Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
870/17.3PBVIS-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA POR CONEXÃO
APENSAÇÃO DE PROCESSOS PARA JULGAMENTO CONJUNTO
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ART. 25.º DO CPP
Sumário:
A conexão (subjectiva) prevista no artigo 25.º do CPP verifica-se apenas quando, em princípio, existe uma pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente, para cujo conhecimento sejam competentes tribunais com sede na mesma comarca
Decisão Texto Integral:
I. Relatório:
O Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Viseu (J2) suscitou, no âmbito do processo comum colectivo n.º 870/17.3PBVIS, a resolução do conflito negativo de competência (por conexão) existente entre o próprio e o Sr. Juiz do Juízo Local Criminal de Viseu (J2), estando em causa determinar se cabe (ou não) ao primeiro dos dois Juízos referidos a realização do julgamento (conjunto) relativo àquele processo e aos autos de processo comum singular n.º 17/17.6PEVIS - ao qual foi, em momento processual adequado, apensado o processo abreviado n.º 2/17.8PTVIS.
Cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do CPP, não houve respostas.

A Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, em parecer que emitiu, sustentou a inexistência de conexão determinante do julgamento conjunto nos indicados processos.
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II. Fundamentação:
1. Elementos relevantes:
A. No domínio do processo n.º 17/17.6PEVIS, o Ministério Público acusou A… pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto, p. e p. no artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal;
B. No âmbito do processo abreviado n.º 2/17.8PTVIS, mediante acusação pública, foi imputada ao mesmo arguido, A…, o cometimento de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. no artigo 292.º, n.º 1, do CP;
C. Posteriormente foram apensados ao processo 17/17.6PEVIS os autos indicados na alínea antecedente.
D. Por sua vez, encontra-se na fase de julgamento o processo n.º 870/17.3PBVIS, em que são arguidos A… e B…;
E) Em despacho judicial de 10-04-2018, proferido no processo 17/17.6PEVIS, foi determinada, ao abrigo do disposto nos arts. 24.º, n.ºs 2, 25.º, 28.º, alínea a), e 29.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, a apensação daquele processo ao de n.º 870/17.3PBVIS;
F) Com data de 18-04-2018, o Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Viseu despachou nos seguintes termos:
«Tomei conhecimento; oportunamente, sendo caso disso, se designará data para inquirição das testemunhas arroladas nestes autos» [ou seja, nos autos do processo 17/17.6PEVIS]
G) Sob promoção do MP, surgiu no processo 870/17.3PBVIS o despacho, datado de 24-04-2018, abaixo parcialmente transcrito:
«(…).
No caso, não se verificando os pressupostos da apensação prevista no art. 24.º, n.º 1, do C. Proc. Penal, estribou-se o despacho que a determinou na previsão do art. 25.º do Código de Processo Penal.
Contudo, tal como sustentado pelo Ministério Público, aderindo à argumentação da jurisprudência dominante que também nós aqui seguimos (...), a conexão objectiva do cit. art. 25.º, no caso de haver mais de um arguido, só tem aplicação se os arguidos forem os mesmos em todos os processos, o que aqui não sucede.
Com efeito, nos processos n.ºs 17/17.6PEVIS e 2/17.8PTVIS o arguido acusado é tão só o A…, ao passo que nos presentes autos os arguidos que se encontram acusados são este A… e B….
Por conseguinte, a apensação daqueles dois processos carece de fundamento legal, pelo que se determina a desapensação dos mesmos e o subsequente reenvio ao Juízo Local Criminal de Viseu, J2, por ser este tribunal colectivo incompetente para o seu julgamento, o que desde já se declara.
(…)»;
H) Desapensado do processo 870/17.3PBVIS o processo 17/17.6PEVIS e o apenso relativo ao processo 2/17.8PTVIS, e remetidos estes ao Juízo Local Criminal de Viseu, foi aqui lavrado, no dia 30-05-2018, no seio do processo 17/17, despacho, do qual se recolhem, com interesse à resolução do conflito, estas passagens (transcrição):
«Se um arguido tem contra si pendentes, na fase de julgamento, dois processos em tribunais diferentes da mesma comarca, há conexão de processos, nos termos do art. 25.º do CPP, mesmo que num dos processos haja outros arguidos – neste sentido, veja-se, entre outros, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de 9/12/2004, publicado in www.dgsi.pt.
