Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
273/10.0T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO
DIREITO DE REGRESSO
ALCOOLEMIA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 05/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO - JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.19 DO DL 522/85 DE 31/12, ART.27 DO DL 291/2007 DE 21/8
Sumário: No âmbito do artigo 27º, nº1, c) do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/8, para que seja reconhecido à seguradora que satisfez a indemnização o direito de regresso basta que a mesma alegue e prove que foi o segurado que deu causa ao acidente e que na altura conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, não carecendo de alegar e provar a existência de nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e a produção do acidente.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

1. “Companhia de Seguros (…), SA”, com sede em Lisboa, e delegação na R (...) , Porto propôs acção declarativa de condenação com processo ordinário contra A (…), residente (…), Esgueira, Aveiro, através da qual pretende exercer o direito de regresso sobre o R., seu segurado, relativamente às quantias por si pagas a vítimas de acidente de viação causado por aquele (no total de € 31.160, 45, mais juros), acidente cuja produção atribui à  taxa de alcoolemia de que o R. era na altura portador.

Citado, contestou o Réu, sustentando que também o condutor do outro veículo interveniente conduzia sob a influência do álcool, acrescentando que seguia a velocidade não superior a 50 kms/hora e que, tendo ultrapassado um outro veículo que seguia à sua frente, este acelerou, impossibilitando-lhe a retoma da sua faixa, o que o impediu de se aperceber da sinalização relativa à aproximação da estrada com prioridade, a qual também pelas condições sombrias do local se tornava de difícil percepção.

Foi apresentada réplica.

Após os articulados, e dispensada a realização de audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, que julgou válida e regular a instância, e seleccionou a matéria de facto considerada relevante, sem reclamação.

Realizado o julgamento, foi proferida decisão sobre a matéria de facto a ele submetida, igualmente sem reclamação.

Após, proferiu-se sentença que julgou a acção procedente, condenando o Réu a pagar à Autora a quantia de € 31.160, 45, com juros legais, actualmente à taxa de 4%, desde a citação e até integral pagamento.

2. Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso de apelação o Réu formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

(…)

A apelada contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença impugnada.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente:

- se houve erro na apreciação da matéria de facto;

- se se encontram reunidos os pressupostos do exercício do direito de regresso que ditaram a condenação do apelante.

 

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foram os seguintes os factos julgados provados pela primeira instância:

Dos Factos Assentes:

1- A COMPANHIA DE SEGUROS (…), S.A. é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objecto a actividade seguradora (al. A).

2 - No exercício desta sua actividade e por força do contrato de seguro celebrado, aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo ligeiro de passageiros com matrícula (...) -IG, dentro dos limites legais, pela Apólice n.º 751282053 (al. B).

3 - Tal contrato de seguro encontrava-se em vigor à data do acidente, em 13.04.08 (al. C).

4 - De acordo com as condições gerais da Apólice, no caso de o veículo “IG” ser conduzido por pessoa sob influência de álcool, a responsabilidade civil da seguradora não fica excluída perante terceiros lesados (al. D).

5 - No dia 13.04.08 pelas 15.30 h., na Rua Lagoa do Junco, nesta Comarca, verificou-se um acidente de viação (al. E).

6 - No qual foram intervenientes o veículo seguro pela A. (“IG”) conduzido pelo R.

A (…) com uma taxa de álcool no sangue de 0, 64 g/l, e o veículo ligeiro de matrícula FI (...) propriedade e conduzido por (…), igualmente apresentando uma TAS de 0, 90 g/l (al. F).

7 - O FI transportava três passageiros, no momento do acidente (al. G).

Das respostas à Base Instrutória

8 - Naquele dia e hora e nos momentos que precederam o acidente, circulava o veículo “IG” na Rua Chão do Rei, em direcção ao cruzamento desta com a Rua Lagoa de Junco (resposta ao 1º da BI).

9 – O IG circulava a velocidade não concretamente apurada, mas não inferior a 50 kms/hora (resposta ao 2º da BI).

