Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
190/12.0GAVZL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: ACUSAÇÃO
NULIDADE
NARRAÇÃO DOS FACTOS FUNDAMENTADORES DA APLICAÇÃO AO ARGUIDO DE UMA PENA
LUGAR DA PRÁTICA DOS FACTOS
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Data do Acordão: 09/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE VISEU - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, AL. B), E 311.º, N.ºS 2, AL. A), E 3, AL. B), DO CPP
Sumário: I - A identificação da propriedade do assistente, sem menção do preciso lugar onde se situa, configura apenas uma descrição imperfeita da localização dos factos imputados à arguida.

II - Este circunstancialismo permite defender que a acusação enferma da nulidade (sanável) prevista no artigo 283º, n.º 3, al. b), do CPP, não assumindo, contudo, relevância bastante para tornar a acusação manifestamente infundada, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 311.º, n.º 3, al. b), do referido diploma legal.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. Em 9 de Dezembro de 2013, foi proferido despacho que rejeitou a acusação particular deduzida pelo assistente, A... , contra a arguida, B... , a quem imputa a prática de um crime previsto e punido pelo artigo 181º e 182º, ambos do Código Penal, nos seguintes termos:

«(…)

Dispõe o artigo 311.º, n.º 2, al. a) do CPP, o seguinte: "Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o Presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada"; sendo que, a acusação considera-se manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos – al. b) do n.º 3 do referido preceito processual.

Por seu turno, a respeito da acusação, determina o artigo 283.º do CPP, aqui aplicável  ex vi artigo 285.º/3 do CPP, que a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena (...) incluindo, se possível, entre outros aspetos, o lugar da sua prática. (sublinhado nosso).

 Volvido o texto da acusação particular e assim aos factos aqui imputados à arguida B... , resulta que na mesma não se encontra referenciado o local da sua prática fazendo-se referência, tão-só, a "numa propriedade sua denominada Fontanheira" (sic), desconhecendo-se a localização da referida propriedade, a qual, ademais, é passível de ser concretizada.

Somos, assim, a entender estar a acusação particular ferida de nulidade, e não tendo a instrução decorrida, versado sobre tais factos, nos termos das normas referidas, não admito a mesma.

Notifique».

2. Notificado desta decisão, arguiu o assistente a nulidade, nulidade essa que foi indeferida por despacho de fls. 285.

3. Discordante do decidido em 1 e 2, recorre o assistente,  formulando as Conclusões que se sintetizam:

3.1. Contrariamente ao referido na sentença, a acusação particular  contém o local da ocorrência dos factos, ainda que de forma imperfeita.

3.2. Porém, o local é claramente identificável, desde logo, porque no despacho de pronúncia pelo crime de dano, consta que propriedade se situa no Lugar da Fontanheira, em Quinta de Queirã, Vouzela.

3.3. Com o requerimento de abertura de instrução foi junta a certidão do teor matricial da dita propriedade, onde consta expressamente a sua localização.

3.4. A localização dos factos na acusação não constitui um elemento essencial da acusação, cuja falta seja cominada com nulidade.

3.5. Não se pode confundir narração de factos do tipo de crime com a indicação imperfeita de apenas um facto atinente às coordenadas geográficas;

3.6. A nulidade invocada pelo tribunal depende de arguição, estando vedado ao tribunal o seu conhecimento oficioso;

3.7. Não tendo tal nulidade sido arguido, encontrava-se sanada, nos termos do artigo 283º, n º 3, do Código de Processo Penal.

3.8. Não poderia, pois, o tribunal recorrido rejeitar a acusação particular, sob pena de violação do disposto nos artigos 119º a 121º, 283º, nº3, al. B) e 311º, todos do Código Processo Penal.

3.9. A falta de concretização de uma forma mais especificada da localização da prática dos factos em nada afectou as garantias de defesa da arguida, uma vez que a indicação feita nesta acusação conjugada com os demais elementos constantes dos autos, permitiu-lhe ter plena consciência da localização geográfica especifica.

3.10. E, tando assim é, que a arguida nada invocou a este respeito, nem tampouco pôs em causa a validade da acusação particular.

3.11. O despacho em crise, ao não ter reconhecido e declarado a nulidade do despacho que rejeitou a acusação particular violou o disposto nos artigos 119º a 121º; 283º, nº 3, al. B) e 311º, todos do Código Processo Penal.

4. Respondendo, defende o Ministério Público em primeira instância, a procedência do recurso.

5. Por sentença proferida em 11 de Junho de 2014, foram os arguidos, D... e B... , absolvidos da prática de um crime de dano previsto e punido pelo artigo 212, nº 1, do Código Penal.

6 – Inconformado com esta absolvição, dela recorre a assistente, formulando as seguintes Conclusões:

1) « O presente recurso vem interposto de decisão que julgou: “… improcedente, por não provada, a pronúncia deduzida contra os arguidos C... e B... , em consequência do que” absolveu-os “da prática do crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, pelo qual vinham pronunciados improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente C... contra os arguidos, em consequência do que” absolveu-os do mesmo.

2) O ora recorrente considera incorrectamente julgado os factos não provados do ponto II, descritos nas als. a) a e), por ter havido erro na apreciação da prova, pelo tribunal “a quo”, dos mesmos.

3) Isto porque, a prova têm de ser vista como um todo, e não como uma soma de partes.

