Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
835/14.7T8CBR-1.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CÔNJUGE
SEPARAÇÃO DE BENS
CITAÇÃO
GESTÃO PROCESSUAL
Data do Acordão: 06/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.141, 144, 146 CIRE, 6, 740 CPC
Sumário: 1 – A lei preveniu a hipótese de a insolvência ser decretada apenas quanto a um dos cônjuges, acautelando a possibilidade de o outro cônjuge ir ao processo de insolvência reclamar que a sua meação nos bens comuns seja separada da massa insolvente, separação essa que também pode ser requerida pelo administrador da insolvência ou ordenada pelo juiz [art. 141º nº 1, al. b) e nº 3 do C.I.R.E.].

2 – Assim, para concretização desta faculdade/direito, o cônjuge deverá ser citado para requerer a separação de meações, tal como o artigo 740º do n.C.P.Civil dispõe para a execução singular, uma vez que tal direito terá de ser exercido nos prazos previstos nos artigos 141º, 144º e 146º do mesmo C.I.R.E..

3 – Tendo sido operada para este efeito, pela secretaria, uma citação conferindo a alternativa entre (i) requerer a separação de bens ou (ii) juntar certidão da pendência de outro processo em que aquela separação já tenha sido requerida, como este segundo termo (da alternativa), não tem qualquer sentido processual em sede de processo de insolvência, importa qualificá-lo como um erro (fruto de vício do conteúdo da citação), não podendo ser perfilhada uma interpretação da situação que prejudique a citada (ex-cônjuge do insolvente) que, em tempo útil (face à citação feita), veio insofismavelmente manifestar que queria exercitar o direito que na circunstância estava em causa – o direito à separação de bens – ainda que aludindo à pendência de um processo de inventário a correr termos em Cartório Notarial.

4 – Antes, à luz do princípio do dever de gestão processual, consagrado no art. 6º do n.C.P.Civil, de “regularização da instância”, competia à Exma. Juíza a quo, face ao erro da citação feita (no particular da alternativa concedida), desfazer o equívoco a que a ex-cônjuge do insolvente foi conduzida, mais concretamente providenciando pela regularização da instância, nomeadamente instando-a a esclarecer a sua atual e efetiva posição no quadro do art. 141º, nº1, al.b) do C.I.R.E., ou determinando, sem mais, uma nova citação, de teor literal formalmente adequado à interpretação que preconizava na matéria, mas sempre de sentido inequívoco.

Decisão Texto Integral:




            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

            Decretada a insolvência de J (…), teve lugar a apreensão dos bens integrantes da massa falida, figurando entre tais, como resulta do “Auto de Apreensão” (art. 149º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[2]) elaborado em 4 de Abril de 2016 pelo Sr. Administrador de Insolvência (retificação do correspondente “Auto de Apreensão” de 28 de Novembro de 2014), designadamente os seguintes:

            «Verba número dois

                Prédio urbano composto por fracção autónoma designada pela letra “J” descrita por garagem ampla na cave na Conservatória do Registo Predial da (...) sob o nº U-6106, freguesia da (...) e inscrito na matriz urbana da união das freguesias de (...) e V (...) sob o nº U-5941, tendo tido origem no Artigo 7302 da extinta freguesia da (...) , e que tem o valor patrimonial de 6.060,00 euro, correspondendo à meação o valor de € 3.030 sujeito a avaliação.

                Verba número três

                Prédio urbano composto por terreno situado dentro do aglomerado urbano definido pelo PDM com a área de 700 m2 descrito na Conservatória do Registo Predial da (...) sob o nº 4898, freguesia da (...) e inscrito na matriz urbana da união das freguesias de (...) e V (...) sob o nº U-5235, que confronta a Norte com J (...) , a Sul com Cooperativa Agrícola da (...) , a Nascente com estrada e a Poente com casa do próprio, tendo tido origem no Artigo U-6168 da extinta freguesia da (...) e que tem o valor patrimonial de 121.890,00 euro, correspondendo à meação o valor de € 60.945,00 sujeito a avaliação.»