10 - O veículo FI circulava na Rua Lagoa de Junco, em direcção ao supra referido cruzamento (resposta ao 3º da BI).

11 - Pela hemi-faixa direita de rodagem, atento o seu sentido de marcha (resposta ao 4º da BI).

12 - A Rua Chão de Rei, na confluência do cruzamento com a Rua Lagoa de Junco, apresenta um sinal vertical de STOP para quem daquela provém e pretenda nesta entrar, como era o caso do IG (resposta ao 5º da BI).

13 - À frente do IG circulava um veículo automóvel, o qual também se aproximava do aludido cruzamento (resposta ao 6º da BI).

14 - Nestas circunstâncias, o R., imediatamente antes de chegar ao cruzamento, pôs-se a ultrapassar o veículo que o precedia (resposta ao 7º da BI).

15 - Tomou a hemi-faixa de rodagem esquerda, atento o seu sentido de marcha (resposta ao 8º da BI).

16 - Já depois de ter ultrapassado o veículo, não retomou a hemi-faixa de rodagem direita, continuando a circular fora da sua mão de trânsito (resposta ao 9º da BI).

17 - Foi na hemi-faixa de rodagem esquerda, atento o seu sentido de marcha, que entrou no cruzamento (resposta ao 10º da BI).

18 - Ignorando por completo a sinalização vertical aí existente (resposta ao 11º da BI).

19 - Entrou no aludido cruzamento no preciso momento em que o FI já nele se encontrava a circular (resposta ao 12º da BI).

20 - Tendo-se verificado o embate entre a frente lateral esquerda do FI e a lateral direita do IG (resposta ao 13º da BI).

21 - O veículo FI com a violência do embate mudou a sua trajectória para a direita, tendo ido imobilizar-se contra um muro existente do lado direito da referida artéria, danificando-o (resposta ao 14º da BI).

22 - O veículo conduzido pelo R. com a violência do embate, guinou para a esquerda, tendo ido imobilizar-se no passeio do lado esquerdo da Rua Lagoa de Junco (resposta ao 15º da BI).

23 - As ruas Chão de Rei e Lagoa de Junco apresentam edificações implantadas de ambos os lados (resposta ao 16º da BI).

24 – O clima era chuvoso (resposta ao 17º da BI).

25 - A Rua do Chão do Rei, nessa altura, era ladeada no lado direito (atento o sentido de marcha do R.) por uma mata de eucaliptos e pinheiros (resposta ao 18º da BI).

26 - A sinalização vertical de aproximação de estrada com prioridade e de stop que ali se encontram estão apostas ao muro e parede lateral de uma casa de habitação imediatamente confinante com aquele cruzamento (resposta ao 24º da BI).

27 -Como consequência do embate supra descrito, o veículo FI sofreu diversos danos em toda a sua frente lateral esquerda e frente direita que implicaram a sua perda total, tendo a A. suportado a quantia de 25.435,00€, que liquidou ao seu Proprietário (resposta ao 28º da BI).

28 - A A. suportou ainda o valor corresponde à imobilização do veículo FI e de uns objectos que ficaram danificados em consequência do acidente supra descrito, no montante de 1.534,91 € (resposta ao 29º da BI).

29 - O muro da residência para onde o FI foi projectado, sofreu danos, cuja reparação ficou orçada em 302,50 €, valor que a A. liquidou (resposta ao 30º da BI).

30 - A passageira do FI, (…), sofreu diversos ferimentos que implicaram o recurso ao Hospital de Aveiro, tendo a A. liquidado a quantia de 115,90 €, referente a essa hospitalização decorrente do acidente descrito (resposta ao 31º da BI).

31 - A passageira do FI, (…), sofreu lesões físicas que implicaram a sua hospitalização no Hospital de Aveiro, tendo a A. liquidado a quantia de 3.666.14 €, no sentido de ressarcir a lesada Isilda dos danos sofridos com o acidente (resposta ao 32º da BI).