4) Salvo o devido respeito, o recorrente entende que, face ao Certificado do registo criminal actualizado de ambos os arguidos; às declarações do arguido – D... – depoimento gravado no CD, com o ficheiro 20140506114549_18084_65357, iniciando-se pelas 11.45.50 horas e terminando pelas 11.56.09 horas (da audiência de discussão e julgamento do dia 06-05-2014); às declarações da arguida - B... – depoimento gravado no CD, com o ficheiro 20140508104226_18084_65357, iniciando-se pelas 10.41.47 horas e terminando pelas 10.52.54 horas (da audiência de discussão e julgamento do dia 08-05-2014) e gravado no cd 20140604152018_18084_65357 da audiência de discussão e julgamento do dia 04-06-2014); às declarações do assistente – C... – depoimento gravado no CD, com o ficheiro 20140506120912_18084_65357, iniciando-se pelas 12.09.13 horas e terminando pelas 12.40.15 horas (da audiência de discussão e julgamento do dia 06-05-2014); ao depoimento da testemunha I...  – depoimento gravado no CD, com o ficheiro 20140508105254_18084_65357, iniciando-se pelas 10.52.55 horas e terminando pelas 11.21.57 horas (da audiência de discussão e julgamento do dia 08-05-2014); ao depoimento da testemunha H... – depoimento gravado no CD, com o ficheiro 20140508112324_18084_65357, iniciando-se pelas 11.21.58 horas e terminando pelas 12.01.14 horas (da audiência de discussão e julgamento do dia 08-05-2014); ao depoimento da testemunha F... – depoimento gravado no CD, com os ficheiros 20140508120749_18084_65357 e 20140508123553_18084_65357, iniciando-se pelas 12.01.57 horas e terminando pelas 12.06.51 horas (da audiência de discussão e julgamento do dia 08.05.2014); ao depoimento da testemunha G... – depoimento gravado no CD, com o ficheiro 20140508123954_18084_65357, iniciando-se pelas 12.39.55 horas e terminando pelas 12.51.52horas (da audiência de discussão e julgamento do dia 08.05.2014); e às fotografias juntas a fls. 122 a 149, tais factos deveriam ter sido dados como provados.

(…)

5) A livre convicção tem de ser uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação.

6) Ora, a apreciação livre da prova não se confunde com a apreciação arbitrária da prova, nem com a mera dúvida gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, trata-se sim de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, que o Prof. Castanheira Neves apela de “liberdade para a objectividade.

7) Assim, no caso sub judice, a douta fundamentação é, salvo o devido respeito, irrazoável, já que ficou demonstrado que, à luz das regras da experiência, a prova deveria ter sido valorada no sentido de condenação dos arguidos – no crime e no inerente pedido de indemnização civil - em virtude da culpabilidade que foi provada, não havendo espaço para que a livre convicção fosse no sentido de aplicar o principio in dubio pro reo.

8) Assim, o tribunal não fundamentou devidamente, salvo o devido respeito por douta opinião contrária, a sua decisão, violando o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do CPP, sendo consequentemente nula, nulidade esta que expressamente se invoca para os devidos efeitos legais»

7. A Ex.ma Senhora Magistrada do Ministério Público, em primeira instância e o arguido, em resposta ao recurso, defendem a manutenção da decisão recorrida.

8. Nesta Relação, o Digno Procurador – Geral Adjunto pronuncia-se pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

9. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre, agora, decidir.

II – THEMA DECIDENDUM

Sabido que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas Conclusões do Recorrente, são as seguintes as questões a decidir:


1.  Recurso Intercalar:

· Nulidade da acusação;

· Nulidade do despacho que rejeitou a acusação.


2. Recurso Decisão Final

· Nulidade de sentença

· Erro notório na apreciação da prova

· Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

III – A DECISÃO RECORRIDA

A primeira instância decidiu a matéria de facto, como segue:

«Da discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 26/08/2012, cerca das 08h00/ 08h30m, o assistente C... deslocou-se a um terreno da sua propriedade sito no lugar de Fontanheira, em Quintela, Queirã.

2. O arguido D... é oriundo do meio rural, tendo, precocemente, começado a trabalhar, auxiliando os pais nas tarefas agrícolas. Emigrou durante 20 (vinte) anos para a Alemanha, apoiando financeiramente a mulher e o filho que ficaram a residir em Portugal. O filho prosseguiu os estudos e concluiu o curso superior de engenharia. Há 6 (seis) anos regressou definitivamente a Portugal, está reformado e dedica-se à agricultura para subsistência. É uma pessoa bem integrada na comunidade onde vive.

3. O arguido D... não tem antecedentes criminais.

4. A arguida B... , é doméstica, oriunda de um agregado familiar sócio-económico e cultural carenciado, sendo a mais nova de quatro irmãos. A sua situação económica melhorou quando o seu marido emigrou para a Alemanha. Nesse período de tempo, a arguida liderou o processo educativo do seu filho, conseguindo que o mesmo prosseguisse os estudos, concluindo o curso de Engenharia. Mostrou ser uma pessoa autónoma e responsável. Depende da reforma auferida pelo seu marido e da agricultura de subsistência que desenvolve. No meio onde vive é vista como uma pessoa conflituosa com os demais, sendo conhecida a sua contenda com o assistente C... .

5. Por sentença datada de 01/07/1013, transitada em julgado a 2013/09/20, proferida no PCS n.º 98/12.9GAVZL deste Tribunal Judicial de Vouzela, pela prática, em 22/04/2012, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º do Código Penal, a arguida B... foi condenada na pena de multa de 65 dias à taxa diária de € 6,00, perfazendo um total de € 390,00 (trezentos e noventa euros), já paga e, assim, declara extinta por decisão de 2013/21/10.


