Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
172/09.9TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: COMPROPRIEDADE
DIVISÃO
TRANSACÇÃO JUDICIAL
USUCAPIÃO
INVERSÃO DE TÍTULO
Data do Acordão: 09/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.293, 300, 665, 784 CPC, 217, 220, 280, 281, 294, 875, 1252, 1287, 1294, 1376, 1403, 1413 CC
Sumário: 1. Constituindo a transacção judicial “um contrato bilateral realizado no âmbito de processo pendente, através do qual as partes terminam o litígio mediante recíprocas concessões (art.º 1248 CC ), a sua validade está condicionada ao regime geral consagrado para os negócios jurídicos nos artigos 217º e seguintes do Código Civil, incluindo as respectivas exigências formais e as consequências da sua não observância.

2. Não é válida a transacção judicial, formalizada em documento particular, na qual as partes procedem à divisão amigável de um prédio de que são comproprietárias, visto que a forma legalmente exigida para a divisão é a correspondente à da alienação onerosa de imóvel ( art.1413 nº2 e 875 CC).

3. Um comproprietário pode adquirir por usucapião uma parcela autónoma e distinta do prédio comum, desde que reunidos todos os pressupostos de que depende esta forma de aquisição originária.

4. Mas para que possa adquirir a propriedade singular e exclusiva sobre parte determinada e autónoma daquele imóvel terá de ocorrer inversão do título de posse, como decorre do nº2 do artigo 1406º do CC.

5. Tal inversão do título pressupõe, nos termos do artigo 1265º do CC, que, designadamente, esse comproprietário manifeste inequivocamente perante os demais comproprietários do imóvel a sua intenção de passar a deter em nome próprio essa parte específica e individualizada do imóvel e que se opõe ao direito de que eles são titulares.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

            F P (…) e marido, A P (…) propuseram acção declarativa com processo sumário contra A M (…) e I M (…), pedindo, sinteticamente, que se declare que os Autores são, com exclusão de outrem, proprietários do prédio rústico sito em ..., freguesia de ..., concelho de Tomar, com a área de 4.480 m2, que, há mais de 20 anos, constitui um prédio autónomo, demarcado dos demais prédios confinantes, condenando-se os Réus a reconhecerem esse direito de propriedade e absterem-se da prática de actos que induzam terceiras pessoas a considerá-los ou confundi-los como proprietários do aludido prédio,

Alegam, para o efeito, que o prédio em causa lhes foi verbalmente doado em 1979 por (…) e (…), altura em que nele foram colocados marcos a delimitá-lo, e que, desde então, o vêm amanhando, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, na convicção de exercerem um direito, sem ofensa de direitos alheios.

Acrescentam que os Réus, que são proprietários de um prédio confinante com o prédio dos Autores, invadiram abusivamente este, destruindo oliveiras, removendo terras e efectuando escavações, arrogando-se dele proprietários perante terceiros.

Citados, contestaram os Réus que, alegando desconhecerem qual a área do prédio possuído pelos Autores, negam que alguma vez tenham tido a intenção de se apoderarem do que não lhes pertence, tendo procedido ao corte das árvores, à escavação e remoção de terras apenas no seu próprio prédio, dentro dos seus limites.

Em reconvenção, pedem que se declare que são proprietários, com exclusão de outrem, do prédio rústico sito em ..., freguesia de ..., concelho de Tomar, com a área de 2.600 m2, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., secção V – parte, e que se condenem os Autores a reconhecerem essa propriedade.

Referem, para tanto, que adquiriram tal prédio por doação verbal efectuada por (…) e (…) em 1970, data em que procederam à colocação de marcos, delimitando-o, e passando, desde então, a cultivá-lo e a aproveitar as utilidades nele produzidas, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, na convicção de exercerem um direito próprio e exclusivo.

Pretenderam, entretanto, as partes pôr termo ao litígio por meio de transacção judicial, cujo teor consta do documento de fls. 29 e 30, subscrito pelos respectivos mandatários judiciais.

Tal transacção foi, por despacho judicial de fls. 64, julgada inválida e, como tal, negada a sua homologação.

