Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
36/13.1PFVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: DIREITOS DE AUTOR
USURPAÇÃO
ACTIVIDADE DE DIFUSÃO
Data do Acordão: 01/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA CENTRAL – SECÇÃO CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 68.º, 149.º, 195.º E 197.º DO CDADC
Sumário: I - A usurpação é um crime comum e de execução vinculada, que tutela o bem jurídico criação intelectual, artística e científica sendo que, parte significativa da acção típica está remetida para as formas de utilização de obra ou prestação previstas no CDADC, essencialmente contidas no seu art. 68.

II - O estabelecimento comercial gerido pelo arguido [frutaria] é, face à matéria de facto que se mostra indiciada, obviamente, um lugar público.

III - Deste modo, o que há a decidir é saber se a difusão de obra radiodifundida em local público através de colunas que, ampliando e distribuindo o som, não faziam parte integrante do aparelho que sintonizava a estação emissora de rádio, configura uma mera recepção [recepção – ampliação] da obra ou antes traduz uma nova utilização, uma recepção – transmissão, da mesma obra.

IV - Constitui mera recepção e não reutilização da obra transmitida, a difusão de música ambiente através de várias colunas de som, distribuídas pelo tecto da frutaria, aberta ao público e gerida pelo arguido, ligadas a um circuito integrado de som, marca Efapel, sintonizado em determinada estação emissora de rádio;

V - Por isso, esta actividade de difusão de música ambiente não carece de autorização dos autores das obras radiodifundidas por aquela estação emissora;

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº 36/13.1PFVIS que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Viseu – Instância Central – Secção de Instrução Criminal – J1 foi proferido despacho de não pronúncia do arguido A...., no termo de instrução requerida pela assistente Sociedade Portuguesa de Autores, CRL [doravante, SPA], visando a pronúncia do arguido pela prática de um crime de usurpação, p. e p. pelo art. 195º do C. do Direito de Autor e dos Direitos Conexos [doravante, CDADC], face ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.


*

Inconformada com a decisão, recorreu a assistente SPA, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

a) Nos presentes autos, entendeu a Meritíssima Juiz "a quo" não pronunciar o A... pelo crime de usurpação;

b) Já que entendeu a Meritíssima Juiz "a quo" não ser necessário o arguido ter autorização dos autores, ou de quem os represente, para proceder à emissão de obras radiodifundidas no seu estabelecimento comercial;

c) A recorrente entende que a decisão merece reparo e deverá ser alterada por outra que pronuncie o arguido pela prática de um crime de usurpação;

d) Porquanto, no dia 19 de Junho de 2013, pelas 09h40, estavam a ser difundidas, no estabelecimento comercial " K... ", obras musicais e literário-musicais protegidas pelo direito de autor.

e) Para efeito da difusão das obras, o arguido tinha no seu estabelecimento, um aparelho de rádio, ligado a oito colunas, de som através das quais o som era propagado.

f) O arguido não tinha qualquer autorização dos autores, ou da entidade que os representa, a ora Recorrente, para difundir obras intelectuais protegidas para os clientes que estavam no estabelecimento;

g) A comunicação da obra em local público é uma utilização diferente da radiodifusão, que implica a obtenção de uma autorização diferente daquela que o autor, ou o seu representante, haviam concedido para efeitos de radiodifusão. Assim, a autorização concedida à entidade de radiodifusão não se estende ao explorador de um estabelecimento comercial, e, por consequência, este não se pode servir da autorização que havia sido concedida àquela;

h) Sempre que uma obra radiodifundida seja utilizada em local público, num estabelecimento comercial, como no caso dos autos, será sempre necessária autorização dos autores, certo sendo que a sua falta configura a prática de um crime de usurpação previsto e punido nos termos do artigo 195º do CDADC;

i) Termos em que a decisão recorrida deverá ser alterada por outra que condene o arguido pela prática de um crime de usurpação;

j) A decisão recorrida sustenta uma interpretação diferente da Lei, que resulta de uma interpretação incorrecta do conceito de comunicação de obra ao público. que tem origem no direito da União Europeia, em particular na Directiva 2001/29/CE;

