Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
268/13.2TBSCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
POSSE DE ESTADO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 01/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - 1ª SEC. F. MEN. - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1817, 1871, 1873 CC
Sumário: 1.Para que venha a ser reconhecida a paternidade com base na posse de estado, exige-se a verificação simultânea de três elementos – o filho ser reputado e tratado como tal pelo pretenso pai (nomen e tratactus) e ser reputado como filho pelo público –, inexistindo posse de estado se faltar qualquer um deles.

2.O estabelecimento de um prazo de 10 anos, a partir da maioridade do investigando, com o novo regime de extensão do prazo por mais 3 anos, quando algum facto superveniente venha justificar a instauração da acção de investigação de paternidade, respeita os princípios da proporcionalidade, satisfazendo as exigências impostas pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, não se afigurando inconstitucional.

Decisão Texto Integral:                                                                                                


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

C (…) intenta a presente ação declarativa de investigação de paternidade contra C (…),

alegando para tanto, e em síntese:

a autora nasceu no dia 25.12.1951, encontrando-se registada como sendo filha de A (...) , falecida em 1993;

embora no seu assento de nascimento inexista qualquer menção à paternidade, a autora, desde muito cedo, tomou conhecimento que o seu pai biológico era M (…), nascido a 25.05.1927 e falecido em 25.04.2011;

entre a mãe da autora e o seu progenitor, à data da sua conceção, existiu uma relação amorosa, com relações sexuais efetivas , tendo sido daquela relação que nasceu a autora;

à data da conceção a mãe da autora não teve relações sexuais com mais ninguém, além do referido M (…);

o pai do demandado sempre reputou a tratou a autora como sendo sua filha, embora não a tivesse criado e também os seus familiares, pais, irmãos e cunhados, sempre souberam que a autora era sua filha e todos eles sempre a trataram como tal;  

 tendo a autora o direito a conhecer e ver reconhecida a sua filiação biológica, podendo a autora exercitar, a todo o tempo, durante a sua vida, o seu direito a ver reconhecida a sua filiação, por esse direito prevalecer ao direito da certeza jurídica do artigo 1817º, n.º 1 do CC, pugnando pela condenação do demandado a reconhecer que a autora é filha biológica de M (…), devendo comunicar-se tal facto aos Serviços dos Registos centrais para efeitos de correção/complemento do registo de nascimento da autora.

Devidamente citado, o réu não apresenta contestação.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar procedente a presente ação, declarando que C (…), a que respeita o assento de nascimento n.º 867 do ano de 2008, da conservatória do Registo civil de Carregal do Sal, é filha de M (…), e neta paterna de MJ (…) e MC(…)  , ordenando-se o correspondente averbamento no registo civil no tocante à paternidade, avoenga paterna no assento de nascimento da autora.


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Não se conformando com tal sentença, o réu dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:

1- A Recorrida nasceu no dia 25 de Dezembro de 1951, o seu pretenso pai faleceu em 21 de Abril de 2011, tendo a presente ação sido distribuída em 6 de Abril de 2013;

2- A ação de investigação de maternidade deveria ter sido proposta nos dez anos posteriores à maioridade ou emancipação da investigante (art.º 1817.º do Código Civil);

3- De facto, o prazo de 10 anos para a investigação da maternidade não coarta de forma alguma a possibilidade da investigante poder averiguar as suas origens, não sendo de somenos importância a circunstância da Recorrente ter proposto a ação quando perfez 60 anos, 2 anos depois do seu pretenso pai ter falecido.

