Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1289/10.2T3AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: INDIVISIBILIDADE DA QUEIXA
INJÚRIA AGRAVADA
Data do Acordão: 05/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 115º, N.º 3, 181º E 184º, DO C. PENAL
Sumário: Discutindo-se, no caso, a eventual comparticipação criminosa (artigo 26º do CP), entre advogados subscritores da peça dita injuriante e os mandantes dos advogados, a este respeito é possível configurar três situações distintas:
· Uma em que o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse depois de o advertir expressamente das consequências que daí podem ocorrer;

· Outra em que o autor do escrito é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente, que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é difundido;

· Finalmente, aquela em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade.

Se, na primeira hipótese, se poderá configurar um exemplo de comparticipação criminosa e, na terceira, um caso em que apenas se admite a responsabilidade exclusiva do cliente, já na segunda estamos perante um ilícito cometido apenas pelo advogado.

Sendo os indícios existentes no sentido de que o escrito em causa foi produzido por mandatários, sem conhecimento e vontade da sociedade mandante, tratando-se de alegações estritamente jurídicas, de enorme complexidade técnica, a indiciar que saíram da lavra, da pena e da mente dos causídicos que deram a «cara» por elas em Tribunal, deve concluir-se que a respectiva queixa foi bem apresentada apenas contra estes, não havendo que accionar penalmente a respectiva agente da mandante, não fazendo sentido invocar, no caso, o princípio da indivisibilidade da queixa (art.º 115º, n.º 3, do C. Penal).

Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

           

1. No processo n.º 1289/10.2T3AVR do Tribunal Judicial de Mira, a Exmª Magistrada do MP deduziu acusação pública contra os arguidos, todos advogados de profissão:

- Drª A...;

- Dr. B...;

- Dr. C...,

pela prática de um crime de injúria agravada p. e p. pelos artigos 181º/1, 183º/1 b) e 184º, conjugados com o artigo 132º/2 l) do CP.

Os arguidos requereram a abertura da fase de instrução.

A final, a Mª JIC decidiu proferir um DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA , datado de 18 de Novembro de 2011.

2. É desse despacho que vem recorrer a assistente Drª Amélia Sofia de Barros Rebelo, Juíza de Direito, o que faz nos seguintes moldes:

«1. A ora assistente não pode conformar-nos com a decisão instrutória que não pronuncia os ora arguidos do crime de que vinham acusados, porque, em primeiro lugar, o tipo de crime aqui em causa, a saber injúria agravada (previsto e punido pelos art.ºs 181.º, n.º 1, 183.º, n.º 1, alínea b), 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal), não se coaduna com a prática por uma pessoa colectiva.

2. Dado que, só a pessoa humana estará apta, em virtude de reunir todas as potencialidades que o permitem, a praticar um crime como o dos autos e, nunca, uma pessoa colectiva, que não têm a individualidade e a natureza intrínseca da pessoa, e, apenas, age por intermédio dos seus representantes legais, ou seja, de pessoas singulares.

3. Por tudo isto, nunca e em momento algum, poderá uma pessoa colectiva ter praticado ou praticar um crime da natureza do que está em causa nos presentes autos, dado não ter as qualidades para agir autonomamente face aos seus representantes legais.

4. Assim, ficou bem claro que os presentes autos não padecem de qualquer vício relativamente ao princípio da indivisibilidade da queixa – plasmado no n.º 3 do artigo 115.º do Código Penal – em virtude de que, como foi dito anteriormente, a ora assistente não podia, nem devia, participar criminalmente de uma pessoa colectiva, mais especificamente da sociedade mandante “W....”

5. Em segundo lugar, relativamente ao princípio da indivisibilidade da queixa – plasmado no n.º 3 do artigo 115.º do Código Penal – propriamente dito, não vislumbramos qualquer desrespeito pelo mesmo, em virtude que a ora assistente, participou criminalmente de quem tinha indícios, mais precisamente dos mandatários judiciais, e, não optou “por perseguir uns comparticipantes em detrimento de outros”, como resulta da decisão instrutória.

6. Situação esta que, ao contrário do que é dito na decisão instrutória -“E, no caso concreto, não está. Inexistem quaisquer indícios de que o escrito tenha sido produzido pelos mandatários sem conhecimento e vontade da sociedade mandante.” –, as diligências realizadas no âmbito da presente instrução demonstram exactamente o contrário,

7. Nomeadamente pelo depoimento da testemunha ..., que, no seu depoimento escrito (mais especificamente a fls. 1277 e 1278) refere o seguinte: “(…) o processo de insolvência das sociedades do Grupo Investvar é muito grande e complexo. (…) No âmbito desses cerca de 30 processos foram feitas várias versões de várias petições iniciais, de inúmeros requerimentos, de várias alegações de recurso e de muitas reclamações. São, por isso, imensas as peças processuais elaboradas na sociedade no âmbito destes processos, sendo que na maioria dessas peças foi feito um enquadramento dos factos e contextualizando o processo. À medida que os factos se iam verificando, esse enquadramento e contextualização ia sendo completado. Assim, sobre uma peça base, elaborada com a colaboração de muitos advogados da sociedade, muitos pontos foram sendo acrescentados. A peça processual que deu origem aos presentes Autos foi enviada no dia 6 de Maio de 2010(…).”

8. Não deixando dúvidas de que a autoria da peça processual que deu origem aos presentes foi da exclusiva autoria dos advogados da sociedade e nunca dos mandantes, facto que foi confirmado quer pela Testemunha ... (aos 3 minutos e 31 segundos do seu depoimento), bem como resulta dos depoimentos dos arguidos: A...(aos 7 minutos e 4 segundos do seu depoimento), B... (aos 6 minutos e 23 segundos e 6 minutos e 33 segundos do seu depoimento) e C… (aos 3 minutos e 20 segundos, 4 minutos e 35 segundos e 5 minutos e 26 segundos do seu depoimento).

9. Assim, por tudo isto não podem restar dúvidas de que a pessoa colectiva (mandante) não teve rigorosamente nada a ver com o acto praticado pelos seus mandatários judiciais e ora arguidos, dado que o requerimento que deu origem aos presentes autos foi exclusivamente elaborado pelos mesmos mandatários e com o qual nada teve a ver a mandante.

Assim, por tudo isto, deve ser revogado o despacho de não pronúncia proferido nos presentes autos por um despacho de pronúncia e consequentemente, pronunciados os arguidos pelo crime de que vinham acusados, com os factos constantes da acusação pública se fará a costumada Justiça».

            3. O Ministério Público e os arguidos RESPONDERAM ao recurso, entendendo que mesmo não merece provimento.

           

4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, não corroborando a resposta do Magistrado de 1ª instância, deu o seu parecer no sentido da procedência do recurso.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (Cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, a única questão a resolver consiste no seguinte:

· Foi ou não violado, no processo, desde o seu início, o princípio da indivisibilidade da queixa previsto no artigo 115º/3 do CP?

           

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:

«1. RELATÓRIO

Os presentes autos tiveram início com a queixa (cf. fis. 3 e segs.), apresentada em 23.06.2010 pela Sra. Dra. ... (Juiz de direito) contra os Srs. Drs. A..., B... e C... (Advogados), na qual se dá conta que estes apresentaram em 06.05.20 10 um requerimento em processos judiciais, no qual fazem “afirmações/imputações adequadas a denegrir a honra profissional da ofendida, com repercussões na honra e consideração pessoais que lhe são devidas”.

Os Srs. Drs. A..., B... e C...foram constituídos arguidos.

A Sra. Dra. ... constituiu-se assistente.

Findo o inquérito, o Ministério Público decidiu acusar os arguidos pela prática, cada um deles, de um crime de injúria agravada, previsto nos artigos 181.°, n.°1, 183.°, n.° 1, alínea b), 184.° e 132.°, n.° 2, alínea 1) do Código Penal.

Inconformados com a acusação, vieram os arguidos, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.° 1 do artigo 287.° do Código de Processo Penal, requerer a abertura de instrução, com o objectivo de não serem pronunciados pelo crime que o Ministério Público lhes imputou.

Os arguidos alegaram, em síntese que:

a) as afirmações que lhes são imputadas na acusação não foram por si escritas nem assinadas nem enviadas;

b) essas afirmações constituem mera crítica objectiva à actuação do tribunal e visavam apenas “chamar a atenção” para factos que o tribunal “não estava a ver”, sem intenção ou consciência de ofender a queixosa;

c) essas afirmações não são ilícitas (cf. o n.° 3 do artigo 154.° do Código de Processo Civil e o n.° 1 do artigo 31.° do Código Penal), consubstanciam a prática de um acto conforme ao estatuto da profissão [cf. a alínea a) do n.° 3 do artigo 144.° da LOFTJ e não são puníveis (cf. o n.° 2 do artigo 181º do Código Penal).

Já na fase de instrução, procedeu-se à junção de documentos (48 documentos apresentados pelos arguidos no requerimento de abertura de instrução, 1 documento apresentado pelos arguidos na diligência de inquirição de testemunhas e oito documentos apresentados pela assistente), a novo interrogatório dos arguidos (a pedido destes) e à inquirição de duas testemunhas.

