Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6552/17.9T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL.
AÇÕES EXECUTIVAS
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE COIMBRA – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 89º E 104º DO NCPC
Sumário: O art. 89º, nº1 do nCPC fixando as regras de atribuição da competência territorial em matéria de execução, determina, na sua primeira parte, a competência do tribunal do domicílio do executado.
- Esta regra cede perante a circunstância de a execução ter por finalidade a entrega de coisa certa ou o pagamento de divida com garantia real, casos em que o tribunal competente é o do lugar em que a coisa se encontre ou em que se situem os bens onerados com a garantia (art. 89º, nº 2 do CPC)
- A eventual existência de um pacto atributivo da competência territorial fixado nos contratos de mútuo com hipoteca que constitua títulos executivos não tem aplicação em matéria de execução, porque aqui vigoram as regras do art. 89º do CPC com exclusão da vontade das partes em lhe produzirem qualquer alteração.
- Porque o art. 104º, nº1, al.a) do nCPC estabelece o conhecimento oficioso da incompetência relativa, por violação do preceituado no art. 89º, nº 1, primeira parte e nº 2 do nCPC, a fixação desta oficiosidade de conhecimento revela, de forma inequívoca, que em matéria de execução, o legislador quis subtrair ao império da vontade das partes a fixação de competência.
- O interesse de ordem pública que o Estado realiza nas execuções com o exercício do seu poder de coerção, exige que os critérios de proximidade, funcionalidade e eficácia inerentes ao exercício desse poder se sobreponham a qualquer interesse particular que exequente e executado tenham declarado quanto ao tribunal onde queriam ver instaurada a execução.
Decisão Texto Integral: Face à simplicidade da questão e atento o que dispõe o art. 656º do Código de Processo Civil, passa-se a conhecer do recurso através de decisão singular.

Decide-se no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo de Execução de Coimbra - Juiz 1, na execução em que é exequente Banco S..., S.A., e executada C..., deduziu esta oposição invocando a incompetência territorial do presente tribunal, por ter sido convencionado outro foro para a resolução de litígios relacionados com o incumprimento do contrato em causa. E, no mais, reconheceu a existência da dívida exequenda defendendo que não efectuou o pagamento das prestações por não ter recepcionado algumas cartas mas que tenciona fazê-lo.
O exequente contestou opondo-se à alegada incompetência do tribunal e concluindo pela improcedência dos fundamentos invocados pela oponente.

No despacho saneador foi conhecida a excepção de incompetência territorial do tribunal nos seguintes termos:
“ Segundo o disposto no artigo 95.º n.º1 do Código de Processo Civil as regras de competência em razão da matéria, da hierarquia e do valor da causa não podem ser afastadas por vontade das partes; mas é permitido a estas afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território, salvo nos casos a que se refere o artigo 104.º.
Por sua vez, dispõe o artigo 104.º n.º1 que a incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes: a) Nas causas a que se referem o artigo 70.º, a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 71.º, os artigos 78.º, 83.º e 84.º, o n.º 1 do artigo 85.º e a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 89.º; b) Nos processos cuja decisão não seja precedida de citação do requerido; c) Nas causas que, por lei, devam correr como dependência de outro processo.
Ora, de entre os casos ali previstos encontra-se, por referência ao artigo 89.º n.º1 do Código de Processo Civil, a regra geral estabelecida para as execuções, segundo a qual estas devem ser instauradas no domicílio do executado.
O que significa que nestas espécies de acção a competência do territorial do tribunal não está sujeita à convenção das partes, sendo imperativo o regime ali previsto.
No caso concreto, a morada da executada constante dos contratos dados à execução situa-se no Concelho de Chaves, não existindo qualquer outro elemento que indicie ser outra a morada daquela, sendo certo que a mesma indica, no seu requerimento de oposição, residir actualmente em Bragança.
Pelo que esta Secção de Execução, integrada na Comarca de Coimbra, não é tribunal territorialmente competente para conhecer da presente acção executiva, pertencendo essa competência à Secção de Execução da Instância Central da Comarca de Vila Real, instalada em Chaves.
A incompetência territorial constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso e determina a incompetência relativa do tribunal e a remessa do processo para o tribunal competente, tudo nos termos do disposto nos artigos 102.º, 104.º a, 105.º n.º 2 e 3, 576.º n.º2 e 577.º a) do Novo Código de Processo Civil.
Face ao exposto e ao abrigo das supra referidas disposições legais, julgo verificada a excepção de incompetência relativa em razão do território e, consequentemente, determino a remessa dos presentes autos, após trânsito em julgado da presente decisão, à Secção de Execução da Instância Central da Comarca de Vila Real, instalada em Chaves.”

