Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
276/20.7T8SRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROVA POR DECLARAÇÕES DE PARTE
Data do Acordão: 06/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 466.º, N.º 3, DO CPC
Sumário: A circunstância de a parte ter assistido à audiência final pode constituir um factor relevante para a valoração das declarações realizadas pela parte, a ponderar no momento da apreciação da prova.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       



          I. Em 16.9.2020, T..., Unipessoal, Lda., instaurou a presente ação declarativa comum contra AA, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 36 260,40, acrescida de juros de mora comerciais desde a data de vencimento de cada uma das faturas por si emitidas até integral pagamento.

            Alegou, em síntese: acordou com o Réu o fornecimento de 162 carradas de tout venant, ao preço unitário de € 45 acrescido de IVA; o Réu não pagou o preço devido, no valor de € 8 966,70; foi ainda acordado, e prestado, o serviço de transporte (máquina e manobrador) do referido produto e de uma máquina bulldozer, bem como o serviço de giratória, com manobrador, mas o Réu não pagou o preço correspondente no montante global de € 27 293,70.  

            O Réu contestou, impugnando a generalidade dos factos alegados pela A., afirmando, nomeadamente, que a A. acabou por efetuar somente o transporte de 151 carradas de tout venant e que as partes acordaram que o Réu pagaria a totalidade dos serviços de transporte das carradas e do nivelamento com a entrega de uma caixa de velocidades 6x6 ZF multifunções que a A. pretendia, e que tinha globalmente um valor superior; a A. fez graciosamente a deslocação e transporte da máquina bulldozer; quanto à contratação de um manobrador para funcionar com uma máquina giratória tal ocorreu em apenas três dias. Aduziu, ainda, que face à atuação da A. - ao decidir faturar o que não era devido -, viu-se obrigado a faturar a dita caixa de velocidade (e a transmissão) e a respetiva mão-de-obra, razão pela qual, em sede reconvencional, solicita a condenação da A. no pagamento da quantia de € 28 000, acrescida de juros de mora comerciais; entregou à A. uma caixa de carga basculante no valor de € 5 000, tendo a mesma pago a quantia de € 1 000, pelo que deverá ser condenada no pagamento do remanescente em dívida, acrescido de juros de mora.

            Rematou dizendo que deve ser absolvido do pedido formulado pela A. e que esta deverá pagar-lhe a importância global de € 32 454,14, acrescida de juros de mora vincendos.

            A A. replicou concluindo pela improcedência da reconvenção e como na petição inicial (p. i.); pediu ainda a condenação do Réu como litigante de má fé.

Foi proferido despacho saneador, que identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

            Realizada a audiência de julgamento, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente, condenando o Réu a pagar à A. a quantia de € 1 476, acrescida de juros de mora, calculados à taxa de juro comercial, desde 01.8.2020 até integral pagamento, absolvendo-o do pagamento da restante quantia peticionada; e decidiu julgar a reconvenção improcedente, absolvendo a A. do pedido.

Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Conforme resulta da fundamentação empregue pelo Tribunal a quo no julgamento da matéria de facto, a sentença recorrida desconstruiu toda a prova testemunhal de A. e de R., não conferindo credibilidade a qualquer uma das testemunhas ouvidas em julgamento, ou porquanto os seus depoimentos eram incongruentes quando conjugados ou não corroboravam os depoimentos das partes, razão pela qual entendeu o Tribunal a quo não conferir qualquer credibilidade a toda a prova testemunhal produzida.

            2ª - Todavia no julgamento do facto «provado» 13 o Tribunal a quo abandonou de tal trilho lógico, racional e dedutivo que empregou na apreciação da matéria de facto, e à míngua de qualquer prova testemunhal que acabara de desvalorizar, conferiu-lhe resposta positiva sustentada unicamente no depoimento de parte do R..

            3ª - O legal representante da A. prestou depoimento logo no início da audiência de julgamento, em sede de confissão de parte, à qual o R. assistiu. O R., que sempre se encontrou presente ao longo do julgamento, requereu e prestou o seu depoimento, com a natureza de declarações de parte, apenas no final de toda a produção de prova - vide oposição da A. à prestação de declarações de parte do R., conforme exarado em ata de audiência de julgamento de 11.02.2022, precisamente por este as prestar no final de toda a produção de prova, à qual acabara de assistir.

            4ª - É manifesto que a versão do R. foi preparada em função de toda a prova produzida, em que seria expectável que se norteasse quer pela coerência quer pela introdução de detalhes oportunistas, todavia in concreto o depoimento do R. nem sequer primou pela congruência.

            5ª - A fundamentação empregue pelo Tribunal recorrido para conferir maior credibilidade às declarações do R., designadamente no segmento em que este emitiu a fatura em retorção à cobrança dos valores que a A. dele reclamava porque aquele entendia existir um acordo em que o preço de € 3 000 da caixa de velocidades e veio de transmissão – factos provados 21 e 22 – pagaria os serviços prestados pela A., é uma explicação que não faz qualquer sentido e, com o devido respeito, é até ofensiva da inteligência do cidadão comum e medianamente informado.

            6ª - De facto é o próprio R. quem em declarações de parte prestadas na audiência de discussão e julgamento de 11.02.2022, refere reiteradamente a sua discordância com o valor atribuído pelo relatório pericial à caixa de velocidade e veio de transmissão, sustentando que o mesmo lhe custara 60 000 contos, contravalor de € 30 000, refutando, assim, o valor apurado de € 3 000 – vide factos provados 21 e 22.

            7ª - Ora, se o R. se mantém inconformado com o valor determinado, por perícia, da caixa de velocidades e veio de transmissão, é evidente que emitiu a fatura daquela

grandeza não por retorção ao pedido de pagamento da A. mas antes porque entende que é esse o valor que lhe é efectivamente devido.

            8ª - Do mesmo modo, se o R. insiste em defender, nas suas declarações, que a caixa e veio de transmissão têm tal valor de € 30 000, tal apenas significa que aceita como correto e devido o valor faturado pela A. pelos serviços que esta lhe prestou.

            9ª - De igual forma abala a coerência do R. a sua insistência em que tais componentes mecânicos assumem tal valor de € 30 000 quando, do outro lado, o veículo pesado a que se destinam tem o valor comercial de € 8 610 (cf. facto provado 23).

            10ª - E se o R. insiste em defender nas suas declarações que a caixa de velocidades e veio de transmissão têm o valor de € 30 000, então não se compreende o racional do negócio de empregar tais preciosos componentes para pagar um conjunto de trabalhos que afinal não excederiam € 3 000, isto uma vez que este este é o valor real de tais componentes, conforme se logrou determinar – factos provados 21 e 22.

            11ª - Ao mesmo passo é ininteligível e de repudiar qualquer ideia que a A., medianamente informada, aceitasse trocar os materiais que vendeu e os trabalhos que produziu no montante de € 36 000 por singela quantia de € 3 000, correspondente ao valor de tais componentes mecânicos.

            12ª - Repare-se ainda que, em termos muitos semelhantes ao procedimento que adotou com a caixa de velocidades e veio de transmissão, o R. também lançou à liça que teria fornecido três bidons de gasóleo e uma caixa de carga basculante, tudo com o mesmo propósito de compensar sobre o preço dos fornecimentos e trabalhos que a A. lhe forneceu e prestou, respetivamente, todavia de tais alegados bens entregues para

compensação do crédito da A. resultou um rotundo «não provado» conforme pontos 20 e 22 a 25 do respetivo rol, o que demonstra à saciedade a falta de verdade, de seriedade e de coerência das declarações de parte do R. que o Tribunal a quo valorizou.

