Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
207/15.6T8GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
TÍTULO COMPLEXO
MÚTUO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
NOVO CÓDIGO PROCESSO CIVIL
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JC CÍVEL E CRIMINAL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.10, 703 CPC, ART.9 Nº4 DO DL Nº287/93 DE 20/8, ART.4 DL Nº 41/2013 DE 26/6
Sumário: 1 – Traduzindo a suficiência do título a exigência de que a obrigação exequenda dele conste, sem necessidade de indagação, sendo a sua existência por ele presumida, isto é, exigindo-se que o título executivo constitua instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, importa concluir que satisfazem tal requisito os documentos ajuizados atinentes a 3 (três) contratos de mútuo, nos quais figura muito expressamente referido que as quantias haviam sido entregues nas datas da celebração de cada um dos contratos, para além de que, das mesmas quantias, os mutuários, aqui Executados, logo se confessaram “devedores”, acrescendo que em relação a eles apenas estão a ser reclamados montantes correspondentes às prestações vencidas e em dívida, para além dos acréscimos contratual e legalmente devidos (taxas de juros e outros acréscimos – como despesas e comissões – fixados nos contratos).

2 – Preceitua o nº 4 do art. 9º do DL nº 287/93, de 20 de Agosto: «Os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela CGD, prevejam a existência de uma obrigação de que a CGD seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades».

3 – O dito DL nº 287/93, de 20 de Agosto, não se mostra revogado pelo art. 4º da Lei nº 41/2013, de 26/6, donde, mantendo-se em vigor, e resultando dos documentos apresentados (quer as duas escrituras públicas de contrato de mútuo com hipoteca, quer o documento particular de contrato de mútuo com hipoteca) as respectivas assinaturas, os mesmos revestem natureza de títulos executivos, cabendo na previsão do art. 703º, nº 1, al. d), do n.C.P.Civil.

4 – Acresce ainda que após a declaração de inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional, através do Acórdão nº 408/2015 de 23 de Setembro, se encontra firmado o entendimento de que é manifestamente inconstitucional, por violação do principio da segurança e da protecção da confiança, a interpretação das normas conjugadas do art. 703º do n.C.P.Civil (que elimina do elenco dos títulos executivos os documentos particulares assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias) e 6º, nº 3 do seu diploma preambular (que não ressalva a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013) no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares, exequíveis por força do disposto no art. 46º nº1, al. c) do C.P.Civil de 1961.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                *

1 – RELATÓRIO

CAIXA (…), S.A.” intentou execução para pagamento de quantia certa contra P (…) e F (…), em 27 de Janeiro de 2015, pedindo o pagamento da quantia de € 232.009,59.

Sustentou tal pedido apresentando um total de 4 (quatro) títulos executivos, a saber, duas escrituras públicas de contrato de mútuo com hipoteca (celebradas em 28 de Junho de 2007 e 25 de Setembro de 2007, respetivamente), um documento particular de contrato de mútuo com hipoteca (celebrado em 28 de Setembro de 2007) e uma letra de câmbio (emitida em 29.01.2007 e com data de vencimento em 26.01.2015), tendo, para o que ora releva, expressamente alegado o seguinte:

«1. A exequente é uma instituição bancária que se dedica com carácter habitual e fins lucrativos, ao comércio bancário, favorecendo a produção e circulação de capitais, realizando diversas operações financeiras, concedendo créditos a terceiros, particulares e empresas, permitindo o financiamento de projectos e da actividade industrial e/ou comercial e emitindo cartões de crédito.

2. No âmbito da sua actividade creditícia, a exequente celebrou 28 de Junho de 2007, com os executados, um contrato de mútuo com hipoteca, por escritura pública, nos termos da qual a exequente concedeu aos executados um empréstimo actualmente registado sob o nº PT 00 (...)5, da quantia global de Euros. 34.202,58 (trinta e quatro mil, duzentos e dois euros e cinquenta e coito cêntimos), contrato que melhor se identifica em "Declarações Complementares", conforme Documento n.º 1, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais.

3. Os executados confessaram-se devedores e constituíram-se principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido à exequente em consequência do contrato em causa

4. Acontece que, os executados deixaram de cumprir as suas obrigações, emergentes do contrato, acima descriminado em 28/09/2010, nomeadamente, com o pagamento das prestações, juros, despesas e comissões.

