Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1422/14.5TJCBR-AX.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
DESTITUIÇÃO
JUSTA CAUSA
Data do Acordão: 02/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - 3ª SEC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 55º, Nº 5, 56º, Nº 1, 58º E 61º, Nº 1, DO CIRE
Sumário: A conduta do Sr. Administrador de insolvência – ao violar os deveres de apresentar informações trimestrais sobre o estado da administração e liquidação e de prestar ao Tribunal os esclarecimentos solicitados – é bastante para integrar o conceito de justa causa para efeitos de decretar a sua destituição, até porque, a posterior actuação do Sr. AI não teve idoneidade para justificar e superar a falta de informação (objectiva e esclarecida) e a falta de transparência que decorria do incumprimento daqueles deveres e para repor a confiança dos credores e do Tribunal na sua actuação.
Decisão Texto Integral:




Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito do processo de insolvência referente a A..., Ldª, cuja insolvência foi declarada em 26/05/2014, foi nomeado administrador da insolvência – na própria decisão que declarou a insolvência proferida em 26/05/2014 – o Dr. B....

O referido administrador apresentou o relatório, tendo sido realizada a assembleia de credores em 12/09/2014 e 17/10/2014, onde foi aprovada – pela maioria dos credores – a manutenção da actividade comercial da Insolvente e a elaboração de um plano de insolvência no prazo de sessenta dias, com a suspensão da liquidação e partilha da massa insolvente.

Tendo sido, entretanto, determinado – por despacho de 07/01/2015 – que os autos prosseguissem com a liquidação do activo, na sequência do que havia sido deliberado pela Assembleia de Credores de 12/12/2014, vieram os credores, C...., D...., E.... , F.... , G.... , H.... , I.... , J.... , L.... , M.... , N.... e O.... , requerer – em 04/02/2016 – a notificação do Sr. AI para apresentar relatório da actividade por si desenvolvida e do estado da administração e da liquidação do qual constassem determinadas informações que especificaram, alegando que já haviam solicitado ao AI tais informações e que este não havia dado resposta. Pretendiam os aludidos credores que o Ar. Administrador da Insolvência prestasse as seguintes informações:

• Se, na sequência do encerramento da actividade da insolvente e prosseguimento dos autos para liquidação do activo, havia providenciado pela abertura de conta bancária titulada pela massa insolvente;

• Em caso afirmativo, qual era a instituição bancária e quais os sujeitos com poderes de movimentação (com junção do contrato de abertura de conta e extractos bancários);

• Em caso negativo, qual o motivo e onde se encontrava a verba de 511.250,00€ que havia recebido pela venda dos bens móveis;

• Se, além dessa verba, a massa insolvente havia recebido outras quantias e a que título;

• Quais as diligências feitas para promover a venda do imóvel;

• Qual a natureza e montante das despesas correntes da administração, com junção da documentação pertinente.

 

O Sr. A.I. foi notificado nos termos requeridos e não respondeu.

Em 10/03/2016, os aludidos credores vieram requerer a destituição do Sr. Administrador da Insolvência, alegando, em linhas gerais, que este não lhes havia prestado informações e esclarecimentos relativamente aos actos praticados e que, não obstante ter sido notificado pelo Tribunal – a pedido dos Requerentes – para prestar diversos esclarecimentos, não o fez, apesar de estar na posse, desde 15/05/2015, de cerca de meio milhão de euros em virtude da venda, através de leilão, dos bens móveis da Insolvente, mais alegando que o Sr. Administrador tem adoptado uma postura pouco transparente, furtando-se a prestar informações, designadamente quanto ao montante e localização das quantias por si recebidas e despendidas, limitando-se a informar, de forma vaga, que se encontra a reunir a documentação necessária para prestar a informação.

Por despacho de 07/04/2016, foi determinado que se insistisse com o Sr. AI para se pronunciar sobre o requerimento de 04/02/2016, tendo também sido ordenada a notificação da comissão de credores, da devedora e do Sr. Administrador para se pronunciarem sobre o pedido de destituição.

Em 14/04/2016, o Sr. AI veio apresentar o relatório previsto no art. 61º do CIRE, dando conta da venda de bens móveis e respectivo preço, informando que o valor recebido estava depositado em conta aberta no R... , agência de Anadia e que ainda não havia sido vendido o imóvel.

Em 26/04/2016, o Sr. Administrador veio responder ao requerimento onde se pedia a sua destituição, dizendo, em suma, que sempre prestou informações e esclarecimentos que lhe são solicitados e que apenas não o fez com maior brevidade dada a complexidade do processo.

Conclui dizendo não haver fundamento para a sua destituição.

Entretanto, a comissão de credores – tendo recebido o relatório apresentado pelo Sr. AI – veio requerer que o mesmo prestasse os esclarecimentos solicitados pelos credores que haviam pedido a sua destituição, apresentando os extractos bancários em conformidade, esclarecendo o modo e poderes de movimentação da conta bancária e prestando contas em conformidade.

Em 20/06/2016, o Sr. AI veio identificar as duas contas bancárias da insolvente, dizendo que uma delas é titulada pela Massa Insolvente e a outra pelo AI, informando os respectivos saldos, juntando os respectivos extractos e prestando algumas informações relativamente às despesas da Massa.

Os credores supra identificados – que haviam pedido a destituição – vieram então apresentar requerimento onde dizem que as informações prestadas pelo AI confirmam a violação dos deveres a que estava adstrito, aludindo a diversas irregularidades – como sejam o facto de a maior parte dos valores estar depositado em nome do AI e não em nome da Massa Insolvente, o facto de os pagamentos efectuados da referida conta não coincidirem com aqueles que o AI havia indicado e o facto de existir diferença entre o saldo que consta dos extractos bancários e aquele que havia sido indicado pelo AI – e requerendo a convocação de uma assembleia extraordinária de credores com o objectivo de dar ao AI a possibilidade de prestar todos os esclarecimentos aos credores e com vista a eventual deliberação no sentido da sua destituição e substituição.

O Q....., S.A., (membro da comissão de credores) além de solicitar outras diligências, veio também requerer a convocação de assembleia de credores para os fins referidos pelos demais credores.