Na sequência de tal decisão, prosseguiram os autos, tendo sido proferido despacho saneador que, conhecendo do mérito da causa, julgou improcedentes a acção e a reconvenção, absolvendo Réus e Autores dos pedidos contra eles respectivamente formulados, condenando-os nas respectivas custas.

Por não se conformarem com tais decisões – a que julgou inválida a transacção e a que conheceu do mérito da causa - delas interpuseram os Autores recurso para este Tribunal da Relação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

- “A douta decisão de indeferimento da homologação da transacção partiu erradamente ao pressuposto que se está perante uma situação de compropriedade;

- Porém e como resulta dos factos alegados pelas partes em sede de articulados, entre AA. e RR. nunca existiu qualquer compropriedade, sendo que A.A. e RR., há mais de trinta anos que possuem cada um, a sua própria parcela, bem definida e demarcada.

- Ao partilharem o aludido prédio, cada uma das partes (AA. e RR.) sabia que estava a receber a respectiva parcela de terreno, e foi, aceitando tal situação, que a escritura foi outorgada.

- A.A. e RR. nunca agiram como comproprietários do imóvel.

- Ora, não existindo qualquer situação de compropriedade, não se pode falar em divisão de coisa comum, já que, inexiste, qualquer «coisa comum».

- Assim, a transacção válida.

No tocante à decisão de mérito da presente acção…

- Os A.A. alegaram que desde 1979 têm vindo a exercer uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé sobre a parcela de que se arrogaram proprietários;

- Os RR. alegaram que desde 1970 têm vindo a exercer uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé sobre a parcela que se arrogam proprietários;

- Por transacção, AA. e RR. vieram reconhecer reciprocamente os respectivos direitos de propriedade sobre as mencionadas parcelas.

- Está, assim, demonstrada a aquisição originária de AA. e RR.

- No caso da partilha, não estamos perante qualquer aquisição originária, mas sim derivada, pelo que, não basta tal partilha para se provar o direito de propriedade.

- AA. e RR. outorgaram uma escritura de partilha, pela qual ficou adjudicada aos A.A. metade do prédio inscrito na matriz sob o artigo ..., secção V e aos RR. metade do prédio inscrito na matriz sob o artigo ..., secção V e com base nessa mesma escritura, procederam ao registo na competente conservatória do registo predial.

- Porém, AA. e RR. nunca se comportaram como comproprietários, sendo que essa metade que receberam, aceitaram-na como sendo a parcela que cada um vinha já possuindo, desde pelos menos 1979.

- Na verdade, o direito já não pertencia ao falecido, pois que AA. e RR. haviam já adquirido cada uma das parcelas, por usucapião.

- O início da posse dos AA. ocorreu em 1979; o início da posse dos RR. ocorreu em 1970; o registo predial é de l de Julho de 2004. Então, não existe qualquer registo anterior ao início da posse, pelo que, a presunção da titularidade do direito do possuidor não cede perante a presunção do registo.

- Além disso, não estamos perante um único prédio, como refere a Srª Juiz «a quo», mas sim perante dois prédios rústicos distintos e autónomos.

- No caso vertente e na realidade nunca existiu compropriedade, pelo que não tem que se alegar a inversão do título da posse enquanto forma de aquisição da posse, como refere a douta sentença em recurso.

- Os AA. sempre se comportaram em relação à sua parcela como exclusivos proprietários, e os RR. também sempre se comportaram em relação à sua parcela como exclusivos proprietários.

- Além disso, ainda se diz que não há área mínima para a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre parte de um prédio.

- Deste modo, sempre deveria o Senhor Juiz «a quo» ter decidido no sentido de ter julgado a acção e a reconvenção totalmente procedentes por provadas, já que os factos conducentes à aquisição do direito de propriedade por usucapião por parte dos AA. e por parte dos RR. estão provados ou foram admitidos por acordo;

- Ou caso assim se não entenda, sempre deveriam os mesmos ser levados à base instrutória, devendo os autos ter prosseguido para julgamento.

- Face ao exposto, AA. e RR. não querem proceder á divisão de qualquer prédio que sejam comproprietários, mas apenas e tão somente o reconhecimento dos respectivos direitos de propriedade.