5. Encontrando-se em dívida, à data de 05/12/2014, a quantia de Euros. 34.150,88 (trinta e quatro mil, cento e cinquenta euros e oitenta e oito cêntimos), a seguir melhor discriminada.

6. A dívida é certa, líquida e exigível, tendo os títulos dados à execução força executiva com força bastante, nos termos da lei.

7. A exequente celebrou 25 de Setembro de 2007, com os executados, um contrato de mútuo com hipoteca, por escritura pública, nos termos da qual a exequente concedeu aos executados um empréstimo actualmente registado sob o nº PT 00 (...), da quantia global de Euros. 230.000,00 (duzentos e trinta mil euros), contrato que melhor se identifica em "Declarações Complementares", conforme Documento n.º 2, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais.

8. Os executados confessaram-se devedores e constituíram-se principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido à exequente em consequência do contrato em causa

9. Acontece que, os executados deixaram de cumprir as suas obrigações, emergentes do contrato, acima descriminado em 10/10/2010, nomeadamente, com o pagamento das prestações, juros, despesas e comissões.

10. Encontrando-se em dívida, à data de 05/12/2014, a quantia de Euros. 149.300,01 (cento e quarenta e nove mil, trezentos euros e um cêntimo), a seguir melhor discriminada.

11. A dívida é certa, líquida e exigível, tendo os títulos dados à execução força executiva com força bastante, nos termos da lei.

12. Em 28 de Setembro de 2007, a exequente celebrou com os executados, um contrato de mútuo, por documento particular, nos termos da qual a exequente concedeu aos executados um empréstimo actualmente registado sob o nº PT 00 (...), da quantia global de Euros. 39.671,58 (trinta e nove mil, seiscentos e setenta e um euros e cinquenta e oito cêntimos), contrato que melhor se identifica em "Declarações Complementares", conforme Documento n.º 3, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais.

13. Os executados confessaram-se devedores e constituíram-se principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido à exequente em consequência do contrato em causa.

14. Acontece que, os executados deixaram de cumprir as suas obrigações, emergentes do contrato, acima descriminado em 02/08/2010, nomeadamente, com o pagamento das prestações, juros, despesas e comissões.

15. Encontrando-se em dívida, à data de 05/12/2014, a quantia de Euros. 34.409,81 (trinta e quatro mil, quatrocentos e nove euros e oitenta e um cêntimos), a seguir melhor discriminada.

16. A dívida é certa, líquida e exigível, tendo os títulos dados à execução força executiva com força bastante, nos termos da lei.

(…)».

E ainda mais o seguinte em sede de “declarações complementares”:

«1. O contrato de empréstimo com o n.º PT 00 (...)5, no montante de Euros. 34.202,58 (trinta e quatro mil, duzentos e dois euros e cinquenta e oito cêntimos), destinou-se à transferência para a Caixa, mediante liquidação do capital em dívida, do empréstimo celebrado com instituição bancária, para habitação própria e permanente dos executados, quantia que desde logo se confessaram devedores.

2. Na data de outorga do contrato foi entregue aos executados tal valor que foi creditado conta de depósitos à ordem, titulada pelos mesmos e aberta na agência da exequente e cujo pagamento seria efectuado durante quarenta anos a contar da data em que foi celebrado, mediante prestações mensais constantes de capital, juros e outros encargos.

3. Foi estipulado no contrato que o capital mutuado venceria juros à taxa correspondente à média aritmética simples das taxas EURIBOR a três meses, acrescida de um spread de 0,625% o que se traduzia numa taxa de juro nominal, para pagamento mensais de 4,753%, a que correspondia uma TAE de 4,858%, sendo que em caso de mora a CGD poderá cobrar, sobre o capital exigível, juros calculados à taxa mais elevada de juros remuneratórios que estiver em vigor na Caixa credora para operações activas da mesma natureza, acrescida de uma sobretaxa até 4%, a título de cláusula penal, tudo nas demais condições, conforme Documento n.º 1 junto, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.

4. Para garantia do referido empréstimo os executados constituíram hipoteca, até ao limite máximo de Euros. 48.136,02 (quarenta e oito mil, cento e trinta e seis euros e dois cêntimos), sobre a Fracção Autónoma designada pela letra B, correspondente ao rés do chão direito do prédio sito na Avenida (...), Lote 8, na freguesia e concelho de Seia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Seia sob o n.º 828/B e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3881, da supra mencionada freguesia, hipoteca essa registada pela Ap.1 de 28/06/2007, tudo nos termos da certidão de ónus e encargos que se junta como Documento n.º 5 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.

