciais para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa, e nomeadamente para a identificação correcta da pessoa do suspeito e da ilicitude da sua actuação, concretamente, a prova documental e testemunhal.
X- O Tribunal a quo rejeitou o requerimento de abertura de instrução sem diligenciar no sentido de apurar a veracidade dos factos descritos no requerimento, não obstante a prova produzida e as declarações prestadas em inquérito pelo agente suspeito da prática dos factos criminosos, em violação do estatuído no n.º 1 do art. 286º e no n.º 1 do art. 292º, ambos do Cód. Processo Penal, e do princípio da Investigação ou da Verdade Material.
XI- Havendo suspeito na fase do inquérito, de quem aliás se fala no despacho de arquivamento a ele se aludindo no requerimento de abertura de instrução e na acusação que nele se formula, não podia, como se fez na decisão sob censura, ignorar-se esse dado, fazendo de conta que o mesmo não existiu, aludindo a que se desconhece a quem o assistente se queira referir, sob pena de com fundamento num puro formalismo, se pôr gravemente em causa os direitos do ofendido, enquanto titular de interesses legítimos que carecem de tutela penal.
XII- Sendo certo que o Inquérito decorreu sem constituição de arguido, apesar da obrigatoriedade imposta pelo n.º 1 do art. 58°, na actual versão da Lei na 48/2007, de 29 de Agosto que alterou o Cód. Processo Penal (afinal correu Inquérito contra pessoa determinada em relação à qual há suspeita fundada da prática de crime e este ter prestado declarações perante autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal), ainda assim não fica inviabilizada a abertura de instrução.
Neste sentido se pronunciou, de resto este Tr. Relação, em seu aresto de 25-11-­2009, no processo n.º 3906/08.5TAMTS.P1, em que foi relator o Mmo. Juiz Desembargador António Gama, ao referir: "… a falta de constituição como arguido durante o inquérito não inviabiliza, (...) o requerimento de abertura de instrução por parte da assistente contra a pessoa denunciada. (…) O requerimento de abertura de instrução de assistente pode visar uma pessoa que não é arguido mas meramente suspeito ou denunciado no inquérito que o Ministério Público arquivou. Esse requerimento de abertura de instrução não pode ser, por essa razão, indeferido, já que não configura "inadmissibilidade da instrução», art. 287º, n.º 3 do Código de Processo Penal, antes tem como consequência que aquele contra quem foi requerida e admitida a abertura de instrução assume automaticamente a qualidade de arguido, art. 57º, n.º 1 do Código de Processo Penal"; Sob pena de, a assim não se considerar, não fazer qualquer sentido lógico o disposto no n.º 1 do art. 57º do Cód. Processo Penal, no que à fase de instrução diz respeito.
XIII- Contrariamente ao defendido na decisão recorrida, a Jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, e citada pelo Exmo. Juiz de Instrução a quo no despacho recorrido, a qual consta do Acórdão n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005 (publicado no Diário da República I-A. de 04-11-2005), em nada contende com o cerne da problemática ora em recurso, porquanto, o que aqui se discute é a questão da identificação do arguido nesse requerimento, e, salvo melhor opinião, tal decisão jurisprudencial não impede o convite ao aperfeiçoamento de outras deficiências.
XIV- Neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 03 de Fevereiro de 2010, no âmbito do processo n.º 3261/08.3TDLSB.Ll-3. no qual foi Relator o Mmo. Juiz Desembargador Fernando Estrela, ao sustentar o convite ao aperfeiçoamento como a solução mais adequada em situação semelhante ao pugnar: "É, a nosso ver, esta a solução que melhor concilia o direito de "acesso à Justiça" (...) não restringindo, de forma insuportável, os direitos das vítimas, lesados ou ofendidos (...)".
XV- A considerarem-se inexistirem no requerimento de abertura de instrução as indicações tendentes à identificação do arguido, o que não se concede, tal omissão constitui, quando muito, mera irregularidade, com os efeitos cominados no art. 123º do Cód. Processo Penal, pelo que deveria ter sido o ora recorrente notificado para completar aquele requerimento.
