Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3988/16.6T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: REGISTO DA AÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 02/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 4
S
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 608º Nº 2 E 281º Nº 4 DO CPC E 8ª-B Nº 3 AL. A) DO CRPREDIAL
Sumário: I - Podendo/devendo o tribunal apreciar não apenas questões colocadas pelas partes, mas também as que a lei lhe impõe oficiosamente conhecer – artº 608º nº2 do CPC - e sendo o decretamento da deserção da instância uma delas – artº 281º nº4 – o conhecimento desta não acarreta a nulidade da respetiva decisão por excesso de pronúncia – artºs 609º nº1 e 615º nº1 al. d).

II - O disposto no artº 8º-B nº3 al. a) do CRPredial, não proíbe que a parte, voluntariamente ou a pedido/imposição do tribunal, diligencie pelo registo da ação.

III -A necessidade de audição prévia da parte para se concluir se ela atuou com negligência, requisito necessário - em concurso com o decurso do prazo de seis meses – para o decretamento da deserção da instância – artº 281º do CPC -, tem de ser aferida em cada caso concreto, sendo determinante saber se a parte teve, ou não, conhecimento claro das consequências da sua inércia.

IV - Se a autora, onerada com o registo da ação, nada prova ter feito durante quatro meses e nada diz ao tribunal; e se este, antes de prolatar o despacho decretante da deserção, notifica a mesma para aquele efeito, com a cominação da deserção e, inclusive, com a indicação da data do dies a quo da contagem de tal prazo, continuando a autora queda e muda, decorrido o lapso de tempo legal, pode o tribunal decretar a deserção sem necessidade de, mais uma vez, ouvir a onerada.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

P (…) e outra instauraram contra M (…) e outros, ação declarativa de condenação, com processo comum.

Tem ela como pedido o reconhecimento do direito de propriedade sobre certo imóvel e a sua restituição.

2.

Após os articulados foi proferido despacho que declarou extinta a instância por deserção.

3.

Inconformada recorreu a autora P (…).

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

VIII.I- Da violação do art. 609º do CPC, dos limites da sentença e da actividade do Juiz:

2- O meritissímo Juiz ao não seguir o procedimento processual, como pedido na p.i., violou o art. 609º do CPC, não podendo condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.

3- Além de que se aguardava o registo de acção, cujo ato processual pertencia aos tribunais.

4- Nesta senda, deveria o meritíssimo juiz ter decidido dando seguimento processual à ação, tomando conhecimento da questão de direito, que poderia ser tomada em conhecimento, oficiosamente, pelos meritíssimo, Juiz, cujo registo cabia ao tribunal e não à ora A.

VIII.2 – Das nulidades da sentença, art. 615, d) e e) do CPC:

1- Na decisão verificam-se nulidades da sentença.

2- Foi violado a al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC, nomeadamente por o Meritíssimo Juiz não se ter pronunciado sobre questões que devesse apreciar e conheceu de questões que não deveria apreciar.

3- O executado nunca foi notificado da situação de suspensão processual.

4- Ora in concreto, os Meritíssimo Juiz deveria ter tomado conhecimento dos factos que foram alegados.

5- Foi violado o previsto e estatuído na al. e) nº 1 do art. 668 do CPC, no sentido de que o Meritíssimo Juiz condenou em objecto diferente do pedido.

VIII.3- Da violação do princípio do dispositivo, art. art.5º do CPC:

6- Na elaboração do acordão os juízes só pode servir-se dos factos articulados pelas partes. - Vide in Antunes de Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 413.In concreto o Juiz valorou provas e factos que não foram alegados pelas partes.

 7- Pelo que foi violado o previsto e estatuído no art. 5º do CPC.

VII-4 Da violação do princípio do registo oficioso pelo tribunal pelo tribunais, nos termos do art- 8-B, alínea a do CRP:

 8- O registo de acções é ato processual que cabe aos tribunais:

Artigo 8.º-B

Sujeitos da obrigação de registar

1 - Salvo o disposto no n.º 3, devem promover o registo dos factos obrigatoriamente a ele sujeitos as entidades que celebrem a escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas ou, quando tais entidades não intervenham, os sujeitos ativos do facto sujeito a registo.

 2 - [Revogado].