Inconformada com estra decisão dela interpôs recurso a executada concluindo que:
… …
Interpôs também recurso a exequente concluindo que:
...
A executada contra alegou, sustentando que se as partes estipularam como foro especial a Comarca do Porto, com renúncia expressa a qualquer outro, não pode o Tribunal a quo fixar outro para além do já estipulado pelas partes, como a lei lhes permite.
Cumpre decidir.
Fundamentação
A matéria de facto que serve a presente decisão é a constante do relatório, nomeadamente o teor dos requerimentos das partes sobre a competência territorial do tribunal e a decisão recorrida, constantes do relatório, razão pela qual se mostra desnecessário repetir aqui essa mesma matéria sem embargo de a ela virmos a fazer referência e transcrição na medida em que o determinar a exposição decisória.
Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (arts. 635 nº3 e 4 e 637 nº2 do CPC).
Na observação destas prescrições normativas concluímos que o objecto do presente recurso remete para saber qual o tribunal competente para a presente execução.

Em primeiro lugar, verificamos que à execução foram entregues como títulos executivo contratos de mútuo com hipoteca, nos quais consta, como convenção das partes, que “Fica estipulado o foro da Comarca do Porto para os pleitos emergentes do ressente contrato, com expressa renuncia a qualquer outro.”.
É perante a singularidade desta circunstância que a executada defende que a aplicação dessa cláusula não deve merecer dúvida e, ao invés, a exequente sustenta que por se tratar de uma por dívida com garantia real, o tribunal competente é o da situação dos bens, razão pela qual deveria ser o da Figueira da Foz.
Apreciando, diremos que em face da existência de uma atribuição convencional de competência nos contratos a primeira questão a resolver é a de saber se esse pacto privativo/atributivo tem aplicação na execução ou se, como o tribunal a quo decidiu, não é aplicável.
É absolutamente evidente que o CPC estabelece uma regra geral própria para a competência em matéria de execuções e nela determina que “salvo casos especiais previstos noutras disposições é competente para a execução o tribunal do domicílio do executado, podendo o exequente optar pelo tribunal em que a obrigação deva ser cumprida quando o executado seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do exequente na área metropolitana de Lisboa o Porto, o executado tenha domicílio na mesma área metropolitana” – art. 89º nº1 do CPC.
Conjugado com este preceito, deve ler-se o art. 104º do mesmo diploma no qual, sobre o conhecimento oficioso da incompetência relativa, se estabelece que a incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal sempre que os autos forneçam os elementos necessários nos casos, entre outros, do art. 89º, nº1, primeira parte, e nº2.
Quer isto dizer, com total clareza, que nas execuções, no que se refere à regra que impõe a competência do tribunal do domicílio do executado e a do lugar onde a coisa se encontre e/ou da situação dos bens, existindo interesse de ordem pública que impõe o conhecimento oficioso, tal só pode significar que esses dois incisos de atribuição de competência não podem ser alterados por vontade das partes.
Ainda que se quisesse protestar (e nenhum dos recorrentes o fez) que o art. 89º, nº1 ao aludir “aos casos especiais previstos noutras disposição” poderia querer incluir nestes o teor do art. 94º, ou seja a existência de pactos privativos de jurisdição, a verdade é que a advertência de oficiosidade do conhecimento das regras de competência territorial firmadas no nº1 e 2 desse art. 89º que deixamos expressos, não permite outra conclusão que não a de afastar as regras convencionais fixadas pelas partes na atribuição da competência territorial nas execuções.
Julgamos ser de elementar lógica normativa concluir que haveria contradição entre o legislador ter desejado um controlo oficioso dos tribunais, das regras de competência territorial em sede de execuções e permitir-se que, afinal, por vontade das partes essas regras pudessem ser alteradas. E isto pela mais que evidente razão de o contrário da oficiosidade ser precisamente a liberdade de estipulação e a primeira excluir inexoravelmente a segunda.
Existe manifestamente um interesse de ordem pública que o preceito reconhece ter de ser preservado em matéria de execuções, a que não é estranha a sua natureza, pois para fazer cumprir de forma executiva uma obrigação o Estado se envolve através dos meios jurisdicionais, estabelecendo as regras desse cumprimento, desde logo, as que reportam ao lugar em que a execução deve ser proposta, sem possibilidade de alteração.
O art. 89º, nº1 do CPC ao fixar como competência territorial para a execução o domicilio do executado, percebe-se que tem presente a ideia de a proximidade ao que se entende ser o património executável do devedor fazer crer uma maior eficácia de e funcionalidade. Por outro lado, desviar esta regra como o faz o nº2 desse normativo, quando se está perante uma execução para entrega de um bem ou por dívida com garantia real, obedece ainda ao mesmo sentido de eficácia e funcionalidade uma vez que nestas circunstâncias tal será mais garantido com o mesmo regime de proximidade e então, esta, faz-se por referência ao bem a executar.
O primado da vontade das partes não é assim absoluto ao ponto de se poder afirmar que ela é a primeira de todas as regras a atender em qualquer circunstância, até porque essa vontade das partes cede sempre que a lei institua qualquer interesse superior, como o faz manifestamente nos casos de fixação da competência nas execuções.
Em resumo, improcede a argumentação da recorrente/executada que queria ver fixada a competência territorial da presente execução de acordo com o pacto atributivo de jurisdição incluído nas cláusulas do contrato, por não ter atendido a que a competência para as execuções está fixada em preceito próprio (art. 89 do CPC) e que, por essas regras serem, de acordo com antes mencionado, de conhecimento oficioso, excluem de forma decisiva que as partes possam fixar por sua vontade a competência nas execuções.