Foi convocada a aludida assembleia e, depois de a data da aludida assembleia ter sido alterada duas vezes (uma deles por impedimento do AI), o Sr. Administrador veio apresentar requerimento – em 05/09/2016 – alegando que os requerimentos para a prestação de contas e para a convocação da assembleia haviam sido formulados por quem não tinha legitimidade para o efeito, requerendo, por isso, que fosse dada sem efeito a convocação da assembleia de credores – que estava convocada para o dia 08/09 – e que aqueles requerentes fossem condenados em custas pela prática de actos inúteis.

Na sequência desse facto, foi proferido despacho – em 06/09/2016 – pelo qual se indeferiu aquele requerimento dada a proximidade da data agendada para a assembleia que já havia sido adiada por duas vezes, razão pela qual era extemporânea a invocação da irregularidade para a sua convocação.

Entretanto, no próprio dia designado para a assembleia – 08/09/2016 – o Sr. Administrador veio apresentar requerimento onde dizia não poder comparecer em virtude de doença que comprovou com um atestado médico.

Foi então proferido despacho – em 08/09/2016 – que julgou procedente aquele pedido, determinando a destituição do AI por existir justa causa para o efeito.

Inconformado com essa decisão, o Administrador da Insolvência destituído – B... – veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1.ª – O pedido de informações, de prestação de contas e posterior pedido de destituição do ora recorrente, foi apresentado a pedido dos credores representados pela Ilustre Mandatária Sra. Dra. P.....

2.ª – Tais credores representam na sua totalidade apenas 4,139% dos créditos, e são os credores a quem por imperativo legal o A.I., ora recorrente, opôs a contestação às suas pretensões de que os alegados créditos seriam dívida da Massa Insolvente e que por conseguinte gozariam de precipuidade na sua satisfação, pretensões estas que decaíram “in totum”, por inexistência absoluta da factualidade que as pudesse sustentar.

3.ª – Tal decaimento terá gerado mal-estar nas expectativas de tais credores e que parecem estar subjacentes aos múltiplos e inusitados requerimentos que esta Ilustre Mandatária vem juntando aos autos, fazendo do processo e dos meios processuais um uso consciente e intencionalmente anormal do mesmo (art.º 612.º e 696.º, al. g) do C.P.Civil).

4.ª - Decorre do disposto no art.º 62.º, n.º 2 do CIRE, que só pode pedir a prestação de contas (1) a comissão de credores ou (2) a assembleia de credores, ou (3) o juiz por sua iniciativa, o que não é o caso, e resulta também do art.º 75.º, n.º 1 do CIRE que a assembleia de credores é convocada (1) pelo juiz por iniciativa do próprio, o que não foi o caso(!); (2) pela comissão de credores, o que não foi o caso(!); ou (3) de um grupo de credores cujos créditos representem na estimativa do juiz, pelo menos um quinto (20%) do total dos créditos não subordinados, o que também não foi o caso!

5.ª - Ante o exposto, é fora de dúvida, que os requerimentos, quer para a prestação de contas, quer para a convocação da assembleia de credores, foram formulados por quem para tal não tinha legitimidade, e que por isso praticou e suscitou a prática no processo de actos legalmente inúteis, por absoluta falta de titulação legitimante, pelo que deverão ser condenados nas custas do desvio da tramitação normal do processo a que têm vindo a dar causa (art.º 130.º do C.P.Civil).

6.ª - Tal ausência de legitimidade deveria ter sido verificada nos autos, dando sem efeito tudo quanto havia sido requerido por tais credores, o que não aconteceu e que consubstancia nulidade insanável de todo o processado posterior, o que se argui para todos os devidos e legais efeitos.

7.ª - No âmbito destes autos, vieram os supra mencionados credores em 13 de Janeiro de 2016, solicitar por carta, dirigida pessoalmente ao ora Recorrente esclarecimentos sobre o estado da administração e da liquidação da massa insolvente.

8.ª - Devido à complexidade dos autos – 5 volumes do processo principal e 48 apensos - e ao elevado número de informações que lhe foram solicitadas, as quais requeriam, para além da disponibilidade de tempo, estudo e selecção da documentação que se encontrava na posse do ora Recorrente, o mesmo, não tendo conseguido responder de imediato em tempo útil ao que lhe estava a ser solicitado, e não querendo, contudo, deixar sem resposta os Ex.mos Credores, comunicou à respectiva Mandatária que se encontrava a reunir as informações solicitadas, e que a resposta lhe seria enviada dentro dos dias seguintes, o que fez!

9.ª – Os momentos em que foram prestadas as informações que lhe foram solicitadas, estiveram assim relacionados com a complexidade deste processo de insolvência e respectivos apensos (57 volumes no total), e bem assim, com as necessárias pesquisas a efectuar dos respectivos documentos.

10.ª - O Recorrente prestou entretanto, todas as necessárias informações sobre a liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente, sobre as interpelações efectuadas aos devedores da mesma e sobre a manutenção e preservação dos bens apreendidos e ainda não liquidados.

11.ª – No que diz respeito às informações solicitadas quanto às contas bancárias da Massa Insolvente, o ora Recorrente prestou a informação solicitada, de forma clara e transparente, indicando quais as contas abertas para a Massa Insolvente, bem como os saldos das mesmas.

12.ª – Informou também o ora Recorrente sobre as despesas da Massa Insolvente, nomeadamente, que foram pagos honorários e despesas às Mandatárias da massa insolvente; ao Contabilista Certificado contratado para assegurar a contabilidade, apoio fiscal e recuperação de créditos fiscais/tributários; despesas de manutenção e limpeza do edifício apreendido a favor da massa insolvente, por forma a mantê-lo em boas condições de utilização, assegurando assim o seu valor comercial e preservação ambiental, face aos resíduos industriais tóxicos e inflamáveis que se encontravam no interior do imóvel, alguns até derramados pelo chão e a escorrer para terrenos vizinhos; despesas com a segurança do edifício; e demais despesas de administração correntes e emergentes da massa insolvente.

13.ª – O Recorrente sempre foi dando assim resposta às solicitações que lhe eram endereçadas, tendo nessa sequência também elaborado o relatório nos termos do disposto no artigo 61.º do CIRE, pelo que, salvo o a devido respeito, não pode o Recorrente aceitar o teor do Despacho em crise, quando refere que “sem qualquer justificação válida, não respondeu aos esclarecimentos dos credores que requereram a sua destituição (…)”. E isto, porque o ora Recorrente cumpriu com que que legalmente lhe é imposto.