5. Os executados em 28/09/2010 deixaram de cumprir as suas obrigações, emergentes do contrato, nomeadamente, com o pagamento das prestações, juros, despesas e comissões, encontrando-se, à data de 05/12/2014, em dívida a quantia global de Euros. 34.150,88 (trinta e quatro mil, cento e cinquenta euros e oitenta e oito cêntimos).

6. O contrato de empréstimo com o n.º PT 00 (...), no montante de Euros. 230.000,00 (duzentos e trinta mil euros), destinou-se à construção de moradia para habitação própria e permanente dos executados, quantia que desde logo se confessaram devedores.

7. Na data de outorga do contrato foi entregue aos executados tal valor que foi creditado conta de depósitos à ordem, titulada pelos mesmos e aberta na agência da exequente e cujo pagamento seria efectuado durante quarenta anos a contar da data em que foi celebrado, mediante prestações mensais constantes de capital, juros e outros encargos.

8. Foi estipulado no contrato que o capital mutuado venceria juros à taxa correspondente à média aritmética simples das taxas EURIBOR a três meses, acrescida de um spread de 0,230% o que se traduzia numa taxa de juro nominal, para pagamento mensais de 4,837%, a que correspondia uma TAE de 4,946%, sendo que em caso de mora a CGD poderá cobrar, sobre o capital exigível, juros calculados à taxa mais elevada de juros remuneratórios que estiver em vigor na Caixa credora para operações activas da mesma natureza, acrescida de uma sobretaxa até 4%, a título de cláusula penal, tudo nas demais condições, conforme Documento n.º 2 junto, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.

9. Os executados em 10/10/2010 deixaram de cumprir as suas obrigações, emergentes do contrato, nomeadamente, com o pagamento das prestações, juros, despesas e comissões, encontrando-se, à data de 05/12/2014, em dívida a quantia global de Euros. 149.300,01 (cento e quarenta e nove mil, trezentos euros e um cêntimos).

10. O contrato de empréstimo com o n.º PT 00 (...), no montante de Euros. 39.671,58 (trinta e nove mil, seiscentos e setenta e um euros e cinquenta e oito cêntimos), destinou-se à aquisição de bens ou serviços vários, para o uso ou consumo dos executados, de modo a satisfazer as suas necessidades pessoais ou familiares, quantia que desde logo se confessaram devedores.

11. Na data de outorga do contrato foi entregue aos executados tal valor que foi creditado conta de depósitos à ordem, titulada pelos mesmos e aberta na agência da exequente e cujo pagamento seria efectuado durante quarenta anos a contar da data em que foi celebrado, mediante prestações mensais constantes de capital, juros e outros encargos.

12. Foi estipulado no contrato que o capital mutuado venceria juros à taxa correspondente à média aritmética simples das taxas EURIBOR a três meses, acrescida de um spread de 1,500% o que se traduzia numa taxa de juro nominal, para pagamento mensais de 5,868%, a que correspondia uma TAE de 7,046%, sendo que em caso de mora a CGD poderá cobrar, sobre o capital exigível, juros calculados à taxa mais elevada de juros remuneratórios que estiver em vigor na Caixa credora para operações activas da mesma natureza, acrescida de uma sobretaxa até 4%, a título de cláusula penal, tudo nas demais condições, conforme Documento n.º 3 junto, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.

13. Os executados em 02/08/2010 deixaram de cumprir as suas obrigações, emergentes do contrato, nomeadamente, com o pagamento das prestações, juros, despesas e comissões, encontrando-se, à data de 05/12/2014, em dívida a quantia global de Euros. 34.409,81 (trinta e quatro mil, quatrocentos e nove euros e oitenta e um cêntimo).

(…)

16. Termos em que, requer a V. Exa. que se digne ordenar a citação dos Executados para, pagar à ora exequente a quantia de Euros. 232.009,59 (duzentos e trinta e dois mil, nove euros e cinquenta e nove cêntimos), bem como os juros vencidos e vincendos, bem como as custas e demais encargos processuais, seguindo-se os ulteriores termos legais.»