Pelo exposto,
XVI- O douto despacho recorrido, ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da Instrução, atento o preceituado no n.º 3 do art. 287º do Cód. Processo Penal, violou o disposto, entre outros, nos artigos 287º, n.º 2 e 283°, n.º 3, al. a), do Cód. Proc. Penal.
Termos em que e nos demais de direito, face aos concretos fundamentos invocados deve ser dado provimento ao recurso, e por via dele, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que ordene a abertura da instrução e que convide o assistente, ora recorrente, ao seu aperfeiçoamento, no que aos elementos tendentes à identificação do suspeito concerne com referência à identificação que consta do inquérito em relação ao cidadão Dr. A..., tudo com as legais consequências.
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A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido apresentou resposta, pronunciando-se pela procedência do recurso por considerar que «o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, ainda que deficitário no que se refere à identificação do arguido, cumpre com as exigências supra referidas uma vez que da factualidade descrita constam “indicações tendentes à identificação do arguido” como legalmente se impõe».
E, nesta instância a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no mesmo sentido.
Os autos tiveram os vistos legais.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
Consta do despacho recorrido:
No termo do Inquérito a que respeitam os presentes autos o Ministério Público proferiu, nos termos do disposto no artigo 277°, n.º 2 do Código de Processo Penal, o despacho de arquivamento de fls. 302 a 307 relativamente à queixa apresentada pelo assistente R..., por factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punido nos termos do disposto nos artigos 137º, n.º 1, ex vi artigo 150º, ambos do Código Penal a fls. 49 e ss., por considerar que não foram coligidas provas que permitam imputar ao (s) médico (s) assistente (s), nomeadamente ao médico que a assistiu I... na Casa de Saúde (Dr. A...) a responsabilidade, a título negligente, da sua morte por embolia pulmonar, não sendo de concluir que face à prova coligida fosse de prever que àquele, em sede de julgamento, viesse a ser aplicada uma pena.
O assistente R..., na sequência do despacho de arquivamento dos autos, requereu a fls. 311 e segs. a abertura de Instrução, por estar em total e frontal desacordo com o Ministério Público com o despacho de arquivamento proferido nos autos, aduzindo os fundamentos aí expostos, designadamente que se mostram indiciariamente preenchidos os elementos constitutivos dos crimes imputados ao arguido.
Estatui o artigo 287°, n.º 1, alínea b) do Código do Processo Penal que a abertura de Instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Publico não tiver deduzido acusação.
O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, e de acordo com o disposto no artigo 287º, n.º 2 do Código do Processo Penal, “deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente a (…) não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar”.
Deve ainda o requerimento apresentado pelo assistente, (na redacção introduzida pela Lei n.° 59/98), obedecer aos requisitos estabelecidos nas alíneas b) e c) do artigo 283° do Código do Processo Penal para a acusação deduzida pelo Ministério Publico, ou seja, deve conter “a indicação das disposições legais aplicáveis” e “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
O requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, em caso de arquivamento pelo Ministério Publico, equivalerá em tudo a uma acusação que nos mesmos termos que a acusação formal (seja pública ou particular) condiciona e limita a actividade da investigação do juiz e a decisão instrutória, como resulta, designadamente, do disposto nos artigos 303°, n.° 1 e 309°, n.° 1, ambos do Código do Processo Penal (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, págs. 125 e segs).
Na decisão instrutória a proferir em instrução requerida pelo assistente (e nos actos a realizar no decurso desta) apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para abertura de instrução (ressalvada a hipótese a que se refere o artigo 303° do Código do Processo Penal de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade: artigo. 309°, n.° 1, do Código do Processo Penal (traduz este regime legal uma decorrência do principio da estrutura acusatória do processo penal, consagrado no artigo 32°, n.° 5, da Constituição da República Portuguesa).
O requerimento de abertura da instrução tem de conter todos os elementos de facto e de direito necessários à aplicação de uma pena aos arguidos. Sem remissões seja para onde for, designadamente para o despacho de arquivamento do inquérito.