14.ª – De igual modo, durante todo o processo em que tem decorrido a fase de liquidação, o ora Recorrente sempre informou a Comissão de Credores e os restantes credores das diligências de venda realizadas e, bem assim, do seu resultado, de onde resulta, em abono da verdade que o AI tem vindo a informar os autos e a respectiva Comissão de Credores, a par e passo, sobre a administração e liquidação da massa insolvente, solicitando a autorização desta última para a venda de bens, quando tal se mostrou necessário.

15.ª - Por outro lado, também não pode o Recorrente aceitar que venha o Tribunal a quo dizer que o mesmo não teria, alegadamente, cuidado de acautelar pela conservação dos bens compreendidos na massa com a diligência devida, e que, por isso, tenham os credores ficado lesados em montante não inferior ao valor dos bens furtados.

16.ª – De facto, nem o ora recorrente, nem outro qualquer administrador poderia permanecer no imóvel, ou contratar quem lá ficasse, durante 24 horas diárias, sendo essa a única forma que poderia, eventualmente, evitar eficazmente qualquer situação de furto, sendo consabido que, não obstante todas as medidas de polícia que vem sendo adoptadas, há gabinetes de juízes que são assaltados e alvo de furtos e ou roubos, (v.g. 3.ª Juízo do Comércio de V. N. de Gaia) e até Esquadras são assaltadas!... Sendo de todo inconcebível que alguém se atreva, no uso normal das faculdades mentais de qualquer “bonus pater familias” que a culpa de tais furtos e ou roubos seja da responsabilidade do respectivo Juiz, ou do Comandante do posto da polícia.

17.ª – O recorrente contratou com a empresa de segurança “S...” um sistema de vigilância para as instalações da insolvente de forma a evitar e dissuadir qualquer situação de furto ou roubo, o que se afigurou como a situação que melhor defendia os bens da massa, sem onerar, excessivamente, a massa insolvente – o que mereceu sempre a inteira concordância de todos os credores, que contra tal nunca esboçaram qualquer reparo nem censura, nem sugeriram e muito menos reclamaram melhores medidas de protecção e ou segurança dos bens-, pelo que padece de fundamento a conclusão do Tribunal a quo de que o recorrente não teria agido com a diligência devida e de que como consequência directa e necessária dessa sua alegada conduta, os credores da massa teriam sido lesados.

18.ª – E ainda que assim fosse, o que não se concede nem concebe, sempre o alegado prejuízo seria muito inferior aos benefícios para a massa insolvente que resultaram da sua actuação desde que foi nomeado nos autos.

19.ª - Mesmo que a actuação do administrador de insolvência seja susceptível de causar prejuízos à massa insolvente ou aos credores, não gera incompatibilidade que o impeça de continuar no exercício do seu cargo se não revelar falta de qualidade ou de preparação técnica adequada do administrador nem consubstanciar conduta negligente ou dolosa.

20.ª – Segundo o acórdão da Relação de Guimarães de 16.04.2009 (Amílcar Gonçalves) – “a destituição do administrador da insolvência só pode ter lugar se existir justa causa, revelada nos factos alegados e provados no processo; a justa causa é sempre alguma circunstância ligada à pessoa ou a uma conduta do administrador que, pela sua gravidade inviabilize, em termos de razoabilidade, a manutenção das suas funções e terá sempre de ser apreciada em concreto, face à factualidade que se provar, tendo em conta os vários aspectos relacionados com a sua gestão”.

21.ª – E embora caiba ao juiz decidir se há ou não fundamento para destituir o administrador, independentemente do sentido do parecer da comissão de credores, do devedor e do próprio administrador, o certo é que não pode deixar de os ouvir, o que não aconteceu nos presentes autos, preterindo-se, desse modo, os direitos à igualdade de tratamento e do contraditório, formalidades essenciais prévias à para a tomada da decisão de destituição, ou não, do ora recorrente.

22.ª – E no que diz respeito ao ora recorrente, atentas as consequências que derivam para si da destituição, a sua não audição, como ocorreu nestes autos, viola mesmo o princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 2.º, 12.º, n.º 1, 13.º, 20º. e 208.º da Constituição da República Portuguesa e artigo 6.º da CEDH, ex vi artigo 8.º da CRP e artigos 4.º, 6.º e 7.º do CPCivil, ex vi artigo 17.º do CIRE, na vertente da “proibição da indefesa”.

23.ª – De facto, encontrava-se agendada para o dia 08 de Setembro de 2016 uma Assembleia Extraordinária de Credores, com vista à deliberação pelos mesmos da questão colocada da destituição do recorrente, sendo que em tal data, por motivo de doença documentado nos autos, o recorrente não se pode deslocar ao Tribunal para a realização da referida diligência e, prestar, conforme era a sua intenção, todos os esclarecimentos que lhe fossem solicitados, quer pelos credores presentes, quer pelo Tribunal.

24.ª – Paradoxalmente, ao invés de agendar nova data para a realização da referida Assembleia, para que o recorrente pudesse estar presente e prestar os restantes esclarecimentos solicitados e, todos os outros que os Ex.mos Credores e o Tribunal entendessem por convenientes, o Tribunal a quo deu, definitivamente, sem efeito tal diligência e, sem agendar uma nova data, proferiu logo Despacho de destituição do aqui recorrente.

25.ª - Ora, tendo sido proferida decisão que destituiu o administrador da insolvência sem previamente o ouvir, nem a nenhuma das entidades referidas no n.º. 1 do art.º. 56.º. do CIRE, cometeu-se a nulidade prevista no artº. 201º., do C.P.Civil, que determina a anulação daquela decisão.

26.ª – É hoje doutrinal e jurisprudencialmente consensual que os princípios da igualdade de tratamento e do contraditório devem ser entendidos como uma garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o mérito e economia do litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareça, como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito e de incindir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo, acautelando a boa gestão processual e garantindo a efectiva participação cooperativa de todos os intervenientes processuais entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia a justa composição do litígio.