- As partes não fizeram qualquer uso anormal do processo, sendo que nem tão pouco estão verificados os pressupostos para tal.

- Assim, o douto aresto em recurso ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 300° do C.P. Civil e 1.287º e 1296º do Código Civil”.

Culminam as alegações com o pedido de revogação da sentença objecto de recurso, julgando-se a acção e a reconvenção procedentes por provadas.

Não foram apresentadas contra – alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente:

- validade da transacção efectuada nos autos;

- mérito da causa.

 

III. FUNDAMENTO DE FACTO

Mostram-se provados os seguintes factos com relevo para a apreciação do recurso:

1.O prédio rústico sito em ..., freguesia de ..., concelho de Tomar, com a área de 7080m2, encontra-se inscrito na matriz predial rústica sob o art. ..., secção V, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., e figuram averbadas na respectiva ficha predial as aquisições por partilha da herança de (…) de metade indivisa a favor dos Autores e de metade indivisa a favor dos Réus (doc. de fls. 26 a 28).

2.Por escritura de partilha outorgada em l de Junho de 2001, por óbito de (…), o prédio retendo em 1) foi adjudicado em compropriedade a favor de Autores e Réus (doc. de fls. 39 a 50).

3.Por requerimento de fls. 29 e 30, que deu entrada em juízo em 13 de Abril de 2009, Autores e Réus, por requerimento subscrito pelos respectivos mandatários judiciais, declararam ter chegado extrajudicialmente a acordo quanto ao objecto do litígio, nos termos seguintes:

“CLÁUSULA PRIMEIRA
Os Réus e o A. marido reconhecem que a A. mulher é dona e legítima proprietária do seguinte prédio:
«Prédio rústico, suo em ..., freguesia de ..., concelho de Tomar, com a área de 4480 m2, a confrontar a norte com serventia, (…) sul com os RR. e herdeiros de (…), nascente com estrada e poente com freguesia de ... e herdeiros de (…), composto por terra de mato, oliveiras e figueiras, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., secção V – parte».
CLÁUSULA SEGUNDA
Os AA. reconhecem que os RR. são donos e legítimos proprietários, com exclusão de outrem, do seguinte prédio:
«Prédio rústico, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Tomar, com a área de 2.600 m2, a confrontar a norte com os AA., sul com servidão, herdeiros de (…) e, nascente com estrada e poente com Junta de Freguesia e (…), composto por terra de mato, oliveiras e figueiras, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., secção V – parte».
CLÁUSULA TERCEIRA
Os AA. e os RR. reciprocamente reconhecem e aceitam que:
A) O prédio referido na pretérita cláusula primeira constitui um prédio autónomo e distinto, estando demarcado dos prédios confinantes.
B) O prédio referido na pretérita cláusula segunda constitui um prédio autónomo e distinto, estando demarcado dos prédios confinantes.
CLÁUSULA QUARTA
Custas a meias, na proporção de metade para AA. e RR., prescindindo cada uma das partes de custas de parte e de procuradoria na pane disponível”.

           