32 - O passageiro do FI, (…), sofreu lesões físicas, em consequência do acidente verificado, tendo sido hospitalizado e tendo a A. liquidado a quantia de 106,00€ (resposta ao 33º da BI).

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Reapreciação da matéria de facto

(…)

2. Mérito do julgado

2.1. Pressupostos do direito de regresso

Pela acção que propôs contra o Réu pretendeu a Autora exercer direito de regresso contra aquele, de forma a ser reembolsada das quantias por si pagas aos lesados, a título de indemnização pelos danos resultantes de acidente de viação em que o demandado interveio quando conduzia na via pública um veículo automóvel apresentando uma TAS de 0,64 g/l, a qual, sustenta, foi causal do aludido acidente.

O artigo 19º, c) do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12, diploma que estabeleceu o regime do seguro obrigatório, determinava que, “satisfeita a indemnização, a ré seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”.

Ou seja, este normativo previa, de forma taxativa, os casos em que a seguradora, satisfeita a obrigação que sobre si recaía em virtude do contrato de seguro celebrado com o responsável civilmente, podia exercer, quanto ao que pagou, um direito de regresso, onde, entre outras circunstâncias aí expressamente fixadas, se previa o facto de o condutor agir sob a influência do álcool, e esse estado ter sido causal do acidente.

O legislador do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12 cuidou de assegurar prioritariamente a reparação aos lesados, no âmbito do seguro obrigatório, mas sem descurar a garantia, num segundo momento, dos direitos da seguradora, através do exercício do correspondente direito de regresso, designadamente, ao sancionar quem culposamente deu origem ao particular factor causador do dano, na medida em que não se trata só de um acidente de viação, no sentido comum de infracção às regras de condução de veículos e aos normais deveres de diligência dos condutores enquanto conduzem, mas particularmente da violação dos deveres de cuidado potenciadores ou mesmo causadores de tal evento.

Com efeito, o Decreto-Lei n.º 522/85, que introduziu em Portugal o seguro obrigatório, surgiu na sequência da 2ª Directiva do Conselho das Comunidades, de 30 de Dezembro de 1983, e teve em vista contemplar as preocupações que ressaltam daquela e nomeadamente não privar as vítimas de acidente de viação das respectivas indemnizações.

Com o direito de regresso “visa-se obter o reembolso, total ou parcial, de uma obrigação que se satisfez; este reembolso tanto tem lugar à custa de alguém que faz parte de uma relação jurídica estabelecida com o seu credor e que tem conexão com uma outra em que o agora credor foi devedor, aí tendo sofrido o prejuízo cujo ressarcimento agora busca, como pode ter lugar à custa de alguém que participava com o ora credor na relação jurídica onde ocorreu o prejuízo, aí partilhando ambos a mesma posição devedora plural (…). De tudo pode retirar-se a ideia segundo a qual o direito de regresso tem como devedor alguém que é titular de uma obrigação conexa ou contitular da mesma obrigação”[3] .

Segundo o normativo em causa, obrigado à prestação é o condutor quando, nomeadamente, tiver agido sob a influência do álcool.

Debatia-se na doutrina e na jurisprudência, sobretudo antes da publicação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 6/02, de 28.05.2002[4], a questão de se saber se devia existir nexo de causalidade entre o acidente de que resultaram os danos e a condução sob a influência do álcool e quem devia suportar o ónus da demonstração desse nexo causal.

O referido Acórdão, que uniformizou a jurisprudência e segundo o qual “a alínea c) do artigo 19.° do Decreto-Lei n.° 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”, e tendo por assente que a doutrina nele acolhida “mantém a sua força vinculativa na ordem jurisdicional, enquanto a norma interpretada não for alterada pelo legislador, ou a jurisprudência não for modificada por outro acórdão uniformizador”[5], veio pôr termo a essa controvérsia.