Procedeu-se também à realização do debate instrutório.

Nesse debate, o Ministério Público, a assistente (através do respectivo mandatário) e os arguidos (através do respectivo defensor constituído) pronunciaram-se nos termos que ficaram registados em acta.

*

2. Saneamento

O Tribunal é competente.

O Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal.

Existe uma questão prévia que obsta ao conhecimento do objecto da instrução e que se passa a apreciar de seguida.

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2.1. O princípio da indivisibilidade da queixa e da acusação

Os arguidos vêm acusados da prática de um crime de injúria agravada, previsto nos artigos 181.°, n.°1, 183.°, n.° 1, alínea b), 184.° e 132.°, n.° 2, alínea 1) do Código Penal.

O crime de injúria está previsto, na sua forma matricial, no n.° 1 do artigo 181.° do Código Penal, nos seguintes termos: “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”.

imputada aos arguidos uma forma agravada desse crime, denominada injúria caluniosa, prevista na alínea b) do n.° 1 do artigo 183.° do Código Penal, nos seguintes termos: “tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação, as penas (...) da injuria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”, com a agravação adicional decorrente do facto de a vítima ser “uma das pessoas referidas na alínea 1) do n.° 2 do artigo 132.°, no exercício das suas funções ou por causa delas”, nos termos previstos no artigo 184.° do mesmo Código — o que leva a que as penas aplicáveis sejam elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo.

As normas penais ora em análise tutelam o bem jurídico honra — um bem jurídico complexo, que abrange o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, e a própria reputação ou consideração exterior — cf., a este propósito, JOSÉ FARIA COSTA, em “Injúria”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo 1, Coimbra Editora, 1999, pág. 629 (que remete para a pág. 607).

O tipo objectivo deste ilícito consiste, em síntese, na imputação directa à pessoa do ofendido (sem intromissão de terceiros) de factos, palavras ou juízos ofensivos da sua honra e consideração.

O presente caso apresenta, contudo, especificidades, resultantes da circunstância de o facto ilícito referido na acusação ter sido praticado por advogados, no exercício de um mandato forense, e através de articulado apresentado no âmbito de um processo judicial (de insolvência).

E isso tem relevo directo para o caso aqui em análise, pois a circunstância de o facto calunioso ser relatado num articulado processual condiciona necessariamente a análise do tipo legal, com repercussões tanto ao nível do elemento objectivo como ao nível do elemento subjectivo ou da intencionalidade, e ao nível da ilicitude da conduta (cf., neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no processo n.° 1401/08.1TAOER.L1-9, em 28.01.2010, disponível para consulta em www. dgsi.pt).

O facto aqui em análise foi praticado através de um requerimento de reclamação contra o indeferimento de recurso (que deu origem ao Apenso E do processo de insolvência n.° 213/ 10.7T2AVR, que correu os seus termos no Juízo do ... do Tribunal da Comarca do Baixo Vouga).

O acesso aos tribunais para fazer valer um direito é constitucionalmente garantido (cf. o n.° 1 do artigo 20.° da Constituição) o que pressupõe a possibilidade de, em juízo, poder reclamar de uma decisão que indeferiu um recurso, expondo factos e conclusões jurídicas que demonstrem a falta de fundamento de tal decisão. E, como se diz no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.° 7123/07.3TDLSB.L1-5, em 07.07.2009 (disponível para consulta em www. dgsi.pt), reiterando jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, «a faculdade que às partes compete de alegarem com toda a liberdade, por meio dos seus advogados, tudo quanto julgarem aproveitável à defesa os seus direitos é um sagrado e essencial direito indispensável à boa administração da justiça». Daí que se compreenda que o próprio legislador constitucional tenha consagrado, no artigo 208.° da Constituição, que a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.

Estando em causa uma peça processual apresentada por advogado no exercício do mandato forense, é de ter em conta que o n.° 1 do artigo 114.° da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n° 3/99, de 13 de Janeiro) assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato, reconhecendo-lhe, designadamente, na alínea b) do n.° 3, o direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão.

Além disso, o acto que é imputado aos arguidos (apresentação de reclamação contra o indeferimento de recurso) é regulamentado pelo Código de Processo Civil (cf. o artigo 668.° desse Código, aplicável ex vi do artigo 17.° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) — sendo de ter em conta que o n.° 2 do artigo 154.° desse Código dispõe que “não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”.

Reitera-se, a este propósito, a seguinte passagem do acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo n.° 0642286, em 3 1.01.2007 (disponível para consulta em www.dgsi.pt): “a contenda judicial, enquanto processo de partes, traduz necessariamente um litígio decorrente de posições conflituantes se não houvesse litígio, não haveria processo sendo infelizmente frequente o extremar de posições para além daquilo que a lógica e a razão permitiriam supor; as partes procuram naturalmente acautelar da melhor forma possível as respectivas posições, tentando fazer valer aquilo que consideram ser o seu direito; e fazem-no valendo-se dos argumentos que reforçam a sua posição, requerendo as diligências e meios de prova que podem trazer-lhes vantagem, mas também procurando obstar às iniciativas da parte contrária susceptíveis de as prejudicial».

De tudo o que se disse se retira que, face ao ordenamento jurídico considerado na sua globalidade, a responsabilidade jurídico criminal do mandatário forense deverá constituir excepção, pois o advogado, quando intervém em representação judicial de um seu constituinte, não defende interesses próprios mas alheios, actuando profissionalmente no exercício de mandato forense que lhe foi conferido e podendo, em defesa dos interesses dos seus constituintes, socorrer-se de meios contundentes, firmes e incómodos para com os intervenientes.

Como refere a este propósito o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.° 1544/04.OTACBR.C1, em 14.02.2007, “em regra o advogado é a voz do cliente e não lhe é exigível, ao contrário do que vem defendido, qualquer exercício de censura, quando aquilo que lhe é transmitido expresse a defesa de um direito” (disponível para consulta no sítio de internet www.dgsi.pt).

Tal como na injúria e na difamação através dos meios de comunicação social, existe uma linha de fronteira e de colisão entre dois bens jurídicos fundamentais (a liberdade de imprensa como manifestação da liberdade de expressão e de informação e os direitos da personalidade, nomeadamente o direito à honra e à consideração) também no discurso jurídico encontramos, com frequência, situações de colisão entre o direito de defesa da causa e o direito à honra, a exigir uma ponderação dos bens jurídicos conflituantes — sendo a ofensa à honra justificada, se resultar do cumprimento de um dever ou do exercício de um direito, e se não violar os princípios da proporcionalidade e da necessidade.

Aplicando as considerações acima tecidas ao caso dos autos, das duas uma: ou se entende que a conduta da sociedade mandante não é criminalmente ilícita, porque exercida no âmbito de um direito próprio de defesa, no processo de insolvência em que era parte (e, então, não pode deixar de se concluir que também a conduta dos mandatários, aqui arguidos, é legítima, porque exercida no âmbito do desempenho do mandato forense, em defesa dos direitos e interesses da sociedade mandante); ou se entende que tanto é criminalmente ilícita a conduta dos mandatários (os ora arguidos) como da sociedade mandante — e a perseguição criminal apenas dos mandatários não é legalmente admissível, face ao princípio da indivisibilidade da queixa, previsto no n.° 3 do artigo 1 15.° do Código Penal, e aplicável também à acusação.

Segue-se, a este propósito, o entendimento que tem vindo a ser adoptado pelos nossos tribunais superiores, no sentido de que existem três situações distintas a considerar, quando é apresentada em juízo uma peça processual de teor difamatório ou injurioso, subscrita por um mandatário, no exercício do mandato forense:

a) uma em que o autor do escrito é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente, que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é imputado (injúria) ou difundido (difamação);

b) outra em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade;

c) e outra em que o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse, estando ambos cientes de que os factos relatados são injuriosos ou difamatórios, por não corresponderem à verdade.

Na primeira hipótese existe um ilícito apenas praticado pelo advogado, na segunda hipótese apenas o cliente é autor mediato do crime de injúria ou difamação (sendo o advogado apenas um seu instrumento) e na terceira hipótese existe comparticipação criminosa — cf., neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 01.03.1989 (in Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV, Tomo 2, pág. 76), o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no processo n.° 0006593, em 17.01.1996, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo n.° 0213271, em 05.03.2003, e os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra proferidos nos processos n.° 725/05 e n.° 1544/04.OTACBR.C1, em 06.04.2005 e em 14.02.2007, respectivamente (disponíveis para consulta em www. dgsi.pt).

Ou seja, para um advogado responder criminalmente pela prática de um crime de injúria através de peça processual é necessário que estejamos perante a primeira ou a terceira hipóteses e só na primeira hipótese é que o processo pode prosseguir apenas contra o advogado, desacompanhado do cliente. Fora dessa primeira hipótese não pode afastar-se a responsabilidade do mandante, pelo que o procedimento criminal não pode ser instaurado nem prosseguir apenas contra mandatário, atento o dito princípio da indivisibilidade da queixa, aplicável também à acusação pública e particular.

