Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1268/13.8TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: RECURSO
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
ÓNUS DA ESPECIFICAÇÃO
PASSAGENS DA GRAVAÇÃO
Data do Acordão: 04/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.640 CPC
Sumário: 1. Não se deve confundir nulidades da sentença com eventuais vícios da decisão da matéria de facto (por dela não constar a respectiva fundamentação, ou suficiente motivação, ou haver motivação inteligível).

2.Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda.

3. A omissão desse ónus, imposto pelo nº 2, a), do referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, pois tal ónus não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados no sistema digital, nem com a transcrição, total ou parcial, de depoimentos das testemunhas, pois tal transcrição é uma mera faculdade.

4. Aliás, o texto da lei e a sua interpretação histórico-actualista, repudiam interpretações facilitistas, que no fundo degeneram em: violação do princípio da igualdade das partes ( ao não tratar diferentemente o cumprimento ostensivamente defeituoso da lei adjectiva, pois se há partes que podem cumprir esse ónus e o cumprem, porque razão se haveria de dar igual tratamento a quem não o faz!) -; do princípio do contraditório ( por impor à parte contrária um esforço excessivo e não previsto na tarefa de defesa, imputável ao transgressor ), e do princípio da colaboração com o tribunal ( por razões análogas, mas reportadas ao julgador).

5. Sendo de rejeitar, também, interpretações complacentes que se contentam com a indicação do depoimento e identificação de quem o prestou, sem obrigatoriedade de transcrição; com a fixação electrónica/digital do início e fim dos depoimentos e a transcrição dos excertos relevantes; já que a não ser assim há excesso de formalismo que a dogmática processual rejeita; a não ser assim não se respeita o princípio da proporcionalidade.

6. Na verdade, a 1ª interpretação faz tábua rasa do texto legal, relevando dois elementos que a lei não enumerou e “apagando” a passagem nuclear do texto legal “indicação com exactidão das passagens da gravação”; a 2ª interpretação, obnubila também tal trecho legal, pois que apenas releva o fim e início da gravação, acabando por não observar o cumprimento do verdadeiro requisito legal, e por outro lado, passa a requisito de cumprimento obrigatório um elemento – a transcrição dos excertos relevantes – que a lei expressamente vê como facultativo; a 3ª interpretação, não contém objecção de relevo pois a exigência de formalismo nada tem de extraordinário, como o tribunal constitucional já sinalizou; e na 4ª interpretação não divisamos ofensa da exigência de proporcionalidade, pois que, na sua tridimensionalidade de onerosidade, dificuldade e gravidade das consequências, o cumprimento rigoroso da lei, quanto ao indicado requisito de impugnação da matéria de facto, não é oneroso e é de fácil execução, não sendo anómalo, no seu incumprimento, a respectiva rejeição do recurso.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. A autora B (…) Lda, com sede em Coimbra, intentou acção declarativa contra L (…) e esposa M (…), ambos residentes em Coimbra, pedindo que: - o 1º R. L (…) seja condenado a reconhecer a aquisição dos bens fornecidos pela A. e melhor descritos na factura n° 13AFT00510; - o 1º R. ser condenado a pagar a quantia de 55.556,63 €, assim decompostos: 52.860,04 € de capital e 2.696,59 € de juros vencidos, mais juros vincendos. Subsidiariamente deduziu o mesmo pedido contra a 2ª R. M (…) e, consequentemente, pediu que: - a 2ª R., fosse condenada a reconhecer a aquisição dos bens fornecidos pela A. e melhor descritos na mesma factura; - a 2ª R. seja condenada a pagar a quantia de 55.556,63 €, assim decompostos: 52.860,04 € de capital e 2.696,59 € de juros vencidos e juros de mora vincendos,

Para tanto, alegou, em síntese, que a pedido do 1º réu forneceu um conjunto de máquinas e que na data em que se venceu a obrigação o mesmo não procedeu ao seu pagamento.

Os réus contestaram, por excepção e impugnação. Para a procedência da primeira alegaram a ilegitimidade passiva da 2ª ré, porquanto, não foram alegados factos que tenham dado origem à venda das máquinas a esta. Em relação à impugnação, alegaram, em síntese, que foi apenas solicitado pelo 1º réu à autora uma factura-proforma, nunca tendo solicitado a emissão da factura definitiva e, ainda, que não lhe foram entregues quaisquer máquinas por parte da autora.