*

Não resultou provado, com interesse para a discussão da causa, designadamente, que:

*

a. No contexto espácio-temporal referido em 1. dos factos provados, os arguidos, encontrando-se em cima de um trator em funcionamento, num caminho que confina com a propriedade do assistente, munidos e utilizando, para o efeito, uma tesoura da poda, tenham cortado ramos de um castanheiro sito na propriedade daquele;

b. Que o corte dos ramos levou a que a respetiva árvore secasse;

c. Que tal árvore tem o valor de € 100,00 (cem euros);

d. Que o demandante deixou de colher as castanhas da árvore;

e. Que o assistente tenha sofrido um enorme desgosto e tristeza, vivendo em constante desassossego e medo dos arguidos.


**

Fundamentação da matéria de facto

*

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida, cotejada com as regras da experiência, tendo considerado as declarações dos arguidos, do assistente, os depoimentos das testemunhas prestados em sede de audiência de julgamento, as fotografias juntas a fls. 122 a 149, a informação do Centro Hospitalar de Viseu de fls. 398 e ainda os relatórios sociais e os certificados do registo criminal dos arguidos.

Desde já adiantaremos – não obstante estar em causa a aplicação do Direito à matéria de facto que logrou a adesão da prova, e, em consequência, tratar-se de questão que nessa outra sede será apreciada com mais detalhe –, que a factualidade demonstrada nos autos se revelou, a nosso ver, insuficiente, por forma a possibilitar a imputação aos arguidos do crime de dano pelo qual vêm pronunciados.


*

Os arguidos optaram por prestar declarações, negando a prática dos factos. Declarando não se darem bem com o assistente há mais de 30 (trinta) anos, negaram a imputada prática do corte dos ramos de um castanheiro do assistente. A fim de afastar qualquer responsabilidade, contaram, ademais, que no dia a que os factos se reportam, saíram de casa bem cedo para visitar um amigo que vive no Caramulo e conduzi-lo ao Hospital de Viseu para tratamento médico, nuca podendo estar, por conseguinte, na propriedade do assistente à hora constata da pronuncia.

Muito embora as versões apresentadas por cada um dos arguidos não tenham sido escrupulosamente coincidentes entre si, no essencial mostraram-se consentâneas e corroborantes com os demais meios de prova por si apresentados.

Em sede de acusação pública, foram indicadas para serem ouvidas, o assistente C... e as testemunhas I... e H... .

Aquele primeiro depôs de forma espontânea, mas algo exaltada, denotando, contudo e como expectável, falta de isenção. Em súmula, assumiu não se dar com os arguidos há mais de 30 (trinta) anos e confirmou os factos constantes da pronúncia, contextualizando-os no espaço e no tempo. Mais referiu que, após os arguidos se terem ausentado do local, pegou nos ramos e colocou-os à porta da casa daqueles, que o castanheiro em causa tinha cerca de 6 (seis) anos, já dava castanha e que secou. Confrontado com as fotografias de fls. 125 e 126, confirmou ser esse o castanheiro em causa. Assim, com exceção do facto de o Tribunal não duvidar que o mesmo no dia dos autos deslocou-se ao seu terreno, no lugar da Fontanheira, de onde, ademais, trouxe os ramos que as demais testemunhas da acusação viram, as suas declarações não bastaram para que se pudesse dar como provados os demais factos da acusação e do pedido de indemnização civil deduzido.

A testemunha I... , conterrânea dos arguidos e do assistente, depôs de forma escorreita, não desmerecendo a atenção do Tribunal, apesar do reconhecimento residual que revelou dos factos. O Tribunal não relevou, por isso, o seu depoimento na formação da sua convicção. Disse apenas que, no dia dos autos, pelas 09h00m, viu o assistente arreliado, queixando-se que os arguidos tinham cortado os seus castanheiros. Asseverou ainda ter visto os arguidos a saírem de casa, de carro, por volta dessa hora.

A testemunha I... , conterrânea dos arguidos e do assistente, depôs de forma segura, muito embora também tenha admitido não se dar bem com os arguidos, não relevando, ademais, conhecimento direto dos factos constantes da pronúncia. Atestou apenas que os arguidos e o assistente mantêm, desde há muitos anos, uma relação de grande animosidade, e que, no dia a que os autos respeitam, pelas 08h00m, viu os arguidos a saírem de casa de trator e que, depois, pelas 09h00m, viu-os a saírem de carro, já arranjados. Contou ainda que, nessa manhã, ouviu o Sr. C... , em tom muito zangado e em voz alta, a dizer que os arguidos tinham cortado os ramos dos seus castanheiros. Questionada se seria um castanheiro ou mais do que um, referiu tratar-se de mais do que um. Atestou ainda que o assistente levou os ramos em causa para a porta da casa dos arguidos, deixando-os como sinal de que os teria “apanhado” a cortarem os seus castanheiros.

E... , sobrinho do assistente, indicado no âmbito do pedido de indemnização civil deduzido, disse não se dar bem com os arguidos, não ter presenciado os factos em causa, bem como desconhecer os factos sobre os quais foi chamado a depor. O Tribunal não relevou, pois, o seu depoimento.

F... e G... , amigos dos arguidos, e desconhecendo o assistente, depuseram de forma séria, espontânea e convincente, denotando isenção na descrição da factualidade sobre a qual revelaram conhecimento direto. Mereceram, por isso, credibilidade por parte deste Tribunal. Desta forma, atestaram a presença dos arguidos na sua casa, em Pedronhe, no Caramulo, no dia dos autos, pelas 09h00m, conforme previamente acordado entre si pelo telefone, para conduzir a testemunha F... ao Hospital de Viseu a fim de fazer curativo ao olho direito, na decorrência de uma cirurgia à vista ocorrida no dia anterior naquele Hospital. Confirmado pelo Hospital de Viseu a referida cirurgia, a data em que a mesma ocorreu, bem como a deslocação da referida testemunha ao Hospital de Viseu no dia dos autos, pela manhã, os referidos depoimentos mostraram-se, no essencial, verdadeiros, corroborando a versão apresentada pelos arguidos.

