Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
735/16.6T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
MUNICÍPIO
Data do Acordão: 11/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JC CÍVEL 
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 212 CRP, 99, 577 CPC, ART.4 ETAF
Sumário: 1.- Em sede de aferição do tribunal materialmente competente, se o comum, ou, antes, o administrativo, o que importa é ter em atenção qual a relação jurídica que está na base do litígio e qual a natureza das normas que a disciplinam, e tal como se mostra aquela, configurada nos autos pelos recorrentes. Nesta vinculação se fazendo relevar, não obstante, que as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis.

2.- O que determina, obrigatoriamente, para aferir da competência de um tribunal, é haver que considerar a identidade das partes e os termos em que a acção é proposta, devendo atender-se à natureza da pretensão formulada, ou do direito para o qual o demandante pretende a tutela jurisdicional, e ainda aos factos jurídicos invocados dos quais emerge aquele direito, ou seja, ao pedido e à causa de pedir.

3.- Mesmo em relação às entidades de direito privado, é-lhes aplicável o regime da responsabilidade civil do Estado, desde que estejam em causa acções ou omissões levadas a cabo "no exercício de prerrogativas de poder público, ou que sejam regulados por disposições, ou princípios, de direito administrativo”.

4.- A delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou de se estribar na distinção tradicional entre "actos de gestão pública" e "actos de gestão privada", para passar a fazer-se com abstracção da natureza das normas que materialmente regulam, bastando que "a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento de direito público”.

5.- Por conseguinte, quando não esteja expressamente atribuída por lei a qualquer jurisdição, toda a questão cível e criminal é julgada pelos tribunais judiciais e toda a questão administrativa e fiscal é julgada pelos tribunais administrativos e fiscais. Não vale, assim, para a matéria administrativa e fiscal a previsão do artigo 211º, n.º 1, da Constituição (e do artigo 66.° do CPC – 64º NCPC), segundo a qual os tribunais judiciais "exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais". A matéria administrativa e fiscal está, na verdade, desde logo atribuída, em bloco, à ordem jurisdicional administrativa e fiscal pela própria Constituição, no artigo 212.º, n.º 3.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

S (…), M (…), melhor identificados nos autos em epígrafe, não se conformando com a sentença, dela vieram interpor recurso de Apelação, alegando e concluindo que:

1- Sobre a tábua dos factos assentes a presente ação, o Tribunal Comum é o Tribunal competente para dirimir o litígio supra exposto;

2 – A competência material do Tribunal afere-se em face da natureza da relação jurídica material controvertida em litígio. Tal como a apresentam os autores, demandantes (conforme estribado nos acórdãos preditos) e plasmados já em requerimentos pretéritos nos autos.

3 – A presença do Município, apenas opera enquanto órgão que age em paridade com o cidadão comum, destituído de Ius imperium

4 – Conforma escalpelizado nos requerimentos precedentes, apresentados nos autos e ancorados em acórdãos, onde se denota a competência do Tribunal comum, indubitavelmente.

5 – Os pedidos peticionados pelos autores cinge-se a ser o réu J (...) a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre as águas comuns, ser condenado a repor a situação – status quo anterior que destruíram, pois do mesmo lado da estrada o poço encontra-se e rega a parte do réu e bem assim a do autor que aliás o réu impediu a rega (sem interferir com o município).

- A água do furo, urge ter o autor acesso à mesma, a fim de o limpar, reparar, e verificar o local. Aliás, de onde provém a água doméstica para uso em casa (única água potável que tem em casa o autor)

- Que não impeçam os réus a passagem no terreno dos réus, para acompanhar a limpeza da nascente, poço, mina, pressão que se encontra no terreno dos réus.

- Condenar os réus à abertura do rego que destruíram;

- Furos e canos, cabos elétricos, sejam passados no terreno do réu sem colidir com a estrada;

- Condenar J (…) a indemnizar por corte de cabos, canos e tubagens;

- Condenar o réu, J (…) a respeitar o direito à água por parte do autor;

- Os autores tenham direito à propriedade dos réus, onde se encontram as águas exploradas e captadas;

- Condenar o réu, J (…) a realizar obras que destruíram ao autor;

- Condenar o réu, J (…), a executar obras no telhado;

- Reconhecer o réu, J (…)  a manter dias de rega.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências e assim se fazendo Justiça.