Elaborado despacho saneador, foi julgado procedente a ilegitimidade da 2ª ré.

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente, e, em consequência, condenou o 1º réu a pagar à autora a quantia de 52.860,04 €, acrescido de juros de mora à sobredita taxa aplicável aos juros comerciais, desde 25.3.2013 até efectivo e integral pagamento.

*

2. O R. interpôs recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:
(…)

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

1.         A autora é uma sociedade por quotas que tem por objecto social a importação e comércio de máquinas de venda automática, serviços a prestar na área destas máquinas, comércio e distribuição de produtos alimentares, bebidas e tabacos.

2.         O 1° R, L (…), foi funcionário da A, entre 01.01.2009 e Março de 2012.

3.         No período no qual o 1° R, L (…), foi funcionário da A esta manteve relações comerciais várias com a 2ª R, M (…), sendo o 1° R, L (…) quem encomendava e adquiria as máquinas de venda automática e produtos em representação da 2ª R, M (…).

4.         Em 27.06.2012, o 1° R, L (…), com o fim declarado de instruir projecto que pretendia apresentar junto do Instituto de Emprego e Formação Profissional (lEFP), solicitou à A. a emissão de uma factura pró-forma, relativa a máquinas de venda automática, no valor de e 66.029,11.

5.         Tal factura pró-forma, segundo instruções do 1° R, L (…), haveria de ser emitida em nome da empresa D (…) com sede em Coimbra, à Rua (...) , Lt. (...) Coimbra, empresa que aquele iria constituir no âmbito do referido projecto do IEFP.

6.         A A. anuiu às solicitações do 1° R, L (…) e emitiu a referida factura pró-forma.

7.         Em Novembro de 2012, o 1° R, L (…), solicitou que as máquinas lhe fossem entregues antecipadamente para as poder personalizar.

8.         Tais máquinas não eram exactamente as mesmas que constavam da factura pró-forma anteriormente emitida pela A., pois o 1° R, L (…), pretendia adquirir outras máquinas e outras quantidades que não as ali constantes.

9.         Em 09.11.2012, atenta a grande confiança existente entre a A. e o seu ex trabalhador, o 1º R, L (…) fez com que a A mais uma vez anuísse às pretensões daquele, entregando-lhe as máquinas objecto do negócio.

10.      Ficou acordado entre ambos, A e 1° R, L (…), que as máquinas seriam entregues em Novembro de 2012 e seriam facturadas e pagas, até 25.03.2013.

11.      Em 22.03.2013, estando-se a aproximar a data limite combinada para a formalização e conclusão do negócio, com a emissão da factura e o recebimento do preço, e como o 1° R, L (…), "não dava notícias" e não atendia os telefonemas que a A e o seu legal representante lhe faziam, esta, através do seu legal representante, enviou uma mensagem de telemóvel (SMS), sobre o assunto.

12.      À qual o 1° R, L (…), respondeu também por SMS com a pergunta: "quais máquinas?".

13.      Com aquela resposta a A. ficou muito preocupada com a possibilidade de haver sido ardilosamente enganada, pois havia entregue as máquinas já em Novembro do ano anterior.

14.      Em 25.03.2013, no dia acordado, a A. emitiu a competente factura da venda das máquinas efectivamente entregues, no montante de € 52.860,04.

15.      E, enviou-a (original e duplicado) para a morada do 1º R, L (...) , através de carta registada com aviso de recepção, de forma a ter a certeza que aquele as receberia.

16.      O 1º R, L (…), não recebeu a carta com a factura.

17.      A empresa D (…) em nome da qual havia sido emitida a factura pró-forma e à qual haviam sido facturadas as máquinas não se encontrava registada, não podendo legalmente ser facturadas as máquinas em seu nome.