l) A generalidade das legislações internas dos países pertencentes à União Europeia, as quais de baseiam na Convenção de Berna, e, mais recentemente, se sustentam nas Directivas aprovadas e já transpostas para os diversos ordenamentos jurídicos internos, tal como acontece com o ordenamento jurídico português, consagra, de forma muito clara e evidente, o direito dos autores receberem a remuneração que lhes é devida pela comunicação de obras em local público;

m) A orientação doutrinária sustentada na decisão de que se recorre coloca em causa o princípio da aplicação harmonizada e coerente do direito de autor na União Europeia.

Termos em que, e nos mais de direito, se requer a V. Exas., Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra, colham a argumentação expendida, revogando a decisão instrutória recorrida, substituindo-a por outra que pronuncie o arguido A... pela prática do crime de usurpação, p, e p, pelos artigos 195º e 197º do CDADC.

Assim fazendo V. Exas. a tão costumada JUSTIÇA!


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            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1 – Não se verificam in casu condições para revogação da decisão de não pronúncia do arguido.

2 – A instalação das colunas ligadas ao rádio nada acrescentava ou alterava à emissão.

3 – O STJ uniformizou e fixou jurisprudência, no Acórdão nº 15/2013, de 13/11, publicado no D.R. de 16 de dezembro, considera que a distribuição do som feita por colunas distribuídas por vários pontos do estabelecimento comercial, que ampliam o som, não sendo estas parte integrante do televisor ou radiofonia, não extravasa a mera receção, que é livre, não configurando assim uma nova transmissão do programa.

Assim, mantendo-se a douta decisão que não pronunciou o arguido, farão, Vossas Excelências, como sempre, e mais uma vez, JUSTIÇA.


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            Respondeu também ao recurso o arguido, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1. O despacho de não pronúncia proferido não merece qualquer reparo.

2. O Arguido não praticou o crime de usurpação, porquanto os factos concretos não consubstanciam o crime referido.

3. Na análise da efetivação dos pressupostos do tipo de ilícito em causa deverá ter-se em consideração o conceito do "público" a quem a obra é comunicada, para efeitos do art. 3.º, n.º 1 da Diretiva 2001/29/CE, que visa um número indeterminado de destinatários potenciais e implica, além disso, um número de pessoas bastante importante.

4. Tal não sucede numa frutaria de bairro, em que a clientela é sempre a mesma e não se pode afirmar que seja um número de pessoas bastante importante.

5. Por outro lado, uma frutaria é um estabelecimento comercial, mas sem qualquer semelhança com um bar, cafés, restaurantes, em que o público-alvo seja cativado pela emissão transmissão de obras radiodifundidas e onde as pessoas se desloquem para ouvir música.

6. Acresce o facto de a transmissão não visar no caso concreto qualquer lucro nem se repercutir nas vendas de uma frutaria.

7. Pois o espaço em causa nos autos não é um espaço de permanência, convívio mas sim de estrita passagem para compra de bens essenciais, pelo que a audição de música é completamente indiferente para essa clientela.

8. Assim, e atendendo a estes dois conceitos: fim lucrativo e o que se entende por "público", não consubstanciam os factos crime de usurpação, socorrendo-nos para tanto do Acórdão do TJUE de 14 de Julho de 2015.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, não deverão V.as Ex.ªs Digníssimos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra dar provimento ao recurso apresentado pela Assistente, mantendo a decisão instrutória recorrida.

Só assim se realizando a devida e costumada Justiça.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a contramotivação do Ministério Público, afirmando que a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão nº 15/2013 vai no sentido de que havendo mera recepção da obra não é necessária autorização do autor, afirmando ainda que o TJUE tem usado três critérios para a concretização do que seja uma ‘comunicação ao público’ a saber, o papel do utilizador, o conceito de público e o carácter lucrativo, sendo que no caso, porque de uma frutaria de bairro se trata, parece não poder falar-se de grande número de pessoas, nem do significado económico, e concluiu pela improcedência do recurso.