*

Legal e tempestivamente notificados, para o efeito de requerimento de interposição de recurso, P (…) e outros, RR. nos autos supra identificados, em que é A. S (…), vieram apresentar as suas  contra-alegações, por sua vez concluindo que:

I. A sentença não merece qualquer reparo.

II. Considerando que os direitos invocados pelos AA. só podem ser exercidos através das propriedades que foram expropriadas pelo R. município a AA. e RR., estamos efetivamente perante uma situação que se encaixa nas alíneas a), e) (quanto à interpretação dos limites da expropriação), k) (quanto à prevenção da violação do direito invocado) e o) do n.º 1, bem como no n.º 2 do artigo 4.º do ETAF.

III. Pelo que são competentes para a sua análise os Tribunais Administrativos.

Assim, nestes termos e nos mais de direito, sempre com suprimento de V. Ex.as, deve a Sentença de fls… ser mantida, com o que se fará a mais completa e integral JUSTIÇA.

*

II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

*

São ocorrências materiais, com interesse para a decisão da causa as que constam do elemento narrativo dos Autos, destacando, em particular:

- Os RR, na sua contestação, vieram arguir a excepção de incompetência material deste Tribunal para a resolução do litígio subjacente aos presentes autos.

 - Alegam, em síntese, que, contrariamente ao alegado pelos AA, parte significativa dos prédios de AA e RR foi expropriada pelo Município da C (...) , por via da qual se tornou proprietário de uma área de 1739,39 m2 do terreno dos RR e de 1609,30 m2 do terreno dos AA. Ora, os direitos que os AA pretendem exercer nesta acção têm que ser também exercidos contra o Município uma vez que este é o proprietário da faixa de terreno expropriada pela qual têm de passar obrigatoriamente todas as condutas de água que levem ao terreno dos AA, tratando-se de um litisconsórcio necessário que conduz à incompetência material deste Tribunal.

- Os autores discordam, alegando os argumentos invocados na resposta à contestação, os quais aqui damos por inteiramente reproduzidos.

- Foi admitida a intervenção principal provocada do Município da C (...) , nos termos constantes dos despachos de 30.11.2017 e 05.02.2018, entendendo o Tribunal que, para que se regule definitivamente o litígio relativamente à passagem de canos e tubagens pelo subsolo da parcela propriedade do Município, terá este de intervir a fim de poder defender os seus direitos de propriedade.

- O Município, por sua vez, veio defender ser este Tribunal materialmente incompetente para o presente litígio.

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- Considerou-se em decisório que:

«Atentas as considerações acabadas de tecer, dúvidas não temos que, estando em causa a afectação de uma propriedade do domínio público e sendo parte no presente litígio o Município da C (...) , estamos manifestamente perante uma relação jurídico-administrativa, para cujo conhecimento são competentes os tribunais administrativos.

Prescreve o art.º 99.º do Código de Processo Civil que “A verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar.” Acrescenta o n.º 2, do mesmo normativo legal, que, se a incompetência só for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que, estando as partes de acordo sobre o aproveitamento, o autor requeira a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta.

Ainda, de acordo com o art.º 577.º, al. a) do Código de Processo Civil, constitui uma excepção dilatória a incompetência absoluta do Tribunal, o que determina a absolvição da instância (art.º 576.º, n.º 2).

Assim, nos termos e com os fundamentos expostos, ao abrigo do disposto nos artºs. 99.º, 278.º/1/a), 576.º, nºs. 1 e 2, 577.º, al. a) e 578.º, todos do Código de Processo Civil, declaro este Tribunal materialmente incompetente para preparar e julgar o presente processo, nos termos sobreditos, absolvendo-se, em consequência, os RR da instância».

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Nos termos do art. 635º, do NCPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 608°, do mesmo Código.