18.      O 1º R, L (…), recebeu os bens fornecidos pela A.

19.      Instado a pagar os bens fornecidos pela A., o 1º R, L (…), nada pagou.

*

Factos não Provados:

a)        O 1° Réu apenas mencionou à Autora que máquinas pretendia adquirir (caso o projeto fosse aprovado), e como eram em elevado número, solicitou que as preparasse para depois não lhe faltarem.

b)        Mas a Autora nunca as entregou ao 1º Réu, nem este pediu que lhe fossem entregues.

(…)

*

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Nulidade da sentença.

- Alteração da matéria de facto.

- Não condenação do recorrente.

2. Diz o recorrente que a sentença é nula, nos termos do art. 615º, nº 1, b), do NCPC (vide conclusões de recurso 41. a 54.). Tal preceito comina a sentença de nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.   

Atentando mais detalhadamente na alegação do recorrente acaba por concluir-se que o recorrente se refere à fundamentação de facto que não à de direito. Ora, a sentença recorrida especificou os fundamentos de facto que justificam a decisão. São os factos provados 1. a 19. e os não provados a) e b), acima elencados na parte II deste acórdão.

Questão diferente, e que perpassa na mente do recorrente e pelo texto das suas alegações, é a eventual existência de vícios na decisão da matéria de facto, por dela não constar a respectiva fundamentação, ou suficiente motivação, ou haver motivação inteligível. Porém, estas hipóteses integradoras de eventuais vícios da decisão da matéria de facto não se devem confundir com nulidades da sentença.

Face ao exposto, inexiste, qualquer nulidade da sentença.   

3. O ora recorrente considera que foram incorrectamente julgados os factos provados 7. a 19., e os não provados sob a) e b), requerendo que aqueles passem a não provados e estes a provados (vide conclusões de recurso 2. a 39.).

Quanto às concretas provas que impunham decisão diversa da recorrida, estriba-se o recorrente nos depoimentos prestados em audiência, concretamente no seu próprio depoimento de parte, declarações de parte do legal representante da A. (…), depoimentos das testemunhas (…) e, ainda, toda a prova documental junta aos autos pelas partes, bem como o depoimento de todas as testemunhas inquiridas no âmbito da providência cautelar a que o presente processo é apenso, nomeadamente, o depoimento das testemunhas (…).

De referir que o julgador de facto se baseou, como da respectiva motivação da decisão da matéria de facto consta (cfr. fls. 4/7 da sentença), nas declarações de parte do indicado (…), e nos depoimentos das apontadas testemunhas (…), e em 3 documentos em concreto que indicou, para responder aos factos provados, e na ausência de prova quanto aos factos não provados por as testemunhas arroladas pelo R. desconhecerem tal matéria.

Desde logo cabe notar que mal se compreende que o recorrente se queira prevalecer do seu próprio depoimento de parte para infirmar o que ficou provado, e que tinha sido alegado pela A., e comprovar a matéria não provada que ele próprio alegou. Como é sabido o depoimento de parte visa obter a confissão de factos (epígrafe do art. 452º do NCPC e 352º do CC). Não se concebe, por isso, que o depoimento de parte, por si, possa servir para infirmar a factualidade articulada pela parte contrária. Portanto, quanto ao acervo factual provado o depoimento de parte não pode valer para contrariar tal factualidade. E quanto ao acervo factual não provado está excluído no direito português que em depoimento de parte (que não em declarações de parte) a mesma se possa valer do seu próprio testemunho para, em apreciação livre pelo julgador, provar os factos que alegou. Como é compreensível (vide neste sentido L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 2º, 2ª Ed., nota 1. ao artigo 552º do anterior CPC, pág. 497).      

Por outro lado, nas alegações (corpo) o recorrente transcreve - total ou parcialmente, não sabemos – aquilo que ele, o legal representante da A. e as indicadas testemunhas terão dito/afirmado na audiência de julgamento, tecendo depois um comentário crítico final e extraindo as respectivas conclusões. Mais refere (no corpo das alegações) que o seu depoimento de parte, a declaração de parte e tais depoimentos testemunhais estão gravados no sistema digital (com início em … e fim em …).

Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, sob pena de rejeição.

Ou seja, de tal dispositivo verifica-se que a lei exige 5 requisitos:

i) Que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

ii) Qual o sentido correcto da resposta, que na óptica do recorrente, se impunha fosse dado a tais pontos;

iii) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa;

iv) E por que razão assim seria, com análise critica criteriosa;

v) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes.

