Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
349/13.2GBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INJUNÇÃO
INIBIÇÃO DE CONDUÇÃO DE VEÍCULOS COM MOTOR
DESCONTO NA PENA ACESSÓRIA FIXADA EM SENTENÇA CONDENATÓRIA
Data do Acordão: 10/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL CRIMINAL DE POMBAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 281.º DO CPP; ARTIGO 69.º DO CP
Sumário: A inibição de condução de veículos a motor fixada, a título de injunção, no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ser descontada na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados que venha a ser imposta, a final, em sentença condenatória, no âmbito do mesmo processo.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

A... foi condenado, nos autos, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (montante global de € 360,00) e, ainda, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 meses.

Ainda na fase de inquérito, o Ministério Público requereu a suspensão provisória do processo, pelo período de 4 meses e 15 dias, mediante a imposição ao arguido das seguintes injunções:

- obrigação de entregar a quantia de 250€ a favor da Associação Alzheimer Portugal – Delegação Centro;

- abstenção de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses, mediante entrega da carta de condução nos Serviços do Ministério Público de Pombal, no prazo de 10 dias.

Suspensão provisória do processo que obteve a concordância do arguido e do Mmº JIC (despacho de 16-7-2013).

Em 14-8-2013, o arguido entregou o seu título de condução nos Serviços do Ministério Público de Pombal.

Porém, dado que o arguido não cumpriu a primeira injunção supra indicada, foi determinado o prosseguimento do processo com a dedução da acusação (e requerida a aplicação do processo sumaríssimo, nos termos do artigo 392º e ss do CPP).

Ora, dado que o arguido cumpriu a injunção de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses, face à condenação (decisão proferida nos termos do art. 397º do CPP) na pena acessória (de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 meses), requereu o arguido que a mesma seja declarada extinta, pelo seu cumprimento.

Foi então proferido (em 23-2-2015) o despacho recorrido que, indeferiu a pretensão do arguido, por ter considerado que « (…) no actual quadro legislativo, não é possível proceder ao desconto, do período de inibição de conduzir imposto no âmbito da suspensão provisória do processo, na pena acessória fixada por força do disposto no artigo 69º do CP».


*

Por discordar do, assim, decidido, o arguido interpôs o presente recurso e, da respectiva motivação extraiu as seguintes conclusões:

I- O arguido recorre do despacho que declarou inexistir qualquer nulidade, ilegalidade ou irregularidade da decisão condenatória, indeferindo todo o propugnado pelo arguido no requerimento para arguição de nulidades.

II- O recurso é limitado à sanção acessória que foi aplicada ao arguido.

III- O processo foi objecto de suspensão provisória, pelo período de 4 meses e 14 dias, mediante o cumprimento de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses e na entrega da quantia de 250,00€ a favor da Associação Alzheimer Portugal.

IV- O arguido entregou a sua carta de condução a 14 de agosto de 2013, tendo a mesma lhe sido devolvida a 24 de fevereiro de 2014.

V- Cumprindo assim a sanção de inibição de conduzir veículos a motor por período superior aos 4 meses determinados na suspensão provisória do processo.

VI- Porque o arguido não cumpriu a obrigação de entrega de 250€ a IPSS, o processo seguiu seus termos e o arguido veio a ser julgado em processo especial sumaríssimo.

VII- No despacho decisório o arguido foi condenado pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 6€, num total de 360€ e ainda na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 4 meses.

VIII- O Tribunal ad quo na sentença proferida não se pronunciou quanto ao cumprimento da injunção de proibição de conduzir veículos a motor e não procedeu ao desconto da pena já cumprida, como entendemos ser da sua competência e de conhecimento oficioso, pelo que a sentença é nula, nos termos do art. 379.º/1 alínea c) do CPP.

IX- A decisão proferida implica a repetição da prestação já cumprida, ou seja, condena o arguido, pelo mesmo facto e no mesmo processo, a cumprir de novo a pena de inibição de conduzir, pelo que uma tal decisão viola o art. 282º/4 CPP e também o princípio da proporcionalidade que preside à aplicação das penas, estando assim ferida de nulidade.