4- A caducidade é de conhecimento oficioso, uma vez que estamos no âmbito de direitos indisponíveis;


**

5- O reconhecimento da paternidade baseou-se na verificação da presunção adveniente do art.º 1871.º, n.º 1, al. a), do CC, ou seja, a posse de estado;

6- Esta presunção consiste em a filha haver sido tratada e reputada pelo pretenso pai e reputada ainda como filha pelo público, o que compreende, na tradição jurídica, o nomen (atribuição a alguém de um nome correspondente a um estado (filho, pai) e o tractatus (o tratamento desse alguém em conformidade com tal estado e a fama e conhecimento pelo público como detentor desse mesmo estado);

7- Para o efeito, não se provou que o investigado e pretenso pai da Recorrente alguma vez a tratasse como se sua filha fosse;

8- Não se vislumbra, assim, alguma prova do nomen ou do tractatus na matéria de facto dada como provada, pelo que a matéria factual assente é insuficiente para caracterizar “actos claros, positivos, públicos e de certa continuidade, de assistência económica e moral, material e afetiva, em cuidados, amparo, proteção, carinho e ternura que os pais costumam, normalmente, dispensar aos filhos”.


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A autora apresentou contra-alegações no sentido da manutenção do decidido, defendendo ainda que o reconhecimento da paternidade deveria ser igualmente determinada pelo preenchimento da alínea e), pretensão que resume nas seguintes conclusões:

(…).

12. Note-se ainda que, no âmbito das presunções elencadas no dito artigo 1871º nº 1 do CC, dispõe a al. e) que “Quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de conceção ”.

13. Por sua vez, o tribunal a quo, dá como provado o seguinte:“4 – A mãe da autora, por volta do ano de 1950, teve um relacionamento amoroso com M (…), do qual nasceu a autora.”

14. Acrescenta, ainda, em sede de fundamentação que “ (…) estas três (testemunhas) irmãos de M (…), que foram unânimes e peremptórias em afirmar que a autoria era reconhecida pelos avós paternos e pelos tios como sendo filha de M (…), que estes trabalharam juntos na altura da concepção da autora e que desde o seu nascimento que a consideraram a trataram como filha de M (…), desde logo os avós paternos que nunca colocaram em dúvida tal facto”.

15. Ora, o tribunal a quo, dá como provado que, durante o período legal de conceção, a mãe da autora e o pretenso pai tiveram um relacionamento amoroso.

16. Ao dar como provado este facto, em conjugação com a demais factualidade, dada como provada, o tribunal a quo deveria ter considerado que, tal como acontecia com a presunção prevista na al. a) do art. 1871º nº 1 do CC, também se verificava, e encontrava preenchida, a presunção prevista na al. e) daquela disposição legal.

17. Mais uma vez se diga, tal como acontece com a presunção contida na dita al. a) daquele preceito legal, também a presunção contida na al. e) deveria ter sido ilidida pelo réu, o qual não o logrou fazer.

18. Assim, deverá a paternidade, peticionada pela autora, sobre o seu pretenso pai, M (…) ser determinada também com base na al. e) do nº1 do art. 1871º CC, devendo manter-se o demais decidido na douta sentença.


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Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do nº4 do artigo 657º do NCPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo[1] –, as questões a decidir são unicamente as seguintes:
1. Verificação da presunção constante da al. a) do nº1 do artigo 1871º CC.
2. Caducidade da ação de investigação de paternidade.
3. Ampliação do recurso – verificação da presunção constante da al. e) do nº1 do artigo 1871º do CC
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida e que não foram postos em causa por qualquer das partes:

1 – A autora nasceu no dia 25 de dezembro de 1951, tendo sido registada apenas como filha de A (…), sendo a paternidade omissa (Doc. de fls. 11).

2 – M (…) nasceu a 25 de maio de 1927, sendo filho de MJ (…) e MC (…) (Doc. de fls. 13).

3 – M (…) faleceu no dia 25 de abril de 2011, tendo deixado um filho, C (…), nascido em 8 de julho de 1971 (Doc. de fls. 10).

4 – A mãe da autora, por volta do ano de 1950, teve um relacionamento amoroso com M (…), do qual nasceu a autora.

5 – Os familiares de M (…) sempre reconheceram a Autora como sendo filha daquele M (…).

6 – A generalidade das pessoas da localidade onde residiam, incluindo familiares do falecido, tratava e reconheciam a autora como filha de M (…).


