Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
268/14.5GBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: AMEAÇA
MAL FUTURO
Data do Acordão: 11/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (FUNDÃO - INSTÂNCIA LOCAL - SEC. INS. CRIMINAL - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 153.º, N.º 3, DO CP
Sumário: I - Ameaçar, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do CP, corresponde ao acto de prometer ou pronunciar um mal futuro, de anunciar, de modo explícito ou implícito, a intenção de causar um facto maléfico, injusto e grave, consistente em danos físicos, económicos ou morais, necessariamente futuros.

II - Neste quadro fáctico: (i) o arguido levantou um sacho no ar, dizendo para outrem, em voz alta: «eu mato-te, seu filho da puta, eu mato-te, és um gatuno», ao mesmo tempo que se dirigia na direcção do mesmo, pelo que este fugiu, refugiando-se dentro de um barracão; (ii) o arguido entrou na dita construção, sempre com o sacho no ar, em atitudes agressivas, e o visado, ao ver que aquele ia projectar o dito instrumento contra a sua cabeça, num gesto enérgico, colocou o balde que tinha nas mãos a proteger a referida parte do corpo, sofrendo, de seguida, uma pancada do sacho no balde (…), a ameaça revelada, não podendo autonomizar-se do quadro de violência criado, por consubstanciar o início de execução do mal anunciado, não tem aptidão para fazer intervir o tipo de crime previsto no referenciado artigo 153.º, n.º 1, do CP.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


            Nos autos de processo abreviado que, sob o nº 268/14.5GBFND, correram termos pela Secção Criminal (J1), da Instância Local de Fundão da Comarca de Castelo Branco, foi o arguido A... submetido a julgamento, acusado pela prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso real, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do Código Penal; de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a) do CP e de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do CP.
O ofendido deduziu pedido de indemnização cível, peticionando a quantia global de 1630,00 euros, sendo 750,00 euros a título de danos morais, pela ofensa à integridade física; 750,00 euros a titulo de danos morais, pelas ameaças proferidas e 130,00 euros a titulo de indemnização por outros danos materiais.
Em sede de audiência final o ofendido veio apresentar desistência de queixa pelos crimes de ofensa à integridade física e de dano, as quais foram homologadas por decisão, na qual se julgaram igualmente extintos, por inutilidade superveniente da lide, os pedidos de indemnização cível atinentes aos crimes de ofensas à integridade física e de dano.

Levado a efeito o julgamento, viria a ser proferida sentença, decidindo nos seguintes termos (extracto):

«Por todo o exposto, o tribunal julga procedente e provada a acusação pública e, em consequência, decide:

1. Condenar o arguido A... , pela pratica em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos arts. 153, n. 1, 155, n. 1, al. a), com referencia ao artigo 131, todos do C. Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, á taxa diária de 6,00 (seis) euros, o que perfaz o montante de 1.200,00 (mil e duzentos) euros.

2. Julgar procedente e provado o pedido de indemnização cível deduzido pelo ofendido B... e, em consequência condenar o arguido A... a pagar àquele a quantia de 750,00 euros (setecentos e cinquenta euros), a titulo de danos não patrimoniais.

3. Condenar o arguido no pagamento das custas criminais do processo, fixando – se a taxa de justiça em 3 UC´S, nos termos do disposto no art. 513, do C. P. Penal e art. 8, do R. C. P..

4.Sem custas na parte cível, atento o disposto no art. 4, do R.C.P..

Após transito, remetam–se boletins à D.S.I.C. – cfr. Art. 374, n. 3, al. d), do C. P. Penal
Inconformado com tal decisão, dela recorreu o arguido, concluindo nos seguintes termos:

1ª – O arguido não se conforma com a douta sentença que o condenou pela prática de um crime de ameaça agravado, tendo-lhe sido aplicada uma pena de multa no valor global de 1.200,00€ e tendo-o condenado no pagamento de uma indemnização no valor de 750,00€ pelos danos não patrimoniais sofridos pelo ofendido;