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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo respondido a assistente SPA, discordando da afirmada aproximação entre o Acórdão nº 15/2013 e as decisões do TJUE citadas no parecer, discordando da qualificação feita à clientela do estabelecimento do arguido e do carácter lucrativo, afirmando a sujeição do Estado Português às normas e princípios emanados da União Europeia, e concluiu pela pronúncia do arguido.

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  Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se o arguido deve ou não ser pronunciado, como autor material de um crime de usurpação, p. e p. pelo art. 195º do CDADC.


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Para a resolução desta questão importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

“ (…).

I – Relatório:

Iniciaram-se os presentes autos com a notícia, por parte da PSP de que no dia 19 de Junho de 2013, pelas 9:40 no estabelecimento comercial K... existia música ambiente difundida através de oito colunas, proveniente de uma aparelhagem sonora sintonizada na estação de rádio da RFM.

Consta ainda que a sociedade em causa não dispunha de autorização da SPA.

O Ministério Publico arquivou os autos com fundamento no ac. do STJ nº 15/2013.

A assistente veio requerer a abertura de instrução, pedindo a pronúncia do arguido (por manifesto lapso admitiu-se a instrução contra os dois arguidos quando apenas foi requerida contra o arguido A... ) por um crime de usurpação, p.p. artigo 195 do CDADC.

Foi admitida a instrução.

Procedeu-se à realização de debate instrutório.


***

O Tribunal é competente e as partes são legítimas.

Não há qualquer questão prévia ou incidental que cumpra conhecer.

II – Fundamentação da decisão:

Cabe agora proferir a decisão a que alude o art. 307º do CPP.


***

Tal como refere o art. 286º, nº 1 do CPP "A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento".

De acordo com o artigo 308º, nº 1 do mesmo diploma preceitua que: "Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia".

Por sua vez o art. 283º, nº 2 refere que: "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".

Assim, sendo este o entendimento legal em que deve assentar a prolação de despacho de pronúncia ou de não pronúncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se poder formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança".

Desde logo, na situação concreta há que ter em conta os seguintes artigos 68º, 149º, 155º, 195º e 197º, todos do CDADC.

Assim, o artigo 68, nº 2, al.e) estipula que:

"1)- A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos atualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser.

2 - Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:

a) (…);

e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação pública por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras óticas, cabo ou satélite, quando essa comunicação for feita por outro organismo que não o de origem;

(…)".

Por seu turno o artigo 149 estipula que:

"1- Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto direta como por retransmissão, por qualquer modo obtida.

2 - Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.

3 - Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão",

O artigo 155 estipula que:

"É devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida, por altifalante ou por qualquer outro instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens".

O artigo 195 acrescenta que:

1 - Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código.

2 - Comete também o crime de usurpação:

a) Quem divulgar ou publicar abusivamente uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo seu autor ou não destinada a divulgação ou publicação, mesmo que a apresente como sendo do respetivo autor, quer se proponha ou não obter qualquer vantagem económica;

b) Quem coligir ou compilar obras publicadas ou inéditas sem autorização do autor;

c) Quem, estando autorizado a utilizar uma obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceder os limites da autorização concedida, salvo nos casos expressamente previstos neste Código.

3 - Será punido com as penas previstas no artigo 197.º o autor que, tendo transmitido, total ou parcialmente, os respetivos direitos ou tendo autorizado a utilização da sua obra por qualquer dos modos previstos neste Código, a utilizar direta ou indiretamente com ofensa dos direitos atribuídos a outrem".

Finalmente o 197 estipula que:

"1- Os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infração, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infração não tipificar crime punível com pena mais grave.

2 - Nos crimes previstos neste título a negligência é punível com multa de 50 a 150 dias.

3 - Em caso de reincidência não há suspensão da pena".

Dúvidas não existem que a criação literária e artística carece de proteção e recebe a tutela do Direito de Autor, vertida no CDADC.