            IV. FUNDAMENTO DE DIREITO
           
Da validade da transacção celebrada pelas partes
            Como decorre do nº2 do artigo 293º do Código de Processo Civil, “é lícito (…) às partes, em qualquer estado da instância, transigir sobre o objecto da causa”.
            Constitui a transacção judicial “…um contrato bilateral realizado no âmbito de processo pendente, através do qual as partes terminam o litígio mediante recíprocas concessões (art.º 1248º do Cód. Civil)”[3].
            Segundo o nº 2 do apontado dispositivo, “as concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido”.
            Tal contrato está, porém, condicionado a sindicância judicial, com o objectivo da obtenção de um juízo acerca da sua validade, formal e substancial, analisando-se se foram respeitados os seus limites objectivos, e questionando a qualidade dos intervenientes. Só verificados esses pressupostos de validade, se homologará a transacção[4].
O uso anormal do processo, a que o artigo 665º do Código de Processo Civil faz referência, constitui um dos factores que podem determinar a invalidade da transacção judicial celebrada pelas partes: “não deve esquecer-se também o que se determina nos art. 665º e 784º do CPC. Se a confissão, desistência ou transacção tender a conseguir um fim proibido por lei, ou a praticar um acto simulado, é claro que o juiz tem de a declarar nula”[5].
Existe uso anormal do processo quando, designadamente, as partes visam, através da transacção, obter um fim proibido por lei.
Tratando-se de um contrato, a transacção acha-se subordinada à disciplina dos artigos 280º, 281º e 294º do Código Civil, normas que sancionam com a nulidade os negócios contrários à lei.
A sua validade está igualmente condicionada ao regime geral consagrado para os negócios jurídicos nos artigos 217º e seguintes do Código Civil, incluindo as respectivas exigências formais e as consequências da sua não observância[6]. Dispõe especificamente o nº1 do artigo 300º do Código de Processo Civil, que “a confissão, desistência ou transacção podem fazer-se por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou por termo no processo”.
No caso vertente, à Autora mulher e à Ré mulher, foi adjudicada, a cada uma delas, metade do prédio rústico identificado nos autos, por escritura de partilha por óbito de (…), pai de ambas, lavrada no Cartório Notarial de Tomar no dia 1 de Junho de 2001, tendo essa aquisição sido objecto de registo. De resto, da respectiva certidão consta apenas como únicas inscrições registadas a aquisição de ½ do prédio identificado nos autos a favor da Autora mulher e ½ a favor da Ré mulher, em ambos os casos por partilha da herança deixada por óbito de (…). Ambas as inscrições são datadas de 1 de Julho de 2004.
De acordo com o nº 1 do artigo 1403º do Código Civil, que define a compropriedade, “existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”, prevendo o nº2 do mesmo normativo: “os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo”.
É entendimento maioritário na doutrina portuguesa que a compropriedade é formada por um conjunto de direitos coexistindo sobre toda a coisa a que a mesma respeita, e não sobre qualquer realidade ideal ou imaterial, como a quota, ou sequer sobre uma parte dessa mesma coisa. Ou seja, “…cada um dos direitos em concurso incide sobre a coisa comum, embora não se refira a parte específica da mesma. Os direitos dos vários consortes são iguais, no que respeita à sua qualidade jurídica, mas podem ser quantitativamente diferentes, como se diz no n.° 2 do art.° 1403.°. O aspecto quantitativo não interfere com a natureza dos poderes que a cada um dos comproprietários cabem, mas projecta-se já em aspectos relevantes do seu exercício”[7].
No caso em análise, Autores e Réus são – juridicamente – proprietários, em comum, sem designação de parte, de um único prédio rústico, e cuja aquisição lhes adveio por partilha.
Trata-se, inequivocamente de uma situação de compropriedade, traduzida nos títulos que a documentam, e à qual as partes pretendem pôr fim.
Recorreram os Autores a esta acção comum, configurando-a como acção de reivindicação, sustentando serem proprietários de um “prédio” distinto e autónomo, constituído por uma parcela daquele, invocando a usucapião como sua forma aquisitiva.