Por último, a testemunha J... , indicada pelos arguidos, não revelou conhecimento de qualquer facto com relevo para a formação da convicção do Tribunal. Disse apenas que, a pedido do arguido, em finais do mês de novembro de 2012, foi a casa daquele e a seu pedido deslocou-se a um terreno, supostamente do assistente, não tendo visto qualquer castanheiro com os ramos cortados. Contudo, confrontado com as fotografias de fls. 125 e 126, disse não conseguir identificar se são essas as árvores que lhe foram exibidas pelo arguido, não tendo sido capaz, pois, de asseverar se o castanheiro em causa é alguma dessas árvores.

No que respeita às condições de vida e aos antecedentes criminais dos arguidos, o Tribunal assentou a sua convicção nos relatórios sociais e nos certificados de registo criminal juntos aos autos.

Quanto aos factos não provados, o mesmo resultou da sua total ausência de prova, sendo que nenhuma das testemunhas arroladas pela acusação ou no âmbito do pedido de indemnização civil foram capazes de os asseverar»

IV – DO MÉRITO DO RECURSO

1. Recurso de fls. 291 a 308

A questão essencial a dirimir consiste em saber, se a acusação particular deduzida por C... deve ser rejeitada, por omitir o local da prática dos factos imputados à arguida, B... .

Esta questão, não sendo nova, já foi objecto de apreciação pelos tribunais superiores, designadamente por esta Relação, entre outros, no Acórdão de 21 de Abril de 2010 (Relator: Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt), onde se lê:

« (…)

É um dado assente, não obstante nem sempre apreendido, que o actual Código de Processo Penal português se perfila como um processo de “máxima acusatoriedade … compatível com a manutenção, na instrução e em julgamento, de um princípio de investigação judicial”, tal como afirmado pelo Prof. Figueiredo Dias em nome da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, (…) expressão que ficou a constar do nº 4, nº 2 do artigo 2º da Lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, Lei nº 43/86, de 26 de Setembro.

Enfim, a consagração do sistema acusatório com princípio da investigação, já defendido por aquele ilustre penalista nas suas lições de 1974, (…) reafirmadas no processo legislativo (…) e elogiado pelo que significa de “superação da tradicional antinomia entre os modelos «inquisitório» e «acusatório»”, como salientou a Prof. Mireille Delmas-Marty. (…).

Daqui resulta, incontestavelmente, como mera assunção constitucional do princípio do acusatório, a nítida separação entre entidade acusadora e juiz de julgamento (dimensão orgânico-subjectiva do princípio do acusatório) e a distinção entre fases do processo (no caso, acusação e julgamento), no que é definido como a dimensão material daquele princípio. (…)

É assim que o Código de Processo Penal vem a estabelecer, de forma clara, o papel do Ministério Público, enquanto entidade dominus do inquérito, quanto à promoção do processo e à dedução da acusação nos artigos 48º e 53º do Código de Processo Penal (com as naturais limitações constantes dos artigos 49º a 52º do mesmo diploma).

Ao juiz de julgamento, assim impedido de se pronunciar quanto a essa fase processual – a acusação – restaria o papel de direcção da fase de julgamento (no que ao caso concreto interessa, já que a instrução se não encontra em discussão), balizado e limitado pelo conteúdo da acusação, pelo thema decidendum (objecto do processo) e pelo thema probandum (extensão da cognição), no que seria uma manifestação de alguma disponibilidade das “partes” na definição do que se pretenda seja apreciado pelo tribunal.

Naturalmente que o nosso legislador se viu obrigado a restringir estes efeitos extremos de um processo acusatório puro, um puro “adversarial system”.

Mas fê-lo de forma clara e mitigada, excluindo a possibilidade de um retorno a um sistema inquisitorial, mesmo que mitigado, que fizesse repristinar o polémico e sarilhento artigo 351º do Código de Processo Penal de 1929.

É esse o papel da al. a) do nº 2 e das quatro alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal. Evitar a todo o custo que casos extremos de iniquidade da acusação conduzam a julgamento um cidadão que se sabe, será decididamente absolvido, pretendendo evitar sujeitá-lo, inutilmente, a um processo incómodo e vexatório (…).

2. Aliás, é bem elucidativo o desenvolvimento legislativo e jurisprudencial sobre o tema. A primeira versão de tal artigo apenas continha os dois primeiros números:


ARTIGO 311º

(Saneamento do processo)


1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa de que possa, desde logo, conhecer.

2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

De não aceitar a acusação do assistente na parte em que ela representa uma alteração substancial da acusação do Ministério Público, nos termos do artigo 284.°, nº 1.

Face à profusão de posições sobre o conceito de “acusação manifestamente infundada”, reconduzindo algumas delas à prolação de jurisprudência obrigatória (já caduca) que, no extremo, veio a consagrar a possibilidade de rejeição da acusação por manifesta insuficiência da prova indiciária (acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 17-02-1997, in DR. I-A, de 26 de Março), o legislador (…) vem a propor a alteração do preceito, alterando os números 1 e 2 e aditando o nº 3 com três alíneas, como segue:


ARTIGO 311º

(Saneamento do processo)


1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem a apreciação do mérito da causa e de que possa, desde logo, conhecer.