3 - Estão ainda obrigados a promover o registo:

a) Os tribunais no que respeita às ações, às decisões e a outros procedimentos e providências ou atos judiciais;

b) O Ministério Público, no que respeita às apreensões em processo penal que tenha autorizado, ordenado ou validado, e quando, em processo de inventário, for adjudicado a incapaz ou ausente em parte incerta qualquer direito sobre imóveis;

c) Os agentes de execução, ou o oficial de justiça que realize diligências próprias do agente de execução, quanto ao registo das penhoras, e os administradores judiciais, quanto ao registo da declaração de insolvência.

4 - [Revogado].

5 - A obrigação de pedir o registo cessa no caso de este se mostrar promovido por qualquer outra entidade que tenha legitimidade.

 6 - [Revogado].

7 - [Revogado].

b) Assim, o registo caberia aos tribunais, verificando-se assim, uma nulidade processual, o Tribunal era quem tinha legitimidade, não podendo impor ao A a obrigação, quando a norma é imperativa, do art. 8-B, nº 3 do CRP, tendo sido violado do princípio do registo oficioso pelo tribunal pelo tribunais, nos termos do art- 8-B, alínea a do CRP, cuja nulidade se invoca nos termos legais.

 VIII. 5 - Das disposições legais violadas: 1- Foram violados os artigos 609, 615 do CPC ; artigos 116º, nº 1 e 117-B, nº 1 e 2 do CRP, 2078º do C. C, art.30, nº 3 do CPC, art. 8-B, nº 3 do CRP.(sic)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª – Nulidade do despacho nos termos do artº 615º nº1 als. d) e e) do CPC.

2ª – Ilegalidade do despacho por violação do artº  5º do CPC e do artº 8º nº1 do CRPredial.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

Clama a recorrente que  a sentença é nula por condenar em objeto diverso e para além do pedido, nos termos dos artºs 609º nº1 e  615º nº1 als. d) e e) do CPC.

O artº 615º do CPC estatui quanto às nulidades da sentença.

Como é consabido, as nulidades do citado preceito são meros vícios formais, «handicaps» intrínsecos à própria sentença, em si mesma considerada, que afetam a sua validade/idoneidade/virtualidade na sua idiossincrasia, e enquanto, essencial e primeiro, instrumento jurídico comunicante do processo, o qual se pretende logicamente escorreito e conforme ao objeto do processo tal como delineado pelas partes.

E nada tendo a ver e/ou se confundindo com a maior ou menor curialidade, ou o erro, do, de direito e juridicamente, interpretado e decidido quanto a tal objeto.

Pois que, neste caso, não nos encontramos apenas no mero âmbito  formal da emissão/prolação/publicitação da sentença/acórdão, linear e formalmente adequado ao objeto dos autos, mas antes estamos no domínio do jurídico perspetivado ao quid substantivo/material,  campo este que apenas  admite censura  se ao mesmo puder ser  assacada ilegalidade.

 Do excesso de pronúncia.

Prescreve o nº1 al. d) de tal preceito que a sentença é nula quando:

 «O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

Este segmento normativo conexiona-se com o estatuído nos arts. 154º e 608º do mesmo diploma, ou seja, com o dever do juiz administrar a justiça proferindo despachos ou sentenças sobre as matérias pendentes – artº 152º - e com a necessidade de o juiz dever conhecer das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.

E, bem assim,  de resolver todas as questõese apenas estas questões, que não outras, salvo se de conhecimento oficioso - que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras –artº608º.

Porém, como é consabido e constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, não se devem confundir «questões» a decidir, com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes.

A estes não tem o tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas às pretensões formuladas e aos elementos inerentes ao pedido e à causa de pedir –cfr. Rodrigues Bastos, in Notas ao CPC, 2005, p.228; Antunes Varela in RLJ, 122º,112 e, entre outros, Acs. do STJ de 24.02.99, BMJ, 484º,371 e de 19.02.04, dgsi.pt.

Da decisão ultra petitum.

Dispõe o artº 609º nº1 que «a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir».

E dispõe o artº 615º nº 1 al. e) que «é nula a sentença quanto o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir».

Há decisão “ultra petitum” sempre que o julgador não confina o julgamento da questão controvertida ao pedido formulado pelo autor ou ao pedido reconvencional deduzido pelo réu e conhece, fora dos casos em que tal lhe é permitido “ex officio”, questão não submetida à sua apreciação.