*

Foi proferido despacho que indeferiuparcialmente o requerimento executivo no que respeita à parte do pedido que excede os limites do título executivo (a letra de montante de 14.148,89 euros), prosseguindo apenas quanto a este valor, nos termos do disposto nos art. 726º, nº 3 do n.C.P.Civil, por se ter considerado que apenas nesta última parte (letra de câmbio) havia “suficiência do título”, o que se fez com base na seguinte linha de argumentação:

«Como é sabido, a suficiência do título, traduz a exigência de que a obrigação exequenda dele conste, sem necessidade de indagação, sendo a sua existência por ele presumida, ou seja, há­de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda capaz de, por si, revelar, com um grau de razoável segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo e a possibilidade do exequente fazer prova complementar dos pressupostos processuais específicos da exequibilidade da obrigação, não cobre nem supre a ausência no próprio título da demonstração da obrigação exequenda.

Sustentando o exequente a sua pretensão na existência de um contrato de mútuo com hipoteca, celebrado por escritura pública, um contrato de mútuo celebrado por documento particular e uma letra emitida em 29 de Janeiro de 2007, no montante global de 14.148,89 euros, apenas a letra traduz a exigência de que a obrigação exequenda dele conste, sem necessidade de indagação, sendo a sua existência por ele presumida, o mesmo não ocorrendo em relação aos contratos de mútuo, por si sós.».

                                                           *

   Inconformada com essa decisão, apresentou a Exequente recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)                                                    *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                           *

Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                           *

2 - QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, a questão a decidir consiste em saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento integral da execução, ou seja, saber se os documentos de contratos de mútuo dados à execução pela exequente “CAIXA (…), S.A.” constituem títulos executivos (aspeto da suficiência dos títulos; exequibilidade à luz do art. 9º, nº 4, do Decreto-Lei nº 287/93, de 20/8; subsidiariamente, que os documentos apresentados à execução valem como títulos executivos, porque constituídos em momento anterior à entrada em vigor do novo C.P.Civil, sendo inconstitucional diferente interpretação).

                                                           *

3 - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em consideração para a decisão são os que decorrem do relatório supra.

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

No essencial, o Sr Juiz a quo ponderou que do conjunto dos documentos apresentados à execução, 3 (três) deles não preenchiam o requisito da suficiência do título executivo, donde a decisão de indeferimento parcial quanto aos mesmos.

De referir que esses ditos 3 (três) títulos executivos são mais concretamente duas escrituras públicas de contrato de mútuo com hipoteca (celebradas em 28 de Junho de 2007 e 25 de Setembro de 2007, respetivamente) e um documento particular de contrato de mútuo com hipoteca (celebrado em 28 de Setembro de 2007)  

Assim sendo, cumpre naturalmente começar por apreciar esse direto e expresso fundamento do indeferimento liminar (parcial) decretado, o que, quanto a nós, passará liminarmente por se definir – aprofundando a compreensão – o que é o título executivo.

Vejamos então.

 O título executivo é o instrumento considerado como condição necessária e suficiente da acção executiva, necessária porque os actos executivos em que se desenvolve a acção não podem ser praticados senão na presença dele, suficiente porque, em face da sua presença, se segue, imediatamente, a execução, sem que se torne necessário efectuar qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que o mesmo se refere.

Atendendo a esta última característica, o título é, pois, algo que faz as vezes do direito que se pretende realizar, e que se lhe substitui, não podendo, por isso, reduzir-se à natureza de um simples meio de prova, mas antes significando um requisito necessário da existência do direito mencionado no documento, assumindo, assim, uma função constitutiva.

Trata-se de uma função constitutiva, que se não restringe ao momento inicial da vida do direito, mas que reveste um carácter permanente, pois que o documento é imprescindível, também, para o exercício e a transferência do direito.

O título executivo realiza, portanto, uma função constitutiva, na medida em que atribui exequibilidade a uma pretensão, possibilitando que a correspondente prestação seja realizada, através das medidas coactivas impostas ao executado pelo Tribunal.

O título executivo, apesar de ser um pressuposto específico da execução, de carácter formal, condiciona, igualmente, a exequibilidade extrínseca da pretensão.

É que a acção executiva pretende efectivar, na prática, a sanção emergente do incumprimento do devedor, com base na presunção ilidível da existência do direito subjectivo que se contém num documento, que se designa por título executivo.

Ora, dispõe o artigo 10º, nº 5, do n.C.P.Civil, que “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”.