27.ª – Cabendo ao juiz apreciar a prova, as partes têm o direito de, antes da apreciação final, se pronunciarem sobre os termos em que ela deve ser feita. É-lhes assim facultado, uma vez produzidas as provas, discuti-las, pronunciando-se sobre a matéria de facto que consideram e aquela que não consideram, provada.

28.ª - No plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da prolação da decisão, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie, sendo que a proibição da chamada decisão surpresa impõe que seja assegurada efectividade material do contraditório ao longo de toda a tramitação.

29.ª - Não basta, pois, para que esta vertente do princípio do contraditório seja assegurada, que às partes, em igualdade, seja dada a possibilidade de, antes da decisão, alegarem de direito. É preciso que, mesmo depois desta alegação, possam fazê-lo ainda quanto a questões de direito novas, ainda não discutidas no processo.

30.ª – Assim, evidencia-se sem margem para dúvidas que não se curou de garantir ao recorrente, o direito ao exercício efectivo do contraditório, violando-se também os princípios ínsitos na ideia do Estado de Direito Democrático com especial destaque para a violação dos direitos à igualdade de tratamento e ao processo leal e justo, consagrados designadamente nas disposições conjugadas dos artigos 56.º do CIRE; 3.º, n.º 3 e 4.º, 6.º, 7.ºdo C. P. Civil; 2.º, 12.º, n.º 1, 13.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, n.º 1 a contrario, 20.º, n.º 1, segmento inicial, 4.º, 5.º, 25.º, 26.º, n.º 1, 205.º e 208.º da CRP e 6.º n.º 1, 2, e 3, als. a) e b), 14.º, 17.º e 18.º da CEDH; 20.º, 21.º, 41.º, 47.º, 48.º, 52.º, 53.º, e 54.º da CDFUE; arts 1.158.º, n.º 1 segmento final,; 1167.º a), b) c) e d) do C. Civil; 231.º, 232.º, 243.º do C. Comercial).

Termos em que e, sempre com o Mui Douto Suprimento de V.as Ex.ªs se pugna pelo provimento deste recurso e pela revogação do Douto Despacho proferido em 08 de Setembro de 2016 e pela nulidade do processo a partir inclusive do requerimentos para prestação de contas / esclarecimentos e para convocação da Assembleia de Credores, substituindo-se o mesmo por outro que dê provimento ao supra exposto e requerido, reconduzido o AI ora recorrente às funções de AI desta insolvência, com todas as legais consequências.

O Ministério Público e os credores C... , D... , E... , F... , G... , H... , I... , J... , L... , M... , N... e O... , vieram apresentar contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso, o mesmo acontecendo com o credor Q... , S.A. que veio aderir, na íntegra, às referidas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se foi praticada nulidade – que afecte todo o processado posterior – pelo facto de os requerimentos, quer para a prestação de contas, quer para a convocação da assembleia de credores, terem sido formulados por quem para tal não tinha legitimidade;

• Saber se a decisão recorrida foi proferida sem que tivessem sido ouvidos – com a lei impõe – o próprio administrador, o devedor e a comissão de credores e se, por essa razão, foi cometida nulidade – designadamente por violação do contraditório – que determine a anulação da decisão;

• Saber se ocorre justa causa para a destituição do Sr. Administrador da Insolvência.


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III.

A decisão recorrida fundamentou-se nos seguintes factos resultantes dos autos:

Por despacho de 8 de Janeiro de 2015 foi determinado o prosseguimento dos presentes autos com a liquidação do activo.

Em 15 de Maio de 2015 realizou-se um leilão público para venda dos bens apreendidos para a massa insolvente, entre os quais um imóvel e vários bens móveis.

Nessa data, foram arrematados todos os bens móveis apreendidos para a massa insolvente por um preço global de € 511.250,00.

Por carta registada de 13 de Janeiro de 2016, os ora requerentes solicitaram ao Sr. AI esclarecimentos sobre o estado da administração e liquidação da massa insolvente.

Apesar de ter recebido a referida comunicação em 14 de Janeiro de 2016 (cfr. fls. 1093), o administrador da insolvência não apresentou qualquer informação ou esclarecimento sobre as questões suscitadas pelos credores requerentes.

Por esse motivo, em 4 de Fevereiro, os credores ora requerentes apresentaram nos autos o requerimento com o teor do documento de fls. 1075 e seguintes.

Em 8 de Fevereiro de 2016, o administrador da insolvência remeteu à mandatária dos ora requerentes uma comunicação a acusar a recepção da missiva de 13 de Janeiro de 2016, informando que se encontrava a reunir toda a informação solicitada a qual seria enviada em breve.

A 11 de Fevereiro de 2016, o Sr. AI foi notificado pela secretaria da junção do requerimento de 4 de Fevereiro de 2016.

Como Sr. AI não respondeu, o tribunal determinou que se insistisse com a resposta, por despacho de 7 de Abril de 2016 (cfr. fls. 1098).

No dia 14 de Abril de 2016, o administrador da insolvência juntou aos autos o relatório de fls. 1104 e seguintes, e, sem qualquer justificação válida, não respondeu aos esclarecimentos dos credores que requereram a sua destituição, designadamente se providenciou ou não pela abertura de uma conta bancária titulada pela massa insolvente, em caso afirmativo em que instituição bancária e quais os sujeitos com poderes de movimentação da referida conta, quais as diligências efectuadas para venda do imóvel apreendido, qual a natureza e montante das despesas decorrentes da administração da massa insolvente.

Relativamente à questão dos furtos nas instalações da insolvente, o Sr. AI reconhece que foram furtadas as verbas nºs 48, 68, 70, 71 e 74, cujo valor ascende a € 6.365,00, sendo que os ora requerentes haviam advertido o Sr. AI para tal situação em inícios de Setembro de 2015.

Apesar de o administrador da insolvência ter alegado que o valor dos bens vendidos - € 456.750,00 - se encontra depositado em conta aberta no Banco R... , agência de Anadia, não cuidou de informar se tal quantia está aplicada em produtos financeiros que garantam alguma rentabilidade aos credores, desconhecendo-se que medidas foram encetadas pelo Sr. AI nesse sentido.

