Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8991/17.6T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
REGIME JURÍDICO DO PROCESSO DE INVENTÁRIO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JC CÍVEL 
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI Nº 23/2013 DE 5/3, ART. 20, 202 CRP
Sumário: O conjunto normativo do artigo 16º da Lei nº 23/2013 (Regime jurídico do processo de inventário) não é inconstitucional, quando interpretado no sentido de condicionar a apreciação pelos tribunais, de questões que se suscitem no processo de Inventário, que corre seus termos em cartório notarial, a prévia decisão notarial.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

M (…) intentou ação contra R (…), pedindo a declaração de que não deve a este € 74.819,68, alegadamente correspondente a metade de verba dele usada para a construção de certo imóvel.

Para tanto, a Autora alega, em síntese:

Foi casada no regime de comunhão de adquiridos com o Réu, casamento dissolvido por divórcio, por sentença de 2/7/2009, já transitada em julgado; na relação de bens do inventário que corre para partilha dos bens comuns, o Réu incluiu um passivo de € 74.819,68, contra si, injustificadamente.

Contestou o Réu, em síntese:

O processo de inventário tem decorrido com observância de todos os direitos processuais, e ali foi dada à Autora oportunidade para se pronunciar quanto à relação de bens apresentada, tendo ela reclamado da mesma, e tendo a questão sido ali decidida, pela manutenção do passivo no inventário.

            O Tribunal ouviu as partes sobre o eventual efeito preclusivo da falta de reação, da Autora, contra o despacho do Notário, pela manutenção da verba e pela não remessa dos interessados para os meios comuns.

Apenas a Autora se pronunciou, considerando ter direito à ação comum, considerando duvidosa a constitucionalidade da norma que defere a competência aos srs. Notários para dirimir processos de inventário.

No saneador, considerando um efeito preclusivo, decorrente da pendência do inventário, o Tribunal decidiu absolver o Réu do pedido.


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Inconformada, a Autora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1º O direito de acesso à justiça e aos tribunais decorre do artigo 20º da CRP e dos princípios nela consignados, designadamente,

2º O de que compete aos tribunais, como órgão soberania, dirimir conflitos públicos e privados.

3º No âmbito do processo de inventário litigioso a correr termos em Cartório Notarial não existe impedimento legal a que qualquer dos interessados recorra a tribunal para dirimir o litígio sobre a propriedade de uma verba relacionada no inventário.

4º O direito de ação decorre do artigo 2º do CPC; do artigo 20º do CRP e os princípios nela consignados entre os quais o de que compete aos tribunais, como órgão de soberania, dirimir litígios públicos e privados.

5º A norma do artigo 16º da Lei nº 23/2013 é inconstitucional quando interpretada no sentido de condicionar a apreciação pelos tribunais de questões que se suscitem no processo de Inventário que corre seus termos em cartório notarial a prévia dcecisão notarial.


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            Contra-alegou o Réu, defendendo a correção do decidido e a indevida arguição de inconstitucionalidade.

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            A questão a dirimir é a de saber se a norma do artigo 16º da Lei nº 23/2013 é inconstitucional, quando interpretada no sentido de condicionar a apreciação pelos tribunais de questões que se suscitem no processo de Inventário que corre seus termos em cartório notarial a prévia decisão notarial.

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Factos a considerar, para além daqueles que resultam do relatório antecedente:

A Autora instaurou a ação, alegando que o Réu incluiu um passivo de € 74.819,68 na relação de bens do processo de inventário, que corre termos para partilha dos bens do casal, não justificando essa verba.

No referido inventário, a Autora reclamou de tal inclusão.

Em 9.11.2016, a srª Notária indeferiu a reclamação e indeferiu a remessa do processo para os meios comuns.

A Autora não impugnou judicialmente o referido despacho.


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Na análise da questão, são especialmente relevantes os seguintes artigos da Lei nº 23/2013 (Regime Jurídico do Processo de Inventário):
Artigo 3.º (Competência do cartório notarial e do tribunal), seu nº 7:

Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz.

Artigo 16.º (Remessa do processo para os meios comuns):

1 - O notário determina a suspensão da tramitação do processo sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, remetendo as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade.

2 - O notário pode ainda ordenar suspensão do processo de inventário, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata alguma das questões a que se refere o número anterior, aplicando-se o disposto no n.º 6 do artigo 12.º

3 - A remessa para os meios judiciais comuns prevista no n.º 1 pode ter lugar a requerimento de qualquer interessado.

4 - Da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns cabe recurso para o tribunal competente, no prazo de 15 dias a partir da notificação da decisão, o qual deve incluir a alegação do recorrente.

5 - O recurso previsto no número anterior sobe imediatamente e tem efeito suspensivo, aplicando-se o regime da responsabilidade por litigância de má-fé previsto no Código de Processo Civil.

6 - O notário pode autorizar, a requerimento das partes principais, o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração, em conformidade com o que vier a ser decidido, quando:

a) Ocorra demora injustificada na propositura ou julgamento da causa prejudicial;

b) A viabilidade da causa prejudicial se afigure reduzida; ou

c) Os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória.