            13ª - Muito diversamente da fundamentação expressa na sentença recorrida, a posição da A. quanto ao acordo foi sempre mantida e conservada, conforme não apenas resulta do depoimento de parte do seu legal representante como também já se expressava na carta em que procedeu à devolução da fatura do R., como também na réplica que apresentou nos autos, esclarecendo-se que a devolução da fatura se deveu e se justificou por tais peças se destinarem a uma viatura pertencente à sociedade R..., Lda., que não à A., conforme resulta do facto provado 18, de resto questão bem explicada na réplica.

            14ª - Desta feita, mal andou o Tribunal a quo ao dar como provado o facto constante do ponto 13, assente unicamente nas declarações de parte do R. que não merecem nem o crédito nem a coerência, muito menos a verdade, que o Tribunal recorrido lhes prestou.

            15ª - Aliás, mal andaria o processo civil quando a prova dos factos favoráveis ao depoente, ademais quando a prova lhe incumbe, assentasse na simples declaração dos mesmos, com a agravante de se desvirtuarem as mais elementares regras de distribuição do ónus probatório, culminando no absurdo das ações serem decididas apenas pelo confronto das declarações das próprias.

            16ª - Impõe-se acrescentar que, muito contrariamente à decisão recorrida, à míngua de prova convincente e bastante para formar a sua convicção, o Tribunal a quo não carece de arrimar por uma das posições das partes, antes lhe cumpre fazer recair

sobre as partes o respetivo ónus probatório.

            17ª - A decisão de facto recorrida é incongruente quando, à míngua de prova, se ampara no depoimento de parte do R. que se revelou incoerente, condicionado e absolutamente contraditório, de resto permanentemente marcado por adjetivações em que, apesar de devedor, se queixava de enganado por meio mundo, por alusão a cheques falsos, a depoimentos falsos bem como a um rol de outros negócios mal contados – e tidos como não provados conforme factos 20 e 22 a 25 de tal rol – que apenas servem para ensarilhar e não pagar o quanto bem sabe dever.

            18ª - Deve, por conseguinte, o facto constante do ponto 13 do rol de «factos provados» passar a constar do rol de factos «não provados» sob a redação seguinte: «Não provado que Autora e o Réu acordaram que este pagaria àquela a totalidade dos serviços de transporte das carradas de tout venant e de nivelamento com a entrega de uma caixa de velocidades 6x6 ZF multifunções e de um veio de transmissão da marca Mercedes.».

            19ª - Em resultado da alteração factual pugnada no ponto anterior, resulta claro que os serviços de transporte de 200 carradas de tout venant descritos em 4 dos factos

«provados» foram prestados pela A. ao R. e que este não pagou o respetivo preço no valor de € 80, acrescido de IVA, por cada carrada, conforme liquidado na fatura que constitui documento n.º ... junto com a p. i., pelo que deve o facto 8 constante do rol de factos «não provados» passar a integrar o rol de factos «provados», sob a redação seguinte: Por conta do serviço de transporte a que se alude em 4. dos factos provados a A. faturou ao R. o preço de € 80 por carrada, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, conforme fatura ...6 junta com p. i. enquanto documento n.º ....

            20ª - A respeito dos pontos 16 e 17 do respetivo rol de factos «provados» dão-se aqui por reproduzidos os fundamentos supra expostos nas conclusões anteriores a respeito do facto «provado» 13, de igual modo se concluindo que, conforme resulta da sentença, a prova dos factos 16 e 17 do respetivo rol de factos «provados» assenta unicamente nas declarações de parte do R., as quais, desacompanhadas de qualquer outro meio probatório, não constituem meio de prova bastante para a demonstração de factos favoráveis à sua posição de acordo com o ónus da prova, pelo que deverão passar a constar do rol de factos «não provados», sob a redação seguinte: (i) “Não provado que o réu procedeu à faturação da referida caixa de velocidades e veio de transmissão em virtude de a Autora ter tomado a iniciativa de faturar o transporte das carradas de tout venant com despesas que não tinham sido aceites pelo Réu.” e (ii) “Não provado que por essa razão o Réu emitiu e enviou à Autora a fatura n.º ..., datada de 03.8.2020, no montante global de € 28 000.

            21ª - Com respeito do facto provado 14, também aqui o Tribunal a quo sustentou exclusivamente a prova do indicado facto nas declarações do R., pelo que se renovam e se dão aqui por reproduzidas todas as razões expostas nas conclusões supra a respeito do facto provado 13, a que se adensa que a circunstância de não se ter logrado apurar o preço acordado do serviço em causa não representa que o mesmo tenha sido prestado a título gracioso, de resto contrariamente ao escopo lucrativo da A..

            22ª - Do alegado convencimento por parte do R. que o serviço não seria cobrado não resulta que o pagamento do preço não seja devido, pois que a assim ser estaria então encontrada a fórmula para que todo o devedor se eximisse ao pagamento do preço devido pelos serviços que contrata.

            23ª - Sempre com o devido respeito, a sentença recorrida maltrata a verdade quando sustenta que se trata de um quilómetro de distância, o que, para além de não se encontrar provado, também não corresponde à verdade. Porém, ainda que fosse tal a distância, também não se presta tal razão para que um serviço oneroso se transmute em gracioso, como está bom de ver, ou que àquele não corresponda o indicado preço.

            24ª - Assim, o facto 14 do rol de factos provado deve ser tido como «provado» sob a redação seguinte: “14. Provado que a Autora aceitou efetuar o transporte da máquina bulldozer a que se alude em 5., pelo qual faturou ao R. o preço de € 300 acrescido de IVA, conforme fatura ...6 junta enquanto documento n.º ... com a p. i..

            25ª - Com respeito aos factos «não provados» 6 e 9, e embora não se tenha logrado demonstrar a existência de acordo para carregamento do indicado n.º de carradas ou o preço ajustado , o julgado merece censura na exata medida em que ficou demonstrado, à luz do mesmo critério empregue na apreciação da prova, que a A. prestou tais trabalhos a favor do R., conforme resulta do depoimento do R. ouvido em sede de declarações de parte na audiência de julgamento de 11.02.2022, em que confirmou que foi a A. quem procedeu à carga na pedreira do tout venant e que, para tanto, a Recorrente aí dispunha de uma máquina carregadora com um manobrador/operador.

            26ª - É o R. quem reconhece que este serviço lhe foi prestado pela A., a seu favor e no seu interesse, destinando tais cargas carregadas na pedreira à obra que levava a efeito, ao mesmo passo que é incontroverso que a A. procedeu ao transporte de 200 carradas de tout venant – vide facto provado 4 –, disponibilizando para tanto uma máquina carregadora e manobrador, cujo preço é reclamado nos autos – vide ponto (ii) do art.º 11º e art.º 13º da p. i..

            27ª - Embora o R. haja pugnado nas suas declarações de parte que este valor estava incluído no alegado acordo da caixa de velocidades e veio de transmissão, não logrou fazer prova de tal realidade porquanto, conforme resulta do facto provado 13 sob impugnação, tal putativo acordo apenas abrangia o transporte e nivelamento. Todavia esta questão, do pagamento, não se coloca à luz dos factos provados e não provados, antes apenas se encontra em discussão o julgamento dos factos 6 e 9 do rol de factos «não provados».

            28ª - Os factos 6 e 9 do rol de factos «não provados» deverão ser julgados como

«provados» sob a redação seguinte: “Provado que a Autora T..., Unipessoal, Lda procedeu à execução dos trabalhos e à prestação dos serviços seguintes: máquina para carregar duzentas carradas de tout venant, com manobrador.” e “Provado que por conta do serviço de máquina para carregar o tout venant, com manobrador, a A. faturou ao R. a importância de € 15, acrescido de IVA, por carrada carregada, conforme fatura n.º ...6 junta enquanto documento n.º ... com a p. i..”