                                                                                              *

            Tendo vindo o Sr. Administrador de Insolvência informar os autos de que não tinha conseguido proceder ao registo, como “prédios completos” dos ditos dois imóveis, requereu que devia ter lugar a citação do ex-cônjuge do Insolvente “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 119º do Código do Registo Predial” (cf. fls. 7).

Instado por despacho judicial a esclarecer “se a citação que sugere se adequa efectivamente à situação que visa solucionar, porquanto a compropriedade em apreço resulta de união conjugal, pelo que se afigura que é aplicável o disposto no art. 741º, nº2 do NCPC e 141º, nº3 do CIRE” (cf. fls. 13), o dito Sr. Administrador de Insolvência veio reafirmar esse seu anteriormente noticiado propósito da requerida citação, “por ser adequada ao caso, de acordo com a prática observada pela Conservatória do Registo Predial neste tipo de situações” (cf. fls. 14 vº).

O subsequente despacho judicial foi então de “Cite-se a co-proprietária nos termos e efeitos requeridos pelo administrador de insolvência” (cf. fls. 18).

                                                                       *

                Na oportuna sequência, com data de 22-11-2016, foi operada a citação por carta registada com AR da identificada ex-cônjuge do Insolvente, a saber, de P (…), por esta recebida em 7-12-2016, nos seguintes concretos termos:

«Fica citado, na qualidade de cônjuge do insolvente para, querendo, no prazo de 20 dias contados a partir da data da assinatura do aviso de recepção, requerer, no processo nº 835/14.7T8CBR-B, a separação de bens ou juntar certidão da pendência de outro processo em que aquela separação já tenha sido requerida, sob pena de a liquidação dos bens prosseguir sobre os bens apreendidos.»

Através de requerimento de 2.01.2017, dizendo ter sido “notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 740º do CPC”, a dita P (…) informou que se encontrava divorciada do Insolvente e atenta a circunstância de não ter havido partilha na sequência da dissolução do casamento, sendo adequado para tal partilha o Processo de Inventário, a essa data já pendente no Cartório Notarial de Miranda do Corvo sob o nº 6488/16 (área da sua residência), “requer seja ordenada a sustação dos presentes autos, até à separação de bens comuns do Casal, se encontrarem partilhados”.

   Este requerimento foi objeto de despacho judicial, através do qual, louvando-se a Exma. Juíza de 1ª instância no entendimento de que o direito da requerente apenas podia ser exercido nos presentes autos, mais concretamente que “estabelecem os arts. 141.º, n.º 1, al. b), e 128.º, n.º s 1 e 2, do CIRE que a reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns deve ser exercida dentro do prazo de reclamação de créditos fixada na sentença declaratória da insolvência, mediante requerimento endereçado ao administrador da insolvência, e apresentado no seu domicílio profissional”, sendo certo que “a ação prevista neste normativo consiste no único meio de oposição à apreensão dos bens próprios ou comuns do cônjuge para massa”, acrescendo que “a instância do processo de insolvência não é passível de suspensão (art.º 8º, nº 1 do CIRE) e que uma vez declarada a insolvência, o exercício de qualquer direito de crédito só pode ser exercido no processo de insolvência por imposição do art.º 90º do CIRE”, termos em que, “por manifesta falta de fundamento legal, indefiro o pedido de sustação dos autos”.

Entendendo a dita P (…) que esse despacho havia sido obscuro, “porquanto o mesmo não se pronuncia em concreto sob o pedido de separação de bens, quer quanto á sua admissibilidade nos presentes autos, quer no que respeita ao processo próprio intentado junto do Cartório Notarial de Miranda do Corvo”, requereu em 2.02.2017 a “rectificação do douto despacho, com concreta correcção dos elementos decisório, cuja falta ora se suscita”.