(…).
Nesta decorrência, entendemos, conforme o promovido pelo próprio MP em 8/3/2018, a fls. 97, e o determinado no despacho que proferimos nos presentes autos em 10/4/2018, já transitado em julgado, que se encontravam preenchidos os pressupostos legais dos artigos 24.º, n.º 2, 25.º, 28.º a), 29.º, 1 e 2, do Código de Processo Penal, que determinaram a apensação dos presentes autos ao processo comum colectivo n.º 870/17.PBVIS do Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz 2, sendo este o competente para conhecer de ambos os processos.
Tendo em conta tal despacho […], constante de fls. 106, e a apensação que foi posteriormente efectuada [cfr. fls. 116 a 118], de que o M.mo Juiz titular do processo comum colectivo n.º 870/17.3PBVIS teve conhecimento em 18/4/2018, data em que os presentes autos lhe foram conclusos, e onde referiu ter tomado conhecimento e que, oportunamente, sendo caso disso, designaria data para a inquirição das testemunhas arroladas nestes autos [cfr. fls. 119] – o que pressupõe uma aceitação de competência de forma tácita – entendemos […] que não existe fundamento legal para determinar posteriormente a remessa destes autos novamente ao Juízo Local Criminal de Viseu – J2, sem antes ter suscitado o conflito negativo de competência […].
O facto de entretanto o M.mo Juiz titular do referido processo comum colectivo n.º 870/17.PBVIS […] ter ordenado a desapensação, o que equivale para todos os efeitos à declaração de cessação da conexão e subsequente ordem de separação de processos a que alude o n.º 1 do art. 30.º do CPP, não faz cessar, a nosso ver, e salvo melhor opinião, a competência do Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz 2 para realizar o julgamento do […] arguido relativamente aos factos que lhe estão imputados nos presentes autos.
Com efeito, [como dispõe] o artigo 31.º, alínea b), do CPP, a competência determinada por conexão, nos termos dos artigos anteriores, mantém-se para o conhecimento dos processos separados [ao abrigo] do n.º 1 do artigo 30.º.
Trata-se, como logo a epígrafe daquele preceito legal indica, de um caso de prorrogação de competência.
A separação dos processos não faz, por conseguinte, cessar a competência do tribunal competente em razão da conexão o que, na lição do Prof. Germano Marques da Silva, “afasta o risco de discricionariedade de escolha do tribunal e a eventual violação do princípio do juiz natural” […] – neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31/1/2011, publicado in www.dgsi.pt […].
Em face do exposto, determino que se remeta novamente os autos ao Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz 2, desta Comarca de Viseu, a fim de ali ser oportunamente suscitado o conflito negativo de competência […].
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II. Cumpre decidir:
Preliminarmente, importa perspectivar se, como refere o Juiz do Juízo Local Criminal de Viseu, existe assunção da competência (por conexão) para o julgamento (conjunto) nos processos já acima identificados (870/17.PBVIS e 17/17.6PEVIS, ao qual está definitivamente apensado o de n.º 2/17.8PTVIS) pelo Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Viseu – J2.
A resposta a esta questão, pronta e directa, só pode negativa.
A razão afigura-se-me simples. Como revelam os autos [cfr. antecedente alínea F], e está expressamente admitido pelo Sr. Juiz conflituante do Juízo Local Criminal de Viseu [cfr. despacho transcrito na alínea H)], o Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Viseu – J2, num primeiro contacto com a apensação processual determinada, apenas deixou consignado, no despacho então proferido, o seu conhecimento dessa realidade, adiantando, tão só, a possibilidade de designação de data para a inquirição das testemunhas arroladas no âmbito dos processos 17/17.6PEVIS e 2/17.8PTVIS, quadro referencial que, estando longe de conduzir, só por si, a uma aceitação, mesmo tácita, da competência, tem o seu sentido, transitório e inconclusivo, definido por outro despacho - o referido na alínea G) -, exarado nos autos quando haviam decorrido apenas seis dias sobre a data do anterior, existindo de permeio a posição expressa do Ministério Público em relação à dita problemática.