X- O arguido suscitou as nulidades do despacho decisório, tendo o Tribunal ad quo entendido não existir qualquer nulidade, irregularidade ou ilegalidade.

XI- O arguido não pode concordar com tal entendimento.

XII- O arguido cumpriu integralmente a injunção de inibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 4 meses.

XIII- A forma de cumprimento dessa injunção é exactamente igual à da sanção acessória de inibição de conduzir, em que foi condenado.

XIV- Acresce ainda que, condenado o arguido em pena acessória de proibição de conduzir veículo a motor, a função preventiva adjuvante da pena principal já se mostra cumprida.

XV- O arguido não tem que se opor à proposta apresentada pelo Ministério Público, para que no processo especial sumaríssimo seja efectuado o desconto da pena já cumprida.

XVI- A aplicação do instituto do desconto é de conhecimento oficioso. Por razões inerentes à boa decisão da causa e por imperativos de justiça material, deveria o Julgador ad quo, em vez de fazer constar da sentença que o arguido devia entregar o título de condução, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, sob pena de ser ordenada a apreensão dos documentos e de poder incorrer na prática de um crime de desobediência, ter verificado o cumprimento da injunção de proibição de conduzir, proceder ao desconto da pena e/ou declarar a extinção da pena acessória de inibição de conduzir, por já ter sido cumprida.

XVII- Não se descontando o período de proibição de conduzir já cumprido, o arguido cumprirá efectivamente, tal pena pelo período de 8 meses, o que é incompreensivelmente injusto, contrário ao disposto no art. 282.° n.º 4 CPP, que proíbe a repetição das prestações e mesmo que não configure a violação do princípio ne bis in idem, sempre violará o principio da proporcionalidade que preside à aplicação das penas, bem como o direito a um processo equitativo, consagrado no art. 20.°/4 da CRP.

XVIII- Nos termos da lei em vigor é aplicável, por analogia, o instituto do desconto, nos termos do art. 1.° n.º 3 do CP, do art. 80.° do CPP e ainda do art. 20.°/4 da CRP.

XIX- A jurisprudência tem vindo a decidir neste sentido, entre outros, vide Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02/11/2015, proc. n.º 204/13.6GAAC8.C1, relator Maria José Nogueira, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

XX- A sentença proferida estando ferida das nulidades invocadas, não poderá produzir seus efeitos.

XXI- O douto despacho de que se recorre ao não reconhecer as nulidades da sentença condenatória, torna a rejeitar a realização da justiça, reafirmando a violação das normas não respeitadas na sentença condenatória, devendo por isso ser revogado e substituído por outro que reconheça as nulidades invocadas, com as legais consequências.

NORMAS VIOLADAS:

O Tribunal ad quo fez incorrecta aplicação e interpretação dos artigos 282.° n.º 4, 379.°/1 al. c), do CPP, art. 1° n.º 3, 40.°, 80.° do CP e dos art. 29.o n.º 5 e 20 n.º 4 da CRP.

PEDIDO:

Pelo exposto, deverá o presente recurso merecer provimento e por via disso ser revogado o despacho de que se recorre, por ser contrário à lei e aos princípios de direito e, consequentemente, substituído por outro que reconheça as nulidades arguidas pelo recorrente, bem como ordene que sejam descontados, na pena acessória de inibição de conduzir aplicada ao arguido, os 4 meses que já cumpriu no âmbito da suspensão provisória do processo, declarando a extinção da pena acessória aplicada ao arguido pelo seu cumprimento, com as legais consequências.


*

Respondeu a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendendo a improcedência do recurso, por entender que:

“ (…) As penas acessórias cumprem uma função preventiva adjuvante da pena principal. Por outro lado a injunção a que o arguido voluntariamente se obrigou, não lhe foi imposta, nem assumiu o carácter de pena ou sequer de sanção acessória. De facto, o arguido quando entregou a carta de condução fê-lo voluntariamente, no âmbito do cumprimento de uma injunção com que concordou (a de abster-se de conduzir por 4 meses) e que visava a suspensão provisória do processo, nos termos do artigo 281º do CPP.