2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido Instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar mani­festamente infundada:

b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 284.°, n.° 1, e 285.°, n.° 3, respectivamente.

3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

c) Se os factos não constituírem crime.

 Será assim que a Lei nº 59/98, de 25 de Agosto virá a alterar neste sentido o artigo 311º do Código de Processo Penal, aditando-se, no entanto, uma quarta alínea por sugestão do Cons. Maia Gonçalves, (…) ficando o preceito com a actual redacção, a saber:

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

d) Se os factos não constituírem crime.

Esta evolução, fazendo caducar a doutrina do acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 17-02-1997, é esclarecedora do reforço claro das dimensões orgânico-subjectiva e material do princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado.

E as diversas alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal definem, de forma clara, a área de actuação do juiz de julgamento, ao qual se impõe, em obediência àquele princípio, uma interpretação restritiva daquelas alíneas.

(…)

Aliás, é interessante verificar que as várias alíneas daquele nº 3 vêm a consagrar uma forma de nulidade da acusação por referência a uma forma extremada do vício.

As nulidades da acusação estão previstas no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal.

Como se sabe e em obediência ao princípio da taxatividade das nulidades processuais, estão construídas como nulidades sanáveis – cfr. artigos 118º a 120º do Código de Processo Penal.

Todos os casos referidos no nº 3 do artigo 311º se contêm – de forma mais ou menos explícita - nas previsões das alíneas do nº 3 do artigo 283º.

Daí que exista uma íntima conexão entre o nº 3 do artigo 283º e os números 2 e 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal.

Ali a previsão genérica das nulidades da acusação, que deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.

Aqui os casos extremos, indicados pelo legislador como de ameaça extrema aos princípios processuais penais com assento constitucional, reconduzindo-nos a um tipo de nulidade sui generis, insuperável ou insanável enquanto se mantiver acto imprestável, mas passível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de se permitir ao Juiz de julgamento a intromissão – atípica num acusatório puro – na acusação, de forma a evitar conduzir a julgamento casos em que seria manifesto isso se não justificar.

Assim, nos casos do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, não obstante o não afirmar, o legislador veio a consagrar um regime de nulidades da acusação que, face à sua gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na CRP, são insuperáveis, insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material. 

De facto, a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria uma gravíssima violação dos direitos de defesa do acusado, tornando inviável o exercício dos direitos consagrados no artigo 32º da CRP.

Naturalmente que essa tendencial taxatividade só poderá ser ultrapassada em casos de idêntica ou mais grave natureza não previstos pelo legislador, mas de igual ou mais grave violação da constituição processual penal. Veja-se o exemplo citado por Simas Santos, Leal Henriques, Borges de Pinho, de acusação do lesado em vez do arguido (…) ou de familiar deste em vez do arguido.

Em termos práticos, se ao juiz de julgamento não é permitido, em homenagem às dimensões material e orgânico-subjectiva da estrutura acusatória do processo, imiscuir-se ex oficio, nas nulidades genericamente referidas no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, já se lhe impõe que impeça a ida a julgamento de acusações nos casos contados previstos no nº 3 do artigo 311º.

(…) Estas maiores cautelas - e necessidade de uma interpretação restritiva – na ingerência na acusação mais se justificam se recordarmos que estamos face a casos em que o processo foi remetido a julgamento sem instrução. É que, nestes casos e face à dimensão orgânico-subjectiva do princípio do acusatório, exigir-se-ia que fossem diversos os juízes: o que aprecia a acusação e o juiz de julgamento.

Não sendo isso possível ou exequível, melhor se entende a tendencial taxatividade e necessidade de interpretação restritiva das hipóteses de rejeição por manifesta improcedência, única forma de evitar que o juiz que irá proceder ao julgamento se pronuncie sobre a substância da acusação, com a consequente desconformidade ao texto constitucional».

No caso em apreço, o assiste deduziu a acusação particular de fls. 92 a 96, imputando à arguida, Júlia, um crime de injúrias, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal, alegando, entre outros, que a arguida, andava de um lado para o outro, numa série de movimentos repetitivos, enquanto proferia as seguintes expressões: “gatuno”, “ladrão”, “assassino”, “depenado”, “porco”, “andas todo podre”, “andas a cair aos bocados”, “andas a espalhar o esterco, para ver se encontras algum frango morto para da parte da tarde matares a fome”, “hei-de te foder”.

No que toca ao lugar da prática dos factos, indica o assistente «a estrada que confronta com a sua propriedade denominada “Fontanheira”», faltando precisar o lugar onde se situa este prédio, lugar esse facilmente determinável em função dos elementos existentes no processo.

Referimo-nos, designadamente, ao auto de denúncia (fls. 3 e 4); ao requerimento que requereu a abertura de instrução (fls. 114 a 149); ao despacho que pronunciou os arguidos pela prática do crime de dano (fls. 193 a 195) e à certidão matricial de fls. 122.

Nenhuma dúvida subsiste sobre o sito onde se encontra a propriedade denominada “Fontanheira”. Fica na Quintela de Queirã, Vouzela.

A identificação da propriedade do assistente, sem menção do lugar onde se situa, configura uma descrição imperfeita da localização dos factos imputados à arguida e não uma omissão total do facto, sendo, por isso, susceptível de correcção.

Nesta perspectiva, é possível defender que a acusação enferma da nulidade sanável (dependente de arguição e não de conhecimento oficioso) prevista no artigo 283º, nº 3, al. b), do Código de Processo Penal, não assumindo relevância bastante para tornar a acusação manifestamente infundada nos termos e para efeitos do disposto no artigo 311º, nº 3, al. b), do Código de Processo Penal.