Ora, das suas alegações de recurso – corpo e conclusões - verifica-se que o recorrente não cumpriu o 5º dos indicados requisitos legais, pois não indicou, em lado algum, com exactidão as passagens da gravação em que funda a sua impugnação, baseada nos indicados depoimento de parte, declaração de parte e depoimentos testemunhais que referiu, apesar de, face à gravação efectuada (vide a respectiva acta a fls. 91/94), haver identificação precisa e separada de tais depoimentos.  

Na realidade, o ónus imposto a qualquer recorrente no aludido nº 2, a) do art. 640º, do NCPC não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados no sistema digital, nem sequer com a transcrição, total ou parcial, dos depoimentos prestados, já que esta é meramente facultativa. Não deixando a lei neste ponto qualquer dúvida, face aos termos claros e terminantes com que está redigida (vide igualmente no mesmo sentido L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 3º, T. I, 2ª Ed., nota 4. ao artigo 685º-B, págs. 62/64, e A. Geraldes, Recursos em P. Civil, 2ª Ed., 2008, notas 3. e 4. ao referido artigo, págs. 138/142, normativo do CPC semelhante ao actual 640º do NCPC, e a título de exemplo os recentes Ac. desta Rel. de 28.9.2015, Proc.198/10.0TBVLF, 10.2.2015, Proc.2466/11.4TBFIG e de 17.12.2014, Proc.6213/08.0TBLRA, e Ac. do STJ, de 19.2.2015, Proc.405/09.1TMCBR, disponíveis em www.dgsi.pt).

Aliás, o NCPC no seu art. 640º, manteve em termos idênticos esse ónus, introduzido pelo regime de reforma de recursos (DL 303/2007, de 24.8) no anterior art. 685º-B, mantendo igualmente a cominação da imediata rejeição do recurso para o seu incumprimento. Esta posição recente do legislador evidencia a desconformidade relativamente à lei, quer no seu elemento literal, quer no histórico-actualista (no discurso de apresentação da proposta de Lei de Autorização Legislativa 6/2007, de 2.2., publicado no Diário da assembleia da República de 21.12.2006, e ainda na Reforma dos Recursos em Processo Civil- trabalhos Preparatórios, págs. 343 e segs. o Ministro da Justiça referiu que na “proposta prevê-se, expressamente, que a gravação digital do julgamento possa ser em áudio, ou logo que possível, em vídeo e que haja identificação precisa e separada dos depoimentos. Isto, de modo a permitir às partes que indiquem as passagens da gravação em que se fundam…” - sublinhado nosso - como se retira de Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 143), de interpretações facilitistas, que por vezes se vêem, que no fundo degeneram em violação do princípio da igualdade das partes - ao não tratar diferentemente o cumprimento ostensivamente defeituoso da lei adjectiva, pois se há partes que podem cumprir esse ónus e o cumprem, como se pode constatar noutros processos que passam nos tribunais, porque razão se haveria de dar igual tratamento a quem não o faz ! -, do princípio do contraditório -  por impor à parte contrária um esforço excessivo e não previsto na tarefa de defesa, imputável ao transgressor - e do princípio da colaboração com o tribunal - por razões análogas, mas reportadas ao julgador (vide neste sentido o Ac. da Rel. Lisboa de 12.2.2014, Proc.26/10.6TTBRR, em www.dgsi.pt).

Sendo também de rejeitar interpretações complacentes, que se vão vendo noutras instâncias de recurso, no seguinte sentido: a) o tribunal de recurso deve contentar-se, na impugnação da matéria de facto, com a indicação do depoimento e identificação de quem o prestou, sem obrigatoriedade de transcrição; b) basta a fixação electrónica/digital do início e fim dos depoimentos e a transcrição dos excertos relevantes; c) a não ser assim há excesso de formalismo que a dogmática processual rejeita; d) a não ser assim não se respeita o princípio da proporcionalidade.