Nesse despacho está impressivamente vincado o posicionamento do Juiz subscritor quanto à sua incompetência para o julgamento no universo processual supra descrito.
E não estando determinada a conexão de processos, é inapropriada a invocação do normativo do artigo 30.º, onde estão elencadas as situações legalmente justificadoras da separação de processos, e, consequentemente, a aplicabilidade do artigo 31.º, alínea a), do mesmo diploma, onde está pressuposta a dita separação.
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A dissensão fonte do conflito evidenciado nestes autos radica na questão de saber qual o campo de aplicação do artigo 25.º do Código de Processo Penal, mais precisamente, se a aplicabilidade da referida norma está limitada a processos nos quais é apenas um o agente de múltiplos crimes cujo julgamento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca, ou se, verificado este último condicionalismo, não obstante a diversidade de arguidos nos diversos processos, ainda assim deve operar a mesma regra alargada de competência.
A jurisprudência dos nossos Tribunais da Relação não tem sido absolutamente consensual neste domínio. Em perfeito alinhamento com o despacho do Sr. Juiz Local Criminal, e que a esta decisão serviu de modelo orientador, apenas dei conta do Ac. da Relação do Porto de 09-12-2004, publicado em www.dgsi.pt.
Aí se diz, no segmento mais relevante:
“(…) o único índice de conexão legalmente estabelecido é o mesmo agente ter cometido vários crimes, cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca. Nem se diga que esta expressão “o mesmo agente” afasta as hipóteses em que haja uma pluralidade de agentes. Havendo uma pluralidade de agentes, a melhor leitura da lei é, em nosso entender, a que faz depender a conexão apenas da prática, por um mesmo agente, de vários crimes na área da mesma comarca. Não faria qualquer sentido afastar a conexão, ao abrigo do art. 25.º do C.P.Penal, quando vários agentes tivessem cometido, em co-autoria, na área da mesma comarca, vários crimes. É assim claro que, da letra do citado preceito, só pode extrair-se a conclusão de que é de todo em todo irrelevante que o mesmo agente tenha praticado só, ou em qualquer outra forma de participação criminosa, vários crimes na área da mesma comarca.
Por um lado, a razão de ser deste elemento de conexão é a economia processual, com a consequente vantagem do agente poder ser julgado conjuntamente pelos vários crimes praticados, para efeitos de aplicação de uma pena única, em razão do concurso de crimes (art. 77.º do C.Penal) […]. Esta razão subjacente à referida conexão processual é prosseguida mesmo que o julgamento conjunto arraste o julgamento de outros arguidos.”
No outro sentido, podem consultar-se os Acs. do Tribunal da Relação do Porto de 06-07-2005 e de 08-03-2017, proferidos nos processos 0443684 e 5544/11.6TAVNG-U.P1, e as decisões dos Srs. Presidentes de Secções Criminais da Relação do Porto de 04-07-2014 (proc. n.º 589/12.1GAVNF-B.P1) e da Relação de Évora de 21-05-2015 (proc. n.º 52/15.9YREVR), todos publicados in www.dgsi.pt., e, na doutrina, Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, vol. I, 2.ª edição, 1999, pág. 192, e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17.ª edição, 2009, em anotação ao artigo 25.º).
Extractamos, da decisão de conflito relativa ao processo n.º 589/12.1GAVNF-B.P1, as seguintes passagens:
«(…) em nosso entender, tanto o espírito legislativo como a unidade do sistema jurídico impedem se considere que há uma conexão entre os processos em causa.
Desde logo porque o art.º 25º do CPP, de forma expressa se refere ao “mesmo agente”, acrescentando: que “tiver cometido vários crimes”.