*

1. Verificação da presunção constante da al. a), do nº1, do artigo 1871º do CC.

A autora intentou a presente ação pela qual pretende o reconhecimento da sua paternidade, invocando a seu favor a verificação das presunções previstas nas alíneas a), c) e e), do artigo 1871º do Código Civil:

“a) quando o filho tiver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai  e reputado como filho pelo público;

c) quando durante o período legal a conceção, tenha havido comunhão duradoura de vida em condições análogas às dos cônjuges ou concubinato duradouro entre a mãe e o pretenso pai;

e) quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período da conceção.”

O tribunal a quo, considerando que a “A presente ação funda-se em dois factos distintos: na paternidade biológica – que se não apurou e na reputação e tratamento como filha pelos progenitores e irmãos do pretenso pai e pelo público e, (al. a) e e) do nº 1 do artigo 1871º)”, julgou não verificada a presunção da alínea e), vindo a declarar a paternidade do réu por força da verificação da presunção prevista na alínea a), da citada norma.

O réu/Apelante insurge-se contra esta decisão, com a alegação de que se não provou que o réu, alguma vez, tenha tratado a autora como filha.

A paternidade jurídica pode ser declarada mediante a prova do vínculo biológico ou através da prova de um dos factos constitutivos da presunção de paternidade, previstos nas alíneas a) a e), do nº1 do artigo 1871º, do CC.

A paternidade do falecido foi reconhecida com fundamento na verificação da presunção prevista na alínea a) – “quando o filho tiver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho pelo público” –, denominada pela doutrina como “posse de estado”.

O filho viveu na posse de estado de filho quando foi reputado e tratado como filho pelo réu (nomen e tratactus), e foi reputado como filho pelo público (fama). Para que se tenha por verificada a posse de estado exige-se a verificação simultânea destes três elementos – não haverá posse de estado se faltar algum deles[2].

O nomem ou “tratamento como filho”, é entendido pela circunstância de o pretenso filho chamar pai ao presumível progenitor, e este consentir em tal designação, e por seu turno chamar “filho” àquele, assim expressando a convicção íntima de ser o pai[3].

O tratactus significa que se dá ao filho o tratamento de filho, que age nas suas relações com o filho dedicando-lhe cuidados idênticos aos que é uso no relacionamento entre pais e filhos, assumindo atitudes normais que caraterizam as relações de pais e filhos – seja prestando-lhe assistência moral (através de gestos e manifestações de carinho e dedicação), seja através de assistência material (contribuindo para o seu sustento e educação).

A fama ou reputação pelo público significa que as pessoas das relações do pretenso filho e do pretenso progenitor “estão convictas da paternidade e que não seja apontado ao investigante outro pai que não seja o investigado”.

No caso em apreço, falham ostensivamente os dois primeiros elementos – a reputação e o tratamento como filho por parte do pai.

Com efeito, os factos dados como provados sob os pontos 5 e 6, respeitam unicamente à “fama”, vindo o tribunal a quo a reconhecer que “não se provou que o M (…)sempre tenha reconhecido a autora como sua filha”.

Quanto ao alegado reconhecimento da autora como filha, não há nenhum único facto dado como provado nesse sentido (nem sequer se encontrando dado como provado qualquer facto de que resulte a verificação de reconhecimento esporádico ou numa determinada fase da sua vida).

Na falta de verificação de tais elementos, não se pode ter por preenchido o facto-base da presunção prevista na alínea a), com base no qual veio a ser declarada a paternidade do falecido.
2. Caducidade da ação de investigação de paternidade.

O Apelante invoca, ainda, nas suas alegações de recurso a caducidade do direito da autora, pelo facto de a presente ação ter sido interposta muito depois de decorrido o prazo de 10 anos posteriores à maioridade ou emancipação do investigante, nos termos do artigo 1817º do CC[4].