Com o CDACD protegem-se bens de carácter pessoal e direitos patrimoniais. A questão a decidir nos presentes autos resume-se a uma discussão de direito, nomeadamente de saber se não fazendo as colunas que ampliam o som parte integrante do rádio, a distribuição do som, que por elas é feita, extravasa a mera receção, passando a configurar uma nova transmissão do programa.

Tal questão de direito originou na jurisprudência alguma divisão, terminando com o ac. do STJ a que alude a Digna Procuradora Adjunta no seu despacho de arquivamento.

A nosso ver o art.º 149º, n.º 2 do CDADC não prevê a mera receção de emissões de radiodifusão, que é livre, mas a transmissão daquelas emissões.

A mera receção de uma emissão radiodifundida em estabelecimentos comerciais é livre, sendo que o que se discutia é se a futura transmissão daquela receção, nomeadamente através de colunas constituía, ou não crime.

A este propósito escrevia Oliveira Ascensão:" Princípio fundamental nesta matéria é o da liberdade de recepção (…) seria absurdo sujeitar as duas autorizações o mesmo programa, com a consequente dupla cobrança, na fonte e no destino. Na realidade, quem possuir um receptor pode utilizá-lo livremente, pois a autorização inicial para a radiodifusão abrange já a posterior recepção".

Os defensores de que não constituía crime argumentavam, basicamente que a mera existência de colunas de ampliação do som difundido por radiofonia ou televisor não transforma o ato de receção livre em (re)transmissão do programa, não se adulterando por essa forma a utilização da obra transmitida através daqueles aparelhos. De facto, o que se dizia era que a utilização das colunas em nada alterava a utilização da obra transmitida através da televisão uma vez que quer a imagem quer o som eram exatamente os que o canal sintonizado transmitia.

Os defensores de que não constituía crime, salientavam, ainda, a necessidade de distinguir entre a mera receção e a reutilização da obra, pois só quando se dava esta última é que fazia sentido conferir ao autor da obra direito a nova remuneração.

Acontece que esta questão ficou decidida através do UF de 13.11.2013, DR, I SÉRIE, 243, 16.12.2013, que estipulou que: "A aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos".

Ora, concordamos na integra com os fundamentos que constam do acórdão, aplicável, por maioria de razão às situações do som ser difundido não por televisão, mas por rádio.

Assim, e não obstante, o mesmo, nos termos do artigo 445, nº 3 do CPP não constituir jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, nada mais temos a acrescentar, sendo que, só em caso de divergência do acórdão é que a mesma deveria ser fundamentada.

Bem andou a Sr." Procuradora Adjunta ao arquivar os autos, não assistindo razão ao assistente.

Perante tal, e tratando-se exclusivamente de uma questão de direito, o Tribunal não descrimina os factos indiciados e os não indiciados, não obstante dúvidas não existirem que os factos que constam do auto de notícia se encontram suficientemente indiciados.

Pelo exposto:

III – Decide-se:

Não Pronunciar o arguido, por um crime de usurpação, p.p.p artigo 194, 195 e 197 do CDADC, ou qualquer outro, mantendo o despacho de arquivamento.

Custas pela assistente, sem prejuízo das isenções legais.

Notifique.

(…)”.


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            1. A instrução é uma fase intermédia e facultativa do processo penal na forma comum que visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1, do C. Processo Penal).

A comprovação judicial mais não é do que a conjugação e ponderação dos meios de prova produzidos – em sede de inquérito e na própria instrução – em ordem a ajuizar-se da existência ou não, de indícios suficientes de estarem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, juízo este formalmente explicitado na decisão instrutória. Daí que estabeleça o art. 308º, nº 1 do C. Processo Penal [código a que pertencem todas as disposições legais citadas sem menção de origem] que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Por outro lado, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (nº 2 do art. 283º, aplicável ex vi, nº 2 do art. 308º).