(…) não obstante as alterações operadas pela Lei 20/2013 que veio impor a aplicação da injunção de proibição de conduzir veículos com motor quando está em causa crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, como é o caso dos autos, tal não significa que se tenha omitido a voluntariedade do arguido na aplicação da injunção, requisito esse exigível para a determinação da suspensão provisória do processo ”.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, quanto à pretendida extinção da pena acessória, por já se ter verificado o cumprimento da mesma, face ao período de inibição de conduzir determinado e cumprido por ocasião da suspensão provisória do processo.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, o arguido não respondeu.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido:

(…)

Regularmente notificado da sentença proferida vem o arguido alegar que aquela não se pronunciou sobre a dedução, na pena acessória de inibição de conduzir em que foi condenado, do tempo que em que se absteve de conduzir em cumprimento de injunção fixada durante a suspensão provisória do processo. Entendimento diverso atenta contra o princípio "ne bis in idem" e viola o disposto no artigo 282°, n.º 4 do C.P.P quando estatui que "O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:

a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou

b) Se durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.".

Assim sendo, entende que a decisão condenatória proferida deverá ser declarada nula, por contrária à lei na parte em que obriga o arguido a cumprir, mais do que uma vez, a proibição de conduzir e, em consequência, ser revogada e substituída por outra que declare extinta a sanção acessória de inibição de conduzir, por ter sido já cumprida pelo arguido, mantendo-se tão só, no demais ainda por cumprir.

O Ministério Público entende inexistir qualquer nulidade, tanto mais que nem se encontra prevista, nenhuma irregularidade ou ilegalidade na condenação em causa, pugnando pela manutenção da decisão, na medida em que propugna pelo entendimento igualmente jurisprudencialmente defendido que neste caso não há lugar a desconto, não se mostrando a pena acessória extinta, pelo cumprimento.

Apreciando.

O requerimento em apreço veio a ser apresentado na sequência da sentença condenatória proferida em sede de processo especial sumaríssimo, entendendo o arguido que a sentença se devia ter pronunciado sobre a questão levantada.

Antes de mais se dirá que a sentença condenatória não se pronunciou sobre tal questão, nem sobre ela se tinha que pronunciar, já que se trata de matéria do âmbito da execução da pena acessória.

Assim sendo, e porque o caso não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no artigo 380° do C.P.P., não se trata de nenhum caso de correcção da sentença.

Por outro lado, a nosso ver, face à tramitação do processo especial sumaríssimo, ao arguido sempre tinha ao seu dispor a faculdade de se opor à sanção proposta, com remessa dos autos para os meios comuns - artigo 396°, n.º 4 e 398°, n.º 1 do C.P.P., tendo em vista discutir da situação em apreço.

Proferida decisão nos termos do artigo 397° do C.P.P. a mesma vale como sentença condenatória e não admite recurso ordinário.

Assim sendo, sem prejuízo do já supra expandido, cumpre ainda referir, relativamente aos argumentos esgrimidos pelo arguido que entendemos que o entendimento que extraímos da lei processual penal e penal vigente não permite alcandorar as suas conclusões.

Com efeito, não olvidando a corrente jurisprudencial referida pelo arguido em abono do por si defendido, a verdade é que assumimos posição diametralmente oposta.

Destarte, a pena acessória de proibição de conduzir assenta no pressuposto formal de uma condenação do agente numa pena principal (nos termos elencados nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 69°, do C.P.) e no pressuposto material de (em face das circunstâncias do facto e da personalidade do agente), o exercício da condução se revelar especialmente censurável, censurabilidade esta que, dentro do limite da culpa, responde às necessidades de prevenção geral de intimidação e de prevenção especial para emenda cívica do condutor imprudente ou leviano. De facto, é o conteúdo do facto de natureza ilícita que justifica a censura adicional dirigida ao arguido em função de razões de prevenção geral e especial e que constituem a razão de ser de aplicação da pena acessória.

Neste sentido defendia Figueiredo Dias (Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 164 e 165) "a necessidade e a urgência politico-criminais de que o sistema sancionatório português passe a dispor - em termos de direito penal geral e não somente de direito penal da circulação rodoviária - de uma verdadeira pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. Uma tal pena deveria ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização de veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante; e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável". E, quanto às finalidades desta pena acessória, dizia o mesmo autor que, "se (...) o pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa. Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano".