Ora, no caso concreto, tanto a queixa como a acusação foram deduzidas apenas contra os mandatários, sendo completamente omissas quanto à sociedade mandante. E, como vimos, a prossecução da acção penal apenas contra os mandatários só faz sentido na hipótese acima assinalada, de o autor do escrito (requerimento de reclamação contra o indeferimento do recurso) ser apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente, que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é declarado nesse escrito.

Essa ausência de interferência tem que estar plasmada no processo criminal para se poder prosseguir a acção penal apenas contra os mandatários.

E, no caso concreto, não está. Inexistem quaisquer indícios de que o escrito tenha sido produzido pelos mandatários sem conhecimento e vontade da sociedade mandante.

Pelo contrário, existe uma procuração outorgada, em 18.12.2009, pela sociedade W.... aos três arguidos, atribuindo a estes “os poderes forenses gerais em direito permitidos para a representar no processo de insolvência contra a sociedade … SGPS SA.” (cf. certidão de fls. 86 e 87), o requerimento de reclamação que contém as alegadas expressões injuriosas foi apresentado no âmbito do processo de insolvência de uma sociedade dominada pela Investvar Comercial SGPS SA., esse requerimento indica, no seu cabeçalho, ser apresentado pela W...., está subscrito na última página pelos três arguidos e foi enviado ao tribunal via CITIUS, em 06.05.2010, com a assinatura certificada digital da arguida Dra. A...(cf. a certidão de fls. 9 a 50, sobretudo fis. 10, 11, 49 e 50).

Nestas circunstâncias, os factos em causa consubstanciam uma situação de comparticipação criminosa, prevista no artigo 26.° do Código Penal (que prescreve que “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”).

Assim, porque no caso concreto a instauração do procedimento criminal depende de queixa [pois o crime de injúria agravada é de natureza semi-pública — cf. a alínea a) do n.° 1 do artigo 188.° do Código Penal], essa queixa deveria ter sido apresentada contra todos os comparticipantes.

Efectivamente, o princípio da indivisibilidade da queixa, plasmado no n.° 3 do artigo 115.° do Código Penal impede que se possa escolher quem deve ser perseguido em caso de comparticipação e que se opte por perseguir uns comparticipantes em detrimento de outros.

E não só a acção penal deveria ter sido intentada contra os mandatários e contra a sociedade mandante, como também dever-se-ia ter investigado na fase de inquérito se o facto injurioso foi praticado em termos tais de excluir a responsabilidade da sociedade mandante (nos termos da 1.a hipótese acima indicada) e deveria o Ministério Público, no despacho final do inquérito, ter aduzido os factos necessários a afastar a responsabilidade da sociedade mandante, de modo a legitimar a dedução de acusação apenas contra os mandatários.

Como refere o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo n.° 0213271, em 05.03.2003 (já acima mencionado):

[O legislador] não coloca, sem mais, na disponibilidade do titular do direito à acusação, o exercício dele contra um ou todos os participantes, antes fá-lo depender da existência de razões justificativas, como por exemplo da falta de indícios.

(...) após a introdução do princípio da indivisibilidade não faz sentido defender-se entendimento diverso, sob pena de deitarmos pela janela o que o legislador quis que entrasse pela porta. Na realidade, se o direito de queixa contra todos os comparticipantes é obrigatório, como poderia depois, após a realização do inquérito, fazer-se a selecção, obrigando-se a praticar actos inúteis no inquérito?

Não foi isto, seguramente, o que legislador quis.

(...) do princípio [da indivisibilidade] têm de extrair-se todas as consequências, desde a queixa à acusação: não escolha de quem deve ser perseguido, isto é, ou são perseguidos todos os comparticipantes conhecidos, ou não é nenhum.

E, no mesmo sentido, refere o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.° 142/08.4GDSCD.C1, em 08.09.2010:

O Ministério Público tem legitimidade para praticar os actos de inquérito necessários para apurar a responsabilidade daqueles que se indicie terem sido comparticipantes do crime, ainda que contra eles não tenha sido apresentada queixa, se vierem a ser identificados no decurso do inquérito; mas já não a terá para deduzir acusação sem precedência de queixa contra todos os comparticipantes, já que assume preponderância a natureza semi-pública do crime, tornando-se exigível na fase de acusação a verificação dos pressupostos do procedimento criminal relativamente a todos os comparticipantes. É esse, precisamente, o significado e alcance prático da norma constante do artigo 115. °, n.° 3, do Código Penal.

Averiguada em inquérito por crime semi-público a existência de comparticipantes não denunciados, deve o Ministério Público, antes de deduzir acusação, notificar o queixoso para, querendo, apresentar queixa também contra eles, sob pena de extinção do procedimento criminal contra todos.

Mas não foi isso que sucedeu no caso dos autos, pois a ofendida não apresentou queixa contra a sociedade que os arguidos representam (e em nome de quem o requerimento de reclamação contra o indeferimento do recurso foi apresentado) e o Ministério Público foi completamente omisso, no despacho proferido no final do inquérito, quanto à responsabilidade criminal da sociedade mandante.

Falta, assim, uma condição legal de procedibilidade da acção, imposta pelo n.° 3 do artigo 115.° do Código Penal quanto à queixa, mas também aplicável à acusação, que importa a extinção do procedimento criminal (cf., também neste sentido, os dois arestos acima citados, bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.° 74/09.9GAMDA.C1, em 01.06.2011, todos disponíveis para consulta no sítio de internet www.dgsi.pt).

Detectada na presente fase de instrução essa falha processual, tem que ser proferida decisão de não pronúncia.

Fica, assim, prejudicado o conhecimento das questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução apresentado pelos arguidos, questões essas tendentes a obter uma decisão de não pronúncia.

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3. Dispositivo

Face ao acima exposto, por falta de uma condição legal de procedibilidade da acção, imposta pelo n.° 3 do artigo 1 15.° do Código Penal quanto à queixa, mas também aplicável à acusação, e por essa falta importar a extinção do procedimento criminal, não pronuncio os Srs. Drs. A..., B... e C....

Sem custas, por não se verificarem as circunstâncias previstas no n.° 1 artigo 513.° (quanto ao arguido), no n.° 1 do artigo 515.° (quanto ao assistente) e no artigo 520.° (quanto ao denunciante) do Código de Processo Penal.

Notifique».

            3. A queixa apresentada nos autos pela assistente Drª ..., Juíza de Direito, tem o seguinte teor:

            «… , juiz titular do Juízo de … , vem apresentar queixa para instauração de procedimento criminal contra A..., B... E C..., advogados, com domicílio profissional na Rua  … Lisboa,

Com fundamento nos seguintes factos:

No âmbito de requerimento que dirigiram ao processo n° 213/ l0.72AVR, e que deu origem ao apenso E (reclamação nos termos do art. 688° do Código de Processo Civil), os denunciados permitiram-se exarar as seguintes alegações (sublinhados nossos):

Com a prolação do Despacho ora reclamado, que não admite o recurso da sentença de declaração de insolvência da DCB, o Tribunal a quo aceitou que se execute, e sem obstáculo, uma conduta susceptível de ser subsumida no crime de favorecimento de credores, (3° § de fls. 5 do req. em apreço)

O que é bem patente se tivermos em conta o que, pouco tempo antes, se passou: (...) (4° § de fls. 5).

(...) tendo a Mma Juíza  … homologado sem hesitar a desistência, mesmo sendo patente a situação de insolvência da então requerida e o favorecimento daquela credora, e sem que tenha, como lhe era imposto pelos artigos 21º e 297° do CIRE, dado conhecimento da situação ao Ministério Público para o efeito do exercício da competente acção penal, dado que estavam em causa condutas subsumíveis nos crimes previstos nos artigos 227º a 229º do Código Penal (6° § de fls. 5).

(...) Tudo isto consubstanciando de forma patente condutas susceptíveis de ser subsumidas em diversos ilícitos criminais. (5° § de fls. 7).

(...) Em suma, o grupo Investvar tem vindo a desenvolver uma estratégia habilidosa, através do uso abusivo do direito processual e da distorção do processo de insolvência, sempre com a conivência do Juízo … , com o único objectivo de frustrar os créditos de uns credores, para poder favorecer outros. (6° § de fls. 7).

 Perante tais alegações, que fundamentam a presente participação criminal, não pode a signatária deixar de tecer as seguintes considerações:

Aceita a signatária que profissões como as de juiz ou advogado exigem, pelas funções que desempenham e pelo contexto de conflitualidade onde laboram, uma significativa abnegação que implica que a área de tutela penal da honra, de acordo com os conceitos padrão e conhecimentos do homem médio, possa recuar para níveis que permitam o exercício de outros direitos igualmente dignos.

Não poderá porém aceitar que a liberdade de expressão nos tribunais em pleno exercício da advocacia, porque resguardada pelo exercício de um direito de defesa, revista a natureza de um autêntico direito de libertinagem da palavra pois, com apelo ao princípio da unidade do ordenamento jurídico, o exercício de um direito só é legítimo quando não for abusivo; e revela-se abusivo quando exceder manifestamente o fim social que o mesmo visa, o que acontecerá quando o causídico, protegendo-se sob a capa formal do exercício de tal direito, o utilizar para dirigir uma qualquer ofensa ao magistrado, revelando-se a mesma desnecessária à defesa da causa.