Só em 20 de Junho de 2016 veio o Sr. Ai informar que a massa insolvente dispõe de duas contas bancárias, indicando os respectivos nºs de contas, esclarecendo que a quantia resultante da venda dos bens não se encontra aplicada, alegando que tal comporta riscos e informando que nenhum produto financeiro oferece qualquer rentabilidade.

Nessa resposta, o administrador da insolvência esclarece que uma das contas bancárias é titulada por si (conta nº 0-4828034.000.097 que apresenta um saldo de € 331.934,79) e outra pela massa insolvente (conta nº 2-5252704.000.001 que apresenta um saldo de € 25.946,90), sendo que ambas têm a natureza de conta à ordem e são movimentadas pelo próprio AI.

Analisado o extracto da conta titulada pelo administrador da insolvência e junto aos autos pelo próprio Sr. AI, verifica-se o registo de pagamentos em restaurantes (cfr. fls. 1211 e 1212), hotéis, levantamentos em numerário, diversas comissões de levantamento fora da zona euro, compras diversas.

Tais pagamentos não foram justificados pelo administrador da insolvência, sendo que se desconhece qual a relação de tais despesas com a liquidação da massa insolvente, tal como conclui o Banco R... , S.A. no seu requerimento de fls. 1253 e seguintes.

A maior parte dos montantes pecuniários resultantes dos actos de liquidação se encontram depositados na conta titulada pelo Sr. AI e não na conta titulada pela massa insolvente.

Para além disso, os pagamentos efectuados na referida conta não coincidem com as despesas referidas no ponto 7 da resposta apresentada nos autos pelo administrador da insolvência.

O Sr. AI informa que a conta por si titulada apresenta um saldo de € 331.934,79, sendo que, de acordo com os extractos juntos em Abril de 2016, a referida conta apresentava um saldo de € 386.073,02, existindo, por isso, uma diferença de €54.138,23, para a qual não foi apresentada qualquer justificação.

Apesar de o Sr. AI ter protestado juntar documentação relativa à cobrança de vários créditos da insolvente, ainda não informou o tribunal, nem os credores do montante efectivamente cobrado até à presente data e em que conta foi depositado esse montante.

Os credores, ora requerentes, solicitaram a marcação de uma assembleia extraordinária de credores para dar ao Sr. AI a possibilidade de prestar todos os esclarecimentos aos credores sobre os aspectos relacionados com o exercício das suas funções.

Tal assembleia foi marcada por despacho de 6 de Julho de 2016 (cfr. fls 1262), posteriormente adiada por impossibilidade do Sr. Juiz de turno.

A fls. 1293 veio o Sr. AI informar o tribunal da impossibilidade de estar presente no dia designado para a realização de tal assembleia por já ter uma outra assembleia de credores anteriormente agendada.

Reagendada a referida assembleia para o dia de hoje, veio o Sr. AI informar da impossibilidade da sua comparência, por motivo de doença, juntando o respectivo atestado médico.

Em Julho passado, aquando da sua notificação para prestar os esclarecimentos solicitados pelos credores, veio o Sr. AI requerer duas prorrogações de prazo, uma em 22 de Julho de 2016, por motivo de doença, juntando o respectivo atestado médico (cfr. fls. 1301 e 1302) e outra no dia 1 de Agosto de 2016, com o mesmo fundamento (cfr. fls. 1308 e 1309).


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IV.

Dispõe o art. 56º, nº 1, do CIRE que “O juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar existir justa causa” e foi ao abrigo dessa disposição legal que a decisão recorrida determinou a destituição do Sr. Administrador – ora Recorrente – fundamentando essa decisão e a existência de justa causa nos factos supra enunciado e nas seguintes considerações:

O descrito comportamento do administrador da insolvência revela que o mesmo não tem cumprido com inúmeras obrigações a que se encontra vinculado, designadamente o dever de prestar atempada e oportunamente todas as informações e esclarecimentos que lhe são solicitados pelo tribunal e pelos credores relativamente à liquidação da massa insolvente, sendo tais omissões incompatíveis com a natureza urgente dos presentes autos e com a satisfação da finalidade do processo que consiste na liquidação dos bens apreendidos para satisfação dos credores reclamantes.

Por outro lado, a sua conduta revela falta de transparência na utilização das quantias resultantes dos bens vendidos, designadamente com a abertura de uma conta em nome próprio, de onde resulta a realização de despesas não justificadas, com prejuízo claro para os credores.

Estes, por sua vez, apesar dos esforços despendidos em requerimentos ao administrador da insolvência e ao tribunal, não veêm as suas dúvidas dissipadas nem esclarecidas relativamente ao paradeiro das quantias resultantes da liquidação dos bens móveis vendidos, sentindo-se lesados, por outro lado, com os furtos dos bens ocorridos nas instalações da insolvente.

Assim sendo, resulta evidente que o comportamento do Administrador da Insolvência tem-se traduzido numa violação reiterada e grosseira dos seus deveres, nada mais restando ao tribunal do que determinar a sua destituição”.

Insurgindo-se contra a decisão recorrida, o Apelante começa por fazer referência às motivações que teriam estado subjacentes ao pedido de informações e prestação de contas e posterior pedido de destituição e que, segundo alega, se prenderia com o mal-estar gerado nas expectativas dos credores que formularam esses pedidos dada a contestação que o Apelante opôs às pretensões que os mesmos haviam deduzido a propósito da classificação dos seus créditos.

Mas, salvo o devido respeito, essas circunstâncias não assumem aqui qualquer relevância; o que importa saber é se existe justa causa para a destituição e, se tal acontecer, pouco interessa saber quais as exactas motivações dos credores que vieram despoletar essa destituição.

Mais sustenta o Apelante que os requerimentos, quer para a prestação de contas, quer para a convocação da assembleia de credores, foram formulados por quem para tal não tinha legitimidade - uma vez que, de acordo com o disposto nos arts. 62º e 75º, a prestação de contas só pode ser pedida pela comissão de credores ou pela assembleia de credores ou ordenada por iniciativa do juiz e a assembleia dos credores apenas pode ser convocada por iniciativa do juiz, pela comissão de credores ou por um grupo de credores cujos créditos representem na estimativa do juiz, pelo menos um quinto (20%) do total dos créditos não subordinados, o que não foi o caso – razão pela qual foi cometida nulidade insanável de todo o processado posterior.