Mesmo agente importa unidade de acusado, não pluralidade de acusados. E [deste modo] tem de ser entendido, pelas razões que a Sr.ª Juiz do processo comum singular aduz, nas quais nos revemos, e que aqui reproduzimos: “A não ser assim, conduziria o artigo 25.º do CPP a múltiplas situações de conexão e consequente apensação de processos em que até poderá não haver um único arguido comum a todos os processos apensados, sendo julgadas conjuntamente pessoas sem qualquer ligação entre si e por factos sem qualquer relação palpável, sendo o tribunal «obrigado» a apreciar complexas realidades simultaneamente multi-pessoais e multi-factuais sem outra relação que não seja a de se repetir, e apenas «pontualmente» (pois que bastaria para a conexão que houvesse um arguido – entre muitos – comum entre determinado processo e aquele que seria competente para o julgamento, independentemente do número de arguidos neste acusados, podendo esta situação multiplicar-se por número considerável de processos), um mesmo agente.»
Procedendo à devida recensão crítica das duas teses em confronto, estou do lado a que pertence a enunciada em último lugar.
A disposição normativa génese da anunciada divergência, com a epígrafe “Conexão de processos da competência de tribunais com sede na mesma comarca”, dispõe:
«Para além dos casos previstos no artigo anterior, há ainda conexão de processos quando o mesmo agente tiver cometido vários crimes cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca, nos termos dos artigos 19.º e seguintes”.
A conexão (subjectiva) prevista no preceito legal acabado de citar tem como pressuposto a existência de concurso de infracções, para além dos casos de unidade de acção ou de omissão da alínea a) do n.º 1 do artigo 24.º. Prevê-se aqui a pluralidade de comportamentos integrantes de vários crimes da competência material de tribunais sedeados na mesma comarca; haverá, então, conexão de processos, que são julgados em conjunto, da competência do tribunal que resultar da aplicação das regras de competência determinadas pelo artigo 28.º (vide Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 99/100).
A razão da conexão de processos radica na celeridade e economia processual e na vantagem dela advinda para o agente, que, julgado conjuntamente, pelos diversos crimes, vê a sua situação jurídico-penal unitariamente definida (a propósito, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. I, 6.ª edição, pág. 210).
Dito isto, subscrevemos, sem nenhuma reserva, a interpretação do preceito que conduz à existência da conexão prevista no artigo 25.º apenas quando existe pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente.
A não se entender deste modo, resultaria incompreensivelmente sacrificado o basilar princípio da economia e celeridade na gestão e decisão dos processos.
Com efeito, o posicionamento que, por economia de palavras, agora designarei de “mais alargado”, poderia conduzir - em situações pontuais, conduziria seguramente -, ao julgamento conjunto de uma imensa multiplicidade de processos, com um cortejo inimaginável de arguidos, em que as situações fácticas reveladas não teriam nenhuma relação entre si.
Como está escrito no já aludido despacho do Sr. Presidente das Secções Criminais da Relação de Évora, a exegese acolhida “não impedirá que, para além dos casos previstos nas alíneas d) e e) do art. 24.º do CPP, e em caso de vários arguidos, agindo em coautoria, possa ocorrer a apensação de processos crime, pendentes na mesma comarca, ao processo a que respeitar o crime determinante da competência por conexão, segundo os critérios enunciados no artigo 28.º (pena mais grave, arguido preso, prioridade da notícia do crime) quando os agentes dos crimes forem os mesmos em todos os processos. Neste sentido, o acórdão da Relação do Porto de 6 de Julho de 2005, relator Agostinho de Freitas, acessível in www.dgsi.pt/jtrp.

Em jeito de síntese conclusiva, cabe dizer: a conexão (subjectiva) prevista no artigo 25.º do CPP apenas se verifica quando, em princípio, existe uma pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente, para cujo conhecimento sejam competentes tribunais com sede na mesma comarca.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, decidindo o presente conflito negativo, determino que os processos em causa não sejam apensados, mantendo cada um dos Srs. Juízes a competência para o julgamento do processo que lhe foi oportunamente distribuído.
Sem tributação.
Cumpra-se o disposto no art. 36.º, n.º 3, do CPP.
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Coimbra, 13 de Julho de 2018
(Documento elaborado e integralmente revisto pelo signatário, Presidente da 5ª Secção - Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra)



(Alberto Mira)