2ª - A douta sentença recorrida refere, no ponto 6 do seu relatório, a apresentação de desistência de queixa por parte do ofendido, em sede de audiência final, pelos crimes de ofensa à integridade física simples e de dano, tendo a mesma sido homologada por decisão, e tendo o arguido passado a ser julgado, apenas, pelo crime de ameaça agravado;

3ª – No entanto, o Tribunal a quo deu como provada matéria de facto que integrava os crimes pelos quais o arguido deixou de ser julgado por força da desistência de queixa apresentada pelo ofendido e homologada pelo mesmo Tribunal a quo;

4ª – Assim, salvo o devido respeito, não podiam constar da tábua de factos dados como provados, visto o arguido não ter sido, nem poder ser, julgado pelos mesmos, os factos da acusação pública descritos sob os pontos nº 2, 6, 8, 10 e 11, existindo, assim, contradição insanável da fundamentação, nos termos da alínea b) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal;

5ª – Por outro lado, o Tribunal a quo julgou erradamente os pontos descritos sob os nº 5 e 7 da tábua de factos dados como provados, constantes do auto de denúncia para o qual a douta acusação pública remeteu;

6ª – A douta sentença recorrida dá como provado que “o arguido levantou o sacho no ar, dizendo em voz alta: “eu mato-te, seu filho da puta, eu mato-te, és um gatuno”, ao mesmo tempo que se dirigia na sua direcção, pelo que fugiu dele, refugiando-se dentro do seu barracão” (ponto 5);

7ª – Também a douta sentença dá como provado que “o arguido, após ter agredido o ofendido, já à porta do barracão, referiu para D... : “ele não fica ali por respeito a si”, seguindo, depois, caminho abaixo, dirigindo-lhe insultos como: “filho da puta, cabrão, és um gatuno” (ponto 7);

8ª - O Tribunal a quo fundou a sua convicção no conjunto das declarações e depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, tanto pelo ofendido como pelas testemunhas;

9ª – Ora, resulta do depoimento das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento que nenhuma ouviu a expressão “eu mato-te”, referida no ponto 5 da matéria de facto dada como provada e referida pelo ofendido nas suas declarações, nem a expressão “ponho-te a dormir” ou “fica ali já a dormir” também referidas pelo ofendido;

10ª – Com efeito, a testemunha C... (depoimento prestado em cassete 1, lado A, voltas 81 a 105) apenas declarou ter visto o arguido “às cacetadas ao cadeado do portão”, tendo dito que, para além disso, nada mais viu;

11ª – Quanto à testemunha D... (depoimento prestado em cassete 1, lado A, voltas 107 a 175), disse ter ouvido o arguido dizer, depois de este ter saído do barracão: “ a tua sorte é estar ai este homem” e não: “ele não fica ali por respeito a si”, expressão esta bem diferente referida no ponto 7 da matéria de facto dada como provada, tendo a mesma testemunha declarado não ter ouvido qualquer outra expressão por parte do arguido, nem ter visto o que quer que fosse;

12ª - Nenhuma das expressões mencionadas pelo ofendido, em sede de audiência de julgamento, como tendo sido utilizadas pelo arguido no dia dos factos julgados, foi confirmada pelas testemunhas, ou seja as expressões tais como: “eu mato-te”, “ponho-te a dormir” e “ele não fica já ali a dormir por respeito a si” não foram corroboradas pelas testemunhas;

13ª - Assim, salvo o devido respeito, carece de fundamento a factualidade vertida nos pontos 5 e 7 da douta sentença recorrida, devendo esses mesmos factos serem dados como não provados por total falência de prova que, juridicamente, os sustenta, atenta a prova supra reproduzida e produzida em audiência de julgamento, existindo, assim, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal;

14ª - Ainda que, por mera hipótese, se considere correcta a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo, mais concretamente a expressão “eu mato-te” constante do ponto descrito sob o nº 5 da tábua de factos dados como provados, não foi feita, ainda assim, uma correcta apreciação dessa matéria de facto à luz do conceito de crime de ameaça agravado previsto e punido pelo nº 1 do artigo 153º e pela alínea a) do nº 1 do artigo 155º, todos do Código Penal;