            29ª - Mercê da reapreciação e alteração da matéria de facto impõe-se produzir nova decisão de direito, designadamente, (i) passando os factos «provados» elencados sob os n.ºs 13, 16 e 17 para o rol dos factos «não provados», fica infirmado o acordo que o R. sustenta corresponder ao pagamento dos serviços de transporte prestados, pelo que cumpre ao R. pagar à A. os serviços de transporte de 200 carradas de tout venant que melhor se descrevem no ponto 4 do rol de factos «provados»; (ii) conferindo-se a redação proposta ao facto «provado» 14, logo decorre que o R. está obrigado ao pagamento do preço devido por tal serviço de transporte; (iii) e, por último, passando os factos «não provados» 6 e 9 a integrar o rol de factos «provados», o R. está obrigado a proceder ao pagamento dos serviços prestados de carregamento de 200 carradas, mediante a disponibilização de máquina para carregar e respetivo manobrador.

            30ª - Segundo a repartição do ónus probatório compete à A. a demonstração dos factos constitutivos do direito alegado – n.º 1 do art.º 342º do Código Civil (CC) – e, conforme decorre do supra exposto, e com exceção daquela respeitante ao fornecimento do tout venant, a Recorrente logrou demonstrar que executou os trabalhos descritos na fatura cujo pagamento reclama, de resto o R. nem sequer coloca em causa que foram executados.

            31ª - O preço de tais serviços determina-se nos [termos] do art.º 883º ex vi n.º 1 do art.º 1211º do CC, correspondendo o preço contratual devido àquele “que o vendedor normalmente praticar à data da conclusão do contrato”, que se equivale ao valor dos serviços nos termos em que estes foram objecto de faturação, devendo, por conseguinte, o R. ser condenado ao pagamento do respetivo preço.

            32ª - O recurso à condenação genérica ou ilíquida deve ser preterida quando se afigure inútil, por se mostrar que em sede de incidente de liquidação não será possível colher mais elementos para a determinação em concreto da prestação devida, seja tendo em vista os critérios legais, seja à luz da equidade, pelo que o preço deverá ser fixado nos montantes indicados e liquidados pela Recorrente na fatura, condenando-se o R. ao pagamento do respetivo preço.

            33ª - Para a mera hipótese de assim não se entender, e julgando-se inexistirem elementos que permitam tal recurso à equidade, deverá então o valor devido pelas prestações da A. ser fixado mediante posterior liquidação, a realizar nos termos do n.º 2 do art.º 609º do Código de Processo Civil (CPC).

            O Réu respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito (cuja modificação depende do sucesso daquela impugnação).                        


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            1) A A. tem por objecto social: terraplanagens, desaterros, aterros, escavações, nivelamento de terrenos; limpeza dos locais de construção; drenagem e outras preparações dos locais de construção; preparação e drenagem de terrenos agrícolas e florestais; atividades dos serviços relacionados com a silvicultura e exploração florestal; limpeza, desmantelação, plantação e manutenção de terrenos; comercialização e exploração de sistemas de rega; serviços destinados à manutenção de solos em condições agrícolas e ambientais adequadas; aluguer de veículos automóveis ligeiros, pesados, reboques, semi-reboques, máquinas e equipamentos, com ou sem operador; prestação de serviços e/ou de consultadoria; importação e exportação; exploração florestal; transporte de produtos florestais e outros; atividades de proteção civil; limpeza de cursos de água; demolição e preparação dos locais de construção; construção e comércio de materiais de construção.

            2) O Réu, na qualidade de empresário em nome individual, dedica-se à atividade de construção civil.

            3) O Réu levava a efeito a execução de trabalhos de limpeza e nivelamento de um aterro situado em ..., freguesia ..., concelho ....

            4) No exercício da sua atividade, o Réu solicitou à A. o transporte de duzentas carradas de tout venant desde a pedreira situada em ..., ..., até ao local onde decorria a obra a que se alude em 3).

            5) A pedido do Réu, a A. procedeu ao transporte de uma máquina bulldozer desde o estaleiro do Réu situado em ... até ao local da obra a que se alude em 3).

            6) O Réu solicitou ainda à A. a execução, no mesmo local, de serviços com máquina giratória e respetivo manobrador, num total de 24 horas de trabalho.

            7) As partes acordaram que o preço devido pela execução dos serviços mencionados em 6) ascenderia ao montante de € 50 por cada hora de trabalho.

            8) Em execução do acordado pelas partes, a A. transportou 151 carradas de tout venant entre os locais mencionados em 4).

            9) Cada carrada de tout venant correspondia a uma carga completa de um semi-reboque com cerca de 22 m3.

            10) O Réu recebeu as carradas de tout venant mencionadas em 8), incorporando-as na obra a que se alude em 3).

            11) O Réu não pagou à A. a quantia devida pela execução do serviço a que se alude em 6) e 7).

            12) O tout venant transportado pela A. foi comprado pelo Réu à testemunha BB pelo preço global de € 4 000.

            13) A A. e o Réu acordaram que este pagaria a totalidade dos serviços de transporte das carradas de tout venant e de nivelamento com a entrega de uma caixa de velocidades 6x6 ZF multifunções e de um veio de transmissão da marca ....

            14) A A. aceitou efetuar o transporte da máquina bulldozer a que se alude em 5) graciosamente.

            15) O Réu entregou à A. a caixa de velocidades e o veio de transmissão a que se alude em 13).

            16) O Réu procedeu à faturação da referida caixa de velocidades e veio de transmissão em virtude de a A. ter tomado a iniciativa de faturar o transporte das carradas de tout venant com despesas que não tinham sido aceites pelo Réu.

            17) Por essa razão o Réu emitiu e enviou à A. a fatura n.º ..., datada de 03.8.2020, no montante global de € 28 000.

            18) O legal representante da A. procurava uma caixa de velocidades idêntica à mencionada em 13) para incorporar num veículo de marca ... pertencente à sociedade comercial denominada R..., Lda..

            19) Mediante carta datada de 09.7.2020, cujo registo postal foi efetuado na mesma data, a A. remeteu ao Réu a fatura n.º ...6, datada de 09.7.2020, no valor de € 27 293,70, com vencimento a 31.7.2020, referente à prestação dos serviços de carregamento de duzentas e duas carradas de tout venant, de transporte de máquina bulldozer, de 45 horas de execução de trabalhos realizados com máquina giratória e de transporte de duzentas e duas carradas de tout venant.[1]

            20) Mediante carta datada de 01.8.2020, cujo registo postal foi efetuado no dia 02.9.2020, a A. comunicou ao Réu o seguinte: “Na sequência da receção da vossa fatura n.º ... vimos pelo presente devolver a mesma, dado que não reconheçamos a fatura em causa, desconheço a sua origem bem como o descritivo da mesma, uma vez que a caixa de velocidades descrita na mesma não dá em nenhum dos carros da nossa firma, deduzindo assim que se tratou de lapso do cliente para qual queriam emitir a fatura, certo que terram trocado o cliente para o qual queriam emitir a fatura, assim aguardamos a emissão da nota de crédito para regularização da situação.”

            21) Uma caixa de velocidades ZF Mercedes 5S110 GP, no estado de usada, tem o valor de mercado de cerca de € 2 500, acrescidos de IVA.

            22) Um veio de transmissão, no estado de usado e quando comprado em separado, tem um valor comercial de cerca de € 500, acrescidos de IVA.

            23) O veículo pesado a que se destinou a caixa de velocidades entregue pelo Réu tem o valor comercial de cerca de € 8 610.