Nessa situação não se está, em rigor, em face de um direito de defesa, pois que as imputações, juízos de valor ou expressões do advogado não fundam as
premissas do raciocínio ou argumento judiciário dirigido, materialmente, à defesa da causa, mas a outro fim, - aquele último – que é ilegítimo.

Ora, isso acontece com as alegações supra citadas pois que a imputação de prática ou de participação em ilícitos criminais e de parcialidade que as mesmas encerram, e que assim foram dirigidas ao juiz da causa, não encontram justificação em qualquer raciocínio defensivo dos denunciados como advogados (e enquanto operadores judiciários titulares de um “poder-dever” de defesa dos seus constituintes).

Tais imputações estão fora do que pode considerar-se como indispensável à boa decisão da causa pois com elas nada mais poderão pretender alcançar para além de lançar (inaceitável) suspeição sobre a honestidade do magistrado.

Tais alegações, para além da ofensa à honra e dignidade pessoal e profissionais da signatária, põem em causa a dignidade da função pública — de administração da justiça — por ela exercida.

Com efeito, o princípio basilar porque se rege e pauta a actuação profissional dos magistrados, e que institucionalmente fundamenta a judicatura e legitima esta função soberana do Estado para administrar justiça em nome do povo, é a isenção e a imparcialidade, em todos os seus aspectos, de cada uma das pessoas que em cada momento da história integram aquele corpo de magistrados.

As imputações que lhe são dirigidas pelos denunciados - o Tribunal a quo aceitou que se execute, e sem obstáculo, uma conduta susceptível de ser subsumida no crime desfavorecimento de credores, (...) sempre com a conivência do Juízo do ... de ..., com o único objectivo de frustrar os créditos de uns credores, para poder favorecer outros - não pode, porque o não permite o conteúdo objectivo das palavras, deixar de ser entendida como imputação de falta de isenção de imparcialidade do juiz da causa, sobre ele lançando uma suspeição que objectivamente, e de acordo com o estatuto e natureza das funções de qualquer magistrado, maxime, judicial, teria de ser entendida como incapacidade em absoluto da signatária para, pelo menos naquele caso, exercer as funções que publicamente lhe são acometidas (art. 202° da C.R.P.) como lhe é exigido, no absoluto e exclusivo respeito da lei e do direito.

Porque são da autoria da signatária todos os despachos e decisões proferidos no âmbito dos processos com os n°s 213/ 10./2TAVR e 1409/09.OT2AVR do Juízo de ... de ..., não obstante a referência impessoal a Juízo de ... de ... constante do 6° § de fis. 7 do requerimento em apreço, dúvidas não temos da pessoalidade das imputações à signatária pois, para além do contexto do demais ali alegado, os denunciados absteram-se de tecer idêntica alegação/imputação no âmbito do requerimento de reclamação que nos termos do art. 688° do Código de Processo Civil apresentaram no processo n° 212/ 10.9T2AVR, tramitado pela distinta srª Juiz auxiliar daquele Juízo, requerimento que, com excepção do dito parágrafo, é reprodução integral do apresentado no processo 213/ 10.7T2AVR.

Tais afirmações não traduzem uma mera depreciação das capacidades profissionais da ofendida na aplicação do direito; antes de mais traduzem a imputação de uma total incapacidade para o exercício de tais funções por total desrespeito, que pelos denunciados lhe é imputado, pelo valor primeiro a que deve obediência institucional — o princípio da imparcialidade — com corolário no disposto no art. 95° do referido Estatuto dos Magistrados Judiciais, que prevê penas de aposentação compulsiva e de demissão a magistrado que revele falta de honestidade ou inaptidão profissional.

Pelo exposto, tal imputação é (subjectiva e) objectivamente apta a molestar hedionda e profundamente a honra e a posição profissional da ofendida, pois não se vislumbra indício mais e melhor revelador de desonestidade ou inaptidão profissional de um juiz do que a falta de isenção e imparcialidade no exercício das suas funções, onde quer que a mesma se manifeste (seja na fase da produção da prova, seja no decurso do formalismo processual ou no conteúdo da decisão proferida).

Tais afirmações/imputações não podem por isso deixar de considerar-se adequadas a denegrir a honra profissional da ofendida, com repercussões na honra e consideração pessoais que lhe são devidas, pelo rigor e empenho que sempre procurou imprimir no exercício das suas funções.

O juiz tem de ser imparcial de raiz. O atributo mais querido pelo juiz é o da sua imparcialidade, que é ter de insensibilizar-se, se não por temperamento, ao menos por esforço de cometimento, sem que a sua imparcialidade tenha de confundir-se com a inércia ou a falta de diligência no apuramento da verdade e na busca e aplicação do direito (...).

(...) mal se iria se todas as vezes que se põe em crise a veracidade de qualquer depoimento, se suscitasse o sempre odioso recurso do incidente de recusa de juiz que, com algum peso, já começa com aforamentos aqui e acolá, com toda a carga desprestigiante para o visado, com reflexos na administração judiciária, quer entorpecendo o desenrolar processual, quer o bom nome, a imagem e o prestígio do Magistrado, por se apontar a dedo que aquele não oferece garantias de imparcialidade no exercício da função.

Não admira, assim, que observando a gravidade da dedução de recusa, Honoré Balzac, dissesse: «Desconfiar da magistratura judicial é um princípio de dissolução judicial (...)“ - Ac. da R.L de 11.01.1995, C.J. TI, págs. 152 e s.

Em conclusão, os denunciados emitiram contra a ofendida imputações que sabiam ser ostensiva e gravemente ofensivas da sua honra profissional, porque despidas de qualquer fundamento, a exceder o direito de defesa que no caso pretendessem fazer valer.

A signatária, que conclui como iniciou, declara que pretende deduzir pedido de indemnização civil logo que seja processualmente oportuno».

4. APRECIAÇÃO DO RECURSO

4.1. O recurso incidirá apenas sobre a questão prévia decidida pelo despacho recorrido, que nem sequer entra na fase da análise dos indícios suficientes descortinados ou não durante a fase da instrução[2] [3].

E se assim é, na situação de procedência deste recurso, a prolacção de um despacho de pronúncia não será automática, devendo apenas este tribunal de recurso devolver os autos à 1ª instância para que, resolvida que foi a questão prévia (de forma a que o princípio da indivisibilidade da queixa, neste caso, não obstaria ao prosseguimento dos autos), em sentido contrário ao do JIC de ..., se tome enfim posição sobre o fundo da causa – há ou não indícios suficientes para submeter estes 3 advogados a julgamento pela prática de um crime de injúria agravada em que figura como vítima uma Juíza de Direito?

A este tribunal competirá apenas analisar se teve ou não razão a JIC de ... em considerar, na resolução da QUESTÃO PRÉVIA em sede de despacho final da Instrução, que faltava uma condição legal de procedibilidade da acção, imposta pelo n.° 3 do artigo 115.° do Código Penal quanto à queixa, mas também aplicável à acusação, que importa a extinção do procedimento criminal (o que originou a prolacção da recorrida decisão de não pronúncia).

4.2. Qual o delito que está em causa?

Trata-se do crime de injúria agravada pelo estatuto da pessoa injuriada (Magistrada Judicial no exercício de suas funções jurisdicionais).

Não há dúvida que os autores materiais da peça visada (a que contém as expressões tidas como injuriantes pela assistente) foram os 3 advogados que a assinaram.

Esses advogados redigiram uma reclamação para o Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do Pº 213/10.7T2AVR-B, a correr os seus termos no Juízo de ... de ..., declarando o seu inconformismo perante uma decisão da assistente – a de não admissão de um recurso da sentença que decretou a insolvência de … , Lda.

Fizeram-nos mandatados por uma procuração forense constante de fls 87, na qual W..., sociedade que por fusão sucedeu à … , constituíram seus procuradores os 3 causídicos em causa, atribuindo-lhes poderes forenses gerais em direito permitidos para a representarem no processo pendente no Juízo de  … de ....

O crime de INJÚRIA AGRAVADA é de natureza semi-pública - art.ºs 181º e 184º do C. Penal, o que significa que, para instauração do procedimento criminal, é necessária queixa.

Aqui chegados, somos confrontados, então, com o princípio da indivisibilidade da queixa, a significar que a queixa deverá ser apresentada contra todos os comparticipantes conhecidos.

De facto, o sistema penal português consagrou o chamado princípio da indivisibilidade, quando refere que “O não exercício do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa” – n.º 2 do art.º 115º do C. Penal.

O princípio está consagrado porque “Em matéria criminal não se pode escolher quem deve ser perseguido em caso de comparticipação; o que está em causa é o crime” - Maia Gonçalves in “Código Penal Português”, 13ª ed., pg. 391.

Quanto ao exercício do direito de queixa, a lei faz estender os efeitos da apresentação desta contra um dos comparticipantes aos restantes – art.º 114º do C. Penal.

Aparente contradição esta.