15ª - É necessária a conjugação de três pressupostos para que se mostre praticado o crime de ameaça: um mal, futuro, dependente da vontade do agente, sendo fundamental que o mal anunciado não seja actual, imediato, iminente, pois, assim, estar-se-á perante uma tentativa de execução do respectivo mal;

16ª - Ora, admitindo, o que por mera hipótese se concebe, que o arguido tenha dito ao ofendido “eu mato-te”, tais palavras terão sido ditas ao mesmo tempo que ia ao encontro deste e, também, simultaneamente com o gesto da pancada dada ao ofendido com o objecto que aquele trazia consigo, tendo a simultaneidade das palavras e do gesto sido referida pelo próprio ofendido em sede de audiência de julgamento (declarações prestadas em cassete 1, lado A, voltas 25 a 79) como tendo sido dada como provada pelo próprio Tribunal a quo nos pontos 5 e 6 da matéria de facto provada;

17ª - Assim sendo, a expressão usada pelo arguido é objectivamente configuradora de um mal actual, já que seguida de uma acção configuradora de execução imediata ou iminente do mal ameaçado. Assim sendo, o arguido praticou um acto de execução no momento do crime anunciado;

18ª - Por conseguinte, ainda que se admita provado que o arguido tenha dito ao ofendido “eu mato-te”, não se encontra preenchido, pelo menos, um dos requisitos do crime de ameaça agravado, uma vez que o mal anunciado teve execução, ou pelo menos tentativa de execução, imediata, tendo, assim, o Tribunal a quo violado o nº 1 do artigo 153º e a alínea a) do nº 1 do artigo 155º, todos do Código Penal;

19ª - A douta sentença recorrida deve ser substituída por outra que absolva o arguido, ora recorrente, do crime de ameaça agravado assim como do pagamento do pedido de indemnização cível deduzido pelo ofendido pelos danos não patrimoniais sofridos.

Respondeu o MP em primeira instância, concluindo nos seguintes termos:

1.O tribunal a quo fez uma adequada valoração dos preceitos legais, tendo andado bem ao condenar o arguido pela prática de um crime de ameaça agravado, p.p. pelos artºs 153º, 1 e 155º, 1, a) do CP, na pena única de 200 dias de multa à taxa diária de 6€.

2. Na verdade, o tribunal a quo fez uma adequada e acertada valoração dos factos e uma correcta subsunção destes ao Direito, que não merece qualquer reparo.

3. Com efeito, não existe qualquer contradição insanável na fundamentação da sentença, porque os factos dados como provados serviram para fazer o enquadramento do crime de ameaça e são, também eles, consubstanciadores do próprio crime de ameaça.

4. Quanto à questão suscitada do não preenchimento dos elementos objectivos do crime de ameaça, verifica-se que o mal prometido pelo arguido teve repercussões para o futuro e como tal assim foi sentido pelo ofendido.

5. Face ao exposto, concluímos que a douta decisão recorrida deve ser mantida, por não ter violado quaisquer preceitos legais ou constitucionais, não devendo merecer provimento o recurso interposto pelo arguido.

            Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer onde, concordando com aquela resposta, conclui no mesmo sentido.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

           
DECIDINDO:
             Analisadas as conclusões que os recorrentes retiram da motivação dos respectivos recursos, logo se constata que são essencialmente dois os tipos de questões que, através delas, colocam à nossa apreciação:
I – Em primeiro lugar insurge-se o recorrente contra a circunstância de, não obstante a homologação da desistência de queixa relativamente aos crimes de ofensa à integridade física simples e de dano, por desistência relevante da queixa, terem sido levados à factualidade provada os factos respectivos, assim se integrando contradição insanável da fundamentação.
II – Depois, impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, afirmando terem sido julgados erradamente os pontos 5) e 7) dos factos provados.
III – Conclui as suas conclusões afirmando que, mesmo considerando os factos provados, nunca ele poderia ter sido condenado pela prática de um crime de ameaça, já que esta pressupõe que o mal anunciado seja futuro, o que não aconteceu no caso.