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A questão suscitada, na sua própria matriz, em essência  constitutiva e redactorial, consiste em apreciar, se:

1- Sobre a tábua dos factos assentes a presente ação, o Tribunal Comum é o Tribunal competente para dirimir o litígio supra exposto?

Apreciando, diga-se, neste horizonte judiciário, assim delimitado e preciso, se impõe, ponderar - em função do disposto no art. 212º CRP (tribunais administrativos e fiscais) -, que “a constitucionalização formal dos tribunais administrativos e fiscais efectuada na segunda revisão constitucional - pela qual eles deixaram de ser uma ordem judicial constitucionalmente facultativa -, veio ao encontro das críticas da doutrina que mostravam «perplexidade» ao «ver considerada como facultativa e dependente da lei a existência de uma categoria de tribunais que goza de uma posição solidamente sedimentada no actual sistema judicial»(…). A ideia - que tinha forte apoio no momento de formação da Constituição - de extinguir a autonomia orgânica da justiça administrativa, integrando os tribunais administrativos, como tribunais especializados, dentro da categoria de tribunais judiciais, embora baseada em algumas considerações dignas de ponderação (tendencial governamentalização do STA durante a Constituição de 1933), relevava também de um forte preconceito unicitário da função judicial em favor do monopólio dos tribunais comuns e acabava por revelar uma razoável incompreensão da especificidade organizatória e funcional da jurisdição administrativa.

A consolidação do estatuto constitucional dos tribunais administrativos e fiscais constitui, assim, uma das inovações mais relevantes da 2ª revisão da Constituição. Esta consolidação continuou em revisões posteriores, através de alterações estruturais no plano material relativamente à tutela jurisdicional efectiva dos administrados (Cfr. art. 268°), seguida de uma ruptura profunda, efectuada no plano legal, quanto aos parâmetros processuais dos tribunais administrativos (Cfr. L n° 15/2002, de 22-02, que aprovou o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e L n° 13/2002, de 19-02, que aprovou o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais). A conjugação destas inovações constitucionais e legislativas conduziu a uma tarefa de concordância prática entre a dimensão subjectiva e a dimensão objectiva da justiça administrativa com enfatização de uma tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados e com a consagração de uma riqueza de formas processuais que vão transformando o «contencioso administrativo» num contencioso de plena jurisdição à semelhança do processo civil” (Cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4ª Edição Revista, 2010, p.564).

-

Isto ponderando, mais se diga que, consequentemente, em sede de aferição do tribunal materialmente competente, se o comum, ou, antes, o administrativo, o que importa é ter em atenção qual a relação jurídica que está na base do litígio e qual a natureza das normas que a disciplinam, e tal como se mostra aquela, configurada nos autos pelos recorrentes (Ac. RG. de 17.12.2015: Proc. 1078/14.5T8VCT.G1.dgsi.Net).

Nesta vinculação se fazendo relevar, não obstante, que as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis (Ac. RE, de 5.11.2015: Proc. 185414/12.0YIPRT.E1.dgsi.Net).

Em todo o caso, sem poder olvidar que o ETAF, aprovado pelo art. 1.º da Lei n.º 13/2002 de 19-2, veio ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais. Sendo que a aI. e) do n.º 1. do art. 4.° do ETAF abstrai da natureza das normas que materialmente regulam determinada situação, colocando-a na órbita dos tribunais administrativos, desde que a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um “procedimento pré-vinculador de direito público”, sendo o acento tónico indiciador o da natureza administrativa da relação jurídica, em função, exactamente, das regras de procedimento e não qualquer conteúdo de acordo, “contrato” ou outra índole invocada, ou a própria qualidade das partes (Ac. RP. de 16.11.2015: Proc. 2195/14.7TBMTS.P1.dgsi.Net).