Resolvida exemplarmente no Acórdão desta Relação de 8/9/2010 (Pº 142/08.4GDSCD.C1:

«(…)

As normas em questão incluem-se ambas no Título IV do Livro I do Código Penal, que versa o tema da queixa e acusação particular. Não se oferece como razoável uma interpretação que procure ver naquela aparente incompatibilidade uma contradição, tanto mais que por força do art. 9º, nº 3, do Código Civil, na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. O argumento de ordem sistemática aponta, pois, para a necessidade de encontrar a lógica daquelas estatuições legais numa perspectiva de complementaridade e não de confronto.

A evolução histórica do preceito permite verificar que no Código Penal de 1982 o não exercício tempestivo da queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime era regulado a par da desistência de queixa. Dispunha então o art. 114º, nº 3, que “a desistência da queixa e o seu não exercício tempestivo relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveitam aos restantes, nos casos em que também estes não possam ser perseguidos sem queixa”. A autonomização da regulamentação destas duas situações – desistência de queixa e não exercício tempestivo contra um dos comparticipantes – verificou-se com a entrada em vigor do DL nº 48/95, de 15 de Março, que procedeu à revisão do Código Penal. O nº 2 do art. 115º, na redacção desse diploma, correspondia à redacção do actual nº 3 e visou consagrar autonomamente o princípio da indivisibilidade das consequências do não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes do crime, na base da constatação de que em direito penal o que releva é o crime, não sendo admissível escolher quem deverá ser perseguido em caso de comparticipação.

A resposta à questão suscitada há-de encontrar-se necessariamente na interpretação teleológica da norma, reportada ao fim ou objectivo por ela visado, em contraponto com a demais regulamentação do sistema.

O traço distintivo resulta com clareza da análise global do Título IV do Livro I do Código Penal, como se verá já de seguida.

A primeira norma deste título, o art. 113º, regula a legitimidade para o exercício da queixa, dispondo sobre a titularidade e condições de exercício do respectivo direito.

O art. 114º, por seu turno, dispõe sobre a extensão dos efeitos da queixa, estipulando que basta a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes para tornar o procedimento criminal extensivo aos restantes. Esta norma tem a ver não tanto com a queixa contra o autor do crime, mas sobretudo com a queixa pelo crime. O autor do crime até poderá ser desconhecido do queixoso no momento da apresentação da queixa, assim como poderá ser desconhecida a existência de eventuais comparticipantes, vindo a apurar-se a sua existência e identificação no decurso do inquérito. A expressão procedimento criminal utilizada no art. 114º do Código Penal tem essencialmente o sentido de investigação ou inquérito. Fundamental para o início do procedimento criminal, para a abertura do inquérito por crime de natureza semi-pública, é apenas e tão-só a apresentação de queixa.

Apresentada esta apenas contra um dos comparticipantes, os seus efeitos estendem-se aos demais.

O que não significa, no entanto, que essa extensibilidade afaste ou exclua o funcionamento dos demais pressupostos de validade. Se é certo que o M.P. tem legitimidade para prosseguir com o procedimento criminal contra os comparticipantes na fase de inquérito com base na apresentação de queixa contra apenas um deles, em bom rigor já não a terá para deduzir acusação sem precedência de queixa contra todos os comparticipantes, já que assume preponderância a natureza semi-pública do crime, tornando-se exigível na fase de acusação a verificação dos pressupostos do procedimento criminal relativamente a todos os comparticipantes.

É esse, precisamente, o significado do princípio da indivisibilidade a que antes aludimos e é esse o alcance prático da norma constante do art. 115º, nº 3, do Código Penal.

Na verdade, os arts. 115º e 116º regulam os três modos distintos de extinção do procedimento criminal – extinção do direito de queixa por caducidade (decorrente do não exercício tempestivo do direito), nos termos previstos no art. 115º; renúncia, nos termos previstos no art. 116º, nº 1; e desistência, conforme o previsto no art. 116º, nº 2 – enquanto que o art. 114º é uma norma claramente virada para a investigação a desenvolver numa fase anterior à acusação».

Este princípio da indivisibilidade da queixa - e da acusação – tem como objectivo, na linha do opinado por Germano Marques da Silva (cfr. fls. 265/266 do vol.1, 2ª ed., do seu Curso de Processo Penal), obstar, atento o regime estabelecido nos arts. 114.º, 115.º e 116.º do CP, a que o titular do direito de queixa escolha apenas um dos comparticipantes, perdoando aos demais, caso em que a perseguição teria então mais natureza pessoal do que em razão do crime praticado.

No fundo, a queixa traduz-se na manifestação de vontade de instauração de um processo para a averiguação da notícia do crime e do respectivo procedimento contra os agentes responsáveis, constituindo um direito que deve ser exercido contra todos os comparticipantes do crime.

Ora, o não exercício desse direito de queixa ou de acusação particular relativamente a um dos comparticipantes aproveita aos restantes visto que o que essencialmente está em causa é a perseguição do crime praticado e não apenas a satisfação dos ditos interesses de natureza pessoal.

Como adianta Luís Osório (Comentário ao C. P. Penal Português, I, 153), «a participação é indivisível pelo que ou abrange todos os agentes ou não tem existência» - não pode, pois, o queixoso limitar a acção da justiça a determinadas pessoas ou excluir outras, pelo que qualquer limitação se deve ter por não escrita.

4.3. No nosso caso, temos uma situação em que discute a eventual comparticipação criminosa (artigo 26º do CP), entre advogados subscritores da peça dita injuriante e os mandantes dos advogados.

A este respeito é possível configurar três situações distintas, como aliás, bem se refere no Ac. da RC de 1.03.89, in CJ, Ano XIV, tomo 2, p. 76):

· Uma em que o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse depois de o advertir expressamente das consequências que daí podem ocorrer;

· Outra em que o autor do escrito é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente, que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é difundido;

· Finalmente, aquela em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade.

Se na 1ª hipótese se poderá configurar um exemplo de comparticipação criminosa[4], e na 3ª um caso em apenas se admite a responsabilidade exclusiva do cliente [ao agir no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pelo cliente correspondem à verdade, o advogado não tem a intenção - e nem sequer configura a possibilidade - de preencher o (tipo de) ilícito (do art. 181º), faltando-lhe, portanto, o dolo (do tipo), sendo o cliente autor mediato do crime de injúria (art. 26º) e o advogado um seu instrumento], já na segunda situação estamos perante um ilícito cometido apenas pelo advogado.

Aqui chegados, há que dizer que ao contrário do que se sustenta no despacho recorrido, existem claros e lógicos indícios de que o escrito em causa foi produzido por mandatários, sem conhecimento e vontade da sociedade mandante.

A respeito da comparticipação criminosa (artigo 26º do CP), opinou Faria da Costa, in “Formas do Crime, Jornadas de Direito Criminal”, pg. 169 e segs.:

«Todavia, para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime juntamente com outro ou outros. É evidente que na sua forma mais nítida tem de existir um verdadeiro acordo prévio – podendo mesmo ser tácito – que tem igualmente de se traduzir numa contribuição objectiva conjunta para a realização típica. Do mesmo modo que, em princípio, cada co-autor é responsável como se fosse autor singular da respectiva realização típica...”».

No nosso caso, parece-nos claro que o articulado foi elaborado por mandatários, sem o tácito ou expresso acordo da mandante, pois estamos perante avaliações técnicas e jurídicas, pouco próprias de cogitação por parte de uma vulgar sociedade comercial, até sediada nos EUA, representada por uma senhora de nome « …  » que, com toda a certeza, outorgou uma procuração forense a advogados para a realização de actos lícitos e nunca ilícitos.

É ainda verdade que o crime em apreço – injúria – não consta do elenco do artigo 11º/2 do CP (aqueles que admitem a responsabilidade criminal das pessoas colectivas), revisto em 2007.

De facto, o art. 11º, na redacção de 2007, veio consagrar tal responsabilização, optando-se pela identificação de um catálogo de crimes, em vez da sua aplicação à generalidade dos crimes (estamos, contudo, com Carlos Adérito Teixeira - “A pessoa colectiva como sujeito processual: a «descontinuidade» processual” - quando revela estranheza pela opção em causa, na medida em que o raciocínio de que há crimes para os quais não faria sentido estabelecer a responsabilidade colectiva, dada a natureza do crime e a componente de acção humana individual que neles se exige, valeria em igual medida para crimes que apresentam elementos típicos da mesma índole (v.g. alguns crimes de ordem sexual que constam do catálogo).

Mas a verdade é que é a lei que temos.

Antes de 2007, o direito português não conhecia o princípio geral da responsabilidade criminal das pessoas colectivas, mas conhecia o princípio geral da responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas e o princípio da responsabilidade criminal das pessoas colectivas em certas áreas delimitadas de criminalidade.

Não existia, de facto, razão válida para continuar a acantonar esta realidade nas fronteiras do Direito penal económico ou a camuflar a sua existência através do crescente recurso a diplomas extravagantes sectoriais.

Esta responsabilização penal das pessoas colectivas assenta na absoluta necessidade de usar os meios repressivos próprios do Direito Criminal no combate às novas formas colectivas de delinquência.