Este requerimento foi objecto de despacho através do qual a Exma. Juíza de 1ª instância entendeu que “nenhuma obscuridade ou omissão ressalta desta decisão e dos seus fundamentos”, termos em que “por falta de fundamento legal, indefiro a rectificação do despacho proferido a fls. 45”.

                                                           *

Inconformada, apresentou a dita P (…) recurso, no qual formula, a concluir as alegações que apresentou, as seguintes conclusões

«1. Nos autos em que foi proferido despacho de indeferimento da pretensão deduzida pela Recorrente, foi a mesma citada para:

a) Vir aos autos, requerer a separação de bens; ou,

b) Juntar aos autos, certidão de que tal separação se encontra já pendente de

outro processo.

Tendo, na sequência de tal citação, vindo ao processo indicar que pretendia a separação dos bens comuns do casal e, ainda, que à luz do regime especial que regulamenta tal matéria, havia intentado na instância própria, processo de Inventário, juntando comprovativo do mesmo, requerendo a sustação do processo de apreensão de bens até à partilha;

2º Havendo sido proferido despacho que, a final, referia não ser passível, o processo, de sustação, indeferindo a pedido, depois de um conjunto de considerandos, que não se pronunciavam, na perspectiva da ora Recorrente, em concreto sobre o requerido, e em que se requeria, a rectificação da sentença, nos termos do art. 614º do CPC, aludindo à falta de concreta decisão, sobre o requerido, que se conformava com a citação feita pelo tribunal, a qual a chamava a juízo, nos termos e para os efeitos identificados na citação, e que correspondiam ao estauído no art. 740º do CPC;

3º Veio o tribunal “a quo”, rectificar o douto despacho, decidindo, em concreto, sobre o requerido, e fundamentando a sua decisão, na necessidade de a pretensão da Recorrente ser deduzida através de acção própria, a intentar nos termos do art. 141º do CIRE, efeito para a qual tinha sido chamada a juízo, acrescentando que tal desiderato haveria de ser concretizado nos termos ali previstos (5 dias), tudo apesar de estar patente, o teor da citação, e de a mesma lhe haver sido comunicada em sede de requerimento, integrando assim, a sua primitiva decisão, tornando-a estável, no que concerne à pronuncia e fundamentação;

4º Ora, ao decidir como decidiu, olvidou o tribunal “a quo” o vício da citação, que se encontrava ferida de nulidade, e cujo vício erra de conhecimento oficioso, conforme resulta do estabelecido no art. 196º do CPC, ao invés de ordenar a anulação da citação, com a prolação de novo acto, nos termos do art. 202º, nº 2, ou, conforme estabelece o art. 193º, nº 3, notificar a requerente para, em prazo a estabelecer, vir aos autos através de meio processual próprio, fazer valer a sua pretensão.

5º Ao não proceder das formas indicadas, e ao não reconhecer um Princípio ordenador do CPC, consagrado no nº 6, do art. 157º, manteve a citação, nos seus precisos termos, não sanado a invalidade da mesma, apesar de ao fazê-lo estar a tornar inviável a defesa da ora Recorrente, que havia sido citada para efeito bem diversos dos que lhe estavam subjacente, violando assim, uma proibição legal, que de resto se encontra, igualmente, vertida no nº 3, do art. 191º, por consubstanciar a citação, um erro no seus fins, e nos meios próprios de defesa da Recorrente, ao indicar-lhe os constantes do art. 740º do citado código.