Condenando em quantidade superior ou em objeto diverso o juiz excede o limite imposto por lei ao seu poder de condenar e infringe o princípio do dispositivo que assegura à parte a faculdade de circunscrever o thema decidendum.

Para que não se verifique tal vício terá de existir uma correspondência entre a pronúncia e a pretensão, isto é, a sentença não pode decidir para além do que está ínsito no pedido, nos termos formulados pelo demandante.

Este princípio é válido quer para o conhecimento excessivo em termos quantitativos, quer por condenação em diverso objeto - excesso qualitativo – cfr. Ac. do STJ de 28.09.2006, p.06A2464  in dgsi.pt

            5.1.2.

No caso vertente, e versus o entendido pela recorrente, inexistem os aludidos vícios.

Desde logo no que concerne ao excesso qualitativo por a julgadora apreciar ou conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento.

Efetivamente, o tribunal não apenas pode/deve conhecer de questões colocadas pelas partes, como de questões que, ex vi lege e oficiosamente, está adstrito a conhecer – artº 608º nº2 do CPC.

Ora o decretamento da deserção da instância, na ação declarativa, é uma das questões que se impõe ao tribunal apreciar e decidir.

Na verdade, estatui o artº 281º nº4 do CPC que:

 « A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.»

Efetivamente:

«I – No CPC de 2013, a deserção da instância depende, no processo de declaração, de despacho judicial que, após constatar a inércia negligente da parte em promover os ulteriores termos do processo, a julgue verificada.» - Ac. RL de 06.06.2017, p. 1940/09.7TJLSB.L1-7, in dgsi.pt.

Ou ainda:

« A deserção da instância declarativa opera, necessariamente, mediante decisão judicial e pressupõe a negligência das partes no impulsionamento do processo (carece de ser imputável às partes) (art.º 281º, do CPC) - a deserção não existe enquanto o juiz a não declara no processo respectivo.» - Ac. RC de 17/05/2016, p. 2/14.0TBVIS.C1.

 Já «No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.» - nº5 do artº 281º.

Por conseguinte, inexiste excesso qualitativo de pronúncia, antes o  tribunal, perante a inercia da autora, estando obrigado a emitir despacho fosse de que índole/teor fosse.

Entendeu que estava verificado o requisito fundamentador da deserção.

Poderia assim julgar, como efetivamente julgou.

Se bem ou mal andou, não é questão de nulidade,  é questão de (i)legalidade.

No que tange ao excesso quantitativo o caso é ainda mais claro e inequívoco, pois que a questão é  apenas qualitativa e não quantitativa.

Na verdade, perante a dilucidação da questão da deserção, o tribunal apenas a pode decretar ou não decretar; e inexistindo margem ou, sequer, a lógica possibilidade, para, quantitativamente, ficar aquém ou além de tal decretamento.

Mais uma vez se reitera que a questão é de ilegalidade e não de nulidade.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

Do processo emergem os seguintes factos com interesse para o  objeto do recurso:

1. Em 09.04.2018  foi proferido despacho em que se colocou a questão da junção aos autos da certidão do registo predial do prédio em causa e do registo da ação e da reconvenção.

2. A Srª Conservadora informou que o registo seria de efetuar provisoriamente, por dúvidas quanto à natureza do prédio, se urbano, se misto, e por falta de outros elementos, como a identificação dos ante possuidores – fls. 88.

3. Em 21.06.2018 foi proferido despacho que ordenou que os autos aguardassem o cumprimento, pelos autores, do despacho de 09 de Abril, sem prejuízo do decurso do prazo a que alude o artº 281º nº1 do CPC. – fls.100.

4. A Srª Conservadora  reiterou a informação de  que continuavam a faltar elementos que permitissem o registo da ação, sem ser por dúvidas – fls.103, 112 e 113.

5. Em 01.10.2018 foi proferido despacho no qual, para além do mais, se ordenou a notificação da autora «para diligenciar pela verificação, nos autos, dos pressupostos necessários para remoção das dúvidas a que se reporta o ofício entrado em 05.07.2018, e que lhe foi, então, devidamente notificado»  - fls.117.

6. Em 27.11.2018 foi proferido despacho, notificado, no qual foi expendido: «continuem os autos a aguardar que seja dada resposta ao anterior despacho, sem prejuízo do decurso do prazo a que alude o artº 281º nº1 do CPC – fls. 124.