Os Réus apresentaram contestação, na qual não contrariam a propriedade invocada pelos Autores sobre uma parcela do prédio–mãe, e que eles qualificam de prédio autónomo e distinto, e, por sua vez, deduzem reconvenção, na qual se afirmam proprietários da restante parcela do terreno, sustentando também eles tratar-se de “prédio” distinto e autónomo, invocando de igual modo como facto aquisitivo a usucapião, formulando pedido de reconhecimento da situação invocada e ainda a condenação dos Autores no reconhecimento do alegado direito de propriedade.
Posteriormente, Autores e Réus vieram aos autos subscrever requerimento de transacção, alegando terem chegado a acordo quanto ao objecto da acção, reconhecendo reciprocamente serem cada um deles proprietários, com exclusão de outrem, de um prédio rústico, com as áreas de 4.480m2 e 2.600m2 (respectivamente, Autora mulher e Réus), distinto e autónomo. Com tal transacção, pretenderiam, pelo menos formalmente, através de recíprocas concessões, pôr termo ao litígio que os envolvia.
Litígio que não deixa de ser meramente aparente, já que ambas as partes, comproprietárias do mesmo prédio rústico, terão alegadamente procedido à sua divisão material, passando a exercer, cada uma delas, poderes de gozo sobre cada uma das parcelas resultantes desse fraccionamento.
Poder-se-ia, desde logo questionar a validade substancial da transacção celebrada por Autores e Réus, face ao entrave criado pelo artigo 1376º, nº1 do Código Civil[8].
Amiúde recorrem os comproprietários à acção judicial para, através de decisão nela proferida, obterem título que lhes permita a inscrição no registo da propriedade singular sobre partes distintas do prédio–mãe. Muitas vezes, com a conivência dos comproprietários interessados (com a ausência de contestação dos Réus, ou mera dedução formal desse articulado, outras através de transacção judicial celebrada nos autos) trata-se do expediente encontrado para contornar o obstáculo imposto pelo citado normativo.
Tal procedimento é por alguns qualificado como “uso anormal do processo”, por constituir expediente para contornar a proibição fixada pelo nº1 do artigo 1376º do Código Civil, cujo regime foi fixado por motivos de ordem pública; ou seja, por meio dele visa-se obter o que a lei veda quer por via notarial, quer por via judicial, designadamente através da acção de divisão de coisa comum, perante a indivisibilidade em substância do prédio em causa[9]. Defendendo-se tal entendimento, considerando que as partes utilizaram o processo para atingir um fim proibido por lei, tal actuação processual ficaria sob a alçada do artigo 665º do Código de Processo Civil, com as consequências legais nele definidas.
Mas tal questão não é pacífica, quer do ponto de vista doutrinal, quer do ponto de vista jurisprudencial.
Com efeito, constituem formas possíveis de fazer cessar a compropriedade, para além da divisão da coisa comum, a usucapião, instituto que, preenchidos os necessários pressupostos, se pode revelar facto aquisitivo de propriedade singular, relativamente aos iniciais comproprietários, no que concerne a partes distintas do prédio comum[10].
E, deste modo,”…não existem obstáculos a que a usucapião sirva para legitimar uma operação de divisão material de um prédio, ainda que, na sua origem, tenham sido desrespeitados certos condicionalismos impostos, concretamente as áreas de cultura adequadas para a zona. Por outras palavras, a usucapião, como forma originária de aquisição de direitos reais, rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, como com a proibição de divisão de um prédio”[11].
O que implica, revertendo ao caso dos autos, que inexistindo uniformidade de entendimento quanto à questão ora em debate, sendo mesmo maioritária a posição que sustenta não ser aplicável a proibição plasmada no artigo 1376º, nº1 do Código Civil à usucapião, enquanto forma originária de aquisição de direitos reais, incluindo o direito de propriedade, não se deva concluir pela invalidade substancial da transacção judicial por existência de “uso anormal do processo”, vício que deve sempre manifestar-se de forma inequívoca para que possa reconduzir-se à previsão normativa do artigo 665º do Código de Processo Civil.
Assim, de forma avisada procedeu a Senhora Juíza ao não invalidar a transacção judicial nos aludidos termos.
E igualmente se revelou atenta ao não proceder à homologação da mesma transacção judicial, agora por inobservância da forma legal para ela exigida[12]. A transacção consubstancia, com efeito, a divisão de um prédio afecto em compropriedade às partes e, como tal, por força das disposições conjugadas dos artigos 1413º, nº2 e 875º do Código Civil, a forma escolhida acarreta a invalidade prevista no artigo 220º do Código Civil.
Não merece, assim, censura, nesta parte, a decisão sob recurso.