E, efectivamente, a acção executiva supõe um título executivo, isto é, um título com força legal suficiente para servir de base à execução, que lhe determina os limites, ou seja, a extensão e o conteúdo da obrigação do devedor, a espécie e o montante da quantia, a identidade da coisa, a delimitação do facto e, consequentemente, até onde pode ir a acção do credor.

Por isso, a extensão do pedido encontra no texto do título a base necessária e suficiente para o exercício do direito de acção executória, emergindo ou nascendo do mesmo, porque fonte autónoma e imediata desta, com eficácia constitutiva, o direito do credor e a obrigação do devedor, o poder de executar daquele e a responsabilidade executiva deste.

Naturalmente que tendo o título executivo esta eficácia, importa que a extensão da demanda executiva se ache bem definida, quanto ao direito do credor e à obrigação ou responsabilidade executiva do devedor, isto é, que entre a causa de pedir, o título, com a respectiva factualidade obrigacional nele reflectida, e o pedido de satisfação da quantia nele contida, exista harmonia ou conformidade.

Por outro lado, o título executivo não é a causa de pedir na acção executiva, pois que a causa de pedir é um facto, um elemento essencial de identificação da pretensão processual, enquanto que o título executivo é o documento ou a obrigação documentada, um instrumento probatório especial da obrigação exequenda.[2]

“Quid iuris” no caso ajuizado, entrando agora mais diretamente no aspeto da (in)suficiência do título executivo?

«A suficiência do título traduz a exigência de que a obrigação exequenda dele conste, sem necessidade de indagação, sendo a sua existência por ele presumida. Numa outra formulação, o título executivo há-de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda; trata-se do documento capaz de, por si só, revelar, com um grau de razoável segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo, isto sem prejuízo da possibilidade do executado fazer prova de que, apesar do título, a dívida não existe -ou porque a obrigação, apesar da aparência, nunca se chegou a constituir, ou porque se extinguiu ou modificou, assim contrariando a aparência do direito que resulta do título[3]

Temos presente que no caso ajuizado, tratando-se como se tratava de contratos de mútuo – contrato real “quoad constitutionem”, no sentido de que só se completa pela entrega da coisa – a conclusão do próprio contrato e, consequentemente, a vinculação do mutuário à obrigação de restituir, depende da disponibilização pelo mutuante das quantias neles referidas (cfr. arts. 408º, nº 1, in fine e art. 1142º, ambos do C.Civil).

O mútuo é efetivamente, de sua natureza, um contrato real, no sentido de que supõe, como elemento essencial à sua constituição, a entrega da coisa sobre que versa, sem a qual e antes da qual o contrato não existe.[4]

Daí que, se o empréstimo de uma quantia em dinheiro implica a transferência desse dinheiro do mutuante para o mutuário (que se torna propriedade deste), na medida em que paralelamente o mutuário fica com a obrigação de restituir igual importância nos termos acordados.

Ora se assim é, confrontando agora os termos dos 3 (três) contratos de mútuo ajuizados, o que se constata é que neles figura muito expressamente referido que as quantias haviam sido entregues nas datas da celebração de cada um dos contratos, para além de que, das mesmas quantias, os aqui Executados logo se confessaram “devedores”…

 Por outro lado, não se invoque que no caso vertente entre as quantias reclamadas figuravam parcelares decorrentes da aplicação das cláusulas penais indemnizatórias, donde os contratos juntos não satisfariam o assinalado requisito da suficiência (isto é, que não constituiriam título executivo bastante).[5]

Sucede que também neste particular se constata insofismavelmente pelo confronto dos títulos executivos em causa que em relação a eles apenas estão a ser reclamados montantes correspondentes às prestações vencidas e em dívida, para além dos acréscimos contratual e legalmente devidos (taxas de juros e outros acréscimos – como despesas e comissões – fixados nos contratos).

O que tudo serve para dizer que se a Exequente, no requerimento inicial, liquidou as “obrigações exequendas” o fez com apelo – para efectuar o respectivo “cálculo aritmético” – a elementos que resultam da simples inspecção dos títulos, e tal como legalmente previsto (cf. art. 716º do n.C.P.Civil).

Assente isto, em termos dogmáticos, vejamos agora o quadro normativo aplicável à situação ajuizada, no que a este particular – dos títulos executivos – diz respeito, sendo certo que o mesmo nem foi invocado no requerimento executivo, nem na decisão recorrida.

 O artigo 703º, nº 1, do n.C.P.Civil, dispõe que «à execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;

b)  Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c)  Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;

d)  Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva».