Entendimento a que se chega, também - em reforço -, hipostasiando, mesmo, apreciação segundo a qual o pressuposto processual da competência material, fixado com referência à data da propositura da acção, deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objectiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjectiva, respeitante às partes, tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor. Todavia, nos termos do artigo 4.° do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19-2, na redacção dada pela Lei n.º 107-D/2003, de 31-12, e, entretanto, alterado pela Lei n.º 59/2008, de 11-09, a delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou de se estribar na distinção tradicional entre "actos de gestão pública" e "actos de gestão privada", para passar a fazer-se com abstracção da natureza das normas que materialmente regulam, bastando que "a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento de direito público” (Ac. STJ. de 22.10.2015: Proc. 678/11.0TBABT.E1.S1.dgsi.Net) (cfr. art.º 4º do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º13/2002, com a alteração mais recente que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10).

Circunstancialmente - perante tal tessitura institucional de referência -, não se pode postergar que:

- Os RR, na sua contestação, vieram arguir a excepção de incompetência material deste Tribunal para a resolução do litígio subjacente aos presentes autos.

 - Alegando, em síntese, que, contrariamente ao alegado pelos AA, parte significativa dos prédios de AA e RR foi expropriada pelo Município da C (...) , por via da qual se tornou proprietário de uma área de 1739,39 m2 do terreno dos RR e de 1609,30 m2 do terreno dos AA.

- Mais sustentando que os direitos que os AA pretendem exercer nesta acção têm que ser também exercidos contra o Município uma vez que este é o proprietário da faixa de terreno expropriada pela qual têm de passar obrigatoriamente todas as condutas de água que levem ao terreno dos AA, tratando-se de um litisconsórcio necessário que conduz à incompetência material deste Tribunal.

- E se é certo que os Autores/ Recorrentes discordam, alegando os argumentos invocados na resposta à contestação, certo se configura que, a fls. 166 – 168 v., dos Autos, em alegações adrede, depois em devir conclusivo -, não deixam de expressar, perante tal putativa realidade, que:

"11 – Neste conspecto, a competência em razão da matéria atribuída aos tribunais, baseia-se na matéria da causa, no seu objeto, ancorado sob ponto de vista qualitativo o da natureza da relação substancial pleiteada.

12 – Neste enquadramento a ação vem configurada na PI, o núcleo central do objeto da presente ação, cabe ao âmbito jurisdicional comum, apenas caberia ao Tribunal Administrativo e Fiscal, caso envolvesse o litígio que resulte da relação jurídica administrativa para o efeito atente-se na materialidade fática em que o autor baseia o petitório.

(…)

19 – Os autores necessitam da água.

20 – Sendo que se perspectiva a passagem de uma estrada que divide os terrenos de ambos, ficando autor e réu na mesma, com terrenos de ambos os lados da estrada.

Ficando apenas um poço comum do lado da estrada que servirá para regar os terrenos desse lado quer do autor quer do réu se, eventualmente passar algum tubo por debaixo da estrada para ambos os proprietários”.

Concedendo, mesmo, que:

 “25 - Em bom rigor a questão dos autos não se trata de uma questão diretamente sobre a competência material, mas consiste antes no se saber se a competência da jurisdição comum para determinados pedidos deve-se estender a outros pedidos que foram cumulados aos primeiros, cuja jurisdição seria em princípio jurisdição administrativa (…)”;

e

 “29 - Fundamenta-se o pedido na responsabilidade do primeiro réu que emerge de factos a ele imputável que é ele que impede a ligação ao poço da água

- Não interfere com Município/estrada;

 (…) - Os canos ficam soterrados - (apenas um único pedido interfere) – Mas quantos casos existem em que os canos submergem e o Município age como cidadão comum”;

Assim, foi admitida a intervenção principal provocada do Município da C (...) , nos termos constantes dos despachos de 30.11.2017 e 05.02.2018, entendendo o Tribunal que, para que se regule definitivamente o litígio relativamente à passagem de canos e tubagens pelo subsolo da parcela propriedade do Município, terá este de intervir, a fim de poder defender os seus direitos de propriedade.

Com este Município, por sua vez, a vir defender ser este Tribunal materialmente incompetente para o presente litígio.