Do mérito da causa

Com esta acção pretendem essencialmente os demandantes o reconhecimento da autonomização e existência física delimitada de duas partes distintas que integram o mesmo prédio, e de cujo direito de propriedade se arrogam titulares em relação a cada uma de tais fracções, por virtude do exercício do correspondente direito por um determinado lapso de tempo.

Como já se adiantou, a usucapião é uma forma de aquisição originária de direitos reais, sendo o direito correspondente ao gozo exercido adquirido ex novo.

Segundo o artigo 1287.º, do Código Civil, “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.

Ou seja, a usucapião comporta uma forma originária de constituição de direitos reais, através do reconhecimento jurídico duma situação de facto, exigindo, para o seu preenchimento, dois requisitos ou pressupostos, cuja verificação cumulativa é necessária para que o instituto possa produzir efeitos.

O primeiro desses requisitos pressupõe uma situação de posse relativamente a um direito real de gozo, designadamente direito de propriedade.

O segundo requisito reporta-se ao decurso dessa situação de posse por um certo lapso temporal, variável de acordo com a verificação concreta das circunstâncias previstas nos artigos 1294.º e seguintes do Código Civil.

A posse caracteriza-se pelo “ poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”[13]. Adquire-se, designadamente, “pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito”[14] e “pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta”[15].

Para o preenchimento da usucapião como facto aquisitivo, a posse tem de ser pública e pacífica[16], apenas influindo as demais características no prazo necessário para a sua constituição.

A posse, enquanto facto aquisitivo, pressupõe a reunião de dois elementos: a) um elemento material – o corpus –, traduzido nos actos materiais praticados sobre a coisa, no exercício de poderes sobre a mesma; b) um elemento psicológico – o animus -, consubstanciado na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos materiais praticados.

A circunstância da lei fazer depender a existência da posse destes dois elementos, confronta o possuidor com a necessidade de comprovar o preenchimento dos mesmos. Só a posse assim demonstrada releva para efeitos aquisitivos através do instituto da usucapião.

Note-se, porém, que o exercício dos actos materiais que se traduzem no corpus faz presumir a existência do animus[17].

Trata-se, todavia, de uma presunção legal tantum juris, susceptível, por isso, de ser ilidida pela prova do contrário[18].

É, de resto, o entendimento que se extrai do Assento do STJ de 14/05/96[19], e que continua em vigor, agora com a natureza de acórdão uniformizador de jurisprudência.

Como se defende no mencionado Acórdão do STJ, de 24.10.2006, “…como nos casos de aquisição unilateral do direito não há causa, ou antes, não há um negócio jurídico que defina a vontade, não há uma causa concreta, o Código estabeleceu uma presunção de causa, dizendo que "em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto" (art. 1252.º, n.º 2, do C.Civil). Esta presunção da existência do animus só pode ser ilidida pela demonstração de que os actos praticados são por sua natureza insusceptíveis de conduzir à posse – são actos facultativos ou são actos de mera tolerância. (Cfr. MANUEL RODRIGUES, A Posse – Estudo de Direito Civil Português, 4.ª edição, revista, anotada e prefaciada por FERNANDO LUSO SOARES, Coimbra, 1996, pp. 192 e 195)”.

O estado de facto criado pela divisão em parcelas e autonomização das mesmas por parte dos comproprietários de um prédio rústico pode converter-se em estado de direito pelo funcionamento do mecanismo da usucapião. Tal pressupõe “…que na compropriedade, a unidade predial pode parcelar-se por usucapião desde que os comproprietários passem a utilizar partes distintas do prédio como se estivesse materialmente dividido em fracções, ocupando cada um sua fracção, perfeitamente delimitada e circunscrita, sem oposição, de modo exclusivo, à vista de toda a gente, sem violência, na convicção de exercer um direito próprio, como se seu verdadeiro dono fosse, sem invasão de parcelas alheias”[20].

Os Autores invocam a prática, contínua, de actos materiais, correspondentes ao exercício do direito de propriedade, de forma pública e sem qualquer oposição, sobre uma concreta e distinta parcela de terreno desde 1979; por sua vez, idêntica alegação é efectuada pelos Réus, em relação a uma outra parcela, que temporalmente localizam essa prática reiterada desde 1970.

As parcelas em questão constituem partes integrantes de um prédio rústico sito em ..., freguesia de ..., concelho de Tomar, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., secção V.