  Não podemos olvidar, como se afirma, no Acórdão desta Relação supra citado que: 

« (…) muito embora a acusação se destine a fazer-se valer de forma autónoma em julgamento, não deixa de ser uma peça provisória, a narração de “um pedaço de vida” a comprovar. É um ponto de partida factual e normativo passível de alteração ou correcção, ao contrário do que acontece com uma sentença».

Acresce que o aditamento do local onde se encontra o prédio denominado “Fontanheira” nem sequer assume a natureza de uma alteração não substancial de factos com relevo.

O mesmo é dizer que assiste razão ao recorrente, quando defende que a acusação particular deduzida contra a arguida B... não poderia ter sido rejeitada, como o foi,  nos termos do artigo 311ºº, nº 2, al. a) e nº 3, al. b) do Código de Processo Penal, devendo o recurso proceder.

Esta decisão prejudica o conhecimento das demais invocadas no recurso intercalar.


***

2. Recurso da Sentença 

2.1. Nulidade de sentença

Defendendo o Recorrente a nulidade da sentença, por falta de fundamentação, importa recordar, as menções que, sob pena de nulidade, devem constar da sentença, nos moldes impostos no nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal.

São elas:

- A enumeração dos factos provados e não provados;

- A exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para criar a convicção do tribunal.

Não definindo a lei, o que deve entender-se por exame crítico das provas, colhemos, a este propósito, os ensinamentos da jurisprudência e a doutrina, do qual se realça o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Março de 2007, onde se lê que o exame critico das provas:

«constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto - , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.

Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.

O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01).

O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00).

(…)

A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência».

Não basta que o decisor indique os factos provados e não provados, deve, também, explanar os motivos pelos quais julgou provado ou não provado determinado facto, esclarecendo quais os meios de prova produzidos, que, depois, de analisados, global, conjugada e criticamente, o levaram a decidir com decidiu.

Definido o exacto sentido e alcance do disposto no artigo 374º, nº 2, e compulsada a decisão recorrida, facilmente se conclui, que o tribunal a quo depois de enumerar os factos provados e não provados, justificou a formação da sua convicção.

Para tanto basta atentar, além do mais, na parte decisória que a seguir se transcreve:

«Os arguidos (…) declarando não se dar bem com o assistente, há mais de 30 anos, negaram a prática do corte dos ramos de um castanheiro do assistente. A fim de afastar qualquer responsabilidade, contaram ademais, que no dia a que os factos se reportam, saíram de casa bem cedo para visitar um amigo que vive no Caramulo e conduzi-lo ao Hospital de Viseu para tratamento médico, nunca podendo, estar por conseguinte, na propriedade do assistente à hora que consta na pronúncia. Muito embora as versões apresentadas por cada um dos arguidos não tenham sido escrupulosamente coincidentes entre si, no essencial mostraram-se consentâneas e corroborantes com os demais meios de prova por si apresentados.

Em sede de acusação, foram indicadas para serem ouvidas, o assistente, assistente, C... e as testemunhas I... e H... .

Aquele primeiro depôs de forma espontânea, mas  algo exaltada, denotando, contudo e como  expectável, alguma parcialidade (…).

A testemunha I... , conterrânea dos arguidos e do assistente, depôs de forma escorreita, não desmerecendo a atenção do tribunal, apesar do reconhecimento residual que revelou dos factos. O tribunal não revelou, por isso, o seu depoimento na formação da sua convicção. (…)

A testemunha H... , conterrânea dos arguidos e do assistente, depôs de forma segura, muito embora também tenha admitido não se dar bem com os arguidos, não revelando, ademais, o conhecimento directo dos factos constantes da pronúncia. (…)

E... , sobrinho do assistente (…) disse não se dar bem com os arguidos, não ter presenciado os factos em causa, bem como desconhecer os factos sobre os quais foi chamado a depor. (…).

F... e G... , amigos dos  arguidos e desconhecendo o assistente, depuseram de forma séria, espontânea e convincente, denotando isenção na descrição da factualidade sobre a qual revelaram conhecimento directo. Mereceram, por isso, credibilidade por parte deste tribunal. Desta forma, atestaram a presença dos arguidos na sua casa, em Pedronhe, no Caramulo, no dia dos autos, pelas 9h00, conforme previamente acordado entre si pelo telefone, para conduzir a testemunha F... ao Hospital de Viseu a fim de fazer um curativo ao olho direito, na decorrência de uma cirurgia ocorrida no dia anterior naquele Hospital. Confirmado pelo Hospital de Viseu a referida cirurgia, a data em que a mesma ocorreu, bem como a deslocação da referida testemunha ao Hospital de Viseu no dia dos autos, pela manhã, os referidos depoimentos mostram-se, no essencial, verdadeiros, corroborando a versão apresentada pelos arguidos   (…)».

Esta transcrição evidencia os motivos pelos quais o tribunal recorrido não acolheu a versão dos factos dada pelo assistente.

Fê-lo, não só porque os testemunhos de F... e G... e a informação do Hospital de Viseu corroboram a versão apresentada pelos arguidos, mas também, porque o depoimento do assistente – único que presenciou os factos - se mostrou parcial, não tendo sido corroborado por nenhum outro meio de prova.

Registe-se que as testemunhas I... e H... indicadas pela acusação não presenciaram os factos, não tendo conhecimento directo dos mesmos.

  Em suma, o decisor analisou de forma crítica os meios probatórios produzidos em audiência, não cometendo a nulidade que lhe é assacada.