            24) Mediante carta datada de 18.8.2020, cujo registo postal foi efetuado na mesma data, a A. remeteu ao Réu a fatura n.º ...6, datada de 18.8.2020, no valor de € 8 966,70, com vencimento a 31.8.2020, referente o fornecimento de 162 carradas de tout venant.[2]

            2. E deu como não provado:

            a) O Réu solicitou à A. o fornecimento de 162 carradas de tout venant, destinando-o à obra a que se alude em 3).

            b) O preço previamente ajustado entre a A. e o Réu foi de € 45 por carrada, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor.

            c) A A. forneceu ao Réu 162 carradas de tout venant.

            d) Por conta do referido fornecimento, e nos termos acordados pelas partes, a A. emitiu a fatura n.º ...6.

            e) O transporte a que se alude em 4) foi executado com recurso à utilização do camião de matrícula ..-FB-.. e semi-reboque de matrícula L-.......

            f) O Réu solicitou à A. a execução dos trabalhos e a prestação dos serviços seguintes: máquina para carregar 202 carradas de tout venant, com manobrador.

            g) A prestação do serviço com máquina giratória a que se alude em 6) demorou um total de 45 horas de trabalho.

            h) Conforme previamente acordado entre as partes, o preço do serviço de transporte a que se alude em 4) foi fixado no montante de € 80 por carrada, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor.

            i) Conforme previamente acordado entre as partes, o preço do serviço de máquina para carregar o tout venant, com manobrador, ajustou-se no montante de € 15 por carrada, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor.

            j) Conforme previamente acordado entre as partes, o preço da prestação de serviço de transporte da máquina bulldozer pertencente ao Réu ajustou-se no montante de € 300, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor.

            k) E o preço do serviço da máquina giratória, com manobrador, a que se alude em 6) ajustou-se no montante de € 60 por cada hora de trabalho, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor.

            l) A A. transportou 202 carradas de tout venant entre os locais indicados em 4).            m) Por conta dos trabalhos por si executados, e nos termos acordados com o Réu, a A. emitiu a fatura n.º ...6.

            n) Conforme condições comerciais ajustadas entre as partes, quer os fornecimentos realizados, quer os trabalhos prestados seriam pagos no último dia de cada mês da data da emissão de cada uma das faturas.

            o) As partes acordaram que o pagamento do preço devido seria satisfeito pelo Réu por qualquer meio legalmente admissível, a prestar na sede da A..

            p) O Réu foi repetidamente interpelado pela A. para pagar as quantias das faturas n.ºs ...6 e ...6 e sempre reconheceu ser devedor, prometendo saldar os valores em causa.

            q) O Réu pagou à testemunha BB a totalidade do preço indicado em 12).

            r) A caixa de velocidades a que se alude em 13) tinha um valor superior ao dos serviços de transporte e nivelamento que foram prestados pela A. ao Réu.

            s) O Réu não recebeu as faturas emitidas pela A..

            t) O Réu disponibilizou à A. três bidons de gasóleo, com 200 litros cada um, que a A. levou para si sem pagar nada por eles.

            u) A A. recebeu a caixa de velocidades e o veio de transmissão a que se alude em 13) no dia 03.8.2020.

            v) O Réu entregou também à A., na mesma data, uma caixa de carga basculante com capacidade até 30 toneladas que o Réu tinha adquirido em troca de um serviço de abertura de um furo de água por si prestado à testemunha CC, que a detinha ainda e que valia € 5 000.

            w) Desse valor a A. apenas pagou a quantia de € 1 000 à testemunha CC por acordo com o Réu, ficando o remanescente a pagar diretamente ao Réu.

            x) A A. foi interpelada para proceder ao pagamento da quantia de € 4 000.

            y) O Réu deu instruções à testemunha CC, com quem tinha acordado a compra e que detinha a declaração de venda com a indicação do comprador em branco, para que alterasse a venda a favor da A., de forma a evitar mais uma transação.

            z) A caixa de velocidades a que se alude em 13), à qual se encontrava agregado o veio de transmissão aí mencionado, encontrava-se, desarmada e desmontada, no chão do estaleiro do Réu.

            aa) Com o propósito a que se alude em 18) o legal representante da A. já então dispunha de um orçamento, prestado por um profissional do comércio de peças, para o fornecimento de uma caixa de velocidades idêntica àquela, igualmente no estado de usada, pelo preço de € 2 500, acrescidos de IVA.

            bb) Esse facto foi transmitido pelo representante legal da A. ao Réu.

            cc) Neste contexto e nas descritas circunstâncias, o representante legal da A. e o Réu acordaram que aquele poderia fazer sua a dita caixa de velocidades, com veio de transmissão, pelo valor de € 2 500, acrescidos de IVA.

            dd) O Réu sabe que o negócio referente à caixa de velocidades não foi celebrado com a A..

            ee) O representante legal da A. não precisava do veio de transmissão que lhe foi entregue pelo Réu.

            ff) No dia 08.10.2020 a A. comprou à sociedade comercial M...Ldª. o semi-reboque de marca ... e matrícula L-......, a que corresponde o quadro n.º ..., pelo preço de € 3 075.

            gg) Pagou o preço indicado em ff) através de cheque emitido no dia 05.11.2020.

            hh) O Réu sabe que a pretensão por si formulada em sede reconvencional é desprovida de fundamento.

            ii) Para fazer valer essa sua pretensão, o Réu recorreu à alegação de factos falsos.

            jj) Movido pelo propósito de não pagar o que sabe dever à A., o Réu recorreu à falsidade unicamente com vista a entorpecer a marcha do processo.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

a) A A./recorrente insurge-se, principalmente, contra a decisão sobre a matéria de facto, sendo que da sua eventual modificação poderá resultar diferente desfecho dos autos.

Importa averiguar se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade aludida em II. 1. 13), 14), 16) e 17) e II. 2. alíneas f), h) e i), supra, pugnando a A. que se decida pela forma indicada nas “conclusões 18ª, 19ª, 20ª, 24ª e 28ª”, ponto I., supra, atenta a prova pessoal (depoimento e declarações de parte e depoimentos das testemunhas) e pericial indicada na impugnação e produzida nos autos e em audiência de julgamento.

b) Esta Relação procedeu à audição integral da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental e pericial.

c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efetivação do princípio da imediação[3], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obsta a que se verifique se os depoimentos e as declarações foram apreciados de forma razoável e adequada.

            Na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[4], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

d) Da fundamentação da matéria de facto apresentada pela Mm.ª Juíza a quo importa destacar os seguintes excertos (atento o objeto do recurso):

«(...) As declarações prestadas em sede de audiência final pelo representante legal da Autora e pelo Réu mostram-se incompatíveis entre si também no que diz respeito ao acordo firmado pelas partes relativamente ao pagamento do serviço de transporte de ´tout venant` por ambos contratado.

            Com efeito, enquanto o representante legal da Autora assegurou ao Tribunal ter combinado com o Réu que o referido serviço de transporte teria um custo de € 80 por carrada, a que acrescia o valor de € 15 referente à operação de carregamento de cada carrada no semi-reboque, o Réu, pelo contrário, garantiu ter combinado com o representante legal da Autora que, por conta da prestação do serviço de transporte de todas as carradas de ´tout venant` por si adquiridas, a sociedade Autora faria sua a caixa de velocidades e o veio de transmissão que lhe foram entregues pelo Réu.

            Ora, a prova testemunhal produzida em sede de audiência final não permitiu esclarecer qual dos acordos mencionados corresponde ao que foi, de facto, celebrado pelas partes.

            Na verdade, a testemunha BB afirmou pensar que Autora e Réu teriam acordado o preço de € 85 pelo transporte de cada carrada de ´tout venant`, acrescido do preço de € 15 pela operação de carregamento de cada carrada de ´tout venant` adquirida pelo Réu.