Quanto ao recurso da exequente, esta, partindo da ideia de que o pacto privativo não era aplicável à execução, defende no entanto que o tribunal a quo fixou erradamente a competência porquanto, se a execução presente tem como título executivo contratos de mútuo com hipoteca, tal impõe a aplicação da regra do nº2 e não a do nº1 do art. 89º do CPC. Tratando-se de uma dívida com garantia real, a regra para instaurar a execução não é a do domicílio do executado mas o da situação dos bens e, estando estes na Figueira da Foz, é o tribunal dessa área o competente.
Na decisão recorrida pode ler-se que o tribunal entendeu liminarmente que a execução deveria ser instaurada no tribunal de domicílio da executada e que sendo a morada desta constante dos contratos no Concelho de Chaves e não existindo qualquer outro elemento que indiciasse ser outra a morada daquela deveria ser aí a propositura da execução. Isto é, o tribunal aplicou a regra do nº1 primeira parte do art. 89º do CPC esquecendo que o título executivo dado à execução era constituído por contratos de mútuo com hipoteca sobre imóveis situados na Figueira da Foz.
Assim, a execução tem por finalidade a cobrança de uma dívida com garantia real o que, nos termos do nº2 do art. 89º do CPC constitui excepção à regra geral enunciada no nº1 desse mesmo preceito, ou seja, nestes casos o tribunal competente para a execução é o da situação dos bens.
Este nº 2 é precisamente uma das ressalvas, um dos “casos especiais previstos”, a que alude o nº1 logo no seu início e, por ser este nº 2 também de conhecimento oficioso, de acordo com o art. 104º antes citado, só poderemos concluir que a lei quis garantir com autoridade de ofício que, quando a execução tenha por referência uma coisa, máxime coisa imóvel, a execução seja sempre proposta no lugar onde essa coisa a ser entregue ou o bem onerado com a garantia.
A mesma razoabilidade de entendimento e teleologia normativa que consagra o domicílio do executado como regra geral da competência em matéria de execuções, está presente na prioridade que a lei fixa em matéria de competência para as execuções, quando a finalidade da execução (no caso da entrega de coisa certa) ou as diligências de penhora (no caso da divida com garantia real - art. 752º do CPC), para que seja no tribunal da área dos bens que seja instaurada a execução. Aí estão presentes critérios de objectividade e de interesse público que são assimilados pelo legislador no sentido de, para exercer o seu dever de interesse público de coerção, entende como incontornável essas regras de competência territorial.
Assim, em face do deixado exposto, assiste razão ao recorrente/exequente e como tal deve a presente execução seguir os seus termos no Tribunal da Comarca de Coimbra – Juízo de execuções de Coimbra, por ser esse o tribunal da área onde se situam os bens onerados com garantia real.
… …
Síntese conclusiva
- O art. 89º nº1 do CPC fixando as regras de atribuição da competência territorial em matéria de execução, determina, na sua primeira parte, a competência do tribunal do domicílio do executado.
- Esta regra cede perante a circunstância de a execução ter por finalidade a entrega de coisa certa ou o pagamento de divida com garantia real, casos em que o tribunal competente é o do lugar em que a coisa se encontre ou em que se situem os bens onerados com a garantia (art. 89º, nº 2 do CPC)
- A eventual existência de um pacto atributivo da competência territorial fixado nos contratos de mútuo com hipoteca que constitua títulos executivos não tem aplicação em matéria de execução porque aqui, vigoram as regras do art. 89º do CPC com exclusão da vontade das partes em lhe produzirem qualquer alteração.
- Porque o art. 104º, nº1, al.a) do CPC estabelece o conhecimento oficioso da incompetência relativa, por violação do preceituado no art. 89º, nº 1 primeira parte e nº 2 do CPC, a fixação desta oficiosidade de conhecimento revela, de forma inequívoca, que em matéria de execução, o legislador quis subtrair ao império da vontade das partes a fixação de competência.
- O interesse de ordem pública que o Estado realiza nas execuções com o exercício do seu poder de coerção, exige que os critérios de proximidade, funcionalidade e eficácia inerentes ao exercício desse poder se sobreponham a qualquer interesse particular que exequente e executado tenham declarado quanto ao tribunal onde queriam ver instaurada a execução.
Decisão
Pelo exposto decide-se julgar improcedente a Apelação da executada C... e, julgando procedente a Apelação do exequente Banco S..., S.A.,, decide-se revogar a decisão recorrida e, julgando competente para conhecer da presente execução o Tribunal da Comarca de Coimbra (juízos de execução) determino que os autos prossigam aí os seus termos.
Custas da Apelação pela apelante/executada C..., sem prejuízo do apoio, judiciário de que beneficie.
Coimbra, 8 de Maio de 2018.
Manuel Capelo