E essa lei inovadora em 2008 aplica-se aos crimes elencados no nº 2 do artigo 11º, salvo disposição em contrário da legislação especial[5]

Como bem refere Nuno Brandão em obra já atrás referenciada:

Como tal, poderemos dizer que uma pessoa colectiva, em si, nunca poderá ser autora de um crime de injúria, podendo colocar-se a questão da responsabilidade penal individual dos seus agentes, a qual, nos termos do artigo 11º/7 do CP, pode ser cumulativa com a das pessoa colectiva.

Na realidade, quando se esteja perante responsabilidade criminal da pessoa colectiva, acolheu-se o modelo da responsabilidade concorrente, mormente no precursor artº 3º do D.L. 28/84, prosseguido igualmente na crescente expansão da responsabilidade penal dos entes colectivos para o Direito Penal principal, mormente na revisão operada pela Lei nº 59/2007, de 4/9.

Mesmo nesse domínio, com densidade ético-social e desvalor acrescidos, o legislador afirma a autonomia da responsabilidade e responsabilização da pessoa singular e da pessoa colectiva.

Diz o nº 7 do artº 11º do Código Penal: «A responsabilização das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes».

Segundo Germano Marques da Silva, «o art. 11º do Código Penal parece assentar a responsabilidade da pessoa colectiva na acção e culpa das pessoas físicas que, ocupando uma posição de liderança, agem em nome dela, partindo da ideia de que essas pessoas físicas não são distintas da sociedade pelo que ao agirem é a própria pessoa colectiva que age.

Ora, a partir do pressuposto que as infracções são cometidas pelas pessoas que na pessoa colectiva ocupem uma posição de liderança, parece ser condição necessária da responsabilidade das pessoas colectivas que os titulares dos seus órgãos, os seus representantes ou outras pessoas que nela tiverem autoridade para exercer o controlo da sua actividade tenham praticado um crime.

Não parece exigir que essas pessoas físicas sejam efectivamente condenados, mas, numa interpretação literal do texto, é necessário que pelo menos seja apurada a culpa dessas pessoas físicas que actuam em nome e no interesse da pessoa colectiva».

E QUANDO ESTAMOS PERANTE A RESPONSABILIDADE CRIMINAL INDIVIDUAL DOS PRÓPRIOS AGENTES DA PESSOA COLECTIVA?

Como bem opina Germano Marques da Silva no artigo «Responsabilidade penal das pessoas colectivas – alterações ao CP introduzidas pela Lei n.º 59/2007 de 4 de Setembro», Jornadas de CP/CEJ:

«O facto de a infracção ser cometida por conta de um terceiro nunca foi, no domínio do direito penal, uma causa de irresponsabilidade do seu agente; assim também no domínio dos ilícitos em que é admitida a responsabilidade das pessoas colectivas e entes equiparados.

A vontade do órgão ou do representante da pessoa jurídica não só é uma vontade paralela, mas é também, em parte, a vontade do titular do órgão, que é pressuposto e elemento da vontade da pessoa jurídica. Existe, pois, uma dupla culpabilidade.

Atente-se que a lei se refere no n° 7 do art. 11º, como também se refere no artigo 3° do Decreto-Lei n° 28/84, à responsabilidade individual dos respectivos agentes.

A lei não dispõe que a responsabilidade seja necessariamente cumulativa, ressalva-a simplesmente, no sentido de a não excluir. Por isso que pode ocorrer a responsabilidade concorrente, mas não necessariamente e não em dois sentidos:

a)- Pode existir responsabilidade do agente individual sem responsabilidade do ente colectivo; e

b) Pode existir responsabilidade do ente colectivo sem responsabilidade de agente individual, o que sucede na hipótese de órgão plural em que algum dos membros actue sem culpa, nomeadamente por erro excludente da culpa.

O que parece e é conforme à dogmática penal é que a lei exige culpa da própria pessoa colectiva como pressuposto da sua responsabilização, do mesmo modo que exige a culpa do agente individual para a sua própria.

(…)

De qualquer modo importa desde já insistir em que não há responsabilidade penal sem culpa própria e, por isso, quer a pessoa física, quer a pessoa colectiva só responderão pela própria culpa.

Podem ou não responder cumulativamente, mas sempre por culpa própria».

4.4. No nosso caso, a questão que se coloca é esta:

Estaremos perante um caso de culpa do agente da pessoa colectiva, em termos tais que poderá justificar cogitar ter havido uma situação de comparticipação entre os advogados autores da peça dita injuriosa e o indivíduo « …  », é «Senior Vice President, General Counsel e Directora»?

Ora, nos nossos autos, resulta à evidência – não se exigindo um acrescido esforço de lógica – que tudo indicia que não foi a dita  … que elaborou o articulado em causa, sendo o seu texto da inteira lavra de advogados que patrocinaram a pessoa colectiva nesta luta forense.

Sabendo-se que é autor imediato quem executar o facto, por si mesmo (art. 26º, 1ª parte, do CP), o autor imediato do crime de injúria em causa é, naturalmente, o advogado autor[6] da peça e não o agente da pessoa jurídica.

Tão pouco pode assacar-se à dita agente a qualidade de co-autora do aludido crime de injúria.

Recordemos que para a afirmação da co-autoria, o artigo 26.º do Código Penal exige uma decisão conjunta, um acordo prévio tendente à realização do tipo de crime, e uma execução conjunta do facto, isto é, que o agente tome parte directa na sua execução.

Ou seja, quando se fala em co-autoria (comparticipação criminosa), sabemos que tem que existir uma distribuição complementar de tarefas para levar a cabo o crime.

Para se afastar qualquer intervenção na execução, que seja só de cúmplice, importa que o co-autor tome parte na execução “de modo directo”, com isso se querendo aludir a uma intervenção essencial em termos de causalidade adequada (v.g. Eduardo Correia).

Ou então que tenha o domínio funcional do facto (Roxin) sempre que, tendo em conta certo estádio de execução, a intervenção do co-autor for indispensável à execução do crime, sob pena de sem ela o plano de conjunto falhar.

De facto, não existem quaisquer indícios nos autos no sentido de que entre a dita Linda Vogel, cidadã americana, com toda a certeza pouco versada em matéria jurídica, e os advogados da empresa que a emprega tenha existido um acordo prévio tendente ao cometimento do crime de injúria, tendo como objecto injuriado uma específica Juíza portuguesa.

Finalmente, a mesma agente também não é autora mediata do crime em causa,  pretensamente cometido no mencionado articulado.

É autor mediato quem tem o domínio do facto, porque domina um instrumento humano, o executor, aproveitando-se de uma deficiência deste.

Nos casos de autoria mediata, ao executor falta o domínio da acção, seja porque actua sob coacção absoluta, seja porque age em situação de erro sobre a factualidade típica, seja porque é inimputável, ou porque age sem consciência da ilicitude [FIGUEIREDO DIAS in Direito Penal, Sumários, Lições dactilografadas, pág. 61].

É o autor mediato quem tem o domínio do facto e o domínio da vontade, uma vez que o executor está a ser por aquele instrumentalizado.

Ora, no caso dos autos, o autor imediato (o advogado autor das peças processuais onde foram utilizadas as aludidas expressões) não foi, evidentemente, instrumentalizado pela Senior Vice Presidente da empresa em causa.

Nem sequer se pode considerar que a dita agente foi quem instigou os advogados que redigiram e subscreveram tal peça processual a fazer as afirmações e alegações que delas constam, ou seja, quem o determinou à prática do crime de injúria (cfr. a parte final do cit. art. 26º do Cód. Penal).

De facto, determinar outra pessoa à prática de um crime significa criar nela a decisão de o cometer.

Ora, no caso em apreço, nada há nos autos que indicie que a dita agente deu indicações aos advogados que patrocinaram a empresa no mencionado processo judicial para “optar por tal linha de argumentação” ou “determinou o uso das expressões em causa”.

«De resto, tanto à luz das regras estatutárias por que se rege o mandato judicial, como à luz das regras retiradas da corrente experiência de vida, é sempre ao advogado que cabe definir qual o melhor meio, judicial ou não, de salvaguardar os interesses do seu cliente, cabendo-lhe também empregar o seu melhor empenho para atingir esse fim.

Não é o cliente quem ordena ao advogado qual a diligência judicial a que recorrer, nem é o cliente que dita ao advogado os termos das peças a produzir, nem quaisquer outros pormenores do patrocínio. O cliente pede ao advogado que o patrocine ou defenda em determinada causa, relatando-lhe os factos que sirvam de base de trabalho ao advogado, e nada mais do que isso. O texto dos seus articulados é da inteira lavra, e também responsabilidade, do advogado.

Assim, não só não se recolhem dos autos indícios suficientes de que o cliente ora arguido tenha determinado dolosamente o advogado a empregar as expressões em causa, como resulta antes indiciado dos autos que tal não aconteceu.

Em princípio, o advogado actua em representação do cliente, no exercício do mandato conferido, sendo um profissional dotado de liberdade e autonomia técnicas e assumindo, portanto, a autoria de tudo quanto escreve nos articulados processuais por ele subscritos.