Como já se afirmava no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.04.2003[6] “na generalidade das situações, a seguradora responde pelos danos provocados culposamente pelo seu segurado, sem que lhe assista qualquer direito de regresso, daí que, para que este direito lhe seja reconhecido tem necessariamente de existir algo mais do que a culpa na produção do acidente. Esse algo que acresce é exactamente o nexo de adequação entre a condução sob a influência do álcool e a produção do acidente. Só assim se compreende o direito de regresso consagrado na lei, em flagrante desvio aos efeitos normais do contrato de seguro, já que a sua razão de ser é ressarcir a seguradora pelos riscos que em condições normais não assumiria, mas que, por força da lei, tem de assumir nas relações com os terceiros lesados. Ora, se é essa a razão de ser do instituído direito de regresso é necessário demonstrar o referido nexo causal para que nasça o direito. É que, são perfeitamente configuráveis inúmeras situações em que um condutor interveniente num acidente de viação, apesar de ser portador de uma taxa de alcoolemia superior à legal não tenha qualquer culpa na produção do sinistro, como pode acontecer que, tendo culpa, ele ficou a dever-se a uma conduta contra-ordenacional ou negligente completamente alheia do estado de alcoolemia. E, nestas hipóteses, não existindo o aludido nexo causal, nenhuma razão se encontra para regresso da seguradora, já que tudo se passa dentro dos limites normais do contrato de seguro”.

O Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, que entrou em vigor a 20 de Outubro de 2007, veio entretanto revogar o Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro.

Segundo o artigo 27º, nº 1, al. c) do referido Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, aplicável ao caso vertente considerando ter o acidente ocorrido a 13.04.2008, “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso (…) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”.

Tal normativo vem suscitando dúvidas interpretativas, face à alteração da redacção adoptada anteriormente pelo artigo 19º, al. c) do Decreto-Lei nº 522/85[7], que têm sido equacionadas de forma dissonante.

Assim, questiona-se se o novo diploma, tal como o anterior, exige para o exercício do direito de regresso accionado pela seguradora que pagou a indemnização a verificação de nexo de causalidade adequada entre o facto de o condutor exercer a condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e a eclosão do acidente em que interveio e de que resultaram os danos indemnizados pela seguradora, ou se, pelo contrário, se basta com a demonstração da culpa do segurado e de que este conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior à permitida por lei, sem exigência de nexo causal entre o estado de alcoolemia e o acidente.

No sentido de não ser actualmente exigível o nexo causal pronunciou-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.10.2009[8], ainda que apreciando situação a que é aplicável o regime do artigo 19º, al. c) do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12, ao referir: “a alínea c ) do art.19º do Dec.lei nº522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

Por sua vez o art.19º, do Dec.lei nº522/85, de 31 de Dezembro dizia – agora já não diz, revogado que está todo o diploma pelo Dec.lei nº291/2007, de 21 de Agosto – que satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso ( c ) contra o condutor, se este ... tiver agido sob a influência do álcool ....

O que o novo diploma diz – e não é despiciendo trazê-lo aqui para comparar – é que ( art.27º ) - satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem apenas direito de regresso ( c ) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida ....

Agora, as coisas são claras – o condutor dá causa ao acidente ( qualquer que seja a causa ) e, se conduzia com uma taxa de alcoolémia superior à permitida por lei, a seguradora tem direito de regresso contra ele.

Antes, ao tempo do acidente de que nos ocupamos, e é o regime desse tempo o que nos importa, as coisas eram o que eram e o direito de regresso da seguradora ( interpretado o art.19º, al. c ) do Dec.lei nº522/85 pelo acórdão PUJ nº6/2002 ) exigia por parte desta a prova de um duplo nexo de causalidade – a prova da causa do acidente em si mesma, a prova de que o álcool tinha sido a causa dessa mesma causa.
Só assim podia ficar provado o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente
.

Ainda que essa prova fosse, como acentua o Conselheiro Araújo Barros no seu voto de vencido no acórdão, uma verdadeira prova diabólica”.