6º Assenta assim, a douta decisão, em manifesto erro na aplicação do Direito Adjectivo, de que decorre o vício da citação que deu origem à pratica pela Recorrente, do acto indeferido, sem que a mesma seja por tal responsável, e antes resulte de um erro da secretaria, pelo que deve tal decisão ser objecto de anulação, e por via dela ser ordenada nova citação, com observância dos seus formalismos, e materialmente observadora do seu regime jurídico, ou, em alternativa, ordenada a sua sanação, com prolação de despacho de aperfeiçoamento, nos termos estuídos no nº 3, do art. 193º co CPC, sob pena de inviabilizar, em definitivo, a defesa da Recorrente, que resulta prejudicada pelo acto de secretaria e pelo douto despacho revidendo – arts 157º, nº 6, e 191º, nº 3, como é de inteira

JUSTIÇA»

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

            A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

            De referir que com a prolação desse despacho de admissão do recurso (datada de 29.03.2017) foi paralelamente e ainda proferido o seguinte despacho:

«IV- Fls. 68 a 69: Cite a ex-cônjuge do insolvente para, querendo, em 20 dias, requerer a separação dos bens comuns (verbas nºs 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 do auto de apreensão de fls. 64), sob pena da liquidação prosseguir sobre a totalidade dos bens (artºs 740º do NCPC e 141º, nº 3 do CIRE)».

                                                                       *

            Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine”, do mesmo n.C.P.Civil):

            - erro de julgamento ao considerar-se (implicitamente) validada a citação operada [“para, querendo, no prazo de 20 dias contados a partir da data da assinatura do aviso de recepção, requerer, no processo nº 835/14.7T8CBR-B, a separação de bens ou juntar certidão da pendência de outro processo em que aquela separação já tenha sido requerida, sob pena de a liquidação dos bens prosseguir sobre os bens apreendidos”]?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em conta são essencialmente os que decorrem do relatório que antecede.

                                                                       *                   

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre então apreciar e decidir a questão supra enunciada, a saber, se houve erro de julgamento ao considerar-se (implicitamente) validada a citação operada [“para, querendo, no prazo de 20 dias contados a partir da data da assinatura do aviso de recepção, requerer, no processo nº 835/14.7T8CBR-B, a separação de bens ou juntar certidão da pendência de outro processo em que aquela separação já tenha sido requerida, sob pena de a liquidação dos bens prosseguir sobre os bens apreendidos”]:

E vamos começar uma tal apreciação, dizendo que a referenciada citação nem sequer correspondeu ao que foi requerido pelo Sr. Administrador de Insolvência e que como tal havia sido deferido pelo Tribunal a quo.

Na verdade, o Sr. Administrador de Insolvência requereu a citação “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 119º do Código do Registo Predial” (o que foi deferido), e a citação que foi operada foi nos moldes supra referenciados.

Em todo o caso, de referir, quanto a esse particular, que nem se concebe o fundamento para o que havia sido requerido pelo Sr. Administrador de Insolvência, atenta aquela que é a posição oficial do Instituto dos Registos e do Notariado (IRN) nesta matéria, a saber: “O registo definitivo da declaração de insolvência de um só dos cônjuges em relação a bens que, quer de acordo com o registo de titularidade em vigor, quer de acordo com os próprios títulos, fazem parte da comunhão conjugal não partilhada, está condicionado à demonstração de que se requereu (ao abrigo do art. 141.º/1-b CIRE), ordenou (ao abrigo do art. 141.º/3 CIRE), ou proporcionou (ao abrigo do art. 740.º CPC) ao contitular inscrito não insolvente (cônjuge ou ex-cônjuge) a efetivação da separação dos bens comuns”.[3]

Não obstante o vindo de dizer, na medida em que o que é objeto do presente recurso é a citação tal como operada, vamos cingir-nos sem mais à mesma.

Ora, nesta lógica, importa sublinhar algumas ideias, pois que as mesmas vão constituir as linhas de força da decisão a final.

Senão vejamos.

A apreensão de bens comuns na insolvência respeitante a um só dos cônjuges levanta várias questões relacionadas com a intervenção no processo do cônjuge não insolvente.

A jurisprudência tem-se dividido quanto ao modo como deverá efetuar-se o reconhecimento e o exercício do direito que o cônjuge tenha à separação da sua meação, nomeadamente quanto ao âmbito dos procedimentos previstos nos artigos 141º e 146º, do C.I.R.E., para a separação de bens, e quanto à aplicabilidade do art. 825º do C.P.Civil (correspondente ao art. 740º do n.C.P.Civil) ao processo de insolvência.