Depois de o nº1 do artigo 1817º do CC, ter sido declarado inconstitucional com força obrigatória geral (aplicável à ação de investigação de paternidade por força do artigo 1817º), pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, publicado na 1ª Série-A, DR nº28, de 08 de fevereiro, a Lei nº 14/2009, de 01 de abril, veio introduzir alterações a tal norma, estabelecendo os seguintes prazos para a propositura da ação de investigação de paternidade:

- durante a menoridade ou dentro do prazo de 10 anos apos a maioridade ou a a emancipação;

- durante os três anos posteriores à cessação do tratamento como filho pelo pretenso pai.

Tendo nascido a 25 de dezembro de 1951, a autora veio a atingir a maioridade a 25 de dezembro de 1972 (aos 21 anos, em conformidade com o disposto no artigo 130º, nº1, do Código Civil de 1966, aprovado pelo DL nº 47344, de 25 de Novembro de 1966).

A presente ação deu entrada em tribunal a 05 de Abril de 2013.

O prazo de caducidade previsto no nº1 do artigo 1817º do Código Civil (aplicável às ações de investigação de paternidade por força do artigo 1873º), inicialmente previsto no artigo 133º, do Código Civil de 1987, passou a ser regulado pelo artigo 37º do Decreto nº2, de 25 de dezembro de 1910, pelo seguinte modo:

- o prazo geral da propositura da ação era até um ano após o falecimento do pretenso pai;

- em caso de menoridade ou demência do investigante à data do óbito do pretenso progenitor, o prazo era até quatro anos após a emancipação ou maioridade do investigante ou decorridos quatro anos sobre o estabelecimento da razão do investigante;

- depois de decorrido um ano sobre o óbito do investigado, caso o investigante viesse a obter um escrito assinado pelo investigado em que revelasse a paternidade, a ação de paternidade poderia ser proposta até seis meses após a obtenção do referido documento, recaindo o ónus da prova de tal facto sobre o investigante e sem prejuízo das regras gerais sobre prescrição de bens.

À luz do disposto no citado artigo 37º, o direito da autora só teria caducado um após o óbito do seu pretenso pai, ou seja, a 21 de abril de 2012.

Contudo, muito antes de tal data, e mesmo antes de a autora ter atingido a maioridade, entrou em vigor o Código Civil de 1966, aprovado pelo Dec. Lei nº 47344, de 25 de novembro de 1966, e que, no artigo 1854º, veio a fixar os seguintes prazos de caducidade para a propositura da ação de paternidade, prazos estes posteriormente transpostos para o artigo 1817º, na redação do Dec. Lei nº 21/98, de 12 de maio:

- um prazo geral de dois anos a contar da maioridade ou da emancipação;

- caso a ação de investigação se fundasse em escrito em que o investigante declarasse inequivocamente a paternidade, o investigante disporia do prazo de seis meses a contar da data em que o obteve;

- se o investigante fosse tratado como filho pelo pretenso pai, a ação teria de ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data em que cessasse aquele tratamento.

Não tendo a autora demonstrado a verificação da denominada “posse de estado”, ao abrigo de tal lei o direito a interpor a ação de investigação teria caducado dois anos depois de ter atingido a maioridade – a 25 de dezembro de 1974.

Contudo, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, veio a declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante nº1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código, na medida em que se prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos, a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16º, nº1, 36º, nº1, e 18º, nº2 da Constituição da República Portuguesa”.

Até ao dia 2 de Abril de 2010, data da entrada em vigor da Lei nº 4/2009, e considerando-se que tal declaração de inconstitucionalidade devia ser havida como uma alteração da legislação vigente, entendeu-se que as ações de investigação de paternidade ficaram sem prazo de caducidade, podendo, por isso, ser instauradas a todo o tempo, ou seja, que tal direito seria imprescritível[5].

A Lei nº 14/2009, de 01 de abril, alterando o nº1 do artigo 1817º, do CC, veio prever um prazo de caducidade para a investigação de maternidade (aplicável à investigação de paternidade por força do artigo 1873º) de 10 anos após a maioridade ou a emancipação ou até aos três anos seguintes à cessação do tratamento como filho pelo pretenso pai.