7. Em 24.01.209 a autora juntou aos autos  informações documentos, em função dos quais entendeu que as dúvidas estavam removidas e, assim, requereu que se procedesse ao registo da ação – fls.125vº.

8. Em 18.02.2019 foi proferido despacho no qual se entendeu que  a mera cópia do BI da autora  não era «próprio» para a comprovação do seu estado civil, ordenou-se-lhe que juntasse certidão do seu assento de nascimento.

9. A autora juntou tal documento.

10. Porém, a CRP continuou a informar que ainda existiam divergências quanto à área do prédio que impediam a remoção das dúvidas – fls 139.

11. Em 13.05.2019 foi proferido despacho no qual se entendeu que o tribunal mais nada podia fazer para remover as dúvidas, incumbindo às partes assumirem tal tarefa, concedendo-lhes, vg. à autora, o prazo de vinte dias para o efeito – fls.143.

12. Em 11.06.2019 foi deferida a pretensão da autora na prorrogação de tal prazo por mais dez dias.

13. Em 05.09.2019 e perante o silêncio da autora foi proferido despacho para que os autos aguardassem o registo da ação sem prejuízo do decurso do prazo a que alude o artº 281º nº1 do CPC – contado a partir do termo do prazo concedido no despacho de 11.06.2019. – fsl 149.

14. A autora, até à data da prolação do despacho recorrido, em  10.01.2020,  nada disse.

5.2.2.

Estatui o CPC.artº281º:

1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

Quanto à violação do artº 5º do CPC ela inexiste, pois que, como supra se  demonstrou, o conhecimento  da deserção não está dependente de alegação das partes, antes sendo permitido/imposto por lei.

Outrossim irreleva o argumento de que foi violado o disposto no artº 8º-B do CRPredial.

Certo é que  nos termos deste preceito:

«3 - Estão ainda obrigados a promover o registo:

a) Os tribunais no que respeita às ações, às decisões e a outros procedimentos e providências ou atos judiciais; ».

Mas este segmento normativo deve ser entendido/interpretado habilmente e cum granno sallis.

O tribunal até pode estar vinculado, por princípio, ab initio e liminarmente,  a solicitar o registo.

 Mas, obviamente, devem ser as partes, porque em melhores condições estão para tal, e em homenagem e cumprimento dos princípios da cooperação e da autorresponsabilidade, a colaborarem com o Tribunal e fornecerem a este os elementos necessários para o mesmo.

No caso em apreciação assim aconteceu.

O tribunal pediu o registo; cumpriu, pois, o citado preceito.

Recusado este por falta de elementos, o Tribunal solicitou às partes que diligenciassem pelos mesmos.

Juntos alguns elementos  o Tribunal reiterou o pedido de registo.

Porém, estes elementos apresentados continuaram a revelar-se insuficientes para que o registo da ação fosse efetuado.

Então o Tribunal entendeu que deveriam ser as partes, rectius, na economia do recurso, a autora, a diligenciar pelo mesmo.

Este entendimento do Tribunal afigura-se, perante as eminentes vicissitudes da pretensão registral e os supra aludidos princípios,  acertado, ou, ao menos, admissível.

O qual, mesmo em tese, não é proibido pelo citado artº 8º-B; é que ele, como se disse, firma um princípio: ser o Tribunal a requerer o registo.

Mas desta regra não pode resultar a exegese – como parece ser a da recorrente -  de que  resulte a conclusão de que às partes está proibido  também o requererem.

Antes sendo de conceder, pelo menos em certos casos e dadas certas circunstâncias dos mesmos – como vg. as do presente – que sejam as partes, voluntariamente ou a pedido/imposição do tribunal, a requererem o registo da ação.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, certo é que a recorrente foi notificada do despacho de 13.05.2019 no qual se  considerou que o tribunal mais nada podia fazer para remover as dúvidas, incumbindo às partes assumirem tal tarefa, concedendo-lhes, vg. à autora, o prazo de vinte dias para o efeito.

A recorrente não se insurgiu contra este despacho, antes o acatou, pois que diligenciou nesse sentido e até pediu a prorrogação do prazo para o efeito, em função do que tal despacho transitou em julgado e devia ser cumprido.