Quanto à 1ª interpretação, ela faz tábua rasa do texto legal, relevando dois elementos que a lei não enumerou e “apagando” a passagem nuclear do texto legal que consiste no cerne da questão e que se reporta à indicação “com exactidão das passagens da gravação” em que se funda o recurso, pelo que não pode aceitar-se a mesma. A 2ª interpretação, obnubila também tal trecho legal, pois que apenas releva o fim e início da gravação, quando esse elemento é o lógico antecedente do posterior cumprimento da indicação com exactidão das passagens da gravação. Com essa interpretação contenta-se meramente o intérprete com o pressuposto legal do cumprimento rigoroso da lei, acabando por não ser observado o cumprimento do verdadeiro requisito legal. E por outro lado, com tal interpretação, passa a requisito de cumprimento obrigatório um elemento – a transcrição dos excertos relevantes – que a lei expressamente vê como facultativo ! Não podemos, também, acompanhar tal entendimento. Quanto ao “plus” da 3ª interpretação, não vemos objecção de relevo. Por um lado, quanto à modernidade da exigência legal referida só podemos constatar que assim é, pois foi introduzida no nosso ordenamento jurídico em 2007 e de caso pensado pelo legislador, como acima vimos. Por outro lado, a exigência de formalismo nada tem de extraordinário. Na verdade, a este propósito, no seu acórdão de 14.3.2002 o Tribunal Constitucional decidiu o seguinte: "As formalidades processuais ou, se se quiser, os formalismos, os ritualismos, os estabelecimentos de prazos, os requisitos de apresentação das peças processuais e os efeitos cominatórios são, pois, algo de inerente ao próprio processo. Ponto é que a exigência desses formalismos se não antolhe como algo que, mercê da extrema dificuldade que apresenta, vá representar um excesso ou uma intolerável desproporção, que, ao fim e ao resto, apenas serve para acentuadamente dificultar o acesso aos tribunais, assim deixando, na prática, sem conteúdo útil a garantia postulada pelo nº 1 do art. 20° da Constituição" [Diário da República, II, de 29.5.2001]. Ou seja, o formalismo processual é normal e aceitável, porque inerente naturalmente ao próprio processo. Ponto é que não descambe em desrespeito do princípio da proporcionalidade, com a consequente dificuldade de acesso aos tribunais que a nossa constituição quer garantir. O que nos faz entrar no “quid” da 4ª interpretação. Concordando, obviamente, com a exigência de proporcionalidade, todavia na sua tridimensionalidade de onerosidade, dificuldade e gravidade das consequências, não divisamos ofensa de tal princípio na interpretação que fazemos. Indicar com exactidão as passagens da gravação não é oneroso, bastando ao Sr. Advogado que patrocina a parte e quer recorrer dispor de um aparelho/leitor de CD, com contador digital, que lhe permita essa indicação exacta, aparelhos esses que se vendem no mercado a preços perfeitamente acessíveis. Dificuldade não existe, bastando, ouvido o depoimento que se considera relevante, tomar nota do momento temporalmente em que ele ocorreu e fazer a sua indicação digital. Sendo estes dois elementos perfeitamente observáveis já não se detecta nenhuma anomalia na rejeição do recurso, a não ser que se quisesse erigir a “gravidade das consequências” como elemento de per si determinante, o que rejeitamos em absoluto, bastando pensar no fenómeno processual da preclusão (por ex., deixar passar um prazo peremptório para contestar, deixar passar um prazo para recorrer, etc), em que a defesa da parte pode ficar seriamente afectada, sem que se possa solidamente defender que foi violado, com implicações constitucionais, o princípio da proporcionalidade.  

Revertendo, de novo, ao nosso caso, o recorrente limitou-se a referir que os apontados depoimentos se encontram gravados no sistema digital, e transcreveu os mesmos – total ou parcialmente não sabemos -, em vez de indicar com exactidão as passagens da gravação em que tais pessoas depuseram, no sentido supostamente afirmado/defendido pelo apelante, a fim de permitir, como pretendia, a eventual resposta de provado e não provado aos apontados factos, depois de prévia audição por esta Relação e subsequente análise e ponderação de tais depoimentos.

Assim, face ao não cumprimento do referido ónus legal, a impugnação da indicada matéria de facto não pode proceder com base em tais depoimentos.

Vejamos agora a restante prova indicada pelo recorrente.