Este prédio rústico, veio a constatar-se pela junção posterior aos articulados da respectiva certidão da Conservatória do Registo Predial de Tomar, encontra-se inscrito nessa Conservatória com o nº ..., com data de 1 de Julho de 2004, data em que foi averbada a aquisição de ½ do aludido prédio a favor de F P (…) e ½, também do mesmo, a favor de I M (…), em ambos os casos por partilha da herança de (…)

Tal registo fundou-se na escritura de partilha por óbito de (…) celebrada em 1 de Junho de 2001, em que a cada uma delas é adjudicada metade do aludido prédio.

E estando comprovado que a Autora mulher e a Ré mulher são titulares da inscrição registral definitiva do prédio em causa, como decorre do artigo 7º do CRP, beneficiam de uma dupla presunção: que o direito registado, de forma definitiva, existe, e de que o mesmo pertence às titulares inscritas nos exactos termos que constam do registo.

Do que resulta a sua qualidade de comproprietárias do prédio na data do facto inscrito.

Ora, as partes não alegaram factualidade que lhes permitisse ilidir a presunção em causa.

Pelo contrário, omitiram a existência da escritura de partilha, com base na qual foi inscrito, de forma definitiva, o único facto aquisitivo e invocaram uma realidade sem correspondência com a realidade traduzida na escritura de partilha e no registo.

Estabelece o artigo 1406.º, n.º 2 do Código Civil que “o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título”.

Como salienta o Acórdão desta Relação de 01.06.2004[21], “sendo lícito a cada um dos comproprietários, seja qual for a quota correspondente ao seu direito na contitularidade, servir-se da coisa comum, utilizando-a na sua totalidade e não apenas em parte, tal significa, a não existir demonstração expressa da inversão do título de posse, que deva ser considerado como possuidor em nome alheio, na parte em que a exceda”[22].

As partes podem, após constituição da compropriedade, obter a propriedade singular sobre uma parcela do prédio sobre o qual incide o direito colectivo, mas tal possibilidade está dependente da inversão do título de posse, contando-se da data dessa inversão o prazo necessário à formação da usucapião como facto aquisitivo do correspondente direito[23].

Vale dizer: “a inversão do título de posse, nos termos do art. 1265º do Cód. Civil supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio. A uma situação sem relevo jurídico especial vem substituir-se uma posse com todos os seus requisitos e com todas as consequências legais. Esta inversão pode dar-se por dois meios: por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía, ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse. No primeiro meio - oposição -, torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía, devendo o detentor tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía ( quer judicial, quer extra-judicialmente ) a sua intenção de actuar como titular do direito - cfr. A. Varela e P. de Lima, em anotação ao art. 1265º do seu Cód. Civil, 2ª ed.”.[24]

Como se afirma no Acórdão da Relação do Porto, de 20.04.2009[25] “para que o comproprietário adquira por usucapião quota superior à sua, em uso que faz de coisa comum, é necessário que proceda à inversão do título de posse — de nome alheio para nome próprio (art.° 1406.°, n.° 2 Código Civil). Tal implica que manifeste essa intenção inequivocamente perante os outros comproprietários, ‘maxime’ afirmando perante eles que a partir de um determinado momento se opõe ao direito de que aqueles são titulares e passa a deter a coisa em nome próprio (art.° 1265.° do mesmo Código)”.
Ou seja: “a inversão do título da posse, pelo primeiro meio consignado no artº 1265º do C.C., oposição categórica, de modo a sobrepor-se à aparência representada pelo título, tem de traduzir-se em actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem”.[26]

Como bem destaca a decisão recorrida “…nem os Autores nem os Réus alegam factos bastantes para a aquisição da posse exclusiva, desde logo que se opuseram a que os comproprietários exercessem actos materiais de posse sobre a parcela que reivindicam. A provarem-se os actos materiais de posse de cada uma das partes sobre a parcela de que se arrogam proprietários, teria também de resultar inequívoco, por um lado, que cada uma das partes impedia a outra de exercer tais actos sobre a “sua” parcela e, por outro, o momento a partir do qual passaram a impedi-lo, pois só tal momento seria o relevante para a aquisição da posse exclusiva por inversão do título de posse”.

Tal omissão de alegação factual não pode deixar de se reflectir no resultado final da acção, ditando o seu insucesso.

Não merece, por conseguinte, qualquer censura a decisão que julgou improcedentes a acção e a reconvenção, sendo, assim, de manter.