In casu, a instrução foi requerida pela assistente SPA, visando a comprovação judicial da decisão que ordenou o arquivamento do inquérito relativamente ao denunciado crime usurpação, p. e p. pelo art. 1195º do CDADC. Sucede que a questão levantada no recurso não se prende, ao menos, directamente, com a suficiência ou insuficiência dos indícios probatórios colhidos, mas com a aptidão dos factos indiciados – e como tal se consideram os que constam do auto de notícia de fls. 4 a 5 [que têm parcial correspondência com o teor dos pontos 6º a 11º do requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente] – para preencherem o tipo do crime referido, e que são:

- O arguido é o gerente da Frutaria K... , Lda., com estabelecimento denominado « Frutaria K... » sito na Rua (...) , em Viseu;

- No dia 19 de Junho de 2013, pelas 09h40, no referido estabelecimento, existia música ambiente, difundida através de oito colunas colocadas no tecto e distribuídas pelo espaço comercial, proveniente de um circuito integrado de som, marca Efapel, sintonizado na estação emissora de rádio denominada RFM, tendo sido difundidas, entre outras, as obras musicais “When I Was Your Man” e “You Are Not Alone”;

- O arguido, na referida qualidade de gerente, não tinha autorização da assistente, que representa em Portugal os autores das obras os autores das obras musicais identificadas, para a sua execução em local público.

2. Vejamos então se os factos indiciados são susceptíveis de preencher o tipo do art. 195º do CDADC, que prevê o crime de usurpação.

A Lei Fundamental, no seu art. 42º, nº 2, assegura a protecção legal dos direitos de autor, constituindo o crime em referência, ao nível infraconstitucional, um dos elementos de tal protecção.

A usurpação é um crime comum e de execução vinculada, que tutela o bem jurídico criação intelectual, artística e científica, e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:

[Tipo objectivo]

- Que o agente, sem autorização do autor, do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilize uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas no código;

- Que o agente divulgue ou publique, abusivamente, uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo autor ou não destinada à divulgação ou publicação, mesmo que identifique a respectiva autoria;

- Que o agente colija ou compile obras publicadas ou inéditas, sem autorização do autor;

- Que o agente, estando autorizado a usar obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceda os limites da autorização, com excepção dos casos previstos no código;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal.   

Como se vê, parte significativa da acção típica está remetida para as formas de utilização de obra ou prestação previstas no CDADC, essencialmente contidas no seu art. 68º. Estabelece este artigo, no seu nº 1 que, A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser, e dispõe no seu nº 2, alínea e) [alínea que, para o caso, releva] que, Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes; (…) e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras ópticas, cabo ou satélite, quando essa for feita por outro organismo que não o de origem; (…).

Por seu turno, no que respeita à autorização da radiodifusão e reprodução de sinais, sons e imagens, dispõe o art. 149º do mesmo código:

1 – Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto directa como por retransmissão, por qualquer modo obtida.

2 – Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meios que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.

3 – Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, e ainda que com reserva declarada do direito de admissão.  

Finalmente, estabelece o art. 155º ainda do mesmo diploma que, É devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida por altifalante ou por qualquer instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens.

O estabelecimento comercial gerido pelo arguido é, face à matéria de facto que se mostra indiciada, é, obviamente, um lugar público. Deste modo, podemos dizer que o que há a decidir é saber se a difusão de obra radiodifundida em local público através de colunas que, ampliando e distribuindo o som, não faziam parte integrante do aparelho que sintonizava a estação emissora de rádio, configura uma mera recepção [recepção – ampliação] da obra ou antes traduz uma nova utilização, uma recepção – transmissão, da mesma obra.

Nesta matéria, o princípio geral é o da liberdade de recepção isto é, estando sujeita a radiodifusão da obra a autorização do respectivo autor, já o mesmo não sucede com a sua recepção no destino. Com efeito, a autorização para a radiodifusão da obra prevê já a sua recepção, sendo, por isso, esta livre, mesmo que seja pública e independentemente do modo como se efectiva (cfr. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Direito de Autor e Direitos Conexos, Coimbra Editora, 1992, pág. 301 e ss.).