As penas acessórias cumprem, assim, uma função preventiva adjuvante da pena principal.

Por outro lado a injunção a que o arguido voluntariamente se obrigou, não lhe foi imposta, nem assumiu o carácter de pena ou sequer de sanção acessória. De facto, o arguido quando entregou a carta de condução fê-lo voluntariamente, no âmbito do cumprimento de uma injunção com que concordou (a de abster-se de conduzir por 4 meses) e que visava a suspensão provisória do processo, nos termos do artigo 281º do C.P.P..

A injunção a que o arguido/recorrente se obrigou não lhe foi imposta, nem assumiu o carácter de pena ou sequer de sanção acessória.

A este propósito diz-se no "Código de Processo Penal Comentado" pelos Senhores Juízes Conselheiros António Henriques Gaspar, José António Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires da Graça, Almedina, 2014, "A suspensão provisória constitui uma forma alternativa de processamento do inquérito, na sua fase final, sendo, por isso, um caso de "diversão". Constatada a existência de indícios suficientes do crime e da identidade do seu autor, o inquérito não desemboca numa acusação com vista ao julgamento do arguido, antes fica suspenso, pelo prazo previsto no art. 282º, ficando o arguido sujeito a "injunções e regras de conduta" decretadas pelo Ministério Público.

Estas medidas não constituem obviamente sanções penais, caso contrário seria absolutamente inconstitucional a sua imposição pelo Ministério Público (art. 202º, n.º 1, da Constituição). Trata-se antes de medidas que impõem deveres (positivos ou negativos) ao arguido, como condição da suspensão, sendo a sua aceitação por parte deste necessária para a suspensão."

Ora de acordo com o n.º 4, alínea a) do artigo 282° do C.P.P., se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas.

E por prestações, nos termos deste normativo, devem entender-se não apenas as dádivas ou doações pecuniárias mas também outras prestações, como as de abster-se de certas actividades (como a de conduzir) ou mesmo as de efectuar serviço de interesse público (será que se o arguido tivesse liquidado parte da quantia de 250,00 € a entregar a instituto de solidariedade social e/ou tivesse prestado serviço de interesse público, também pretenderia agora que seja a quantia liquidada fosse descontada na pena de multa e/o tempo dispendido equivalesse a trabalho a favor da comunidade?).

Por outro lado, não procede, com todo o devido respeito, o argumento utilizado pelos defensores de que se deve proceder ao desconto, do período de inibição de conduzir imposto no âmbito da suspensão provisória do processo, na pena acessória fixada por força do disposto no artigo 69.° do CP, por se mostrar obrigatória a imposição, como injunção, da proibição de condução de veículos automóveis, sempre que o procedimento se refira a crimes para os quais se encontra legalmente prevista essa medida como pena acessória, nos termos do disposto no n.° 3 do artigo 281.° do CPP.

A alteração introduzida no n.º 3, do artigo 281.°, do CPP, pela Lei n.º 20/2013, de 21/2, não veio modificar a voluntariedade na aceitação dos deveres impostos, pressuposto sempre necessário para que haja lugar à suspensão provisória do processo. Ou seja, pese embora o legislador tenha imposto a aplicação da injunção de proibição de conduzir veículos com motor, quando está em causa crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, tal não significa que não seja necessária a aceitação, de forma voluntária, de uma tal injunção, sob pena de não ser viável a suspensão provisória do processo.

Também não procede, o argumento aduzido pelos defensores da tese do desconto de que o período da inibição fixado na injunção deve ser descontado na pena acessória porque no caso da prisão preventiva também esta é sempre descontada na pena de prisão em que vier a ser condenado o arguido.

O desconto da prisão preventiva é efectuado porque está expressamente previsto na lei penal - art. 80.° do CP.

Se fosse intenção do legislador que se procedesse, no caso de prosseguimento do processo para julgamento, ao desconto, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, do período de inibição de conduzir fixado na injunção, bastar-lhe-ia ter dito isso mesmo. O que não fez e a verdade é que na fixação do sentido e do alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados - artigo 9º, n.º 3 do Código Civil.