Factos Provados:

1.- B... é proprietário de um prédio rústico, localizado no Sitio dos Prados, Aldeia Nova, Fundão, no qual possui um tanque de água nascente.

2.- No dia 21 de julho de 2014, cerca das 17.15 h, o arguido, sem qualquer autorização para tal, rebentou o cadeado do portão de entrada da propriedade do ofendido, invadindo–a e tendo aberto a torneira de descarga da agua do tanque, canalizando a água através de uma regueira para regar a propriedade da mãe dele.

3.- O ofendido apercebeu-se da situação depois de ouvir um dos seus cães a ganir e a ladrar perto do arguido que se encontrava junto à regueira, perto do tanque, com um sacho na mão, com o qual bateu e afugentou o cão.

4.-Perante tal situação, o ofendido disse-lhe que não tinha nada que bater no cão e muito menos de lhe estar a tirar água do tanque.

5.- Apos ter proferido tais palavras, o arguido levantou o sacho no ar, dizendo em voz alta: «eu mato-te, seu filho da puta, eu mato-te, és um gatuno», ao mesmo tempo que se dirigia na sua direcção, pelo que fugiu dele, refugiando-se dentro do seu barracão.

6.-O arguido entrou dentro do barracão sempre com o sacho no ar, com atitudes agressivas e ao ver que lhe ia dar com o sacho na cabeça, num gesto enérgico, colocou o balde que tinha nas mãos a proteger a cabeça, sofrendo, de seguida, uma pancada do sacho no balde, projectando o ofendido contra a frese do tractor, caindo, de seguida, no chão.

7.-O arguido, após ter agredido o ofendido, já à porta do barracão, referiu para D... : «ele não fica ali por respeito a si», seguindo, depois, caminho abaixo, dirigindo-lhe insultos, como: «filho da puta, cabrão, és um gatuno».

8.- Da agressão resultaram ferimentos para o ofendido, nas mãos e na perna direita.

9.-O ofendido sentiu e sente medo e receio pela sua integridade física, tomando como serias as ameaças que o arguido lhe dirigiu.

10.- Na sequência das referidas agressões o ofendido B... sofreu dores e incómodos, bem assim as lesões descritas e examinadas a fls. 9 a 11, cujo teor aqui se dá por reproduzido, designadamente: membro superior esquerdo: ligeiro edema do 3º e 4º dedo da mão. Várias pequenas escoriações na face dorsal do 2º, 3º, 4º e 5º dedo da mão. Escoriação com 1 cm de diâmetro na face dorsal da mão, junto à raiz do 1º dedo.

11.- Tais lesões foram causa directa e necessária de 5 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

12.- As expressões que o arguido dirigiu, em tom sério e grave, ao ofendido foram de molde a causar neste medo e receio pela sua integridade física e vida.

13.-O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, com intenção de lhe causar medo e receio, bem sabendo que a sua conduta era adequada a alcançar tais desideratos.

14.- O arguido sabia, também, que tal conduta lhe era proibida e punida pela lei penal como crime.

DAS CONDIÇÕES PESSOAIS DO ARGUIDO:

15.-O arguido não tem antecedentes criminais.

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVEL:

16.-As expressões que o arguido dirigiu, em tom sério e grave, ao ofendido, foram de molde a causar, como causaram, medo e receio pela sua integridade física, diminuindo-lhe a sua liberdade de acção e de determinação.

FACTOS NÃO PROVADOS: Inexistem factos não provados.

DECIDINDO:

            Começa o recorrente por afirmar que ocorre vício de contradição insanável da fundamentação, já que, não obstante a homologação da desistência de queixa relativamente aos crimes de ofensa à integridade física simples e de dano, por desistência relevante da queixa, foram levados à factualidade provada os factos respectivos.

Todos os vícios referidos no nº 2 do artº 410º, para serem atendíveis, devem resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum». Ou seja, o vício há-de ressaltar do próprio contexto da sentença, não sendo lícito, neste pormenor, o recurso a elementos externos de onde esse vício se possa evidenciar, á excepção do apoio nas regras da experiência comum.