Mencionou toda a prova documental junta aos autos pelas partes, o que também não satisfaz a exigência legal, pois o recorrente que discorda do decidido tem de indicar os concretos meios probatórios, como reza a lei, que impõem decisão diversa e não, comodamente, esgrimir com todos os meios de prova produzidos no processo.

Referiu, ainda, o depoimento de todas as testemunhas inquiridas no âmbito da providência cautelar, apenso ao presente processo, acabando por nomear apenas o depoimento das testemunhas (…). Ora, neste particular, o identificado (…) nem sequer foi ouvido na providência cautelar e quanto ao (…) o apelante nem sequer indicou o início e o fim do registo do seu depoimento gravado no sistema digital, apesar de tal ser possível (vide a acta desse apenso a fls. 55).

De sorte que improcede a impugnação da matéria de facto deduzida pelo recorrente.

4. O R. nas suas conclusões de recurso (1. e 40.) entende que não deve ser condenado atenta a não prova da aquisição das máquinas, como defendeu na impugnação da matéria de facto. E nem sequer apresentou alegações de direito questionando a indagação, interpretação e aplicação das regras de direito levada a cabo na decisão recorrida.

Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Face à matéria de facto dada como assente, não nos oferecem dúvidas que entre a autora e o 1° réu foi celebrado um contrato de compra e venda. É um contrato translativo, na medida em que transfere a propriedade por mero efeito do contrato tal como decorre do artigo 408º Código Civil (de ora em diante, abreviadarnente designado por CC). Não necessita, por isso, de qualquer ato de disposição posterior para que o comprador adquira a propriedade do bem. Resulta do artigo 1317°, alínea a) CC, que o momento de aquisição da propriedade é a celebração do contrato, atendendo à sua remissão para o momento referido no artigo 408° CC. Assim, é um contrato com eficácia real.

(…)

Quanto aos efeitos da compra e venda estão previstos no artigo 879° alíneas a), b) e c) CC. Os efeitos decorrem da natureza mista da compra e venda, simultaneamente, real e obrigacional: transferência de propriedade, obrigação de entregar a coisa e obrigação de pagar o preço.

… Quer a doutrina, quer a jurisprudência são unânimes nesse mesmo entendimento. O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido de forma consensual que "a compra e venda tem no direito português natureza real quoad effectum, operando-se neste sentido a transmissão da propriedade, em regra, por mero efeito do contrato (artigos 408°, nº 1, 874º, 879°, alínea a), e 1317°, alínea a), todos do Código Civil), conquanto do mesmo tipo de negócio resultem também os efeitos obrigacionais da entrega da coisa e do pagamento do preço (artigo 879°, alíneas b) e c), respectivamente), não ficando, todavia, a verificação do efeito real dependente do cumprimento destas obrigações" - vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.10.2003, Processo n.º 02B3286, in www.dgsi.pt.

(…)

Nos presentes autos, … Por mero efeito desse contrato, a autora transferiu a propriedade dos produtos (máquinas) melhor descritos na fatura n." 13AFT0510 para o 1° réu, a obrigação de entregar estas coisas e que impendia sobre a autora foi por ela cumprida, enquanto que o 1° réu tinha a obrigação de pagar o preço pelas coisas entregues (máquinas), obrigação essa que não foi satisfeita.

(…)

… Com este comportamento, o 1° réu constituiu-se em mora nos termos do artigo 804°, n° 2 CC: "O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido. "

Nos termos do preceituado no artigo 805°, n.º 2, aI. a), do CC que expressamente dispõe que há mora do devedor independentemente de interpelação se a obrigação tiver prazo certo. Prescrevendo o art. 806° n.º 1 do Código Civil que "na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora".

Verifica-se assim que, não tendo o réu procedido ao pagamento da fatura dentro do prazo em que o deveria ter feito, ou seja, até 25.03.2013, constituiu-se o mesmo em mora desde a data de vencimento da mesma, razão pela qual deverá ser também condenado a pagar a quantia peticionada pela autora a título de juros moratórias e bem assim nos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento.