Decorrentemente, não pode ela, agora, e em venire contra factum proprium, invocar a violação de uma norma,  a qual, se existisse – e não existe, como se viu -  ela aceitou.

5.2.3.

Dito isto, urge referir que a, real e substancial, dilucidação do caso não passa pela perspetivação da violação dos preceitos aduzidos pela recorrente, mas antes por perscrutar se, in casu, estão preenchidos os requisitos para ser decretada a deserção.

Atentemos, pois, quanto a este verdadeiro cerne.

Perscrutemos.

Na reforma adjetiva de  2013, eliminou-se a figura da interrupção da instância.

Quanto à deserção estatui o artº 281º do CPC:

1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

4 - A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.

O presente regime sobre a deserção da instância diverge do regime do CPC de 1961, tendo, por reporte a este, ocorrido três modificações.

A primeira, e em termos objetivo-temporais, encurtou-se-lhe o prazo de dois anos para seis meses.

 A segunda, e em termos da sua emergência, deixou de ocorrer ope legis, ie. automaticamente decorrido que fosse o prazo de dois anos, antes passando a decorrer ope judici, ou seja, apenas mediante a prolação de despacho judicial.

A terceira, em termos subjetivos de imputação de desvalor de atuação da parte, e, quiçá, como contrabalanço para o encurtamento do prazo, fixou-se como requisito necessário, a existência de negligência sua.

Destarte, presentemente são requisitos cumulativos da deserção, três, a saber:
a) Paragem do processo por mais de seis meses, por a parte, obrigada ou onerada,  ter omitido ato ou informação que  sejam  necessários ao seu prosseguimento;
b) Ser essa  omissão devida à negligência censurável da parte;
c) Deverem tais requisitos ser apreciados e dilucidados por despacho judicial que decretará, ou não, a deserção.

Estas novas exigências vieram originar polémica e divergência acerca da atuação do juiz  e dos  elementos  necessários à substanciação do requisito da negligência que deve estar subjacente a tal despacho.

Para uns,  minoritários, continua a bastar a verificação do decurso do prazo legal.

Para outros, é ainda exigível a negligência,  mas esta não é uma negligência que tenha de ser aferida para além dos elementos que o processo revela, pelo contrário trata-se da negligência ali objetiva e imediatamente espelhada  -negligência processual ou aparente) - presumindo-se, por via de regra, do próprio decurso do prazo, salvo se se factos ou indícios constantes no processo convençam da sua inexistência ou de  causa justificativa para a mesma; e, assim, não tendo o juiz, necessariamente, de ouvir  previamente os interessados.

Assim:

 « Estando o processo a aguardar o impulso processual por mais de seis meses, o juiz pode avaliar se há negligência suscetível de levar à deserção da instância sem que para tal tenha de ouvir as partes. - Ac. da RL de 06.06.2017, p. 1940/09.7TJLSB.L1-7, in dgsi.pt, tal como os infra a referir.

«O despacho a decretar a deserção da instância por força da aplicação do artr.281º n.º1 e 4 do CPC, não tem que ser, obrigatoriamente, precedido da audição prévia das partes nos casos em que, em algum momento nos autos, as mesmas tenham sido alertadas para as consequências da omissão do impulso processual pelo prazo de deserção.» - Ac. da RL de 14.11.2017, p. 217/12.5TNLSB.L1-1.

«…não se duvida, que o art. 281º do CPCivil exige, para que a instância seja julgada deserta, que exista negligência da parte onerada com o ónus do impulso processual. O que significa que a decisão que julgue deserta a instância tem de conter um juízo que aponte para a negligência da parte em termos de impulso processual…

Simplesmente, a negligência de que fala a lei é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência.

 (…) Inexiste fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para a prévia audição das partes no contexto da deserção da instância com vista a aquilatar da negligência da parte a quem cabe o ónus do impulso processual.» - Ac. do STJ de 20.09.2016,  p. nº1742/09.0TBBNV-H.E1.S.

(sublinhado nosso)

Já para outros é sempre necessário ouvir os interessados, dando-lhes a possibilidade de explicitarem o motivo pelo qual não praticaram ainda o ato de que dependia o normal prosseguimento dos autos e, assim, efetivar o cabal e imprescindível exercício do contraditório com vista a uma aturada averiguação sobre a existência, ou não, da negligência.