A Exequente/recorrente apresentou à execução, como títulos executivos, duas escrituras públicas de contrato de mútuo com hipoteca (celebradas em 28 de Junho de 2007 e 25 de Setembro de 2007, respetivamente) e um documento particular de contrato de mútuo com hipoteca (celebrado em 28 de Setembro de 2007).

Na linha do já exposto, obviamente que importa concluir sem qualquer dúvida ou hesitação que os dois primeiros títulos executivos em causa, isto é, as duas escrituras públicas referenciadas, o são manifesta e indubitavelmente nos termos e para os efeitos do previsto na al. b) do citado art. 703º, nº 1, do n.C.P.Civil, enquanto documentos exarados em Cartório Notarial.

E idem se diga quanto ao documento particular (terceiro dos títulos executivos em causa), o qual importa considerar enquadrado na alínea d) do nº 1 do citado art. 703º do n.C.P.Civil (isto é, “nos documentos a que, por força de disposição especial, seja atribuída força executiva”).

Sucede que com isto entramos já na apreciação do segundo aspeto que supra se delineou entre as questões a decidir no presente recurso.

Com efeito, preceitua o nº 4 do art. 9º do DL nº 287/93, de 20 de Agosto que “Os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela CGD, prevejam a existência de uma obrigação de que a CGD seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades”.

Sendo certo que cumpre liminarmente sublinhar que este dito DL nº 287/93, de 20 de Agosto, não se mostra revogado pelo art. 4º da Lei nº 41/2013, de 26/6, antes se mantem em vigor, posto que este preceito legal não foi objecto de revogação expressa, nomeadamente, pelo art. 4º da Lei nº 41/2013, de 26/6, e, por tal razão, afigura-se-nos que o documento particular em causa, por titular acto/contrato realizado pela CGD, prever a existência de obrigações por parte dos mutuários e estar assinado pelos devedores (mutuários), cabe na previsão do art. 703º, nº 1, al.d), do n.C.P.Civil, e reveste-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades.[6]

Aliás, vem sendo doutamente enumerado entre os exemplos de documentos particulares que podem constituir título executivo, precisamente, o documento de contrato de mútuo concedido pela CGD, nos termos do art. 9º, nº 4, do DL 287/93.[7]

Assim sendo, está encontrado o fundamento para a insubsistência da decisão recorrida quanto a este terceiro título executivo (o fundado no documento particular).

Com o que fica prejudicada a apreciação do último fundamento recursivo – o que era inconstitucional a norma resultante dos arts. 703º do n.C.P.Civil e 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013 de 26.6 (que aprovou tal diploma), na interpretação de que aquele art. 703º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do n.C.P.Civil e então exequíveis por força do art. 46º, nº 1, c), do C.P.Civil de 1961, isto é, na parte que elimina os documentos particulares.

Em todo o caso, sempre se dirá que com base nele também sempre se concluiria pela insubsistência da decisão recorrida, pois que, após alguma dissensão doutrinal e jurisprudencial[8], na senda dos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 847/2014 (de 3/12/2014) e 161/2015 (de 4/3/2015)[9], se encontra presentemente firmado o entendimento de que é manifestamente inconstitucional, por violação do principio da segurança e da protecção da confiança, a interpretação das normas conjugadas do art. 703º do n.C.P.Civil (que elimina do elenco dos títulos executivos os documentos particulares assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias) e 6º, nº 3 do seu diploma preambular (que não ressalva a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013) no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares, exequíveis por força do disposto no art. 46º nº1, al. c) do C.P.Civil de 1961.

Acrescendo que nesse sentido se pronunciou expressamente, e com força obrigatória geral, o mesmo Tribunal Constitucional, através do Acórdão nº 408/2015, de 23 de Setembro, no qual, por violação do princípio da confiança, decidiu «declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703º do C.P.C. (aprovado em anexo à Lei nº 41/2013, de 26 de Junho) a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46º, nº 1, alínea c), do C.P.C. de 1961, constante dos artigos 703º do C.P.C., e 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho».

 Importa, pois, concluir que, ao contrário do entendimento sufragado na decisão recorrida, os contratos de mútuo dados à execução pela exequente CGD (quer as duas escrituras públicas de contrato de mútuo com hipoteca, quer o documento particular de contrato de mútuo com hipoteca) constituem título executivo , termos em que procede o recurso interposto pela mesma Exequente “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”.