Igual entendimento foi acolhido no recente acórdão desta Relação de 08.05,2012[9], com um voto de vencido, onde se escreveu: “conscientes do melindre jurídico da questão, adoptamos, pois, o entendimento de que a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 291/2007, nomeadamente da al. c) do nº 1 do artº 27º, postergou a orientação que, na vigência da al. c) do artº 19º do Decreto-Lei nº 522/85, decorria do AUJ do STJ nº 6/2002 e, portanto, que, nos acidentes a que seja já aplicável o regime do Decreto-Lei nº 291/2007, para ser reconhecido direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização basta ter sido alegado e provado que o condutor/segurado deu causa ao acidente e conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, dispensando-se a alegação e prova de nexo de causalidade adequada entre a etilização e o acidente”.

E em idêntico sentido se pronunciou o Acórdão da Relação do Porto, de 13.12.2011[10], quando refere: agora, com o novo regime legal introduzido pelo Dec. Lei n° 291/2007, de 21.8, art. 27°, n° 1, al. c), para que o direito de regresso da seguradora proceda exige-se tão só que alegue e prove a culpa do condutor na produção do acidente e que este conduzia, com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei”, acrescentando que “já não se lhe impõe, que alegue e prove factos donde resulte o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.”

Posição diametralmente oposta é defendida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.07.2011[11], onde, em tratamento de caso subsumível ao artigo 19º, al. c) do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12, é afirmado: “o artigo 27.º do Decreto-Lei n.º291/2007, de 21.8 deve ser interpretado de modo a continuar o entendimento de que o direito de regresso da seguradora, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se tiver havido uma relação causal entre a etilização e a produção do evento.”

Segue idêntica orientação o acórdão da Relação do Porto de 19.02.2012[12] que, a propósito da alteração introduzida pelo artigo 27º, nº1, c) do Decreto-Lei nº 291/2007, esclarece: “Esta redacção suporta duas interpretações:

Uma no sentido de que, circulando o condutor com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida, se der causa a um acidente, relacionado ou não com a etilização, a seguradora tem direito de regresso;

Outra com o entendimento de que não basta o condutor etilizado ter dado causa ao acidente, sendo necessário que esta causa tenha emergido da própria etilização”.

O mesmo aresto adere à segunda interpretação, com o argumento de que “ainda que mais apegada à letra da lei, a primeira das interpretações tem contra ela os mesmos argumentos que já ficaram referidos em VII. Acrescentados dum de índole histórica, pois, estando firmado o entendimento de que tinha que haver uma relação de causalidade entre a etilização e o evento, se se pretendesse romper com ela, a redacção havia de ser muito mais categórica. A referência “quando tenha dado causa” não encerra um alargar da previsão a todos os casos em que o condutor tenha dado causa ao acidente, mas antes o consagrar, em texto legal, do que faltara ao texto anterior e já vinha sendo entendimento constante”.

O artigo 9º do Código Civil aponta os critérios a seguir na interpretação da lei.

Não se afigura inocente a alteração da redacção introduzida no novo diploma. O legislador do Decreto-Lei nº 291/2007, ciente da inicial controvérsia suscitada a propósito da interpretação do artigo 19º, al. c) do Decreto-Lei 522/85, de 31/12, achando-se a mesma ultrapassada com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 6/02, de 28.05.2002, que uniformizou a jurisprudência nos termos já mencionados, certamente não teria alterado a redacção nos moldes em que o fez no artigo 27º, nº1, c) do novo diploma se não quisesse atribuir-lhe distinto sentido.

O abandono da expressão “tiver agido sob a influência do álcool” contida no anterior diploma, com a inerente carga subjectiva que lhe está subjacente, e a sua substituição, no novo diploma, pela expressão “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”, de cariz claramente objectivo e passível de concreta objectivação, só poderá ser entendida no sentido da actual inexigibilidade do nexo de causalidade adequada entre o estado de alcoolemia e a produção do acidente. Ou seja: contrariamente ao que se verificava no anterior diploma, em que o estado etílico tinha de se reflectir no comportamento do condutor e ser causal do acidente, no novo diploma não se exige essa relação de causa/efeito, bastando a constatação, material, objectiva, de que o condutor, no momento do acidente, era portador de uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida. Tal como é afirmado no acórdão desta Relação de 08.05.2012, já referenciado, “o regime anterior preocupava-se com a influência da alcoolemia sobre o concreto condutor em apreciação, enquanto o regime actual se preocupa com o grau objectivo da alcoolemia, independentemente do efeito que o mesmo tenha sobre o condutor visado”.