            De igual forma, também a testemunha DD referiu (...) ter assistido a uma conversa entre o seu patrão, que é o representante legal da sociedade Autora, e o Réu, no âmbito da qual ambos combinaram que o serviço continuaria a ser prestado e que o Réu pagaria o montante de € 45 por cada carrada de ´tout venant` transportada e fornecida pela Autora, o montante de € 15 pelo carregamento de cada carrada de ´tout venant` e o montante de € 85 pelo transporte de cada carrada até ao local onde decorriam os trabalhos a que o Réu se dedicava.

            Tal conversa, segundo a testemunha DD, teria ocorrido numa altura em que o representante legal da Autora já tinha transportado as carradas de ´tout venant` vendidas pela testemunha BB e em data em que a testemunha foi ajudar o seu patrão.

            Em primeiro lugar, verifica-se que ambas as testemunhas citadas aludiram a um preço de transporte (€ 85 por cada carrada de ´tout venant`) diferente do que foi mencionado pelo próprio representante legal da sociedade Autora (€ 80 por cada carrada de ´tout venant`).

            Para além disso, o depoimento prestado pela testemunha DD é também incompatível com o depoimento prestado pelo representante legal da sociedade Autora quanto às circunstâncias de tempo em que o acordo em causa teria sido firmado.

            Na verdade, enquanto o representante legal da sociedade Autora afirmou ter acordado com o Réu o preço do transporte das carradas de ´tout venant` ainda antes de ter iniciado a prestação desse serviço, a testemunha DD situou a conversa em que alega ter ouvido a celebração do acordo por si mencionado no período subsequente ao desentendimento que teria surgido entre o Réu e a testemunha BB.

            Mas, para além disso, é também notória a divergência existente entre o depoimento da testemunha DD, quando referiu ter ouvido que ambas as partes concordaram fixar em € 45 o preço devido por cada carrada de ´tout venant` fornecida pela Autora, e o depoimento do representante legal da Autora, do qual resultou que nenhum preço foi acordado com o Réu, já que este sabia que teria que continuar a pagar o que era devido.

            Deste modo, em face das discrepâncias mencionadas, não se afigura credível que alguma das testemunhas citadas tenha presenciado alguma conversa estabelecida entre o representante legal da Autora e o Réu a propósito do preço que seria devido pela prestação do serviço de transporte a que se tem vindo a aludir.[5]

            Pelo contrário, a testemunha EE referiu, em sede de audiência final, que, numa altura em que se encontrava a trabalhar, por conta do Réu, na obra que este executava em ..., ouviu uma conversa no âmbito da qual o representante legal da Autora teria solicitado ao Réu, em troca da prestação do serviço de transporte a que se tem vindo a aludir, a entrega da caixa de velocidades e do veio de transmissão pertencentes ao Réu, sendo certo que nessa ocasião também se teria falado na entrega de gasóleo que a testemunha desconhece se visaria custear o referido transporte.

            Por seu turno, a testemunha FF afirmou que, a certa altura, o Réu lhe pediu que desmontasse uma caixa de velocidades e um veio de transmissão de um veículo pertencente ao mesmo e que, nessa ocasião, ouviu o Réu combinar com o representante legal da Autora que, por conta do transporte do ´tout venant`, lhe entregaria a referida caixa de velocidades e veio de transmissão, assim como uma caixa de carga, sendo certo que nessa altura não se teria falado na entrega de gasóleo.

            Ora, os dois depoimentos testemunhais mencionados não se mostram coincidentes entre si no que diz respeito ao local e às circunstâncias em que o acordo em causa teria sido firmado pelas partes, nem no que concerne à contrapartida devida pela prestação do serviço de transporte a que se tem vindo a aludir.

            Por outro lado, tais depoimentos não corroboram as declarações prestadas pelo Réu, na medida em que, para além da caixa de velocidades e do veio de transmissão por este mencionados, a testemunha EE aludiu ainda à entrega de gasóleo, enquanto a testemunha FF referiu que também faria parte do negócio a entrega de uma caixa de carga.

            Nestes termos, em face das discrepâncias mencionadas, não poderia o Tribunal considerar credíveis os dois depoimentos testemunhais mencionados.

            De qualquer forma, se os depoimentos testemunhais prestados em sede de audiência final não corroboraram as declarações prestadas por nenhuma das partes, afigura-se que a análise da prova documental produzida permite atribuir maior credibilidade às declarações prestadas pelo Réu.

            Efectivamente, resulta da análise do teor dos documentos juntos a fls. 8, 27 e 28 que, no dia 9 de Julho de 2020, a Autora emitiu e remeteu ao Réu a fatura n.º ...6, no valor de € 27 293,70, correspondente ao carregamento e transporte de ´tout venant` a que se tem vindo a aludir, assim como ao transporte de uma máquina ´bulldozer` e à prestação de serviços com máquina giratória, tendo a mesma sido recebida no domicílio do Réu a 13 de Julho de 2020.

            Por outro lado, decorre da análise do teor dos documentos juntos aos autos a fls. 17-verso e 18 que, no dia 3.8.2020, o Réu decidiu faturar a venda da caixa de velocidades e do veio de transmissão entregues à Autora, emitindo a fatura n.º ..., no valor de € 28 000, na qual incluiu “mão-de-obra” no valor de € 2 000, tendo remetido essa fatura, no dia 27.8.2020, à Autora, que a recebeu no dia 28.8.2020.

            Ora, como foi admitido pelo Réu em sede de audiência final, a fatura agora mencionada só foi por si emitida porque o que tinha combinado com o representante legal da sociedade Autora era a troca da caixa de velocidades e do veio de transmissão pela prestação do serviço de transporte do ´tout venant` adquirido à testemunha BB. Assim, tendo a Autora faturado a prestação de tal serviço de transporte, o Réu decidiu faturar também, por um valor aproximado do indicado na fatura emitida pela Autora, a venda da caixa de velocidades e do veio de transmissão.

            Tal reação do Réu, ao emitir a fatura n.º ..., não deixa de consubstanciar uma reação própria de quem se sente injustiçado por lhe ser exigido o pagamento daquilo que não se comprometeu a pagar, ainda que, obviamente, a fatura por si emitida também não reflita o acordo firmado pelas partes.

            De qualquer forma, o facto de, nas circunstâncias mencionadas, o Réu ter optado por emitir e remeter à sociedade Autora a fatura n.º ... não deixa de corroborar a versão dos factos pelo mesmo apresentada.

            Em consequência, conjugando os elementos documentais a que se aludiu com as declarações prestadas pelo próprio Réu em sede de audiência final, foram considerados provados os factos indicados sob os números 13., 16. e 17. do elenco dos factos provados.

            Ao invés, a prova documental produzida nos presentes autos revela a incongruência da posição adotada pela Autora relativamente ao negócio celebrado com o Réu.

            Na verdade, em sede de audiência final o representante legal da Autora admitiu que, de facto, a caixa de velocidades e o veio de transmissão pertencentes ao Réu lhe foram por este entregues.

            (...)

            De todo o modo, o representante legal da Autora acrescentou ter combinado com o Réu que o valor da referida caixa de velocidades e veio de transmissão, que ambos acordaram ser de € 2 500, seria descontado ao preço do serviço de transporte prestado pela Autora.

            Sendo assim, seria de esperar que, confrontado com o teor da fatura n.º ..., entretanto emitida pelo Réu, o representante legal da Autora reconhecesse que, de facto, lhe competiria proceder ao desconto da quantia de € 2 500 acordada pelas partes e comunicasse ao Réu que o valor da caixa de velocidades e do veio de transmissão por ambos fixado não correspondia ao indicado na fatura a que se aludiu.