(…)

Donde que, a haver responsabilidade criminal pelo uso das expressões acima transcritas empregues nos articulados do aludido processo judicial, a mesma teria de ser imputada, não ao arguido mencionado mas exclusivamente ao advogado signatário dos articulados processuais em causa» (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 9/2/2005, relativamente ao processo n.º 0346713).

O conteúdo da peça dita injuriante é o resultado do trabalho intelectual de advogados (quais em concreto, decidirá agora a Exmª JIC), em conformidade, aliás, com as declarações produzidas em sede de instrução, pelos próprios arguidos (cfr. gravações efectuadas e ouvidas por nós[7]) e pelas testemunhas ... e ...Santos (que disse, em gravação ouvida por nós, que vários advogados trabalharam no processo, o que só pode significar que foram autores de peças para aí redigidas).

O depoimento escrito do Dr. ... é elucidativo a este propósito:

«(…)

O resultado final é que os Bancos viram os seus créditos pagos, pelo menos em parte, através do activo do Grupo Investvar, ao passo que os demais credores não receberam nada. E foi isto o que, muito sucintamente, se passou. Ora, o entendimento defendido neste processo por parte dos mandatários do W... foi de que toda esta situação é manifestamente fraudulenta e ilícita, por contrariar o regime do Código da Insolvência e da Recuperaçâo de Empresas e o regime dos grupos de sociedades constante do Código das Sociedades Comerciais, para além de violar vários princípios constitucionais, tutelados pelo direito penal e a Constituição, como a não discriminação entre credores e o princípio da igualdade.

Nesse sentido, alertaram por diversas vezes o Tribunal, tal como alertaram o Fundo envolvido e o Administrador de Insolvência.

Tais alertas, que foram abundantes e que se manifestaram através de requerimentos, recursos ou reclamações, foram sempre em vão.

Em todas essas manifestações ficou cabalmente alegada a ilicitude e as consequências para os credores das condutas e dos objectivos perseguidos mas, ainda assim, todas elas foram, pura e simplesmente, ignoradas pelo Tribunal, pelo Fundo e pelo Administrador de Insolvência.

Com efeito, a conclusão destas condutas e a consequente dissipação do património do Grupo Investvar só foram possíveis porque nenhuma destas entidades entendeu sequer averiguar quais as consequências dos factos acima descritos e qual a sua regularidade.

(…)

Assim, resulta claro da análise dos Autos que as decisões aí referidas do Juízo do ... de ... tiveram por consequência a total impossibilidade de o W... reagir, em tempo útil, contra a primeira decisão de absolvição da Investvar Comercial, SGPS, S.A., do pedido de insolvência, o que foi feito de forma absolutamente inqualificável, sem sequer terem sido ouvidas as testemunhas indicadas por uma das Partes.

Na verdade, não só a nomeação de um Administrador Judicial Provisório ficou prejudicada, como também a sindicância dessa decisão de mérito foi impedida, ao terem sido retidos os recursos dessa sentença, que já só foram inexplicavelmente admitidos quando já nenhum ou quase nenhum efeito útil poderiam ter no processo, isto é, já só depois de o património do Grupo ter sido dissipado, como já vimos supra.

Importa ainda ter presente que eu não conheço, nem os meus Colegas Senhores Drs. B..., A...e C...conhecem a Senhora Dra. .... Nunca estivemos com a Mma. Juíza, nem sequer em qualquer diligência ou acto processual.

Nunca houve, por isso, qualquer intenção de atingir a Mma. Juíza.

O que houve, isso sim, foi um alerta para que o Tribunal, enquanto órgão jurisdicional e de soberania, impedisse a verificação de processos e procedimentos como aqueles que se vieram a verificar.

Com efeito, tendo analisado o processo e todas as peças processuais enviadas do nosso escritório para os diversos tribunais, o que verifico é que, passo a passo, requerimento a requerimento, os autores dessas peças processuais foram avisando, levando ao Tribunal, a todo o Tribunal, todos os elementos necessários para que este pudesse, por si, concluir pela irregularidade do que ia sendo processado, dos actos que iam sendo praticados.

Com veemência crescente, os advogados foram alertando - não só no processo como fora dele - para o prejuízo que se causava aos credores pelo tratamento parcelar do grupo e para o facto de ser ilegalmente proibida a discriminação de credores, particularmente em processos de insolvência.

O Tribunal foi sempre indeferindo, desentranhando, desconsiderando os requerimentos e alertas feitos até que, a certa altura e como pude verificar pela sequência das peças constantes do processo, começaram a ser repetidos os alertas, como que se dizendo “o rei vai nu”, e acrescentando que todos aqueles factos não estavam a ser considerados pelo Tribunal, que não estava a ver o que se estava a passar, só se olhava para a árvore, não para a floresta, apesar de se estar na posse de todos os elementos necessários para o efeito.

(…)

No caso em apreço, o que verifico é que os autores das referidas expressões apenas demonstraram o seu descontentamento pela forma como as normas do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e do Código das Sociedades Comerciais estavam a ser aplicadas.

Por outro lado, demonstraram também, e somente, a sua indignação com a desnacionalização do processo de insolvência. Insurgiram-se contra o facto de o Tribunal, em flagrante atropelo ao mais elementar dos direitos dos credores - ser tratado com igualdade - apenas pretender consolidar a situação de facto, e tanto assim foi que o Tribunal não permitiu a subida dos recursos até essa situação estar consolidada, bem como decidiu matéria de facto sem sequer ouvir as testemunhas indicadas por uma  das Partes.

(…)

Estou, por isso, certo de que logo que esse Tribunal de Instrução Criminal analise e compreenda, a fundo, o que realmente se passou nos processos de insolvência do Grupo Investvar, e as terríveis consequências que o mesmo teve, perceberá certamente o sentido do alerta efectuado e compreenderá que se tratou disso mesmo: de um alerta, e não de uma injúria, e muito menos a qualquer Juiz, em particular, dirigida. Neste sentido, e por tudo o que expus, confirmo que os arguidos não foram os autores, nem materiais nem morais, das expressões em causa nos presentes autos, e acrescento que tais expressões de alerta, além de não serem sequer aptas a ofender quem quer que seja, foram utilizadas no processo Investvar apenas com esse sentido de alerta para uma situação que era ilícita, e nunca para injuriar ou atingir directamente a honra de fosse quem fosse».

As partes sublinhadas e a bold falam por si – alguém poderá supor que estas conclusões jurídicas são da autoria da Srª … ? É tudo demasiadamente técnico para poder ser atribuído a um agente de uma pessoa colectiva estrangeira, com toda certeza, não familiarizada com os trâmites substantivos e processuais de uma ordem jurídica estrangeira!

E essa é uma conclusão óbvia de quem quer olhar para o processo com objectividade e transparência (note-se que em lado nenhum do RAI, o ilustre mandatário dos arguidos avança com este argumento da indivisibilidade da queixa, só o avançando em sede de resposta o recurso, o que não deixa de ser sintomático!).

Concorda-se que o MP, aquando da dedução da acusação contra os 3 arguidos deveria, em rigor, deixar uma palavra relativamente à pessoa da agente da mandante, salvaguardando a hipótese de alguém vir até suscitar essa questão prévia.

Contudo, não está agora o JIC impedido de fazer um juízo de valor sobre os indícios da autoria do escrito dito injuriante, lançando mão dos depoimentos produzidos em instrução, dos documentos exarados nos autos e das regras da experiência comum.

Ou seja, a ausência de interferência entre mandante e mandatário foi, a nosso ver, verificada, em sede instrutória, não havendo obstáculo a que se prossiga a acção penal apenas contra estes 3 mandatários (assente que se torna lógico para uma queixosa apresentar queixa criminal por injúria contra os 3 nomes de advogados que subscrevem a peça tida como injuriosa).

É isso mesmo que hoje fazemos, ao contrário do despacho recorrido que optou por uma fria justiça formal, não entrando no mérito do RAI, como podia e devia.

É o que terá de fazer agora, por força desta nossa decisão!

Note-se, a finalizar, que a panóplia de arestos elencados na decisão recorrida fala de situações factuais muito diversas da nossa, em todas elas havendo uma ligação muito íntima entre o que um advogado escreve no processo e aquilo que ouve, de viva voz, da boca do seu cliente.

Aqui, não há nada disso – há apenas alegações estritamente jurídicas, de enorme complexidade técnica, a indiciar fortemente que saíram da lavra, da pena e da mente dos causídicos que deram a «cara» por elas em tribunal…

Como tal, a queixa foi bem apresentada apenas contra os 3 arguidos, não havendo que accionar penalmente a agente da mandante, o que significa que não faz sentido invocar o princípio da indivisibilidade da queixa, tal como o arquitectou o despacho recorrido, de forma assaz forçada.

4.5. Como tal, só poderá proceder o recurso, embora de forma parcial (na medida em que não iremos, como pretende a recorrente, proferir um DESPACHO DE PRONÚNCIA).