(…)

Isto posto, provada que está a celebração de compra e venda, em ação movida pelo vendedor ao comprador, fundada no contrato, visando a condenação do segundo no pagamento do preço, incumbe ao réu o ónus da prova do cumprimento desta obrigação legal (artigo 342°, nº, 2, do Código Civil). O 1º réu não provou que cumpriu a obrigação legal de pagar o preço pelas máquinas entregues.

É, assim, devida a quantia peticionada pela autora, ou seja, € 52.860,040, na medida em que como alegou e se deu por provado, forneceu maquinaria ao 1° réu e que este não procedeu ao seu pagamento.

Tratando-se de uma obrigação com prazo certo, como já se referiu, a autora tem direito a juros de mora desde a data de constituição em mora do réu, ou seja, desde 25.03.2013 - artigos 804º e 805°, n° 2, aI. a), ambos do Código Civil.

Nos termos do artigo 102° Código Comercial, a taxa de juros a taxa supletiva de juros moratórias relativamente a créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, é de 8,5% desde 01/07/2013 até 31/12/20103 (Aviso da DGT 11617/2013, DR, II, 27/08/2013); de 8,25% desde 01/01/2014 até 30/06/14 (Aviso DGT 1019/2014, DR, II, 03/01/2014); de 8,15% desde 01/07/2014 (Aviso DGT 8266/2014, DR, II, 01/07/2014), e de 7,05% desde 01/01/2015, aplicável aos juros comerciais”.

Como a matéria de facto se manteve inalterada e nenhuma censura há a fazer ao discurso jurídico da decisão recorrida, apenas há que mantê-la.   

5. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Não se deve confundir nulidades da sentença com eventuais vícios da decisão da matéria de facto (por dela não constar a respectiva fundamentação, ou suficiente motivação, ou haver motivação inteligível);

ii) Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda;

iii) A omissão desse ónus, imposto pelo nº 2, a), do referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, pois tal ónus não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados no sistema digital, nem com a transcrição, total ou parcial, de depoimentos das testemunhas, pois tal transcrição é uma mera faculdade;

iv) Aliás, o texto da lei e a sua interpretação histórico-actualista, repudiam interpretações facilitistas, que no fundo degeneram em: violação do princípio da igualdade das partes - ao não tratar diferentemente o cumprimento ostensivamente defeituoso da lei adjectiva, pois se há partes que podem cumprir esse ónus e o cumprem, porque razão se haveria de dar igual tratamento a quem não o faz ! -; do princípio do contraditório -  por impor à parte contrária um esforço excessivo e não previsto na tarefa de defesa, imputável ao transgressor -; e do princípio da colaboração com o tribunal - por razões análogas, mas reportadas ao julgador;

v) Sendo de rejeitar, também, interpretações complacentes que se contentam com a indicação do depoimento e identificação de quem o prestou, sem obrigatoriedade de transcrição; com a fixação electrónica/digital do início e fim dos depoimentos e a transcrição dos excertos relevantes; já que a não ser assim há excesso de formalismo que a dogmática processual rejeita; a não ser assim não se respeita o princípio da proporcionalidade.

vi) Na verdade, a 1ª interpretação faz tábua rasa do texto legal, relevando dois elementos que a lei não enumerou e “apagando” a passagem nuclear do texto legal “indicação com exactidão das passagens da gravação”; a 2ª interpretação, obnubila também tal trecho legal, pois que apenas releva o fim e início da gravação, acabando por não observar o cumprimento do verdadeiro requisito legal, e por outro lado, passa a requisito de cumprimento obrigatório um elemento – a transcrição dos excertos relevantes – que a lei expressamente vê como facultativo; a 3ª interpretação, não contém objecção de relevo pois a exigência de formalismo nada tem de extraordinário, como o tribunal constitucional já sinalizou; e na 4ª interpretação não divisamos ofensa da exigência de proporcionalidade, pois que, na sua tridimensionalidade de onerosidade, dificuldade e gravidade das consequências, o cumprimento rigoroso da lei, quanto ao indicado requisito de impugnação da matéria de facto, não é oneroso e é de fácil execução, não sendo anómalo, no seu incumprimento, a respectiva rejeição do recurso. 

  

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.  

*

Custas pelo recorrente. 

* Coimbra, 20.4.2016

Moreira do Carmo ( Relator )

 Fonte Ramos

 Maria João Areias