            Contudo, os documentos juntos aos autos pela própria Autora revelam que, em vez disso, o seu representante legal, mediante comunicação datada de 1 de Agosto de 2020, (...) entregue no domicílio do Réu no dia 3.9.2020 (cf. fls. 28-verso e 29), não só devolveu a fatura pelo mesmo emitida, como também invocou a existência de um lapso ao nível da identificação do cliente ao qual a mesma se destinaria, já que a caixa de velocidades nela identificada não seria adequada para nenhum dos veículos pertencentes à sociedade Autora.

            O teor da mencionada comunicação, confrontada com as declarações prestadas pelo representante legal da sociedade Autora em sede de audiência final, revela que esta foi assumindo, ao longo do tempo, posições díspares, o que significa que tais declarações não se revestem da consistência e credibilidade que seriam necessárias para que pudessem contribuir para a formação da convicção do Tribunal a respeito dos factos em apreço.

            (...)

            Assim, por terem sido confirmados apenas pelo representante legal da sociedade Autora, sem que a demais prova produzida em sede de audiência final os corroborasse, foram considerados não provados os factos indicados sob os números 6., 8. e 9. do elenco dos factos não provados.

            Também o facto indicado em 14. foi considerado provado com base nas declarações de parte prestadas pelo Réu em sede de audiência final.

            Efectivamente, segundo o Réu a máquina ´bulldozer` que lhe pertence foi transportada até ao local onde era descarregado o ´tout venant`, a fim de poder ser utilizada pelo representante legal da Autora para nivelar o terreno quando esse material era descarregado. Por essa razão, não foi acordado entre as partes o pagamento de qualquer valor pelo transporte da máquina mencionada, supondo o Réu que não lhe iria ser cobrado qualquer montante a esse título, tanto mais que o transporte foi efetuado numa distância de apenas cerca de um quilómetro.

            Aliás, o próprio representante legal da sociedade Autora admitiu não ter acordado com o Réu o preço que seria devido pelo transporte da máquina ´bulldozer` desde o estaleiro onde a mesma se encontrava até ao local onde era descarregado o material transportado pela Autora.

            Assim, não tendo sido produzida qualquer prova que infirmasse as declarações prestadas pelo Réu a esse propósito, foi considerado provado o facto indicado sob o número 14. do elenco dos factos provados. (...)

            O representante legal da sociedade Autora afirmou, em sede de audiência final, que precisava da caixa de velocidades pela mesma adquirida ao Réu para colocar num veículo pertencente a uma outra sociedade comercial, após o que haveria um acerto de contas entre as duas sociedades.

            Por outro lado, o documento junto aos autos a fls. 26 revela que, de facto, a sociedade comercial denominada R..., Lda. é proprietária do veículo de marca ..., modelo ... AK 6x6 e matrícula ..-..-KD.

            Acresce ainda que, de acordo com o relatório pericial junto aos autos a fls. 51 e 52, a caixa de velocidades adquirida pela Autora é compatível com o veículo de marca Mercedes a que se aludiu, sendo certo ainda que o valor de mercado deste, dependendo do respetivo estado de conservação, poderá variar entre os € 8 000 e os € 20 000.

            (...)

            Já a decisão proferida a respeito dos factos considerados não provados ficou a dever-se à circunstância de não ter sido produzida prova suficientemente consistente e credível para fundamentar a convicção do Tribunal relativamente aos mesmos. (...)

            Conforme decorre do que foi já mencionado, a prova produzida em sede de audiência final revelou que as partes não acordaram o pagamento de qualquer quantia em dinheiro a título de preço devido em consequência do serviço de transporte prestado pela Autora a pedido do Réu.

            Quer isto dizer que a fatura n.º ...6 emitida pela Autora, no valor de € 27 293,70, da qual consta a indicação do preço referente a tais serviços de transporte, assim como ao carregamento do ´tout venant` (cf. fls. 8), não traduz o que foi acordado com o Réu. (...)

            (...) no seu articulado de contestação o Réu explicou que o acordo firmado pelas partes consistia na entrega da caixa de velocidades e do veio de transmissão identificados na fatura n.º ... em troca da prestação dos serviços de transporte e nivelamento solicitados à Autora (cf. artigo 20º da contestação).

            Nessa medida, exigindo a Autora o pagamento da quantia por si reclamada a título de retribuição do serviço de transporte que prestou, então o Réu, de forma a fazer equiparar as duas prestações que tinham sido acordadas pelas partes, procedeu à “faturação da caixa de velocidades que lhe foi entregue e, bem assim da transmissão Mercedes que a A. também lhe solicitou com a respetiva mão-de-obra” (cf. artigo 33º da contestação).

            (...) no essencial, os factos alegados pelo Réu a propósito dos termos do acordo firmado pelas partes foram considerados provados. (...)»

e) A descrita análise crítica da prova afigura-se correta.

Vejamos alguns excertos dos depoimentos (e declarações) prestados em audiência de julgamento:

- Depoimento de parte do legal representante da A. (fls. 62 verso):

            «(...) Quando eu me desloquei ao estaleiro do Sr. AA (Réu), reparei que ele tinha lá um camião igual a um que nós temos, perguntei-lhe se ele o queria vender e ele disse, perguntou, o que é que eu precisava, e eu disse que precisava de uma caixa de velocidades, e ele disse-me então que não me vendia o camião, mas que, sim, que tinha uma caixa de velocidades suplente que podia dispensar e, então, acordámos o valor e que depois descontava no trabalho a executar, esse mesmo trabalho de transporte e da carga do material para lá, para ele. A caixa de velocidades era para um carro que é de uma outra firma que é de nossa propriedade e, depois, nós fazíamos o acerto de contas» com a A..

            - Testemunha BB (fls. 63):

            «(...) ele (Réu) disse que acabou o negócio ali comigo, mas o negócio continuou, através do Sr. CC (legal representante da A.), porque ele andava a transportar e tinham lá esse negócio com as coisas, com as trocas que eles tinham feito da caixa e (...), porque eles tinham esses negócios para concluir...; (...) foi ele (Réu) que me disse, ´ toma lá estes € 2 000 e acabou!

            - Testemunha GG (fls. 63 verso):

              A propósito de um negócio de uma galera, referiu, nomeadamente: «(...) galera em troca do furo lá nos negócios deles, (...) o Sr. AA não a foi buscar, e isto depois aquilo é tudo pessoal, são pessoas de negócio [aludia ao Réu, ao legal representante da A. e à testemunha CC], pronto, não interessa citar o que é isso..., são pessoas de negócio e tal (...), vendeu, só que o Sr. AA lembrou-se da galera e foi para a ir buscar e depois é evidente teve que lhe arranjar outra, não é? (...); (...) esta [uma segunda galera], agora, entrou nesse negócio que ele lá tinha do ´tout venant`, entrou com ele, com esse Sr. CC (legal representante da A.), (...) para justificar com quem a tinha negociado, o outro, com medo na situação (...); depois entraram em colapso os dois, portanto, o Sr. CC (legal representante da A.) com o Sr. AA, o outro teve medo porque, segundo o que se consta, houve para ali uma coisinha tal ilícita, entre eles, na venda da galera e é o que se passa no meio desta história, e estão todos a tentar encobrir uma coisa que é mais limpa que o ar!...».