 

            III – DISPOSITIVO

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em:

· conceder parcial provimento ao recurso interposto pela assistente Drª … e, em consequência, revogar o despacho recorrido, datado de 18/11/2011, o qual deverá ser substituído por outra DECISÃO INSTRUTÓRIA (artigos 307º e 308º do CPP), que conheça do fundo/mérito do RAI apresentado pelos arguidos, assente que o alegado princípio da indivisibilidade da queixa não procede neste caso, nada obstando a tal conhecimento de fundo (despacho de pronúncia ou não pronúncia).

            Sem custas.

           

Paulo Guerra (Relator)

Alberto Mira



[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.

[2] Sabemos que a fase da instrução, em processo penal, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não uma causa a julgamento - art. 286º, n.º1 do CPP -, no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação.

A pronúncia só deve ter lugar quando tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente - artigos 283º e 308º, n.º 1 do CPP.

Já na decisão instrutória de não pronúncia, o juiz decide que os autos não estão em condições de prosseguir para a fase de julgamento, por não se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança criminais.

Adianta o art. 308º, n.º 1 do CPP:

“Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Por seu lado, o artigo 283º, n.º2 do mesmo diploma - aplicável por força do disposto no n.º 2 do art. 308º - estipula que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.

Ora, o que se entende, nesta sede, por “indícios suficientes”?

Tem-se tal entendido como a verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar - com um juízo de certeza e não de mera probabilidade - os elementos constitutivos da infracção por que os agentes virão a responder – Acórdão do STJ de 10/12/1992 (pr. n.º 427747, consultado em http://www.dgsi.pt).

O Professor Figueiredo Dias doutrina que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que absolvição. (…) (…) na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação” (Direito Processual Penal, pág. 133-134).

Indícios, no sentido da expressão contida no artigo 308º do CPP, são, assim, vestígios, presunções, suspeitas, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e que o responsável pela sua prática é o arguido, não sendo necessário para a pronúncia uma certeza da existência da infracção, juízo que se guarda como imprescindível para a convicção do juiz do julgamento – basta-se a lei e a doutrina dominante com um grau de suficiência e quantidade de indícios, de forma a que, todos relacionados e conjugados entre si, constituam um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é criminalmente imputado.

De facto, para a pronúncia ou para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, bastando-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência.

Sem esquecer que no juízo de quem pronuncia, tem de estar presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade da sua protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, aqui se invocando preceitos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, com incidência constitucional entre nós, tem sido entendido que esta possibilidade razoável de condenação é um possibilidade mais positiva do que negativa - o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.

Ou seja, os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Traçando o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante, o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta.

O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade de da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim de uma fase preparatória como é a INSTRUÇÃO.

Tal significa que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento.

Veja-se, no entanto, que se logo a este nível do juízo, no plano dos factos, se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não devem ser considerados suficientes, não havendo prova bastante para a pronúncia.

Tal juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (incontornável) de discricionariedade.

A opção por um despacho de pronúncia depende, pois, da existência de prova indiciária, de prima facie, de primeira mas razoável aparência, quanto à verificação dos factos que constituam crime e de que alguém é responsável por esses factos.

Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é necessário, não obstante, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.

A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária.

Como explica Germano Marques da Silva, o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios "enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime".

É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no artigo 308º do CPP.

Chama-se também a atenção para o facto de, nesta fase preliminar do processo, não se visar "alcançar a demonstração da realidade dos factos”, mas apenas sinais de que o crime se verificou, praticado por determinado arguido. Como conclui Germano Marques da Silva, "as provas recolhidas nas fases preliminares o processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de era decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento".

Interpretando o exposto, nesta fase preliminar que é a instrução, não se pretende uma espécie de "julgamento antecipado" nem um juízo de certeza moral e de verdade que são pressupostos da condenação, mas tão só a verificação de existência de indícios de que determinado crime se verificou e que existe uma probabilidade séria, aferida pela positiva e objectivamente, de que o mesmo foi praticado por um ou mais arguidos, e assim se apreciando a decisão do Ministério Público ou do Assistente de acusar.

Nessa verificação deverá, contudo, o julgador interpretar criticamente e no seu prudente arbítrio os indícios recolhidos em sede de inquérito e instrução.

Em qualquer dos casos, essa verificação da suficiência de indícios não implica apreciação do mérito da acusação, no mesmo sentido em que tal ocorre na audiência de julgamento, apenas se julgando a verificação dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento.

[3] O despacho recorrido é claro: «Fica, assim, prejudicado o conhecimento das questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução apresentado pelos arguidos, questões essas tendentes a obter uma decisão de não pronúncia».

[4] Tem-se, assim, entendido que a responsabilidade exclusiva do cliente deve ser liminarmente excluída quando na peça processual seja relatado um facto ofensivo da honra de outrem, na medida em que o advogado, profissional forense com a responsabilidade de conduzir técnica e processualmente a lide, em nome e em representação dos seus constituintes, está vinculado por um dever geral de urbanidade (art. 89º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo DL n.º 84/84, de 16.03), devendo, no exercício da sua actividade, evitar a prolação de factos susceptíveis de ofender a honra e a consideração de outrem.

Aliás, «melhor do que ninguém o advogado deve saber em que consiste o crime de difamação e avaliar quando esta não é necessária para a defesa da causa que lhe foi confiada» (L. da Silva Araújo, Crimes Contra honra, Coimbra, 1957, pgs. 66-67).

Desta forma, cabe-lhe a função de filtrar aquilo que lhe é relatado pelo cliente, não deixando transparecer quaisquer expressões que se não contenham dentro das margens da veemência e da energia que a defesa dos interesses daquele exigem - cfr. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, VIII, Coimbra, 1933, pgs. 513 - 514, e Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Coimbra, 1996, pgs. 79 e 55.

[5] Veja-se, com interesse na abordagem deste problema da responsabilização penal das pessoas colectivas:

[6] E ISTO independentemente da decisão que vier a recair, em sede de despacho final da instrução, sobre o alegado nos artigos 50º a 56 do RAI – ou seja, alegam os arguidos, em sede instrutória, que não foram eles os autores da peça em causa (assente ainda que quem envia a peça por via electrónica pode nem sequer ser o seu autor), podendo ter sido autor qualquer um dos cerca de 20 causídicos da sociedade de advogados, porque todos estiveram envolvidos neste processos, não obstante ficar por explicar, à luz da mais humana lógica, como é que aparece uma procuração forense, datada de 18/12/2009 (logo anterior à data da entrada em juízo – 6/5/2010 - da peça onde se insere o escrito pretensamente injurioso, a fls 87), e outorgada precisamente aos 3 advogados constituídos arguidos neste processo criminal!
Diga-se ainda que o Dr. Pinto Ribeiro foi Ministro da Cultura do XVII Governo Constitucional de Portugal, desde 29/1/2008 até Outubro de 2009 (veja-se que o Governo seguinte - XVIII Governo Constitucional - foi formado com base nas eleições legislativas de 27/9/2009, tendo o Governo entrado em funções em 26/10/2009, o que significa que a procuração dos autos foi outorgada numa altura em que o Dr. Pinto Ribeiro já não exercia funções ministeriais, ao contrário do que se parece sustentar no ponto 8 do RAI).

[7] Note-se que a instrução não teve como objecto saber se o mandante tinha ou não conhecimento das expressões ditas injuriosas (NA MEDIDA EM QUE TAL QUESTÃO NEM SEQUER FOI INVOCADA EM SEDE DE RAI), mas apenas apurar se estes 3 arguidos foram ou não os verdadeiros autores da peça em causa.
Contudo, da audição dos seus depoimentos, é possível concluir que:
- a arguida Drª A...Pinto da Silva, que trabalha no Departamento de Direito Comercial deste escritório de advogados, referiu que começou por acompanhar o processo em causa, na companhia do arguido Dr. B..., tendo sido eles que decidiram requerer a insolvência da INVESTVAR – foi o arguido Dr. B..., juntamente com o Dr. C... Costa Monteiro, do primeiro estagiário, que fez o requerimento de insolvência, tendo sido esse requerimento enviado pelo computador/citius da depoente. A partir dessa altura, a depoente subscreve – fez materialmente – requerimentos para esses autos, nomeadamente uma peça de embargos, uma peça de insolvência e uma peça de recurso de decisão de insolvência, alegando não ter sido de sua lavra o requerimento de reclamação desse despacho de não admissão de recurso (onde constavam as frases ditas injuriosas): ora, independentemente de acreditarmos ou não nesta versão (o que competirá à Exmª JIC, em sede de despacho final de instrução), a verdade é que a causídica é clara em afirmar que houve peças processuais que foram materialmente feitas pelos advogados da sociedade, o que só pode significar que não houve qualquer específico acordo entre o advogado e a agente da pessoa colectiva, no sentido de se dizer «isto» ou «aquilo»…
- já o arguido Dr. B..., que assumiu a direcção da sociedade de advogados aquando da ida do Dr. Pinto Ribeiro para o Ministério da Cultura, alegou não ter elaborado peças processuais neste processo, nem sequer sabendo quem as fez.
- finalmente, o arguido Dr. C... Costa Monteiro, estagiário do Dr. B..., confirmou que as peças foram todas elaboradas por advogados da sociedade, não tendo sido ele o autor da peça dita injuriante.