É evidente que a alteração legislativa, com o sentido que aqui lhe é associado, pode, em muitos casos, traduzir-se na atribuição de vantagens para a posição das seguradoras que antes não lhes eram reconhecidas, dispensando-as da “prova diabólica”[13] do nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e a produção do acidente.

Pese embora esse facto, parece ter o legislador sido sensível, para não dizer permeável, ao peso dos argumentos das seguradoras[14], confrontadas frequentemente[15] com a impraticabilidade de satisfação do encargo probatório com que o artigo 19º, al. c) do Decreto-Lei nº 522/85 as onerava, com a consequente negação do direito ao reembolso das quantias por elas suportadas para reparação de danos causados a terceiros em consequência de acidente com intervenção de um seu segurado quando exercia a condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.

E se o novo diploma, na interpretação aqui dada ao seu artigo 27º, nº1, a), pode em alguns casos conceder às seguradoras um direito de regresso que não lhes seria antes assegurado, poderá, em contrapartida, impor aos condutores uma mais acentuada responsabilização quando exerçam a condução automóvel após ingestão de bebidas alcoólicas, constituindo um meio de desmotivação desses comportamentos, reconhecidamente associados aos elevados índices de sinistralidade rodoviária em Portugal e aos custos dela decorrentes.

Dever-se-á, assim, entender, e à laia de remate, que por força da previsão especial do artigo 27º, nº 1, alínea c), do decreto-lei nº 291/2007, não é aplicável o regime geral previsto no artigo 144º, nº 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo decreto-lei nº 72/2008, de 16 de Abril, sendo de concluir, numa interpretação centrada nos elementos literal e histórico do primeiro daqueles normativos, que a doutrina do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 6/2002 caducou.

Revertendo ao caso aqui debatido: é inegável a culpa (exclusiva) do Réu na produção do acidente.

O mesmo iniciou uma manobra de ultrapassagem a um veículo que seguia à sua frente próximo de um cruzamento, e, sem retomar a hemi-faixa direita, ao alcançar o cruzamento prosseguiu a marcha, sem deter a viatura, apesar de no local existir um sinal vertical de “Stop”.

O sinal B2, previsto no artigo 21º do Regulamento de Sinalização do Trânsito aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 01/10, – paragem obrigatória no cruzamento ou entroncamento – impõe ao condutor a obrigação de parar antes de entrar no cruzamento ou entroncamento junto do qual o sinal se encontra implantado e de ceder a passagem a todos os veículos que transitem na via em que vai entrar.

A prescrição decorrente daquele sinal vertical de regulamentação de cedência de passagem integra-se no princípio geral sobre cedência de passagem contido no artigo 29º, nº 1 do Código da Estrada, normativo que ao condutor, sobre o qual recaia o dever de ceder a passagem, impõe a obrigação de abrandar a marcha, se necessário parar, ou, em caso de cruzamento de veículos, recuar, por forma a permitir a passagem de outro veículo, sem alteração da velocidade ou direcção deste.

O Réu desrespeitou essa imposição, entrou no cruzamento sem abrandar ou deter a viatura que conduzia, apesar da existência do sinal “Stop” lhe impor o dever de cedência de passagem, indo embater num veículo que circulava no cruzamento e que gozava de direito de passagem, tendo sido exclusivamente a conduta infractora do Réu causal do acidente.

Na altura o mesmo conduzia com uma TAS de 0,64 g/l, superior à legalmente permitida para o exercício da condução[16].