*

Conclusão:

1. A transacção judicial consubstancia “…um contrato bilateral realizado no âmbito de processo pendente, através do qual as partes terminam o litígio mediante recíprocas concessões (art.º 1248º do Código Civil).

2. A sua validade está condicionada ao regime geral consagrado para os negócios jurídicos nos artigos 217º e seguintes do Código Civil, incluindo as respectivas exigências formais e as consequências da sua não observância.

3. De acordo com o nº 1 do artigo 300º do Código de Processo Civil, a transacção pode “fazer-se por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou por termo no processo”, pelo que, quando através dela se visa alcançar a divisão amigável de um imóvel, a forma exigida é a correspondente à forma da alienação onerosa do imóvel.

4. Um comproprietário pode adquirir por usucapião uma parcela autónoma e distinta do prédio comum, desde que se mostrem reunidos todos os pressupostos de que depende esta forma de aquisição originária.

5. Mas para que possa adquirir a propriedade singular e exclusiva sobre parte determinada e autónoma daquele imóvel terá de ocorrer inversão do título de posse, como decorre do nº2 do artigo 1406º do Código Civil.

6. Tal inversão do título pressupõe, nos termos do artigo 1265º do mesmo Código, que, designadamente, esse comproprietário manifeste inequivocamente perante os demais comproprietários do imóvel a sua intenção de passar a deter em nome próprio essa parte específica e individualizada do imóvel e que se opõe ao direito de que eles são titulares.

                                             *

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, negando provimento ao recurso, confirmar a decisão recorrida.

Custas: pelos recorrentes.


JUDITE PIRES ( Relatora )
CARLOS GIL
FONTE RAMOS

                                                                                            


[1] Artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma
[3] Acórdão da Relação de Coimbra de 15.02.2005, processo nº 4013/04, www.dgsi.pt.; cf. ainda Acórdão do STJ, 29.04.2008, processo nº 08A1097, www.dgsi.pt.
[4] Artigo 300º, nº3 do Código de Processo Civil.
[5] José Alberto dos Reis, “Comentário”, III, pág. 525.
[6] Artigos 219º e 220º do Código Civil.
[7] Carvalho Fernandes, “Lições de Direitos Reais”, 6ª edição, págs. 354, 355.
[8] E Portaria nº 202/70, de 21/4, que o artigo 53º do Decreto – Lei nº 103/90, de 23/3 manteve em vigor.
[9] Entre outros, cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 15.05.2007, processo nº 1581/06.0TBPBL.C1, www.dgsi.pt.
[10] cf. citado Acórdão da Relação de Coimbra, de 15.05.2007, Acórdão da Relação de Coimbra, 28.03.2000, “Colectânea de Jurisprudência”, 2000, tomo II, pág. 31.
[11] Acórdão da Relação de Coimbra, 29.09.2006, processo nº 453/05.0TBANS.C1, www.dgsi.pt.
[12] cf. já citado artigo 300º, nº1 do Código de Processo Civil
[13] Artigo 1251º do Código Civil
[14] Artigo 1263º, a) do Código Civil
[15] Artigo 1258º do Código Civil
[16] Artigo 1297º, a contrario, do Código Civil
[17] Neste sentido, acórdãos do STJ de 25/02/93, Prol. 82887, da 2.ª secção e de 05/05/2005,  Prol. 1078/05, da 7.ª secção.
[18] Acórdãos do STJ, já citados, de 10.11.2005 e de 24.10.2006
[19] Publicado no DR, II S, de 24/6/96.
[20] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.02.93, processo nº 082710, citado no Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, 09.10.2008, processo nº 08B1914, www.dgsi.pt.
[21] Processo nº 1582/04, www.dgsi.pt.
[22] cf. ainda Acórdão da Relação do Porto, 02.03.98, processo nº 9850122, www.dgsi.pt.
[23] Citado Acórdão da Relação de Coimbra, de 15.05.2007.
[24] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.2007, processo nº 06A4199, www.dgsi.pt.
[25] Processo nº 0822500,
[26] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.10.2009, processo nº 151/2001.S1, www.dgsi.pt.