Em primeiro lugar, cabe referir que, ainda que se configurasse tal nulidade, ela teria que ser arguida dentro do prazo previsto no art. 199º do CPC, apenas podendo ser arguida perante o tribunal superior, caso o processo fosse expedido em recurso antes de findar aquele prazo (nº 3 da citada disposição), o que manifestamente não acontecia aqui, já que o Apelante tomou conhecimento da pretensa nulidade no momento em que foi notificado dos aludidos requerimentos e, portanto, há muito que havia decorrido o aludido prazo.

Em segundo lugar, importa dizer que o Apelante invocou essa pretensa irregularidade em 1ª instância – mediante requerimento que apresentou em 05/09/2016 onde invocou a situação que agora vem invocar e requerendo, com esse fundamento, que fosse dada sem efeito a convocação da assembleia de credores – e sobre essa questão incidiu o despacho de 06/09/2016 que indeferiu o requerido por ser extemporânea a invocação da irregularidade. Assim, porque a questão foi apreciada e decidida por despacho, tal decisão só poderia ser alterada mediante recurso a interpor desse despacho, o que, no caso, não aconteceu, já que o Apelante não interpôs recurso desse despacho (o presente recurso incide apenas sobre o despacho que decretou a destituição do Sr. Administrador da Insolvência).

Diga-se, por último, que tal circunstância não corresponderia a qualquer nulidade que determinasse – como pretende a Apelante – a anulação de todo o processado posterior; a falta de legitimidade daqueles credores para os referidos efeitos determinaria apenas o indeferimento do respectivo pedido e não impediria que o juiz, se o entendesse oportuno e ao abrigo dos poderes que a lei lhe confere, determinasse a prestação de contas ou convocasse a assembleia. Refira-se, além do mais, que a assembleia de credores (que, aliás, não chegou a realizar-se) também foi convocada a pedido do Q... , S.A. – membro da comissão de credores – em requerimento de 01/07/2016 e o pedido de informações/prestação de contas que havia sido solicitado pelos credores supra identificados foi também reafirmado pela comissão de credores em requerimento apresentado em 26/04/2016.

É certo, portanto, que a questão colocada pela Apelante não releva para efeitos de revogar ou alterar a decisão recorrida.

Mais diz o Apelante que a decisão recorrida foi proferida sem que tivessem sido ouvidos – com a lei impõe – o próprio administrador, o devedor e a comissão de credores, preterindo-se, desse modo, os direitos à igualdade de tratamento e do contraditório, formalidades essenciais prévias à tomada da decisão de destituição, ou não, do ora recorrente. Acrescenta que, estando agendada para o dia 08/09/2016 uma Assembleia Extraordinária de Credores, com vista à deliberação pelos mesmos da questão colocada da destituição do recorrente e não lhe tendo sido possível, por motivo de doença, deslocar-se ao Tribunal para a realização da referida diligência, o Tribunal a quo deu, definitivamente, sem efeito tal diligência e, sem agendar uma nova data, proferiu logo despacho de destituição do aqui recorrente, sem o ouvir previamente e sem ouvir nenhuma das entidades referidas no n.º. 1 do art.º. 56.º. do CIRE.

Nesses termos, aludindo a uma série de disposições legais que teriam sido violadas, conclui ter sido cometida uma nulidade prevista no art. 201º do CPC o que determina a anulação daquela decisão.

Sendo indiscutível que, como preceitua o art. 56º, nº1, do CIRE, o juiz, antes de decretar a destituição do AI, deve ouvir a comissão de credores, o devedor e o administrador da insolvência, importa distinguir, a propósito da questão suscitada pelo Apelante, duas situações.

Relativamente aos factos que fundamentaram o pedido de destituição formulado pelos credores supra identificados em 10/03/2016, não tem qualquer fundamento a alegação do Apelante, na medida em que, conforme despacho de 07/04/2016 (fls. 275 dos presentes autos de recurso), a comissão de credores, a devedora e o administrador da insolvência foram, efectivamente, notificados nos termos e para os efeitos da citada disposição legal. A comissão de credores, a devedora e o AI tiveram, portanto, a oportunidade de se pronunciar sobre a destituição com fundamento naqueles factos, considerando-se, por isso, cumprida a exigência imposta pela norma supra citada, sem que se configure – ao contrário do pretende o Apelante – qualquer violação do contraditório ou de qualquer formalidade imposta por lei. Não releva, para este efeito, a circunstância de ter sido, entretanto, convocada uma aludida assembleia de credores com o objectivo de dar ao AI a possibilidade de prestar todos os esclarecimentos aos credores e com vista a eventual deliberação no sentido da sua destituição e substituição de credores e a circunstância de ter sido proferida decisão sobre a destituição sem que tal assembleia fosse realizada. E não releva porque, como dissemos, a comissão de credores, a devedora e o AI já haviam tido a oportunidade de se pronunciar sobre os factos que, à data, eram invocados para fundamentar a destituição e aquela assembleia não era um acto obrigatório do qual dependesse a decisão a proferir sobre a eventual destituição do AI com fundamento naqueles factos.

O mesmo não acontecerá, porém, com os factos – em que a decisão recorrida também se fundamentou – que apenas vieram ao conhecimento dos credores em momento posterior. Falamos dos factos que vieram ao conhecimento dos credores na sequência das informações prestadas pelo AI em 20/06/2016 – o facto de a maior parte dos valores estar depositado em nome do AI e não em nome da Massa Insolvente, o facto esses depósitos serem movimentados exclusivamente pelo AI, o facto de os pagamentos efectuados da referida conta não coincidirem com aqueles que o AI havia indicado e o facto de existir diferença entre o saldo que consta dos extractos bancários e aquele que havia sido indicado pelo AI – e com base nos quais os aludidos credores e o Q... , S.A. vieram requerer a convocação da aludida assembleia de credores com o objectivo de dar ao AI a possibilidade de prestar todos os esclarecimentos aos credores e com vista a eventual deliberação no sentido da sua destituição e substituição.