Como resulta da análise do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, constata-se que contém efectivamente a narração circunstanciada de factos que podem fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, as normas jurídicas aplicáveis e as razões de discordância em relação ao despacho de arquivamento.
No entanto, o aludido requerimento não contém, em parte alguma, a identificação do arguido, sendo que no requerimento de fls. 49 e ss. não identifica o assistente o arguido.
No âmbito do inquérito não houve lugar à constituição de arguido, sendo que, somente no despacho de arquivamento, designadamente a fls. 307, se faz alusão ao (s) médico (s) assistente (s), referindo-se, de entre eles o médico que assistiu I... na Casa de Saúde, como sendo o Dr. A....
Fica assim o Tribunal, em face da falta de constituição de arguido nos autos e da falta de identificação do mesmo no requerimento de abertura de instrução, sem saber quem pretende o assistente ver pronunciado, sendo que a identificação do arguido não pode caber ao Tribunal de acordo com a interpretação que o Tribunal faça dos elementos constantes dos autos.
O requerimento revela-se assim insuficiente e imperfeito no sentido de permitir concluir qual o agente dos factos.
Estabelece o n.° 3 do artigo 287º do Código do Processo Penal que “o requerimento [para abertura de instrução] só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do Juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.
Ora, concluindo, do requerimento de abertura de instrução, não consta, designadamente a completa identificação da(s) pessoa(s) a submeter a julgamento, ficando os eventuais arguidos sem saber do que têm de defender-se, o que não se afigura admissível.
Não se mostra admissível o convite ao aperfeiçoamento do referido requerimento. Com efeito, uma decisão que convidasse o requerente a apresentar novo requerimento para abertura de instrução contrariaria o princípio da estrutura acusatória do processo penal, consagrado no artigo 32°, n.° 5, da Constituição da República Portuguesa (neste sentido, Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.02.2000, in CJ, I, pág. 153, de 03.10.2001 e de 31.01.2001, disponíveis no sítio www.dgsi.pt; cfr. também Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.05.93, cit. supra e Acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 11.04.02, in CJ, II, pág. 147).
Ainda que assim não se entendesse, sempre a apresentação de novo requerimento, corrigido, contenderia com o direito de defesa do arguido no caso de tal requerimento não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação.
Com efeito, constitui matéria assente que o prazo para requerer a abertura da instrução é um prazo peremptório (cfr. Acórdão Para Fixação de Jurisprudência n.° 2/96, de 06.12.1995, in DR-IS-A, de 10.01.1996).
Ora, como esclareceu o Tribunal Constitucional em Acórdão de 30.01.2001 (DR, II-Série, de 23.03. 2001), “ (…) nos casos de não pronúncia de arguido e em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente – e que deve revestir a forma de uma verdadeira acusação – não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação”.
De referir ainda que o STJ, por acórdão de 12 de Maio de 2005, in DR, I-A, de 4 de Novembro de 2005, fixou jurisprudência nos termos seguintes: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287°, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Consequentemente, não poderia haver lugar ao convite.
Por todo o exposto, por inadmissibilidade legal da Instrução, rejeito o requerimento apresentado pelo assistente.
Custas a cargo do assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.
Notifique.
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APRECIANDO
Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, as questões suscitadas consistem em saber se o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, ora recorrente, foi elaborado em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 287º do CPP e se é admissível o convite ao seu aperfeiçoamento.
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A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º do CPP).
Ao lançar mão da instrução, quando o MP se abstém de acusar, o assistente promove uma verdadeira fiscalização da legalidade da actuação do MP, atribuindo-lhe o legislador legitimidade para submeter aquela apreciação à jurisdição ( - Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, pág. 140.).
De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 287º do CPP o requerimento para a abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar. E, tratando-se de requerimento do assistente, deve o mesmo conter a narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis (art. 283º, n.º 3, alíneas b) e c) do CPP).
Tal significa que, tendo o MP arquivado o inquérito, o requerimento do assistente para a abertura da instrução vai funcionar como uma acusação, no sentido de que vai delimitar o objecto do processo, traçando os limites dentro dos quais se vai desenvolver a actividade investigatória e cognitiva do juiz de instrução. Daí, as citadas exigências das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º, sob pena de nulidade.