O vício de contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão, verifica-se quando há uma incompatibilidade, que do texto da própria decisão recorrida se revela, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, seja de concluir que a correcta interpretação daquela conduza a uma decisão contrária à adoptada ou quando, nos mesmos termos, seja de concluir que a decisão não é clara, por se excluírem mutuamente os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido na fundamentação de direito e decidido no dispositivo; e há contradição entre os factos quando os provados e/ou os não provados se contradizem entre si ou estão descritos de forma a constituírem negação uns dos outros.

            Invoca o recorrente a ocorrência de contradição insanável da fundamentação já que, na sua perspectiva, a circunstância de ter sido homologada desistência de queixa relativamente aos crimes de ofensa à integridade física e de dano seria impeditiva de serem os pertinentes factos apreciados em termos de se terem como provados ou não; afirma que o arguido não foi nem poderia ser julgado pelos mesmos.

            Cremos que não ocorre o vício apontado, sob tal perspectiva. Com efeito, o que a homologação relevante da desistência de queixa determina é que o arguido não possa vir a ser condenado pela prática dos crimes abrangidos por essa desistência; todavia, os factos respectivos podem sempre ser considerados para efeitos de enquadramento de outros crimes não susceptíveis dessa desistência. Foi o que aconteceu no caso. Os factos tipificadores daqueles crimes de ofensa à integridade física e de dano serviram e servirão para integrar a envolvência e as circunstâncias em que foi praticado o crime remanescente, de ameaça.

            Como avisadamente escreveu o Ex.mo PGA, no seu douto parecer, «o tribunal quando dá como provada matéria de facto que poderia enquadrar-se na prática de outros crimes – estes já arquivados por desistência de queixa – fá-lo não com o intuito de fazer a sua subsunção legal que nesse caso seria ilegal, mas antes com a finalidade de contextualizar as circunstâncias em que ocorreram os factos ainda em apreço».

            Ora, analisando a sentença impugnada, verificamos que, muito embora considerando tais factos para efeitos de compreensão global das circunstâncias em que ocorreu o crime de ameaça – o que vimos já ser permitido – absteve-se de os integrar criminalmente e de lhes aplicar uma pena, o que - também já o afirmamos - seria ilegal.

            Termos em que não ocorre o vício do artº 410º, 2, b), do CPP, pelo menos sob esta perspectiva.

            Mas será que não padece a sentença deste vício, se analisado sob outra perspectiva?

            Como atrás dissemos, há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, seja de concluir que a correcta interpretação daquela conduza a uma decisão contrária à adoptada ou quando, nos mesmos termos, seja de concluir que a decisão não é clara, por se excluírem mutuamente os fundamentos invocados. Queremos com isto dizer que se nos afigura, tal qual acontece com o recorrente, que os factos provados se mostram em contradição com a fundamentação jurídica da sentença e, por isso, também com o dispositivo.

            O crime de ameaça consiste em ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade ou autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a causar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação – n.º 1 do artigo 153º do Código Penal (tipo simples) –, sendo o agente punido com pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias, se a ameaça for com a prática de um crime cuja pena de prisão seja superior a três anos – artº 155º, nº 1, a), do mesmo CP (tipo qualificado).

Ameaçar corresponde ao acto de prometer ou pronunciar um mal futuro, de anunciar, de modo explícito ou implícito, a intenção de causar um facto maléfico, injusto e grave, consistente em danos físicos, económicos ou morais, necessariamente futuros. Torna-se necessário que, aos olhos do homem médio, dotado das características individuais presumidas do ameaçado, a concretização futura do mal anunciado dependa ou apareça dependente da vontade do agente.

Para o preenchimento do tipo de crime exige-se que a actuação do agente se revista de determinadas características que a tornem adequada a provocar na vítima receio ou inquietação. O preenchimento da factualidade típica basta-se, pois, agora com a criação de uma concreta situação de perigo para o bem jurídico tutelado, independentemente do dano eventualmente produzido.