Estes factos não estavam, de facto, abrangidos pela notificação efectuada na sequência do despacho de 07/04/2016 e, portanto, não será possível afirmar que, por via dessa notificação, a comissão de credores, a devedora e o AI tenham tido a efectiva oportunidade de sobre eles se pronunciar. E, se tal não aconteceu com essa notificação, também é verdade que não veio a ser efectuada qualquer outra notificação com essa finalidade, sendo certo que a convocação de uma assembleia de credores foi o modo escolhido para que tais intervenientes se pudessem pronunciar sobre a questão. Mas tal assembleia não chegou a ser realizada (porque, não obstante ter estado convocada para duas datas, na primeira data, o Sr. Administrador informou estar impedido de comparecer e, na segunda, informou que se encontrava doente, juntando atestado médico) e foi imediatamente proferida decisão sobre a destituição sem que aqueles intervenientes fossem notificados para se pronunciar.

Não poderemos, no entanto, deixar de dizer que o Sr. Administrador, ora Apelante, não manifestou grande interesse ou disponibilidade para se explicar e para se pronunciar sobre essa matéria, já que, poucos dias antes da data designada para a assembleia, veio requerer que a mesma fosse dada sem efeito a pretexto de que a sua convocação havia sido requerida por quem não tinha legitimidade para o efeito.

Seja como for, a verdade é que não será possível afirmar que a comissão de credores, a devedora e o AI tenham sido notificados para se pronunciar sobre a destituição do administrador com fundamento nestes novos factos – como impunha o citado art. 56º do CIRE – pelo que a destituição não se poderia fundamentar (pelo menos, por ora) nesses factos.

Mas, ainda que a destituição do AI não possa – por ora e sem que previamente seja dada oportunidade aos aludidos intervenientes de se pronunciarem – assentar nos aludidos factos, também é certo que essa circunstância não assumirá qualquer relevância caso os factos e circunstâncias que inicialmente haviam sido alegados/invocados – relativamente aos quais foi cumprido o contraditório – sejam bastantes para fundamentar aquela destituição, dado que, nesta parte e pelas razões apontadas, não se configura qualquer nulidade ou qualquer violação das normas citadas pelo Apelante.

É isso que passamos a analisar.  

Apreciemos, portanto, a questão de saber se aqueles factos (inicialmente alegados) correspondem ou não justa causa para a destituição do Sr. Administrador da Insolvência.

Não obstante aludir a concretas e pontuais situações como correspondendo a justa causa de destituição[1], a lei não contém qualquer conceito ou definição de justa causa que, segundo Luís M.T. Menezes Leitão[2]…constitui um conceito vago e indeterminado que abrange naturalmente a violação grave dos deveres do administrador, mas também quaisquer outras circunstâncias que tornem objectivamente insustentável a sua manutenção no cargo”. Segundo Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[3], cobrem-se nesse conceito “…todos os casos de violação de deveres por parte do nomeado, aqueles em que se verifica a inaptidão ou incompetência para o exercício do cargo, traduzidas na administração ou liquidação deficientes, inapropriadas ou ineficazes da massa, e…aqueles que traduzam uma situação em que, atentas as circunstâncias concretas, é inexigível a manutenção da relação com ele e infundada a possível pretensão do administrador de se manter em funções…”.

Os credores (supra identificados) fundaram o pedido de destituição do Sr. Administrador na violação do disposto nos arts. 55º, nº 1 e 61º do CIRE e na circunstância de o Sr. Administrador ter vindo a adoptar uma postura pouco transparente, furtando-se a prestar informações, designadamente quanto ao montante e localização das quantias por si recebidas e despendidas, limitando-se a informar, de forma vaga, que se encontra a reunir a documentação necessária para prestar a informação. Alegavam, em termos gerais, que o Sr. AI após a data do leilão em 15/05/2015 não mais informou os autos sobre o estado da administração e liquidação da massa insolvente e que, não obstante ter sido notificado pelo Tribunal – a pedido dos Requerentes – para prestar diversos esclarecimentos, não o fez, apesar de estar na posse, desde 15/05/2015, de cerca de meio milhão de euros em virtude da venda, através de leilão, dos bens móveis da Insolvente, sem que os credores tenham informação sobre os actos praticados e sobre as quantias que estão na sua posse.

Conforme resulta da matéria de facto provada, os credores (que requereram a destituição) solicitaram ao AI diversos esclarecimentos sobre o estado da administração e liquidação mediante carta registada de 13/01/2106, sendo que o AI apenas deu resposta a essa solicitação em 08/02/2016 e apenas para comunicar que estava a reunir a informação solicitada que seria enviada em breve.

Este facto – só por si – não constituiria violação grave e grosseira dos deveres do administrador da insolvência, até porque não será exigível que o mesmo deva responder individualmente – e em curto prazo – a todo e qualquer credor que lhe solicite esclarecimentos, designadamente nos casos em que são muitos os credores envolvidos.

Mas, precisamente por isso e porque, naturalmente, os credores têm o direito de estar informados acerca do andamento das diligências que estão a ser efectuadas, a lei obriga o AI (cfr. art. 61º, nº 1, do CIRE) a apresentar, no termo de cada período de três meses após a data da assembleia de apreciação do relatório, um documento com informação sucinta sobre o estado da administração e liquidação, visado pela comissão de credores, se existir, e destinado a ser junto ao processo.

A verdade é que, após a venda dos bens móveis efectuada em leilão no dia 15 de Maio de 2015, o Sr. AI não apresentou tal informação trimestral, (circunstância que determinou os credores a solicitar-lhe diversos esclarecimentos), sendo que apenas veio apresentar tal relatório em 14/04/2016 (note-se que o Sr. Administrador, quer na resposta ao pedido de destituição, quer nas alegações do presente recurso, apenas alude a relatórios que teriam sido apresentados em Maio e Junho de 2015 e que se reportavam às vendas dos bens, sem aludir a qualquer relatório que, em cumprimento do disposto no citado art. 61º, tivesse apresentado depois de Junho de 2015).

Por outro lado, é indiscutível que, nos termos dos arts. 55º, nº 5, e 58º do CIRE, o administrador da insolvência está obrigado a prestar ao tribunal todas as informações que lhe sejam solicitadas e o AI também violou esse dever.