Este é, aliás, o entendimento que resulta do disposto nos artigos 303º, n.º 3 e 309º do CPP, onde se proíbe a pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura da instrução.
O assistente não pode requerer a instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que aquela deve versar, sob pena de se tornar inexequível, ficando o juiz sem saber sobre que factos aquele deseja que se produza prova ( - Souto Moura, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 120 e 121.).

Já quanto à identificação do arguido, estabelecia o CPP de 1929 no artigo 359º, 2º que «A querela deverá conter o nome do arguido, sua profissão e morada, quando conhecidos, e quaisquer outras indicações necessárias para determinar a sua identidade».
Após a revogação do CPP/29 pelo DL n.º 78/87, de 17-2 e, sobre esta concreta questão, passou-se a exigir que «a acusação contenha, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à identificação do arguido» - artigo 283º, n.º 3, al. a) (redacção que se mantém até aos dias de hoje).
Como escreveu Maia Gonçalves ( - Código de Processo Penal anotado, 1987, pág. 355.) “A expressão indicações tendentes à identificação do arguido, e não simplesmente identificação do arguido, pode afigurar-se de algum modo enigmática. Foi, porém, usada de caso pensado, visando resolver aqueles casos em que se não sabe ao certo qual é a identificação do arguido. Em tais casos a acusação descreverá as indicações que tiver ao seu dispor e que identifiquem o arguido: sexo, altura, peso, cor, idade aproximada e outras características, incluindo sinais particulares”.
“A lei basta-se com uma identificação que permita ter por seguro que o indivíduo acusado é um certo e determinado e que não haverá possibilidade de confusão com qualquer outra pessoa. Por outras palavras: o que importa é que a acusação permita identificar correcta e concretamente o arguido. Sendo assim, é admissível que a acusação não contenha todos os elementos de identificação pessoal do arguido, bastando que contenha - devendo conter - os elementos que permitam identificá-lo, por forma a que não haja dúvidas de que é ele - e não outro - a pessoa a quem se imputam os factos constantes da acusação e que devem ser julgados” – cfr. entre outros Acs. RL de 16-3-06, proc. n.º 1666/06-9 e de 10-11-05, proc. n.º 10230/04-9, in www.pgdlisboa.pt/pgdl.
No que respeita ao requerimento de abertura de instrução, remetendo o n.º 2 do artigo 287º para as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º, e não para a alínea a), tal significa que não se deverá ser mais exigente do que na dedução da acusação onde é necessária as indicações tendentes à identificação do arguido.

Na situação em apreço, o assistente ao requerer a instrução pretendia contrariar os fundamentos da decisão de arquivamento do MP (fls. 302/307), segundo a qual “não foram coligidas provas que permitam imputar ao(s) médico(s) assistente(s), nomeadamente ao médico que assistiu I... na Casa de Saúde (DR. A...) a responsabilidade, a título negligente, da sua morte por embolia pulmonar, não sendo de concluir que face à prova coligida fosse de prever que àquele, em sede de julgamento, viesse a se aplicada uma pena”.
De realçar que neste despacho de arquivamento se refere que “a paciente passou a ser seguida na Casa de Saúde de S. X..., pelo Dr. A...”.
No requerimento que apresentou, o assistente descreveu determinada conduta que genericamente imputou ao arguido, sem concretamente indicar o seu nome (tendo a dado passo (fls. 316) referido “Após a alta daquele hospital a vítima passou a ser seguida na Casa de Saúde de S. X... pelo médico aqui arguido (…)” e que integraria o crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137º, ex vi do artigo 150º, ambos do Código Penal.
Ora, se os poderes de cognição do juiz estão limitados pelo que consta do requerimento para abertura da instrução, face à estrutura acusatória do processo penal e procurando-se assegurar as garantias de defesa do arguido (protegendo-o contra a alteração ou alargamento do objecto do processo), e do contraditório, a instrução tem de ser dirigida contra pessoas certas (art. 32º, n.ºs 4 e 5 da CRP).