            - Declarações de parte do Réu (fls. 72 verso):

            «(...) ele (testemunha BB) ficou-me em fazer-me uns papéis (...), umas guias, para a gente saber as carradas; não o fez e eu tive que arranjar uma alternativa, arranjar um caderno e mandar lá alguém apontar e tirar-lhe a bateria da máquina para o gajo não se espalhar logo, se não eu não conseguia controlar esse Sr. (...); comecei a ver que havia aí, logo, ´máfia`, então, comecei a precaver...; (...) foi esse tal HH (testemunha BB) que me levou lá, porque eles (a referida testemunha e o legal representante da A.) estão os dois na mesma zona (...); combinei porque ele precisava dessa tal caixa de transferência multifunções e mais umas peças, levou essas peças e combinei que era (...) troca por troca, não havia dinheiro para ninguém!, e ele, sim senhora, mas, mais tarde, apresentam-me para lá faturas, uma coisa exorbitante que eu se me apercebesse, se o gajo me tem dito aquilo antes eu não queria trabalho nenhum do gajo (...); ele (legal representante da A.) fazia o transporte dos resíduos que já tinha pago ao tal HH e ele levava, não, levou logo... - o empregado é que carregou essa caixa de transferência e as respetivas transmissões (...); (...) foram ver a caixa e o local onde descarregava o ´tout venant` (...); era só pelo transporte, ele levava aquilo...; aquilo não está nada desfavorável ao Sr. CC (...); estava tudo de acordo, não era preciso chamar ninguém, a gente não pode é confiar em ninguém!, não é? (...) um empreiteiro, uma pessoa honesta, não pode andar a aldrabar toda a gente (...); faturei-lhe a ele (...) a caixa e as peças (...) mais ou menos equivalente, como aquilo tinha sido uma troca, equivalente às faturas que ele me passou (...); se estava trocada, para que era preciso falar de preços?; (...) só lhe disse assim: ´se quiseres levar a caixa, fazes o transporte daquela terra de lá para ali` (...). [a propósito do negócio da galera que efetuou com a testemunha CC] “(...) se ele trocou pela banheira não pode pagar, aquilo era só trocas e baldrocas,  (...) é verdade!, é verdade!... (...); já acabei com isto; agora, também já estou velho, já não me vou andar a chatear muito... (...)»

            f) A prova documental foi adequadamente concretizada e analisada (na decisão sob censura).

            Acrescenta-se:

            - À exceção dos documentos n.ºs ... a ... e ... juntos com a réplica (fls. 26 a 29 verso, 32 e 33), os demais documentos que acompanharam o mesmo articulado (fls. 30, 31 e 33 verso a 34) e os incluídos no requerimento da A. de 26.01.2022 (fls. 67 a 69) foram elaborados em data posterior à da propositura da ação, indiciando-se que, com alguns desses documentos, a apresentante/A. pretenderia corroborar a sua versão da realidade trazida a juízo e em parte transmitida pelas quatro primeiras testemunhas (por si arroladas) ouvidas na 1ª sessão da audiência de julgamento.

            - Nada se podendo objetar à análise crítica da Mm.ª Juíza do Tribunal a quo a respeito do documento de fls. 28 verso (doc. n.º 3 junto com a réplica) - designadamente, quando refere que  «o teor da mencionada comunicação, confrontada com as declarações prestadas pelo representante legal da sociedade Autora em sede de audiência final, revela que esta foi assumindo, ao longo do tempo, posições díspares, o que significa que tais declarações não se revestem da consistência e credibilidade que seriam necessárias para que pudessem contribuir para a formação da convicção do Tribunal a respeito dos factos em apreço» -  também se dirá que a A., ao redigir a carta endereçada ao Réu a 02.9.2020, teve, então, a melhor oportunidade para, em resposta à atuação deste, tomar a devida posição no diferendo das partes.

            Mas decidiu não o fazer, pois não esclareceu quaisquer factos e terá contribuído, apenas, para adensar a “nebulosa” porventura existente (!) [cf. II. 1. 20), supra e depoimento de parte reproduzido em II. 3. e), supra].

       4. A prova por declarações de parte está prevista no art.º 466º do CPC, nos seguintes termos: As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto (n.º 1). O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão (n.º 3).

       A consideração do depoimento sobre factos favoráveis ao depoente, enquanto meio de prova, está normalmente associada à inexistência de melhores meios de demonstração de tais factos, i. é, de meios, em princípio, mais fiáveis. A necessidade sentida pela parte de oferecer o depoimento próprio como meio de prova pode resultar, quer da inexistência, quer do fracasso da produção de outros meios.

       Daí, a prestação de declarações de parte (sobre factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto - v. g., relações contratuais conhecidas apenas das partes -, desde que abrangidos pelos temas da prova) poderá ser requerida até ao início das alegações orais em 1ª instância (art.ºs 410º e 466º, n.º 1 do CPC).[6]

            O Réu observou os requisitos adjetivos (das declarações de parte), porquanto, no início da 2ª sessão da audiência de julgamento, requereu a prestação de declarações e indicou o objeto das mesmas, tratando-se de matéria do seu conhecimento pessoal e direto (cf. contestação de fls. 12 verso e ata de 11.02.2022).

            5. Ao contrário do entendimento perfilhado por alguma doutrina e jurisprudência, afigura-se que a fiabilidade das declarações da parte poderá aumentar se a parte tiver pleno conhecimento do que se passou na audiência final e se quiser reagir, por sua iniciativa, contra alguma prova nela produzida.

            A ausência da parte da audiência final diminui o conhecimento por esta do que nela se passou e restringe a possibilidade de uma reação espontânea da parte. Uma parte informada é uma parte da qual se pode esperar um comportamento racional, não temerário e não instrumentalizado, porque dificilmente se imagina que a parte se disponha a prestar declarações contra o que está solidamente provado.

            Assim, a circunstância de a parte ter assistido à audiência final pode constituir um fator relevante para a valoração das declarações realizadas pela parte; isso justifica que o juiz pondere essa circunstância no momento da apreciação da prova, mas não que assuma, a priori, que a presença da parte declarante na audiência final diminui o valor probatório das suas declarações.[7]

            6. A respeito da problemática da valoração das declarações de parte, também se dirá que se, por um lado, se impõe apreciar a prova por declarações de parte sem ilusões ingénuas, por outro lado, nada justifica a desqualificação, à partida, do valor probatório da prova por declarações de parte, que tem o valor probatório que, em função do caso, for justificado atribuir segundo a prudente convicção do juiz (art.º 607º, n.º 5 do CPC).[8] [9]
            7. Não se enjeita o entendimento que recusa ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente. Já integrado num acervo probatório mais vasto, poderá mesmo ser ´decisivo` na prova desse facto, pois proporciona um material probatório ´necessário` à prova do facto.[10]

8. Os elementos disponíveis indiciam que as diversas “pessoas de negócio” (sic) referidas nos autos, entre as quais, o legal representante da A. e o Réu, desenvolvem/desenvolveram a sua atividade fazendo uso de práticas próprias da economia paralela. [11]

Movendo-se as partes dentro, ou parcialmente dentro, desse mundo da economia com o propósito de fuga ao cumprimento das suas obrigações fiscais, e ocultando/escondendo toda essa realidade, também, em sede judicial, tal circunstância dificulta, em elevado grau, o dever de “julgar segundo a verdade”, em razão das consequentes e acrescidas dificuldades no apuramento dos factos

            9. A descrita fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, elaborada pela Mm.ª Juíza do Tribunal a quo,[12] não suscita o menor reparo!