Tratando-se de um crime de perigo concreto é necessário, para o seu preenchimento, que, através de um juízo ex ante, se reconheça na ameaça proferida efectiva potencialidade intimidatória, isto é, aptidão para intimidar, criar sentimentos de medo ou de inquietação.

Como se diz no ‘Comentário Conimbricense do C.P.’, Tomo I, pag. 343, «o mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência».

            O presente crime é de qualificar como delito de carácter circunstancial, já que a valoração jurídico-penal da acção desenvolvida deve analisar-se a partir das expressões proferidas, das acções cometidas, do contexto que elas tiveram lugar, das condições pessoais de ameaçante e ameaçado e demais circunstâncias que sirvam para contextualizar o facto. Por outro lado, a ameaça deve ser séria e credível, sob o ponto de vista quer do emissário, quer do destinatário.

            Da factualidade assente retiram-se os seguintes pontos que servem para contextualizar as circunstâncias da ameaça em termos da sua seriedade e bem assim da sua natureza iminente:

2.- No dia 21 de julho de 2014, cerca das 17.15 h, o arguido, sem qualquer autorização para tal, rebentou o cadeado do portão de entrada da propriedade do ofendido, invadindo–a e tendo aberto a torneira de descarga da agua do tanque, canalizando a água através de uma regueira para regar a propriedade da mãe dele.

3.- O ofendido apercebeu-se da situação depois de ouvir um dos seus cães a ganir e a ladrar perto do arguido que se encontrava junto à regueira, perto do tanque, com um sacho na mão, com o qual bateu e afugentou o cão.

4.-Perante tal situação, o ofendido disse-lhe que não tinha nada que bater no cão e muito menos de lhe estar a tirar água do tanque.

5.- Apos ter proferido tais palavras, o arguido levantou o sacho no ar, dizendo em voz alta: «eu mato-te, seu filho da puta, eu mato-te, és um gatuno», ao mesmo tempo que se dirigia na sua direcção, pelo que fugiu dele, refugiando-se dentro do seu barracão.

6.-O arguido entrou dentro do barracão sempre com o sacho no ar, com atitudes agressivas e ao ver que lhe ia dar com o sacho na cabeça, num gesto enérgico, colocou o balde que tinha nas mãos a proteger a cabeça, sofrendo, de seguida, uma pancada do sacho no balde, projectando o ofendido contra a frese do tractor, caindo, de seguida, no chão.

7.-O arguido, após ter agredido o ofendido, já à porta do barracão, referiu para D... : «ele não fica ali por respeito a si», seguindo, depois, caminho abaixo, dirigindo-lhe insultos, como: «filho da puta, cabrão, és um gatuno».

            Desta contextualização, operada através da apropriação de alguma da factualidade assente, com destaque para aquela que por nós foi sublinhada, resulta, de forma clara, que as ameaças contra a vida do ofendido foram proferidas num quadro de execução de outros crimes, v.g. o de ofensa à integridade física de que foi vítima o ofendido, como anúncio da prática imediata de um crime de natureza mais grave, contra a vida, que embora prometido, não foi, felizmente, consumado.

            Num quadro de violência, criado pelo arguido, pelo menos nos termos em que o descreve a acusação, em que este terá entrado de forma violenta em propriedade alheia, do ofendido, com um sacho na mão, com o qual até terá chegado a bater no cão, e em que, após ter sido advertido pelo ofendido, a ele se dirigiu, brandindo no ar o já referido sacho, dizendo «eu mato-te», ao mesmo tempo que se dirigia na sua direcção, obrigando-o a fugir. Desta resenha resulta que esta primeira ameaça, dado o tempo verbal em que foi proferida e as circunstâncias em que ocorreu, denota que ela se dirigia a uma execução imediata, tanto mais que o arguido terá brandido o sacho no ar, dirigindo-se na direcção do ofendido, que se viu na necessidade de se colocar em fuga. Nada neste circunstancialismo denota a intenção de o arguido ameaçar o ofendido com uma morte violenta futura. Tanto assim é que, após tal ameaça, o arguido, sempre com o sacho no ar, com atitudes agressivas, com ele procurou atingir o ofendido na cabeça, o qual, todavia, num enérgico gesto defensivo, colocou o balde que tinha nas mãos a proteger a cabeça, sofrendo, de seguida, uma pancada do sacho no balde. Ou seja, este facto terá sido a tentativa de consumação do mal ameaçado, tanto mais que o uso letal do referido sacho, dirigido à cabeça do ofendido, seria meio adequado a provocar-lhe a morte.