Com efeito, não obstante ter sido notificado pelo Tribunal – em 11/02/2016 – para se pronunciar sobre o requerimento apresentado pelos aludidos credores, o SR. AI não respondeu dentro do prazo e persistiu nesse incumprimento uma vez que, após nova insistência do Tribunal – em 07/04/2016 –, veio apresentar um relatório onde também não deu resposta aos concretos esclarecimentos que os aludidos credores – e o Tribunal – lhe haviam solicitado, pois é certo que nada informou a propósito da abertura (ou não) de uma conta bancária titulada pela massa insolvente e dos sujeitos com poderes de movimentação da referida conta (limitando-se a informar a este propósito que o valor estava depositado em conta aberta no Banco R.... , Agência de Anadia, sem nada esclarecer a propósito da titularidade da conta e condições da respectiva movimentação) e nada informou a propósito das diligências efectuadas para venda do imóvel apreendido e a propósito da natureza e montante das despesas decorrentes da administração da massa insolvente.

Só em 20/06/2016 – depois de a comissão de credores se ter apresentado também a pedir esses esclarecimentos e a prestação de contas e depois de notificado para o efeito – o AI veio prestar informações, identificando duas contas bancárias (uma titulada por si com um saldo de 331.934,79€ e outra pela titulada pela massa insolvente com o saldo de 25.946,90€) ambas à ordem e por si movimentadas e fazendo alusão às despesas efectuadas de forma vaga e genérica.

Assim, independentemente das irregularidades/anomalias que possam resultar dos procedimentos do AI que se extraem do relatório, informações e documentos que apresentou (circunstâncias que nos abstemos de apreciar, na medida em que o AI, a devedora e a comissão de credores não foram notificados para sobre elas se pronunciar), é indiscutível que o Sr. Administrador, ora Apelante, violou os deveres que lhe eram impostos pelos citados arts. 55º, nº 5, 58º e 61º, nº 1, do CIRE.

E, ao contrário do que diz o Sr. AI, a mera circunstância de estar em causa um processo com elevado grau de complexidade não constitui justificação bastante para a falta de resposta atempada às solicitações que lhe eram dirigidas, até porque as informações que lhe eram solicitadas já deviam constar dos autos por força dos relatórios trimestrais a cuja apresentação estava obrigado.

Note-se que a informação sobre a localização das quantias recebidas pela venda dos bens, a identificação de eventuais contas bancárias onde estivessem depositadas, a titularidade dessas contas e as condições da respectiva movimentação – além de corresponderem a elementos que já deviam constar dos autos porquanto tais quantias já haviam sido recebidas há quase um ano – nem sequer exigiam muito esforço ou indagação por parte do Sr. AI, mas, apesar disso, o mesmo não prestou desde logo tal informação, não o fez no relatório que veio a apresentar em 14/04/2016 (onde se limitou a informar que o valor recebido estava depositado em conta aberta no R... sem dar qualquer outra informação acerca dessa conta), não o fez na resposta ao pedido de destituição que apresentou em 26/04/2016 e apenas em 20/06/2016 – após requerimento da comissão de credores e nova notificação do Tribunal – veio identificar essas contas, informando a sua titularidade e as condições de movimentação

Não poderemos, portanto, deixar de reconhecer alguma razão aos credores (requerentes da destituição) quando dizem que o Sr. Administrador tem vindo a adoptar uma postura pouco transparente, furtando-se a prestar informações, designadamente quanto ao montante e localização das quantias por si recebidas e despendidas. De facto, sabendo-se que o AI tem na sua posse um valor que ronda os 500.000,00€, tendo decorrido quase um ano sem que o mesmo se apresentasse voluntariamente a prestar qualquer informação acerca desse valor e das exactas condições em que estava depositado ou aplicado e continuando o AI a não prestar essa informação quando tal lhe foi solicitado pelos credores e pelo Tribunal, é legítima e compreensível a desconfiança dos credores relativamente à sua actuação.

Nestas circunstâncias, o incumprimento dos aludidos deveres por parte do AI não é desprezível ou insignificante; por via desse incumprimento, o Tribunal e os credores não tiveram, durante um período de cerca de um ano, qualquer informação sobre a quantia (de valor significativo) que o AI tinha na sua posse e sobre as circunstâncias em que ela estava depositada e estava a ser utilizada e tão pouco conseguiram obter essa informação com a rapidez e a brevidade que se impunha, tendo em conta o tempo já decorrido e a desconfiança que já se instalara e tais circunstâncias não deixam de ser graves no âmbito de um processo que a lei considera urgente e que tem como finalidade a satisfação dos direitos dos credores com o produto da venda dos bens.

Note-se, aliás, que o desenrolar do processo e as informações que foram sendo prestadas pelo Sr. AI não contribuíram em nada para repor a confiança dos credores e apenas vieram agravar essa situação como evidencia o facto de surgirem vários credores (os requerentes da destituição, o Banco R... e o Q... ) a apontar diversas irregularidades, designadamente, o facto de existir uma conta em nome do Sr. Administrador, o facto de as contas serem movimentadas apenas por ele e a existência de débitos efectuados nessas contas sem aparente justificação. Tal como referimos supra, estes factos não foram submetidos a contraditório, razão pela qual entendemos que os mesmos não poderiam, por ora, fundamentar a destituição, mas eles demonstram com evidência que a confiança dos credores relativamente à actuação do Sr. AI – que já estava afectada – não foi reposta e não melhorou.

Entendemos, portanto, em face do exposto, que, independentemente das irregularidades que, posteriormente, vieram a ser apontadas, a anterior conduta do Sr. Administrador – ao violar os deveres supra citados de apresentar informações trimestrais e de prestar ao Tribunal os esclarecimentos solicitados – é bastante para integrar o conceito de justa causa para efeitos de decretar a sua destituição, até porque, como dissemos, a posterior actuação do Sr. AI não teve idoneidade para justificar e superar a falta de informação (objectiva e esclarecida) e a falta de transparência que decorria do incumprimento daqueles deveres e para repor a confiança dos credores e do Tribunal na sua actuação.

Impõe-se, portanto, em face do exposto, confirmar a decisão recorrida.    


/////

V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: António Magalhães

                            Ferreira Lopes


[1] Como é o caso dos arts. 168º, nº 2 e 169º do CIRE.
[2] Direito da Insolvência, 2013, 5ª ed., pág.112.
[3] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, pág. 262.