Assim, comprovado que a Autora satisfez a indemnização nos moldes descritos na sentença recorrida, resultando demonstrada a culpa do Réu na produção do acidente e que o mesmo na altura era portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida tanto basta para que se considerem preenchidos os demais pressupostos necessários ao direito de regresso.

Improcedem, deste modo, as conclusões recursivas, sendo de manter a sentença recorrida, ainda que por distintos fundamentos.


*

Síntese conclusiva:

- No âmbito do artigo 27º, nº1, c) do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/8, para que seja reconhecido à seguradora que satisfez a indemnização o direito de regresso basta que a mesma alegue e prove que foi o segurado que deu causa ao acidente e que na altura conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, não carecendo de alegar e provar a existência de nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e a produção do acidente.


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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, julgando improcedente a apelação, em confirmar a sentença recorrida.

Custas: pelo Réu/apelante.


Judite Pires ( Relatora )

Carlos Gil

Fonte Ramos



[1] Artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C., na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 4 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma.
[3] Acórdão Supremo Tribunal de Justiça 14.01.97, processo nº 96A035, www.dgsi.pt.
[4] Diário da República nº 164, série I-A, 18.07.2002.
[5] Acórdão do STJ, de 13.11.2003, processo nº 03B3128, www.dgsi.pt.
[6] Processo nº 03A202, www.dgsi.pt.

[7] A anterior expressão ter “agido sob a influência do álcool” é substituída no novel diploma pela expressão “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida”.
[8] Processo nº 525/04.9TBSTR.S1, www.dgsi.pt.
[9] Processo nº 665/10.5TBVNO.C1, www.dgsi.pt.
[10] Processo nº 592/10.6TJPRT.P1, www.dgsi.pt.
[11] Processo nº 129/08.7TBPTL.G1.S1, www.dgsi.pt.
[12] Processo nº 774/10.0TBESP.P1, www.dgsi.pt.

[13] A que o Conselheiro Araújo de Barros se referia no voto de vencido que lavrou no citado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência.
[14] Note-se que o referido artigo 27º, nº1, c) do novo diploma acolheu integralmente a proposta apresentada pelo Instituto de Seguros de Portugal, conforme Documento de Consulta nº 1/2007, onde, a pág. 17, consta o seguinte: “APS sugere que o legislador altere o regime da matéria do ónus da prova do nexo de causalidade entre o acidente e o estado de embriaguez do condutor. [al. c) do nº 1 do art. 25º do proj. diploma, a que corresponde a al. c) do nº 1 do art. 19º DL 522/85] no sentido de tornar automático o nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia acima dos limites legais do condutor causador do acidente e o acidente – o que vai no sentido oposto ao do Acórdão uniformizador de jurisprudência nº 6/2002 do STJ, de 28 de Maio de 2002.
Parece mais justo que tal nexo de causalidade, a existir, não se limite ao direito de regresso das seguradoras, mas desde logo conste da determinação da responsabilidade civil pelo acidente de viação, o que é todavia matéria cuja iniciativa legislativa cabe a outro Ministério que não o das Finanças.
Não querendo deixar de aproveitar o presente ensejo legislativo para, de forma moderada, participar de tal virtude (cívica), o ISP avança com a proposta (legislativa) imediatamente infra, estabelecendo, para efeito do direito de regresso das seguradoras, é certo, que, tendo o condutor causador dado origem ao acidente, se se encontrar com taxa de alcoolemia superior à legal, será objecto de oneração com o direito de regresso da seguradora.
Podendo sempre o condutor provar a irrelevância da alcoolemia para a causa do acidente.
Esta alteração constituirá um voto relevante no sentido do alargamento da alteração à matéria da determinação da responsabilidade civil pelo acidente”.
[15] Sobretudo em situações em que a taxa de alcoolemia do condutor era de índice próximo da taxa de álcool no sangue legalmente permitida ao exercício da condução automóvel…
[16] Artigos 81º, nºs 1 e 2, 145º, nº 1, al. l) e 146º, al. j) do Código da Estrada e artigo  292º do Código Penal.