Improcede esta pretensão do Recorrente.

 

2.2.Erro notório na apreciação da prova

o recorrente começa por afirmar que «aponta à douta sentença o vicio de erro notório de apreciação da prova» (fls. 456), para depois invocar a impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal (conclusões nºs 1 a 4).

Perante a forma usada para recorrer da matéria de facto  cumpre, antes de mais, delimitar o âmbito daquele conceito, para depois, apreciar, em concreto, os fundamentos invocados no recurso.

De facto, ficam dúvidas se a recorrente pretende invocar o vício do artigo 410º, n.º 2, al. c) - de conhecimento oficioso - ou se pretende ver reapreciada a matéria de facto dada como provada, nos termos do artigo 412º, n.º 3.

Como é sabido, o sistema processual penal vigente consagra um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando aos sujeitos processuais a possibilidade de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto (cf. artigo 410º, 412º, nº 3 e 431º, do Código de Processo Penal).

Existem, pois, duas formas diferentes de impugnação da decisão factual que não se confundem. De um lado, estão em causa os vícios previstos no citado artigo 410º, n.º 2, e , de outro, os requisitos de que depende a admissibilidade da impugnação – mais ampla – da matéria de facto a que alude o n.º 3, do artigo 412º.

Dispõe o artigo 410, nº 2, do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vicio resulte do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Resulta expressis verbis deste preceito que os vícios referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade – do texto da decisão recorrida - sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe são externos, para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes no processo, advindos do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15ª edição, pág.822; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 339, e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, pág. 77).     

O erro notório na apreciação da prova existe quando, a decisão ostenta um erro de apreciação da prova, observável por um homem de formação média:

Quando este (homem médio), «perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada e/ou das legis artis (sobre os vícios de conhecimento oficioso, como é o caso do erro notório da apreciação da prova, ver Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, págs. 61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado de cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva e evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal (…).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidenciam aos olhos de um homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, pág. 74» (Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1).

Este tipo de erro a ressaltar do teor da decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se confunde com o erro de julgamento.

Este, consagrado no artigo 412º, n.º 3, resulta da forma como o tribunal teria valorado a prova produzida. A simples discordância do recorrente sobre a decisão da matéria de facto não leva ao vício do erro notório que, ora se analisa.

Este erro de julgamento «ocorre, quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova produzida deveria ter sido considerado provado.

Neste caso de situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância, havendo que a ouvir em 2ª instância» (Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1).

Aqui, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida (como acontece com o vicio do erro notório da apreciação da prova), alargando-se à apreciação do que contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus da especificação a que alude o artigo 412º, n.º 3 a 6.

Como tem vindo a ser repetidamente afirmado na doutrina e jurisprudência:

 «Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412º, n.º3, do CPP:

3. Quando a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida» (Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1).

Posto isto e de regresso ao caso concreto.

Nas Conclusões 1 a 4, o recorrente esgrime argumentos com vista a demonstrar que  foram «incorrectamente julgados os factos não provados do ponto II, descritos  nas alíneas a) a e)», analisando cada uma das declarações orais prestadas em audiência transcrevendo as partes que, no seu entender são relevantes.

A pretensão do recorrente traduz-se, preferencialmente, em arguir o erro de julgamento em relação à decisão que recaiu sobre a matéria de facto, na medida em que defende que a prova produzida conjugada com as regras da experiência comum, imporia uma decisão diversa da que foi dada pela primeira instância.

Esta forma de impugnação da decisão sobre a matéria de facto leva-nos a concluir que o recorrente, não invoca o vício do erro notório na apreciação da prova previsto no 410º, n.º 2, al. c), antes impugnando a decisão sobre a matéria de facto, de forma ampla e prevista no artigo 412º, n.º3, já que alude expressa e concretamente a factores externos, exógenos à sentença (depoimentos de testemunhas, declarações da assistente e do arguido) e não ao teor do mesmo.

Em todo o caso, e como o conhecimento dos vícios previstos no n.º 2, do artigo 410º, é oficioso – Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995 –  impõe-se verificar se a sentença enferma daquele tipo de erro.

Adiantando, desde já a nossa posição, diremos que não.

É que o texto da decisão sindicada explica as razões que levaram o decisor a não acreditar na versão que o assistente trouxe aos autos, de forma lógica, racional e sustentada na prova produzida.

A simples discordância da recorrente com a decisão sobre a matéria de facto não conduz, por si só, necessariamente ao apontado vício do «erro notório na apreciação da prova», antes podendo levar a um erro de julgamento a arguir nos termos do artigo 412º, n.º 3, já referenciado.

De tudo o que precede, não se detecta qualquer erro, e muito menos, de erro com as características exigíveis para ser enquadrado, no erro notório na apreciação da prova, que, como acima se disse, respeita a um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, Rei dos Livros, 8ª Ed, 2011, pág. 80).

O que leva à improcedência da pretensão do recorrente.

2.3. Impugnação de facto (artigo 412º, nº3)

Como é sabido, a verdade material – o fim de todo o processo penal - não é uma verdade absoluta, mas uma verdade judicial, prática e sobretudo processualmente válida - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, pág. 194 - estando o tribunal sujeito, na sua investigação, ao princípio da livre apreciação da prova formulado no artigo 127º, segundo o qual «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente», salvo quando a lei dispuser de forma diferente.