Quanto a uma eventual violação do princípio "ne bis in idem".

Este princípio está consagrado no n.º 5 do art. 29° da Constituição da República Portuguesa e segundo o mesmo "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime", ou seja, não pode haver novo julgamento da mesma questão (é o chamado "efeito negativo do caso julgado").

Visa este preceito constitucional, "impedir novo julgamento sobre o mesmo crime" (vide Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2a Ed., 2000, Vol. III, p. 38/39).

Ora, no caso, o despacho de suspensão provisória do processo não envolve qualquer julgamento sobre o mérito da questão.

Trata-se de um despacho proferido numa fase inicial do inquérito e necessita da concordância, além do mais, do arguido. Acresce que (e sobretudo) é, como o nome indica, uma decisão provisória, que não põe fim ao processo - o fim do processo só ocorrerá, eventualmente, no final do decurso do prazo de suspensão, caso as injunções e regras de conduta se mostrem cumpridas; caso isso não aconteça, o processo prossegue (cfr. os n.ºs 3 e 4 do artigo 282° do C.P.P.).

Desta forma, não pode entender-se que a condenação, em julgamento, em pena acessória de inibição de conduzir, depois de ter sido cumprida injunção de abstenção de conduzir, em suspensão provisória do processo, configura uma violação do princípio "ne bis in idem" (neste sentido Acórdão da Relação de Lisboa de 06.03.2012 e 17.12.2014, disponível em www.dgsi.pt.).

Pelo exposto, somos de entendimento que, no actual quadro legislativo, não é possível proceder ao desconto, do período de inibição de conduzir imposto no âmbito da suspensão provisória do processo, na pena acessória fixada por força do disposto no artigo 69.° do C.P., assim se indeferindo o propugnado pelo arguido, inexistindo qualquer nulidade, irregularidade ou ilegalidade que cumpra suprir. (…) .


***

APRECIANDO

Atendendo ao texto da motivação e respectivas conclusões, a questão suscitada e a decidir consiste em saber se, o tempo em que o arguido se absteve de conduzir em cumprimento de injunção fixada no âmbito da suspensão provisória do processo (e tendo entregue a respectiva carta de condução) deve ser descontado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.


*

A suspensão provisória do processo é um mecanismo utilizado para situações de pequena e média criminalidade ([1]), desencadeado pelo MP, que exige o consenso entre o MP, o juiz de instrução, o arguido e o assistente e a verificação dos demais pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 281º do CPP.

Por esta via, antes de deduzir acusação, o MP (obtida a concordância do juiz) poderá suspender o processo mediante a imposição de injunções e regras de conduta ao arguido; se as mesmas forem cumpridas, o processo é arquivado, em caso contrário o processo prossegue - art. 282º, n.º 3 do CPP.

No caso vertente, por ter o arguido conduzido veículo em estado de embriaguez, obtidas as devidas concordâncias, o Ministério Público determinou a suspensão provisória do processo, mediante a aplicação das seguintes injunções:

«- obrigação de entregar a quantia de 250€ a favor da Associação Alzheimer Portugal – Delegação Centro;

- abstenção de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses, mediante entrega da carta de condução nos Serviços do Ministério Público de Pombal, no prazo de 10 dias.»

Dado que a primeira injunção imposta não foi cumprida, o processo prosseguiu os seus termos, tendo o arguido sido condenado pela prática do crime p. e p. pelos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, al a), ambos do Código Penal, em pena de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 meses.

Ou seja, pela prática dos (mesmos) factos que deram origem aos presentes autos, e por não ter cumprido uma outra injunção, que não a abstenção de conduzir (injunção esta cumprida na íntegra), o arguido foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir.

Considerou a Mmª Juiz a quo que o período de inibição de conduzir imposto e cumprido no âmbito da suspensão provisória do processo não pode ser descontado na pena acessória (isto é, não pode ser considerado para efeitos de cumprimento da pena acessória).

Salvo o devido respeito, não concordamos com tal entendimento. Aliás, na esteira da recente jurisprudência deste tribunal: Ac. de 14-1-2015, no proc. n.º 648/12.0GASEI-B.C1 e Ac. de 11-2-2015, no proc. n.º 204/13.6GAACB.C1.