--

Deste modo, se configurando o núcleo fundamental, verdadeiramente noemático, a dirimir com a presente acção, faz sentido - perante o anterior quadro delineado -, o teor da expressão decisória, ao considerar que:

«Atentas as considerações acabadas de tecer, dúvidas não temos que, estando - também - em causa a afectação de uma propriedade do domínio público e sendo parte no presente litígio o Município da C (...) , estamos manifestamente perante uma relação jurídico-administrativa, para cujo conhecimento são competentes os tribunais administrativos».

Com efeito, o que determina, obrigatoriamente, para aferir da competência de um tribunal, é haver que considerar a identidade das partes e os termos em que a acção é proposta, devendo atender-se à natureza da pretensão formulada, ou do direito para o qual o demandante pretende a tutela jurisdicional, e ainda aos factos jurídicos invocados dos quais emerge aquele direito, ou seja, ao pedido e à causa de pedir (Ac. RE, de 17.12.2014: CJ, 2014, 5.°-329). Pois que, mesmo em relação às entidades de direito privado, é-lhes aplicável o regime da responsabilidade civil do Estado, desde que estejam em causa acções ou omissões levadas a cabo "no exercício de prerrogativas de poder público, ou que sejam regulados por disposições, ou princípios, de direito administrativo”. (Ac. RC, de 13.5.2014: Proc. 735/13.8TBLSA.C1.dgsi.Net).

No caso, atento o exposto e derivando a intervenção principal do Município da C (...) das suas legais atribuições, necessariamente a considerar a sua expressão processual, nos Autos assumida, a relação material apresentada à lide reveste uma relação materialmente administrativa.

Assim concluindo, do mesmo modo, neste caso, que os Tribunais Administrativos são materialmente competentes para conhecer da responsabilidade/intervenção de um Município (Ac. STJ. de 31.3.2011: Proc. 4004/03.3TJVNF.PLS I.dgsi.Net), a que se reconduz, do mesmo modo inarredavelmente, a final, a questão que subjaz, sob o qual incidiu a decisão sob escrutínio.

-

O que, desta forma, se revela, igualmente, de plena compatibilidade ao que «dispõe o artigo 212.°, n.º 3, da CRP, "compet(indo) aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham (igualmente) por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais".

A referência à tradicional dualidade de meios processuais ("acções e recursos contenciosos") encontra-se, hoje, ultrapassada, mercê da profunda reforma introduzida pelo CPTA, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2004 e que, a exemplo do que sucede em processo civil, uniformizou a terminologia, utilizando exclusivamente o conceito de "acção".

A importância deste preceito reside, no entanto, na circunstância de estabelecer o critério de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa.

(…)

Após a revisão constitucional de 1989, foi doutrinalmente debatida a questão de saber se o artigo 212.º. n.º 3, consagra uma reserva material absoluta de jurisdição em favor dos tribunais administrativos e fiscais, impedindo o legislador ordinário de atribuir aos tribunais judiciais o poder de dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais ou aos tribunais administrativos e fiscais o poder de dirimir litígios emergentes de relações jurídicas de outra natureza.

O entendimento que veio claramente a prevalecer na doutrina foi o de que não nos encontramos, aqui, perante uma reserva absoluta. O legislador dispõe, assim, de uma certa margem de liberdade de conformação, no respeito pelo núcleo essencial caracterizador do âmbito material de cada uma das jurisdições, pelo que pode proceder à atribuição pontual a uma das jurisdições do poder de dirimir litígios que, na ausência de tal determinação, corresponderiam à outra jurisdição (em geral sobre o tema, cfr. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 8.ª ed., Coimbra, 2006, págs. 109 segs.). Este entendimento veio a ser recebido, quer pelos tribunais administrativos (cfr., por todos, os Acórdãos do STA de 14/6/2000, Proc. n.º 45633, e de 27/0112004, Proc. n.º 1116/03), quer pelo Tribunal Constitucional (para além das referências indicadas nos parágrafos seguintes, cfr., v. g., Acs.TC n.ºs 607/95, 799/96, 927/96, 1102/96, 65/97 e 284/03).