O artigo 3º da citada lei determinou a sua aplicabilidade às ações pendentes.

Sendo a relação de filiação biológica um estado de facto duradouro, é de aplicar a lei nova mesmo quando a lei nova vem fixar um novo prazo e o prazo já tenha expirado ao abrigo da lei anterior[6].

De qualquer modo, aplicando à situação em apreço o disposto no atual artigo 1817º, o direito da autora só não teria caducado se lograsse demonstrar a ocorrência da posse de estado (caso em que tal direito só viria a caducar três anos depois do falecimento do pretenso pai).

Contudo, como já analisamos, a autora não logrou a prova de ocorrência da posse de estado, pelo que o seu direito caducou, mesmo ao abrigo da atual lei.

A publicação da Lei nº 14/2009 não pôs fim à controvérsia acerca da constitucionalidade da imposição de prazos de caducidade às ações de investigação de paternidade e, vindo o Tribunal Constitucional[7] a apreciar tal questão à luz da atual lei, tem sistematicamente (embora com alguns votos de vencido) concluído pela constitucionalidade dos prazos resultantes, quer do nº1, quer da al. b) do nº3 do artigo 1817º.

Assim sendo, e como tem vindo a ser afirmado pelo tribunal constitucional o direito à identidade pessoal, com tutela constitucional, não é incompatível com o estabelecimento de prazos de caducidade para as ações de investigação de paternidade, desde que estes sejam considerados razoáveis[8].

Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem admitido que as ações de estabelecimento da filiação podem estar sujeitas a prazos desde que não se tornem impeditivos do uso do meio de investigação em causa ou representem um ónus exagerado.

E o estabelecimento de um prazo de 10 anos, a partir da maioridade do investigando, com o novo regime de extensão do prazo por mais 3 anos, quando algum facto superveniente venha justificar a instauração da ação de investigação de paternidade, respeita os princípios da proporcionalidade, satisfazendo as exigências impostas pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Por outro lado, atentar-se-á em que, mesmo quem continua a defender a inconstitucionalidade da fixação de um prazo de caducidade ou a imprescritibilidade de tal direito, aceita que “o direito fundamental ao estabelecimento da relação de paternidade, resultante do direito à identidade pessoal previsto no art. 26º da CRP e do direito a constituir família (art. 36º da CRP), não poderá, assim, ser invocado, quando o seu titular, conhecendo as circunstâncias de onde resultaria tal estabelecimento da paternidade, nunca exerceu tal direito, apenas o fazendo, próximo da morte do pretenso progenitor, para obter benefícios sucessórios[9]”.

Ora, no caso em apreço, não se vislumbram que outros benefícios a autora pretenda obter que não os sucessórios, quando, já com 60 anos, e unicamente após a morte do pretenso pai, vem instaurar a presente ação, sendo que nem a questão da verdade biológica se pode colocar, uma vez que nem sequer houve lugar a exames de ADN.

Tem-se assim por caducado o direito da autora à investigação da paternidade.


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Nas suas contra-alegações, a autora, embora sem expressamente se referir à pretensão de ampliação do âmbito de recurso (para o caso de procedência, parcial ou total do recurso da autora), e face à existência de outros fundamentos da ação nos quais teria fundamentado a pretensa paternidade do falecido, vem defender que o tribunal, ao dar como provado, sob o ponto 4, que “a mãe da autora, por volta do ano de 1950, teve um relacionamento amoroso com M (…), do qual nasceu a autora”, deveria ter por verificado o facto que constitui a presunção prevista na alínea e)quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período da conceção.

Tendo a autora, no artigo 8º da petição inicial, alegado a existência, à data da conceção, “de um relacionamento amoroso, com relações sexuais efetivas”, o tribunal a quo, na decisão que proferiu sobre a matéria de facto, omitiu a referência à ocorrência de relações efetivas, vindo a dar como provado apenas a existência de tal relacionamento amoroso, acrescentando que “do qual nasceu a autora”.