7 - Realizada a partilha nos termos do número anterior, são observados os atos previstos no artigo 68.º, relativamente à entrega aos interessados dos bens que lhes couberem. (…)

Artigo 17.º (Questões definitivamente resolvidas no inventário):

1 - Sem prejuízo das competências próprias do Ministério Público, consideram-se definitivamente resolvidas as questões que, no inventário, sejam decididas no confronto do cabeça de casal ou dos demais interessados a que alude o artigo 4.º, desde que tenham sido regularmente admitidos a intervir no procedimento que precede a decisão, salvo se for expressamente ressalvado o direito às ações competentes.

2 - Só é admissível a resolução provisória, ou a remessa dos interessados para os meios judiciais comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar a redução das garantias das partes.

Artigo 66.º (Decisão homologatória da partilha):

1 - A decisão homologatória da partilha constante do mapa e das operações de sorteio é proferida pelo juiz cível territorialmente competente.

2 - Quando a herança seja deferida a incapazes, menores ou a ausentes em parte incerta e sempre que seja necessário representar e defender os interesses da Fazenda Pública, o processo é enviado ao Ministério Público junto do juízo cível territorialmente competente, para que determine, em 10 dias a contar da respetiva receção, o que se lhe afigure necessário para a defesa dos interesses que legalmente lhe estão confiados.

3 - Da decisão homologatória da partilha cabe recurso de apelação, nos termos do Código de Processo Civil, para o Tribunal da Relação territorialmente competente, com efeito meramente devolutivo.

Artigo 76.º (Regime dos recursos):

1 - Da decisão homologatória da partilha cabe recurso, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o regime de recursos previsto no Código de Processo Civil.

2 - Salvo nos casos em que cabe recurso de apelação nos termos do Código de Processo Civil, as decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos mesmos processos devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha.

No caso dos autos, seguindo o processo de inventário a sua tramitação normal, foi indeferida a remessa dos interessados para os meios comuns, despacho que não foi colocado em causa, nos termos do art.16º, nº 4, da lei em análise.

O seu incidente sobre a reclamação de bens culminou na decisão de 9/11/2016, de manter relacionada a verba do passivo, relativamente à qual a Autora pretende que seja declarado nestes autos que não existe como dívida dela ao Réu.

Quanto à decisão de não remessa para os meios comuns, como a interessada não recorreu, a mesma tornou-se definitiva no inventário.

Quanto à decisão sobre a reclamação de bens, mantendo a verba do passivo, como resulta do referido art.76º, nº 2, a Autora poderá interpor recurso dela com o recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha.

Aquele conjunto normativo revela que, enquanto dure o inventário, no qual foi colocada a questão da consideração da verba, a Autora não pode colocar uma ação deste tipo, antecipando ou modificando as competências do Tribunal.

A(o) interessada(o) deve defender-se primeiro no inventário, suscitando a decisão do Notário, impugnando esta ou recorrendo dela para o Tribunal competente.

Não sendo assim, o normativo relativo a recursos não teria qualquer função útil, já que, mesmo que não recorresse, sempre o interessado poderia reagir contra a decisão, através de outro meio processual, noutra sede processual, quando bem entendesse.

O próprio regime do processo de inventário estaria inutilizado.

Se da decisão do notário, que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns, cabe recurso para o tribunal competente, e da sua decisão, que decide manter uma verba relacionada, cabe recurso com o recurso da sentença de partilha, não vislumbramos no regime uma violação do direito constitucional de acesso à justiça e aos tribunais.

E a exigida prévia decisão do Notário não configura uma desjudicialização completa e inadmissível dos litígios em questão.

(Ver acórdão do T. Constitucional nº 843/2017, de 13.12.2017, proc. 265/2017, em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos e ac. da Relação de Lisboa, de 30.3.2017, proc. 13079/16, em www.dgsi.pt.)

O direito de acesso aos tribunais não é absoluto e pode ser conformado pelo legislador em limites proporcionados.

E a exigência de prévia decisão notarial não viola a exigência constitucional de que cabe aos tribunais a administração da justiça (art.202º da Constituição da República Portuguesa).

Quanto à primeira decisão do Notário em causa (não remessa para os meios comuns), a Autora teve a faculdade de a impugnar no tribunal competente.

Quanto à segunda decisão do Notário em causa (manter a verba do passivo), a Autora ainda poderá questioná-la junto dos tribunais.

Estas salvaguardas legais são suficientes e proporcionadas ao invocado direito de acesso aos tribunais.

Assim, em concreto, em face do pedido no recurso, importa concluir que o conjunto normativo do artigo 16º da Lei nº 23/2013 não é inconstitucional, quando interpretada no sentido de condicionar a apreciação pelos tribunais, de questões que se suscitem no processo de Inventário, que corre seus termos em cartório notarial, a prévia decisão notarial.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.

            Custas pela Recorrente.

Coimbra, 2018-11-13

Fernando Monteiro ( Relator )

António Carvalho Martins

Carlos Moreira