A livre apreciação da prova não assenta numa convicção arbitrária e incoerente. Pelo contrário, está sujeita a um juízo objectivo, crítico e racional fundado nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na percepção da postura de todos os declarantes, tendo como limite a dúvida inultrapassável que conduz a uma decisão sempre favorável ao arguido (in dubio pro reo). Contudo, não podemos esquecer que a convicção é, também, uma convicção pessoal, na medida em que contém factores racionalmente inexplicáveis, como a própria intuição, e mesmo elementos exclusivamente emocionais (Figueiredo Dias, ob. citada, pág. 135 e ss). 

Os princípios da oralidade e da imediação assumem, aqui, particular relevância, na medida em que possibilitam a dita proximidade entre o tribunal e os demais intervenientes, em especial os declarantes, percepcionando um conjunto de circunstâncias que serão o suporte da decisão.

Através da oralidade o tribunal apercebe-se dos traços do depoimento denunciador da isenção, da imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções da voz, “olhares de súplica” para alguns dos presentes. Já a imediação vincula o juiz à percepção, utilização, valoração e credibilidade da prova (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Novembro de 2011).

«(…) A oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objectiva, atípica, e de valoração pela íntima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens» (Germano Marques da Silva , Do Processo Penal Preliminar, Lisboa, 1990, pág. 68).

A convicção do julgador decorre, assim, não só do teor objectivo de todos os meios de prova, mas também das sensações proporcionadas dos meios probatórios orais, tendo em conta «a forma como esta foi produzida, relevando, designadamente, a razão de ciência dos declarantes e depoentes, a sua serenidade e distanciamento, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem e cultura, os sinais, e reacções comportamentais revelados, a coerência ou falta dela, do seu raciocínio. E esta conjugação só é possível alcançar, no grau desejável, pela imediação e oralidade, pois só o contacto directo com o julgador com a prova, o “frente a frente” entre o juiz e a testemunha, o coloca em perfeitas condições de proceder, primeiro, à avaliação individual, e, depois, à avaliação global da prova» (Acórdão da Relação de Coimbra de 10-12-2014).   

No caso dos autos,

Discorda o recorrente da decisão que julgou não provados os pontos de facto elencados nas alíneas a) a e), do ponto II da sentença, insurgindo-se contra a credibilidade dada pelo tribunal às declarações dos arguidos e aos depoimentos das testemunhas F... e G... em detrimento das declarações prestadas pelo assistente.

Para tanto, coloca questões e interrogações, procurando demonstrar que os factos dados como não provados na sentença não têm correspondência com a análise que ele recorrente faz da prova produzida.

Em seu entender, é inconcebível não se acreditar no assistente, já que, de um lado  «descreveu de forma pormenorizada os acontecimentos que presenciou (…) e, de outro, seria necessário «ter uma imaginação muito fértil para inventar os diálogos entre ambos os arguidos e trazê-los aos autos».

Com estes fundamentos, o recorrente mais não pretende do que arredar a convicção formada pelo decisor, substituindo-a pela sua própria convicção.

Porém, esta convicção não se pode sobrepor à do tribunal, muito menos, quando esta se mostra, claramente alicerçada em critérios de razoabilidade, da experiência comum e, porque não dizê-lo, em ilações ditadas pela lógica das coisas.

A convicção do julgador da primeira instância assenta toda ela numa apreciação global, articulada e conjugada de todos os meios de prova, segundo as regras da lógica e do senso comum, obedecendo a uma lógica que se encontra sustentada, no conjunto dos meios probatórios produzidos em audiência, analisados global e criticamente, à luz das regras da experiência comum.

Já a convicção da recorrente manifesta-se parcial, assentando em partes do acervo probatório, desregradas das demais, não podendo, assim, sobrepor-se ao decidido.

Chegados aqui, acresce dizer que os meios de prova concretamente indicados pelo recorrente - as declarações dos arguidos; as declarações do assistente; as declarações das testemunhas I... e H... - não impõem uma decisão diversa da recorrida em relação aos pontos de factos impugnados, em especial o descrito na alínea a), com o seguinte teor:

«No dia 16 de Agosto de 2012, cerca das 8h00/8h30, os arguidos encontrando-se em cima de um tractor em funcionamento, num caminho que confina com a propriedade do assistente, munidos e utilizando, para o efeito, uma tesoura de poda, cortaram ramos de um castanheiro sito na propriedade daquele».

Na verdade, não tendo as testemunhas I... e H... presenciado os factos, resta a versão do recorrente. E, quanto a esta, não podemos olvidar que o assistente tem interesse directo nesta causa, sendo que, desde há mais de 30 anos, a relação com os arguidos é quezilenta, de constantes desavenças, ao ponto de afirmar «há muito que andava a ver se os apanhava para os meter em tribunal», sendo, por isso, tendencialmente parcial.

Não havendo qualquer outro meio de prova a corroborar a versão dos factos trazida pelo assistente, dificilmente se poderia formular um juízo de certeza quanto aos pontos de facto impugnados e relatados pelo assistente.

Por último, diga-se, que nas provas concretamente indicadas a fls. 468 a 471, nenhuma referência é feita ao valor do castanheiro (100€) ou às castanhas que o assistente deixou de apanhar.

Bem andou, assim, o tribunal a quo, quando julgou não provados os factos impugnados, não podendo, pois, estes factos ser dados como provados.

V - DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a Secção Penal deste Tribunal da Relação:

- Em julgar procedente o recurso intercalar, revogando a decisão recorrida;

- Em negar provimento ao recurso interposto da sentença final interposto pelo assistente.

O recurso intercalar não está sujeito a tributação.

No recurso da sentença final, as custas são suportadas pelo assistente/recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCS.

Coimbra, 28 de Setembro de 2016

(Alcina da Costa Ribeiro - relatora)

(Elisa Sales - adjunta)