A autora não impugnou a decisão proferida quanto à matéria de facto, alegando, tão só, que, o tribunal, ao dar como provado a matéria constante do referido ponto 4, em conjugação com a demais factualidade, deveria ter considerado preenchida a presunção contida na al. e).

Ora, se é certo que, se do teor do ponto 4 se poderia inferir implicitamente a ocorrência de relações sexuais – se de tal relacionamento nasceu a autora, é porque houve relações sexuais –, a afirmação de que “de tal relacionamento nasceu a autora”, é perfeitamente conclusiva, sendo inadmissível numa ação em que, em sede de direito, se pretende precisamente dar resposta a tal questão. Assim sendo, tal expressão, sempre teria, pura e simplesmente, de ter-se por não escrita.

De qualquer modo, a decisão aqui proferida relativamente à caducidade do direito à investigação de paternidade – ao considerar-se que o direito da autora só não teria caducado se tivesse logrado demonstrar a ocorrência da posse de estado –, levará a considerar-se prejudicado o conhecimento da totalidade das questões colocadas pela autora em sede de contra-alegações.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e, julgando-se verificada a caducidade do direito de investigação de paternidade, absolve-se o réu do pedido.

Custas a suportar pela autora, na ação e no recurso.

                                                                            Coimbra, 12 de janeiro de 2015

Maria João Areias ( Relatora )

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro


  
V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.
1. Para que venha a ser reconhecida a paternidade com base na posse de estado, exige-se a verificação simultânea de três elementos – o filho ser reputado e tratado como tal pelo pretenso pai (nomen e tratactus) e ser repuatado como filho pelo público –, inexistindo posse de estado se faltar qualquer um deles.
2.  O estabelecimento de um prazo de 10 anos, a partir da maioridade do investigando, com o novo regime de extensão do prazo por mais 3 anos, quando algum facto superveniente venha justificar a instauração da ação de investigação de paternidade, respeita os princípios da proporcionalidade, satisfazendo as exigências impostas pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, não se afigurando inconstitucional.


[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o artigo 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito de Família”, Vol. II, Tomo I, Coimbra Editora, 2006, págs. 224 e 225.
[3] Neste sentido, F. Brandão Ferreira Pinto, “Filiação Natural”, Almedina, 1983, págs. 332 e 333, e José da Costa Pimenta, Filiação, Coimbra Editora 1986, pág. 163.
[4] Caducidade que, respeitando a matéria excluída da vontade das partes e sendo como tal de, conhecimento oficioso (artigo 333º do CC) é de conhecer, apesar de, só em sede de alegações de recurso, ter sido invocada.
[5] Neste sentido, entre outros, Acórdão do STJ de 09.04.2013, relatado por Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Cfr., neste sentido, Acórdão do TRC de 19-01-2010, relatado por Carlos Gil, disponível in www.dgsi.pt., que aqui se segue de perto.
[7] Cfr., entre outros Acórdão do plenário nº 401/2011, de 22.09.2011, publicado no DR 2ª Série, de 03.11.2011, Acórdão nº 247/2012, de 22.05.2012 (Processo nº 638/10).
[8] Também o STJ se tem vindo a pronunciar maioritariamente nesse sentido – entre outros, Acórdãos de 29.11.2012, relatado por Tavares de Paiva, de 09.04.2013, relatado por Fonseca Ramos, de 20.06.2013, relatado por Lopes do rego, de 03.04.2014, relatado por Távora Vitor, e de 28.05.2015, relatado por Abrantes Geraldes; em sentido contrário, encontramos, tão só, o Ac. de 16.09.2014, relatado por Hélder Roque; todos os acórdãos citados se encontram disponíveis na net in www.dgsi.pt.
[9] Cristina M. A. Dias, “Investigação da Paternidade e abuso de direito. Das Consequências jurídicas do reconhecimento da paternidade”, Cadernos de Direito Privado, nº 45, pág. 57.