            Após ter praticado tais factos, já à porta do barracão, e antes de se ausentar do local, o arguido referiu para D... : «ele não fica ali por respeito a si». Este circunstancialismo acentua a justeza do que atrás dissemos acerca da natureza da ameaça, que se esgotaria no enquadramento da violência contra o ofendido, criada e dominada pelo arguido e que então se desenvolvia. Ele não quis com certeza dizer ao referido D... , com isso, que não o matou então mas que o mataria no futuro – pelo menos em termos da necessária interpretação semântica da sua afirmação. O que ressalta da referida afirmação do arguido ao referido interlocutor, é que, não fora a presença dele, o teria matado, ele teria «ficado» ali.

            Conforme citação operada pelo Ex.mo PGA, no seu douto parecer, (Comentário…, Tomo I, pág. 343) «que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, como vimos, que não haja iminência da execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos da tentativa

            Ora, vimos já que a iminência do mal anunciado se traduziu mesmo num início de execução, tanto mais que o arguido, em acto seguido à ameaça, procurou bater com o sacho, que brandia, na cabeça do ofendido, só o não conseguindo porque este adoptou uma postura defensiva, colocando, de forma enérgica, sobre a cabeça um balde que tinha nas mãos, no qual o arguido acabaria por acertar.

            Quer-nos, assim, parecer que o caso em análise é um caso de escola, típico, em que a ameaça não pode autonomizar-se do quadro de violência criado pelo arguido, por ser início de execução do mal anunciado como iminente, resultando esta iminência não só das expressões verbais com que o arguido exteriorizou a sua intenção, como também do quadro global em que os factos se desenvolveram.

            Por isso, se nos afigura que a sentença impugnada cai em contradição insanável da fundamentação, pois que, após ter dado como provados os factos assentes, desenvolveu uma desenvolvida fundamentação teórica no sentido de justificar que não ocorre crime de ameaça quando esta se traduz em anúncio de mal iminente (o que faz entre o §6 de fls. 102, toda a fl. 103 e o §6 de fls. 104) para depois afirmar que «as expressões provadas não se esgotam de imediato e ficam, inclusive, dependentes de, em momento subsequente, designadamente assim que o arguido regresse da Madeira, se concretizem…».

Mas, salvo o devido respeito, esta afirmação não encontra qualquer eco na materialidade dada como provada, sendo especulativa a afirmação de que a ameaça se poderá concretizar após o regresso do arguido da Madeira (sic). Poderá o arguido voltar a ameaçar o ofendido (o que está na sua dependência exclusiva), assim como poderá reiterar na intenção de pôr termo à sua vida. Mas tal não se adivinha neste momento.

Com tal fundamentação de facto e de direito, o dispositivo teria de ser necessariamente outro que não a condenação do arguido, já que este está em contradição com os fundamentos e estes estão em contradição entre si.

A procedência do recurso, dada a ocorrência de tal vício, determina a desnecessidade de analisar os demais fundamentos invocados pelo recorrente na respectiva motivação.

Determina, também a improcedência do pedido civil, uma vez que o procedimento criminal, relativamente a outros eventuais crimes remanescentes, se mostra já extinto, por ter ocorrido desistência relevante da queixa, quanto a eles. Sem crime, não há indemnização civil (artº 71º, CPP).

Termos em que, na procedência do recurso, se acorda em revogar a sentença recorrida, absolvendo o arguido/recorrente da prática do crime de ameaça agravado por que vinha acusado e bem assim relativamente ao pedido civil contra si formulado.

O ofendido pagará as custas relativas ao pedido civil.

Coimbra, 18 de Novembro de 2015

(Jorge França - relator)

(Cacilda Sena - adjunta)