Também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6º, n.º 3) impõe que o acusado seja informado de todos os elementos necessários para que possa preparar a sua defesa, isto é, não só os factos materiais que lhe são imputados (causa da acusação), mas também a sua qualificação jurídica (natureza da acusação) ( - Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, I, pág. 367-368.).

O despacho recorrido considerou que o requerimento de abertura de instrução se revela insuficiente e imperfeito no sentido de permitir concluir qual o agente dos factos, por não ter identificado o arguido e, tendo ainda em conta que no âmbito do inquérito não houve lugar à constituição do arguido; e acrescenta que não se mostra admissível o convite ao aperfeiçoamento do referido requerimento, tendo citado designadamente o Acórdão do STJ de fixação de jurisprudência de 12-5-2005, publicado no DR, I-A, de 4-11-2005.

Sobre a constituição de arguido:
Com as alterações introduzidas ao CPP pela Lei n.º 48/2007, de 29-8, a constituição de arguido em inquérito deixou de ter carácter automático pois, nos termos conjugados dos artigos 58º, n.º 1, al. a) e 272º, n.º 1 o juiz, o Ministério Público ou o órgão de polícia criminal não têm de constituir arguida e interrogar como tal a pessoa determinada contra quem corre inquérito se não houver suspeita fundada da prática de crime.
Na situação em apreço, no âmbito do inquérito não houve lugar à constituição do arguido e, não foi deduzida a acusação, pelo que nos termos do que dispõe o artigo 57º, n.º 1 do CPP assume a qualidade de arguido aquele contra quem for requerida e admitida a instrução.
Afigura-se-nos assim, que a falta de constituição de arguido não inviabiliza o requerimento de abertura de instrução do assistente contra pessoa denunciada – cfr. Ac. RP de 25-11-09, proc. n.º 3906/08.5, in www.dgsi.pt.

Por outro lado, discordamos do despacho recorrido quando refere que não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento que apresentou.
Segundo o entendimento ali expendido, a admitir-se a possibilidade do convite ao aperfeiçoamento, o mesmo iria colidir com o carácter peremptório do prazo previsto no n.º 1 do artigo 287º do CPP, visto que o prazo de 20 dias iria ser alargado, o que constituiria uma violação das garantias de defesa do arguido.
Acresce que, o citado Acórdão do STJ, n.º 7/2005, de 12-5-2005 (publicado no DR, I Série-A, de 4-11-2005), que fixou jurisprudência no sentido de que «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido», não é aplicável aos presentes autos porquanto não está aqui em causa a omissão da narração dos factos, mas sim a identificação da pessoa a quem são imputados os factos descritos no aludido requerimento.
Como escreveu Maia Gonçalves ( - Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 16ª Ed., 2007, pág. 630.) “Em nosso entendimento, se o requerimento para abertura de instrução não indicar os factos integradores da infracção criminal, a Instrução será inexequível e, talqualmente sucede no caso de acusação que não inclua factos, não haverá lugar a convite para que o requerimento seja completado ou aperfeiçoado. O Pleno das Secções Criminais do STJ fixou Jurisprudência neste sentido, como se sumaria na anot. 8. Tratando-se de outra deficiência, o Juiz deverá proceder do seguinte modo: quanto ao assistente notificá-lo para que complete o requerimento com os elementos que omitiu e que não deveria ter omitido (art. 287º, n.º 3). Se o assistente não completar o requerimento, o Juiz não procederá à Instrução”. Entendimento com o qual concordamos.

Por conseguinte, considerando que o requerimento apresentado pelo assistente contém “indicações tendentes à identificação do arguido”, que a falta de constituição de arguido não inviabiliza o requerimento de abertura de instrução do assistente contra pessoa denunciada, e que relativamente à identificação da pessoa a quem são imputados os factos no requerimento de abertura de instrução é admissível o convite ao seu aperfeiçoamento, procede a argumentação do recorrente.
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III - DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- Conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, devendo convidar-se o requerente/recorrente a identificar a pessoa a quem imputa os factos descritos no requerimento de abertura da instrução.
Sem tributação.

ELISA SALES (Relatora)
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