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5 - SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Traduzindo a suficiência do título a exigência de que a obrigação exequenda dele conste, sem necessidade de indagação, sendo a sua existência por ele presumida, isto é, exigindo-se que o título executivo constitua instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, importa concluir que satisfazem tal requisito os documentos ajuizados atinentes a 3 (três) contratos de mútuo, nos quais figura muito expressamente referido que as quantias haviam sido entregues nas datas da celebração de cada um dos contratos, para além de que, das mesmas quantias, os mutuários, aqui Executados, logo se confessaram “devedores”, acrescendo que em relação a eles apenas estão a ser reclamados montantes correspondentes às prestações vencidas e em dívida, para além dos acréscimos contratual e legalmente devidos (taxas de juros e outros acréscimos – como despesas e comissões – fixados nos contratos).

II – Preceitua o nº 4 do art. 9º do DL nº 287/93, de 20 de Agosto: «Os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela CGD, prevejam a existência de uma obrigação de que a CGD seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades».

III – O dito DL nº 287/93, de 20 de Agosto, não se mostra revogado pelo art. 4º da Lei nº 41/2013, de 26/6, donde, mantendo-se em vigor, e resultando dos documentos apresentados (quer as duas escrituras públicas de contrato de mútuo com hipoteca, quer o documento particular de contrato de mútuo com hipoteca) as respectivas assinaturas, os mesmos revestem natureza de títulos executivos, cabendo na previsão do art. 703º, nº 1, al. d), do n.C.P.Civil.

IV – Acresce ainda que após a declaração de inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional, através do Acórdão nº 408/2015 de 23 de Setembro, se encontra firmado o entendimento de que é manifestamente inconstitucional, por violação do principio da segurança e da protecção da confiança, a interpretação das normas conjugadas do art. 703º do n.C.P.Civil (que elimina do elenco dos títulos executivos os documentos particulares assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias) e 6º, nº 3 do seu diploma preambular (que não ressalva a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013) no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares, exequíveis por força do disposto no art. 46º nº1, al. c) do C.P.Civil de 1961.

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6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final julgar procedente o recurso, assim se revogando a decisão recorrida de indeferimento liminar parcial, e ordenando o prosseguimento da execução também quanto ao três primeiros títulos executivos apresentados (as duas escrituras públicas de contrato de mútuo com hipoteca, e o documento particular de contrato de mútuo com hipoteca).

Sem custas.

                                                           *

Coimbra, 27 de Abril de 2017

             Luís Filipe Cravo ( Relator )

             Fernando Monteiro

            António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
[2] Veja-se quanto a estes conceitos o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 26-02-2008, no proc nº 1136/05-OTBCVL-A.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, que, aliás, seguimos de perto na exposição.   
[3] Citámos agora o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 17-12-2014, no proc nº 295/13.0TBPNI-A.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc
[4] Assim PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, vol. II., 3.ª ed., a págs. 680 e INOCÊNCIO GALVÃO TELES, in “O Direito”, 125.º, 1993, a págs. 190. 
[5] Isto por reporte ao entendimento doutrinal e jurisprudencial consolidado, mormente na vigência do anterior C.P.Civil, de que do título executivo devem resultar – dada a necessidade de se acautelar a certeza e segurança das obrigações – a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, o que não sucede quando estão em causa quantitativos que emergem de situações de incumprimento contratual que dependem da alegação e prova de factos que não têm expressão no próprio título, como é o caso da resolução do contrato, isto é, que não estariam por ele documentados nos termos exigidos pelo artigo 46º, nº1, al. c) do C.P.Civil, estando consequentemente inviabilizado o “cálculo aritmético” – cf., inter alia, o acórdão do T. da Rel. de Lisboa de 27-06-2007, no proc. nº 5194/2007-7, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[6] Neste sentido, ao que cremos largamente maioritário e dominante na jurisprudência, vide o acórdão do T. Rel. do Porto de 26/1/2015, no proc.  nº 1162/14.5T8PRT.P1, e os acórdãos do T. Rel. Coimbra de 28/04/2015 (no proc. nº 2186/14.8TJCBR.C1) e o de 16/02/2017 (no proc. nº 2673/16.3T8CBR.C1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.   
[7] Assim por LEBRE DE FREITAS, in “A Acção Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6ª ed., a págs. 80.
[8] De que nos é dado eco nos dois últimos arestos citados na nota antecedente.
[9] Ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.