Como bem sabemos, a condução em estado de embriaguez, porque viola gravemente as regras de trânsito rodoviário, é sempre, e só por si, especialmente censurável.

Ora, refere o Prof. Figueiredo Dias ([2]) que o pressuposto material de aplicação da pena acessória referida no artigo 69º do CP prende-se com o exercício da condução quando se tenha revelado, no caso concreto, especialmente censurável, (…) devendo esperar-se que esta pena acessória contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano.

In casu, como já mencionado, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor imposta ao arguido na decisão condenatória, proferida nos autos, teve por objecto o mesmo facto que constituiu o objecto da injunção que lhe foi imposta na anteriormente determinada suspensão provisória do processo. Os efeitos substantivos de uma e de outra, projectados na vida do arguido, seriam precisamente os mesmos, pois o respectivo cumprimento é feito da mesma forma – cfr. o citado Ac. desta RC de 14-1-2015.

Na verdade, a pena acessória e a injunção têm diferente natureza. A injunção não constitui uma sanção penal (caso contrário seria absolutamente inconstitucional a sua imposição pelo Ministério Público – art. 202º, n.º 1 da CRP).

As penas, acessórias e principais, estão sujeitas a princípios de direito penal, constitucionalmente consagrados (art. 29º da CRP), da legalidade e da tipicidade, segundo os quais, só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática – artigo 1º, n.º 1 do CP.

Significa o princípio da legalidade que “…só a lei pode definir o que são crimes e quais os pressupostos da aplicação de medidas de segurança criminais, bem como estabelecer as respectivas penas e medidas”; por sua vez o princípio da tipicidade significa que “…a própria lei deve especificar clara e suficientemente os factos em que se desdobra o tipo legal de crime ou que constituem os pressupostos da aplicação da medida de segurança criminal” – cfr. Código Penal Português, de Maia Gonçalves, 10ª ed., pág. 76.

A pena acessória de proibição de conduzir traduz-se numa verdadeira pena, dotada de moldura penal própria, estabelecida entre limites mínimo e máximo, dentro dos quais tem o julgador que determinar a que se adequa ao caso em concreto, em obediência ao disposto no citado artigo 71º do CP, estando tal pena dependente da pena principal.

No que respeita à injunção, “a própria definição etimológica da palavra injunções – que, aliás, a lei junta à expressão regras de conduta – demonstra que se está perante a imposição ao arguido de um facere ou non facere, ou seja, de uma conduta activa ou passiva que condiciona a normal actividade do mesmo” – cfr. Ac. RLx, de 11-6-1997, in CJ. 1997, Tomo III, pág. 156.

Como sublinha Maia Costa (in Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 982), na suspensão provisória do processo, ainda que sujeita a pressupostos legalmente fixados, a legalidade é mais flexível, por razões, materialmente justificadas, de política criminal, por incidir sobre um segmento de criminalidade em que a lógica do conflito, que é inerente ao processo penal, deve ceder algum espaço ao consenso, para a realização de fins de política criminal, como a não estigmatização do arguido, que se insere nos fins das penas, na vertente da ressocialização.

A registar ainda que a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados tem a duração de 3 meses a 3 anos (art. 69º, n.º 1 do CP), enquanto a suspensão provisória do processo apenas pode ir até 2 anos (n.º 1 do art. 282º do CPP; fora dos casos do n.º 5 do art. 282º).

Foi o artigo 281º do CPP alterado pela Lei n.º 20/2013, de 21 Fev. (que entrou em vigor em 23-3-2013, ou seja, em data anterior aos factos que deram origem dos presentes autos).

Como se observa da Proposta de Lei n.º 77/XII, que esteve na origem desta alteração legislativa, era propósito do legislador com a introdução de uma nova al. e) ao n.º 1 do artigo 281º, que o instituto da suspensão provisória do processo não se aplicasse no caso de crime doloso para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, como se observa do ponto 8 da respectiva Exposição de Motivos ([3]).

Contudo, não vingou a alteração da aludida alínea e), e veio a ser alterado o n.º 3 do mesmo artigo 281º, que passou a ter a seguinte redacção:

«3- Sem prejuízo do disposto no número anterior, tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor.»