            Na verdade, face à mencionada prova pessoal e documental, sujeita à livre apreciação do julgador, apenas se poderá dizer que a factualidade dada como provada (e não provada) respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[13], a Mm.ª Juíza não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[14]

            Ao contrário do sustentado pela A. e sabendo-se que o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, quando não representam confissão (art.º 466º, n.º 3, do CPC), ponderada a prova documental junta aos autos (inclusive, as circunstâncias da sua elaboração, desde logo, dos documentos contabilísticos emitidos pelas partes e juntos com a p. i. e a contestação) e confrontando-a com a prova pessoal produzida em audiência de julgamento, podemos afirmar que não existem as apontadas incongruências nas declarações de parte do Réu, podendo-se antes concluir, como a Mm.ª Juíza, que, «conjugando os elementos documentais a que se aludiu com as declarações prestadas pelo próprio Réu em sede de audiência final» resulta provada, nomeadamente, a matéria descrita em II. 1. 13), 16) e 17), supra, e, quanto à matéria de facto das alíneas f), h) e i) dada como não provada, apenas poderá/deverá relevar o que consta, sobretudo, em 4), 8) e 13) dos factos provados.[15]

            A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou (clara e exaustivamente) os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção[16], respeitando as normas/critérios dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

            A prova produzida não impõe resposta diversa da encontrada em 1ª instância.

            Improcede a pretensão da apelante quanto à modificação da decisão de facto.

            10. A. A./recorrente pugnou por diferente decisão de mérito, no pressuposto de que a impugnação de facto seria atendida, havendo considerado que “a apreciação da matéria de facto e a sua alteração assume relevância na decisão de direito” (cf., v. g., “conclusões 29ª e 30ª”, ponto I., supra, e o ponto 2., ab initio, da fundamentação da alegação de recurso).

            Inalterada a decisão de facto, e não vindo suscitadas quaisquer concretas questões de direito na base da factualidade dada como provada em 1ª instância, resta, pois, concluir pela total improcedência do recurso.


*

III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.        

            Custas pela A./apelante.


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14.6.2022


                                   


[1] Documentos reproduzidos a fls. 8 e 27
[2] Documentos reproduzidos a fls. 7 verso e 32.

[3] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[4] Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjetiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[5] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.

[6]  Neste sentido, vide Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo CPC, 2014, 2ª edição, Vol. I, Almedina, págs. 396 e seguintes.

[7] Vide M. Teixeira de Sousa, blogue do IPPC, dia 24.4.2017, a propósito do estudo “As declarações de parte. Uma síntese de L. F. Pires de Sousa” (publicado a 22.4.2017), acessível em https://blogippc.blogspot.pt/2017/04/um-apontamento-sobre-as-declaracoes-de.html.

[8] Vide M. Teixeira de Sousa, blogue do IPPC, dia 24.5.2018, sobre a problemática da valoração das declarações de parte, no “post” sob o enquadramento «1. A prova por declarações de parte - regulada no art.º 466º CPC - constituiu uma das novidades introduzidas pelo atual CPC no processo civil português. À partida, não seriam de esperar nenhumas dificuldades quanto ao valor probatório a atribuir a essa prova: esta deveria ser apreciada, como qualquer outra prova livre, segundo a prudente convicção formada pelo juiz (art.º 466º, n.º 3, e 607º, n.º 5, CPC). Algo inesperadamente, essa apreciação tem, todavia, suscitado algumas dificuldades.»

[9] Assim se repensa e revê a posição assumida no acórdão da RC de 11.02.2020-processo 286/17.1T8GVA.C1, em que o relator e o 1º adjunto deste acórdão intervieram como adjuntos [tendo-se concluído: «(...) IV - A prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal (art.º 466º, n.º 3, do NCPC), e a Relação, na apreciação da impugnação da matéria de facto, age sobre o império do princípio da livre apreciação da prova, tal como a 1ª instância (ao abrigo do art.º 607º, n.º 5, 1ª parte, ex vi do art.º 663º, n.º 2, do NCPC); V - Se as declarações de parte não têm suficiente lastro probatório noutros meios de prova gerando sérias dúvidas sobre a realidade dos factos, então tal dúvida volve-se contra os AA, a parte a quem o facto aproveitava.»], aresto comentado por M. Teixeira de Sousa no blogue do IPPC em “post” inserido no dia 24.7.2020, (ainda) a propósito da problemática da valoração das declarações de parte.
[10] Vide Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. e vol. cit., pág. 395.
   Cf., ainda, a jurisprudência indicada na “nota 15”, infra.
[11] Cf., por exemplo, o depoimento da testemunha …  [II. 3. e), supra].
   Neste contexto, a propósito da documentação junta como “doc. n.º 8” da réplica (fls. 33 verso e 34), a testemunha …  viria a rematar: «Não houve dinheiro por fora, está tudo faturado!...»
[12] Cf. II. 3. d), supra.
[13] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277 e seguinte.
[14] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.
[15] Ainda sobre a valoração das declarações de parte, cf., de entre vários, os acórdãos da RG de 08.4.2021-processo 4239/17.1.T8GMR.G1     [com o sumário: «I - Como é consabido as declarações de parte, são um meio de prova sujeito à livre apreciação do tribunal (cf. artigo 466º do CPC), que contudo deve ser valorado com especial cautela e cuidado, já que como meio probatório, não deixam de ser declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na acção, sendo por isso de considerar, em regra, de irrazoável e insensato, que sem o auxílio de quaisquer outros meios probatórios, o Tribunal dê como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos. II - Nas declarações da parte importa que o seu relato seja espontaneamente contextualizado e seja coerente, quer em termos temporais, espaciais e emocionais e que seja credenciado/apoiado por outros meios de prova, designadamente que as declarações da parte sejam confirmadas, por outros dados que, ainda que, indirectamente, demonstrem a veracidade da declaração. Caso contrário a declaração revelará força probatória de tal forma débil que não deve ser tida em conta.»] e 11.11.2021-processo 831/19.8T8VCT.G1 [com o sumário: «3 - As declarações de parte devem ser apreciadas pelo tribunal a par dos outros meios de prova de apreciação livre, tornando-se necessário, no entanto, pela própria natureza das mesmas, um esforço mais aturado para apurar da sua credibilidade, sobretudo quando em confronto com outra prova de sentido contrário.»], RP de 17.6.2021-processo 2358/19.9T8MTS.P1 [concluindo-se: «I - As declarações de parte são um meio de prova livre, a analisar criticamente no âmbito de cada processo (artigo 466º do Código de Processo Civil), sendo insuficientes para estabelecer a prova de um facto, favorável à parte, quando se revelam frágeis e desacompanhadas de outro meio de prova ao seu alcance e que as sustente.»] e 11.01.2022-processo 2274/19.4T8VNG.P1 [assim sumariado: «I - As declarações de parte, pese embora a sua especificidade, têm valor probatório autónomo, podendo firmar a convicção do juiz de forma autossuficiente. II - Assim, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.»], RC de 16.3.2021-processo 204/19.2T8SPS.C1 [sumariando-se: «4. A prova por declarações deve merecer a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis e deverá ser valorada conforme se estabelece no art.º 466°, n.º 3 do NCPC, isto é, deverá ser apreciada livremente pelo tribunal. A credibilidade das declarações da parte tem de ser apreciada em concreto, numa perspectiva crítica, com vista à descoberta da verdade material, bem podendo suceder que as respectivas declarações, em concreto, possam merecer muita, pouca ou, mesmo, nenhuma credibilidade. 5. A significar que a prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, sendo, porém, normalmente insuficiente para valer como prova de factos favoráveis à procedência da acção, desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente, ou, sequer, indicie.»] e da RL de 22.3.2022-processo 18293/16.0T8LSB.L2-7 [concluindo: «1. As declarações de parte devem ser valorizadas tendo em atenção a forma como são prestadas, a coerência e verosimilhança do declarado, ponderada a situação concreta e as regras da experiência, no confronto com a demais prova produzida.»], publicados no “site” da dgsi.
[16] Relativamente aos 60 pontos de facto provados e não provados, sendo que a A. impugnou, apenas, 7 desses pontos de facto – cf. II. 3. a), supra.