Resulta do nº 2 do art. 149º, nº 2 do CDADC que a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meios que sirva para difundir sinais, sons ou imagens, depende de autorização do respectivo autor, conferindo-lhe o direito a remuneração. A comunicação pública da obra aqui prevista não se confunde, por ser necessariamente distinta, com a transmissão e a retransmissão, também modalidades de utilização da obra, mas previstas no nº 1 do mesmo artigo. Aqui, o que está em causa é a radiodifusão da obra, incluindo a recepção, que constitui o termo do processo de transmissão e, como vimos, é livre. Ali, na comunicação pública, existe uma reutilização da obra isto é, a concreta transmissão efectuada acrescenta, modifica ou inova [relativamente à obra que está a ser radiodifundida], produzindo uma nova utilização da obra, objectivada numa modificação da forma de recepção operada por meios técnicos, de modo a obter o seu aproveitamento para a produção de um efeito visual ou sonoro, criador de uma encenação ou espectáculo, que não aconteceriam com a mera recepção da obra radiodifundida (cfr. Acórdão Uniformizador nº 15/2013).

Vinha sendo entendido [não uniformemente mas, cremos, maioritariamente] que a recepção, em estabelecimentos abertos ao público, v.g., restaurantes, cafés, pastelarias, tabernas, barbearias e outros congéneres nos quais, sem dificuldades, se integra a frutaria gerida pelo arguido, de programa e portanto, obra ou obras, radiodifundido, via rádio ou via televisão, cujo som fosse difundido pelo respectivo espaço físico através de colunas não integrantes do aparelho receptor, não constituía uma nova utilização da obra ou seja, a sua reutilização [recepção – transmissão] mas apenas a sua recepção [recepção – ampliação] uma vez que aquelas colunas não constituem um quid diferente do que já se encontra instalado no aparelho receptor, nem são aptas a realizaram uma qualquer nova função, limitando-se apenas a captação e distribuição do som (cfr., neste sentido, Acs. da R. de Lisboa de 22 de Março de 2011, proc. nº 147/04.4SXLSB.L1-5, da R. do Porto de 5 de Novembro de 1997, proc. nº 9710719, da R. de Guimarães de 7 de Janeiro de 2013, proc. nº 124/11.9GAPVL.G1 e de 15 de Novembro de 2004, proc. nº 1204/04-2; em sentido contrário, cfr., Acs. da R. de Lisboa de 15 de Maio de 2007, proc. nº 72/2007 e de Guimarães de 2 de Julho de 2007, proc. nº 974/07-2).

À divergência jurisprudencial apontada veio por cobro o já citado Acórdão Uniformizador nº 15/2013 (DR, 1ª série – Nº 243 – 16 de Dezembro de 2013) que uniformizou jurisprudência no sentido de que, a aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.  

A jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador é seguramente aplicável à situação sub judice, uma vez que decidiu tendo por base uma televisão com colunas acopladas, e uma televisão é, como se sabe, um aparelho receptor de radiodifusão sonora e visual da obra, enquanto um ‘rádio’, que é o aparelho em causa no presente recurso, é apenas um aparelho receptor de radiodifusão sonora da obra, constituindo um minus relativamente àquela. Por outro lado, não dispomos argumento novo que nos leve a afastar a jurisprudência fixada, nem temos notícia de evolução doutrinal ou jurisprudencial quanto aos argumentos utilizados, determinante, hoje, de uma decisão uniformizadora diferente, dada até a data, próxima, em que foi proferido.

Assim, e em síntese conclusiva:

- Constitui mera recepção e não reutilização da obra transmitida, a difusão de música ambiente através de várias colunas de som, distribuídas pelo tecto da frutaria, aberta ao público e gerida pelo arguido, ligadas a um circuito integrado de som, marca Efapel, sintonizado em determinada estação emissora de rádio;

- Por isso, esta actividade de difusão de música ambiente não carece de autorização dos autores das obras radiodifundidas por aquela estação emissora;

- Consequentemente, a conduta do arguido não preenche o tipo do crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do CDADC.


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Não merece pois censura, o despacho recorrido que, por isso, deve ser mantido.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


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Recurso sem tributação por estar a recorrente isenta de custas (art. 4º, nº 1, f) do R. Custas Processuais).

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Coimbra, 20 de Janeiro de 2016


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Orlando Gonçalves – adjunto)