É esta a interpretação que dimana, vg., dos seguintes Arestos:

 Da Relação de Coimbra. - de 18/05/2016, Proc.º nº 127/12.6TBVLF.C1; - de 14/06/2016, Proc.º nº 4386/14.1T8CBR.C1; - de 04/04/2017, Proc.º nº 407/09.8TBNZR-A.C1; - de 27.06.2017, p. 522/05.7TBAGN.C1; - de  06.03.2018, p. 349/14.5T8LRA.C1 - de 21.03.2018, p. 1703/14.8T8LRA.C1.

Da Relação de Lisboa. - de 26/02/2015, Proc.º nº 2254/10.5TBABF.L1-2; - de 12/05/2015, Proc.º nº 309/14.6YXLSB.L1-7; - de 29/11/2016, Proc.º nº 737/10-6TBPDL-A.L1-7; - de 16/11/2017, Proc.º nº 267/12.1TBVFX.L1-2.  - de 20.12.2017, p. 5379/12.9TBFUN.L1-2. - de 11.07.2019, p. 6387/14.0T8LRS-C.L1-7.

Da Relação do Porto: - de  07.12.2017, p. 7234/10.8TBMAI.P1.

 Acresce que, numa  lógica, adequada e sagaz postura hermenêutica perante o citado artº 281º, tem de entender-se, na economia da sua finalidade e dos efeitos que com ele se pretendem, que, para além  da parte adotar uma postura negligente, sobre ela deve recair um ónus específico de promoção da atividade processual,  ou seja, que esteja obrigada ou onerada com tal prática e que ela seja condição necessária para a continuação da tramitação do processo.- cfr. Ac. da RC de 05.06.2018, p. 1516/13.4TBCLD.C2 e Acs. do STJ de 02.05.2019, p. 1598/15.4T8GMR.G1.S2 e de 03.10.2019, p. 1980/14.4TBVDL.L1.S1.

Temos para nós que  a questão deve ser decidida caso a caso, devendo, para se aferir da negligência censurável, e da necessidade de, para apurar a mesma, ouvir, ou não, a parte, relevar-se, liminar, essencial e determinantemente os elementos já constantes no processo.

Se a interpretação dos mesmos revelar, com segurança, tal atuação negligente, a audição prévia da parte é - por desnecessária e em obediência ao princípio da proibição da prática de atos inúteis, onerosos e dilatórios -, de omitir – artº 130º do CPC.

Se, inversamente, dúvidas existirem quanto a tal negligência e censurabilidade, a audição da parte impõe-se.

E, assim, permitindo-se-lhe que ela possa alegar e convencer sobre a inexistência de negligência sua.

Sendo de notar que o quid nuclear para aferir da necessidade de previamente ouvir a parte é: «…saber se a parte teve conhecimento claro das consequências da sua inércia.» - Ac. RP de 07.11.2019, p. 3958/15.1T8VNG.P1.

Tal iter é o mais consonante não apenas com a melhor interpretação – desde logo a mais prudente e razoável -  do artº 281º do CPC, atenta a comparação com o preceito atinente pregresso – artº 291º -, como, outrossim, é o mais defensável em função do justo equilíbrio que deve ser consecutido entre, por um lado,  a celeridade  e a cooperação, e, por outro lado, o contraditório e a prevalência da decisão de mérito final em detrimento de meros óbices, por vezes  fortuitos e indesejáveis, formais.

5.2.4.

In casu,  a julgadora decidiu, aduzindo o seguinte, sinótico discurso argumentativo:

«No âmbito dos presentes autos, foi entendido, em anteriores despachos (que não foram postos em crise) ser essencial, ao respetivo prosseguimento, a remoção das dúvidas quanto ao registo da ação, a fim de que não ficasse comprometido o conhecimento dos pedidos que impõem a existência desse registo.

Por despacho proferido em 11.06.2019, cujas notificações se consideram feitas em 14.06.2019, foi concedido à autora um novo prazo de dez dias para o efeito.

Desde então, a autora nada disse, estando ciente de que, desde o termo daquele prazo, a instância estava parada a aguardar o seu impulso (cf., nomeadamente, o ulterior despacho, cujo teor também não foi posto em crise), sem prejuízo do decurso do prazo a que alude o artigo 281º, nº1, do Código de Processo Civil.