(…)

Justifica-se - pois -, a atribuição, em bloco, aos tribunais administrativos do poder de dirimir os litígios em zonas de fronteira em que as questões colocadas são predominantemente de natureza administrativa, mas "há dúvidas de qualificação ou zonas de intersecção entre as matérias administrativas e as restantes" (VIEIRA DE ANDRADE, op. cit., p. 114). É o que sucede, por força do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alíneas c), e), g) e I), do ETAF, com a atribuição aos tribunais administrativos do poder de julgar a esmagadora maioria dos litígios respeitantes aos contratos celebrados por entidades públicas e a totalidade dos litígios relativos à (própria) responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas e à prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos por parte de entidades públicas (em geral sobre os dois aspectos mencionados, cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL/MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo, 3.ª ed., Coimbra, 2004, págs. 25 segs.).

(…)

Por conseguinte, quando não esteja expressamente atribuída por lei a qualquer jurisdição, toda a questão cível e criminal é julgada pelos tribunais judiciais e toda a questão administrativa e fiscal é julgada pelos tribunais administrativos e fiscais.

Não vale, assim, para a matéria administrativa e fiscal a previsão do artigo 211º, n.º 1, da Constituição (e do artigo 66.° do CPC – 64º NCPC), segundo a qual os tribunais judiciais "exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais". A matéria administrativa e fiscal está, na verdade, desde logo atribuída, em bloco, à ordem jurisdicional administrativa e fiscal pela própria Constituição, no artigo 212.º, n.º 3» (Cf. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, 2007, pp. 147-151).

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Podendo, assim, concluir-se, sumariando (art. 663º. Nº7 NCPC), que:

1.

Em sede de aferição do tribunal materialmente competente, se o comum, ou, antes, o administrativo, o que importa é ter em atenção qual a relação jurídica que está na base do litígio e qual a natureza das normas que a disciplinam, e tal como se mostra aquela, configurada nos autos pelos recorrentes. Nesta vinculação se fazendo relevar, não obstante, que as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis.

-

2.

O que determina, obrigatoriamente, para aferir da competência de um tribunal, é haver que considerar a identidade das partes e os termos em que a acção é proposta, devendo atender-se à natureza da pretensão formulada, ou do direito para o qual o demandante pretende a tutela jurisdicional, e ainda aos factos jurídicos invocados dos quais emerge aquele direito, ou seja, ao pedido e à causa de pedir.

3.

Mesmo em relação às entidades de direito privado, é-lhes aplicável o regime da responsabilidade civil do Estado, desde que estejam em causa acções ou omissões levadas a cabo "no exercício de prerrogativas de poder público, ou que sejam regulados por disposições, ou princípios, de direito administrativo”.

4.

No caso, atento o exposto e derivando a intervenção principal do Município em referência das suas legais atribuições, necessariamente a considerar a sua expressão processual, nos Autos assumida, a relação material apresentada à lide reveste uma relação materialmente administrativa.

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5.

A delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou de se estribar na distinção tradicional entre "actos de gestão pública" e "actos de gestão privada", para passar a fazer-se com abstracção da natureza das normas que materialmente regulam, bastando que "a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento de direito público”.

6.

Por conseguinte, quando não esteja expressamente atribuída por lei a qualquer jurisdição, toda a questão cível e criminal é julgada pelos tribunais judiciais e toda a questão administrativa e fiscal é julgada pelos tribunais administrativos e fiscais. Não vale, assim, para a matéria administrativa e fiscal a previsão do artigo 211º, n.º 1, da Constituição (e do artigo 66.° do CPC – 64º NCPC), segundo a qual os tribunais judiciais "exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais". A matéria administrativa e fiscal está, na verdade, desde logo atribuída, em bloco, à ordem jurisdicional administrativa e fiscal pela própria Constituição, no artigo 212.º, n.º 3.

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III. A Decisão:

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao presente recurso interposto, assim se confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC..

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Coimbra,  6 , de  Novembro,  de 2018.

António Carvalho Martins ( Relator )

Carlos Moreira

Moreira do Carmo