Deste modo, com a alteração deste n.º 3, a opção do legislador vai no sentido de que, quando o crime praticado tiver como pena acessória a proibição de conduzir veículos com motor, tal proibição de conduzir terá de ser aplicada como condição imposta ao arguido para beneficiar da suspensão provisória do processo.

Daqui parece resultar uma certa “equivalência” entre a injunção e a pena acessória.

Volvendo à situação dos autos, concordamos com o decidido no Ac. RP de 22-4-2015 – proc. n.º 177/13.5PFPRT.P1: A injunção e a pena acessória em causa decorrem da prática do mesmo crime. Tratando-se de uma proibição de condução de veículos motorizados, afectam de igual modo os direitos de circulação rodoviária do arguido. Apesar da sua diferente natureza conceptual, têm funções de prevenção especial e geral equivalentes. A ausência do desconto em causa (do período de tempo que o arguido se absteve de conduzir, tendo entregue a sua licença de condução, injunção que lhe foi imposta, ainda que o arguido tivesse aceitado tal imposição para poder beneficiar da suspensão provisória do processo) levaria a sancionar duplamente a mesma conduta (mesmo que não se considere, rigorosamente, que estamos perante uma violação do princípio ne bis in idem).

Acresce que, contrariamente ao entendido no despacho recorrido, afigura-se-nos que o disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 282° do C.P.P., de que as prestações entretanto feitas pelo arguido não podem ser repetidas, aliás, como acontece nos termos do n.º 2 do artigo 56º do Código Penal, não tem aplicação à proibição de conduzir. Estarão em causa aquelas quantias cujo pagamento lhe tenha sido imposto (enquanto injunção no âmbito da suspensão provisória do processo ou como condição de que dependia a suspensão da pena) e que o arguido não poderá reaver.

Por conseguinte, entendemos que deve proceder-se ao desconto, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, da injunção equivalente cumprida no âmbito da suspensão provisória do processo.

E, dado que a aludida injunção imposta e cumprida tem a mesma duração da pena acessória em que o arguido foi condenado nestes autos, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 meses, terá de ser considerada extinta, pelo seu cumprimento.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, declarando-se extinta, pelo seu cumprimento, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, em que o arguido A... foi condenado na sentença proferida nos autos.

Sem custas (artigo 513º, n.º 1 do CPP, na redacção dada pelo DL n.º 34/2008, de 26.02).


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Coimbra, 7 de Outubro de 2015

(Elisa Sales - relatora)

(Paulo Valério - Frederico Cebola)

 


[1] - cfr. ponto  n.º 6 do preâmbulo do CPP.
[2] - in Consequências Jurídicas do Crime, pág. 165.

[3] - 8. A condução de veículos em estado de embriaguez constitui um dos factores com maior peso na sinistralidade rodoviária.

Esta constatação, a par da substituição do regime de notificação para comparecimento em processo sumário pela manutenção da detenção em flagrante delito até à apresentação do arguido em juízo, justificam que se introduzam também alterações no regime da suspensão provisória do processo.

A condução sob o feito do álcool é sancionada não apenas com pena de prisão ou multa, mas também com a pena acessória de inibição de condução, uma vez que o exercício da condução neste contexto se revela especialmente censurável.

A pena acessória de inibição de condução encontra fundamento material na grave censura que merece o exercício da condução em certas condições, cumprindo um importante papel relativamente às necessidades, quer de prevenção especial, quer de prevenção geral de intimidação, o que contribui, em medida significativa, para a consciência cívica dos condutores.

A possibilidade legal de suspensão provisória do processo relativamente a este tipo de ilícitos tem esvaziado de conteúdo útil a função da pena acessória de inibição de conduzir e determina disfuncionalidades em face do regime legal aplicável aos casos em que a condução sob o efeito do álcool é sancionada como contraordenação.

Importava, assim, alterar o regime vigente, determinando que não pode ter lugar a suspensão provisória do processo relativamente a crimes dolosos para o qual esteja legalmente prevista a pena acessória de inibição de conduzir veículos com motor.