Dispõe esse artigo 281º, nº1, que se considera deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontrar a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

Tem sido entendido comummente adotado que a assunção pelo demandante de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática do ato omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para caracterizar a sua negligência.

No caso dos autos, o processo está parado há mais se seis meses, aguardando o impulso da autora no sentido de permitir o seu regular andamento.

Nada tendo sido alegado e demonstrado no sentido de a autora se ter visto impedida de impulsionar o processo, por causa imputável a terceiros, há que concluir pela verificação da sua negligência.»

Ora…

Na presente ação a questão do registo da ação tornou-se uma vexata quaestio.

Por tal motivo, o Tribunal entendeu que deveria ser a autora a diligenciar para proceder  diretamente ao registo, pois que apenas ela poderia fornecer os elementos em falta exigidos pela Srª Conservadora.

E assim foi.

Aceitando a insurgente esta postura do Tribunal e, inclusive, requerendo prazo adicional para o efeito.

Por conseguinte, tem de concluir-se que sobre a autora passou a impender o aludido dever/ónus específico de promoção da atividade processual e, bem assim, e porque o registo da ação  é obrigatório – artº 3º nº1 al. a) do CRPredial -  que tal dever é condição necessária para a continuação da tramitação do processo.

Depois vemos que este dever passou a impender sobre a autora  desde 13 de Maio de 2019.

E que, dado o não cumprimento do mesmo, ela foi solene e formalmente, informada pelo Tribunal que se nada fizesse, a deserção seria decretada decorrido o prazo legal.

 Tendo, inclusive,  em tal despacho,  a julgadora informado a demandante do dies a quo da contagem de tal prazo: a partir do termo do prazo concedido no despacho de 11.06.2019.

Ora perante esta informação, clara e inequívoca, a autora não demonstrou ter feito o registo da ação, sequer demonstrou ter efetuado algumas diligências nesse sentido, sequer tendo informado o Tribunal fosse em que sentido fosse.

A assim ser, inexistem dúvidas que a autora, com a notificação de tal despacho ficou cônscia e ciente das consequências processuais que da sua inércia ou silêncio dimanariam.

E conformou-se com elas.

Destarte, não se antolha a necessidade de o tribunal operar ainda outra notificação da autora antes de prolatar o despacho impugnado.

Sendo de concluir pela sua negligência eivada de censurabilidade bastante para fazer emergir a aplicação do preceito em análise e, assim, permitir o decretamento da deserção.

Censurabilidade aquela que, aliás, se manifesta não apenas quanto à (não) realização do ato exigível, como, inclusive, no atinente ao relacionamento com o próprio Tribunal, pois que é admissível interpretar o seu silêncio como uma manifestação, ou um indício de manifestação, do não adequado cumprimento dos seus deveres de cooperação  e de correção para com o julgador – artºs 7º e 9º do CPC.

Improcede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC

I - Podendo/devendo o tribunal apreciar não apenas questões colocadas pelas partes, mas também as que a lei lhe impõe oficiosamente conhecer – artº 608º nº2 do CPC -  e sendo o decretamento da deserção da instância uma delas – artº 281º nº4 – o conhecimento desta não acarreta a nulidade da respetiva decisão por excesso de pronúncia – artºs 609º nº1 e 615º nº1 al. d).

II - O disposto no artº 8º-B nº3 al. a) do CRPredial, não proíbe que a parte, voluntariamente ou a pedido/imposição do tribunal, diligencie pelo registo da ação.

III -A necessidade de audição prévia da parte para se concluir se ela atuou com negligência, requisito necessário - em concurso com o decurso do prazo de seis meses – para o decretamento da deserção da instância – artº 281º do CPC -,  tem de ser aferida em cada caso concreto, sendo determinante  saber se a parte teve, ou não, conhecimento claro das consequências da sua inércia.

IV - Se a autora, onerada com o registo da ação, nada prova ter feito durante quatro meses e nada diz ao tribunal; e se este, antes de prolatar o despacho decretante da deserção, notifica a mesma para aquele efeito, com a cominação da deserção e, inclusive, com a indicação da data do dies a quo da contagem de tal prazo, continuando a autora queda e muda, decorrido  o lapso de tempo legal, pode o tribunal decretar a deserção sem necessidade de, mais uma vez, ouvir a onerada.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2021.02.09.