 Consabidamente, o objetivo do mecanismo de restituição e separação de bens, tratando-se de bens próprios do cônjuge do insolvente, passa pelo reconhecimento de que não deveriam ter sido apreendidos para a massa e pela sua restituição.

No caso de se tratar de bens comuns, o procedimento previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 141º do C.I.R.E., esgota-se na obtenção do reconhecimento de que tais bens são comuns e do direito à separação da sua meação.[4]

Por outro lado, importa ter igualmente presente que reconhecido o direito do cônjuge à separação de meações, o direito matrimonial passa a ser o da separação.

 Donde, importa proceder à partilha do património comum como se o casamento tivesse sido dissolvido – art. 1770º, por força do artigo 1772º, ambos do C.Civil – sendo certo que, o deferimento do pedido de separação de bens importará a suspensão da liquidação[5] quanto aos bens comuns apreendidos na insolvência.

 Dito isto, temos que no quadro normativo que nos rege, o direito à separação de meações surge como uma faculdade atribuída ao cônjuge do insolvente, que este pode exercer ou não.

Ora, a este propósito já foi doutamente sublinhado o seguinte:

«Não se encontrando prevista a declaração de insolvência de um dos cônjuges como causa de dissolução do regime matrimonial (automática ou a requerimento de um deles)[6], nem na lei civil nem no CIRE — o artigo 141.º apenas prevê o modo de exercício do direito à separação —, o respetivo fundamento ter-se-á de encontrar no artigo 740.º do CPC: execução de bens comuns por dívida da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges.

É este o objetivo da atribuição do direito à separação de meações, na execução singular ou na execução coletiva: permitir que o cônjuge obste a que a sua meação venha a responder por bens próprios do outro cônjuge.

Se o cônjuge do insolvente, após ter sido advertido da apreensão de bens comuns, se remeter ao silêncio, deverá entender-se que não tem qualquer interesse em requerer a separação. Assim sendo, tal como se encontra previsto no artigo 740.º do CPC para a execução singular, a insolvência prosseguirá sobre os bens comuns, sem prejuízo de posterior compensação nos termos do n.º 1 do artigo 1697.º CC.

Daqui se extrai que dificilmente haverá lugar à intervenção oficiosa do juiz ao abrigo do n.º 3 do artigo 141.º, para além daqueles casos em que se reconhece terem sido apreendidos bens próprios do cônjuge do insolvente.

A doutrina e a jurisprudência[7] têm-se dividido quanto à questão de saber se o cônjuge deverá ser citado para requerer a separação de meações, tal como o artigo 740.º dispõe para a execução singular, uma vez que tal direito terá de ser exercido nos prazos previstos nos artigos 141.º, 144.º e 146.º do CIRE.

Não se aceitando que possam ser apreendidos bens para a insolvência sem que os respetivos titulares sejam chamados a intervir, há que assegurar que a insolvência não corra sobre os bens comuns sem que o cônjuge seja colocado em condições de salvar a sua meação[8].

Apesar de o artigo 23.º, n.º 1, al. c), do CIRE exigir que, na petição inicial, o requerente, “sendo o devedor casado, identifi[que] o respetivo cônjuge e indi[que] o respetivo regime de casamento”, em nenhuma das suas disposições se encontra prevista a citação do cônjuge do executado, seja na sequência da declaração de insolvência[9] — embora lhe seja atribuída legitimidade para dela embargar ou recorrer (arts. 40.º, n.º 1, al. b) e 42.º, n.º 1) —, seja na sequência da apreensão de bens comuns para a massa.

Contudo, a observância do princípio do contraditório contido no artigo 3.º do CPC e a aplicação analógica das normas relativas à penhora, prevista no artigo 17.º do CIRE, imporão tal citação.»[10]

Aderimos por inteiro a esta linha de entendimento, mormente à de que a citação do ex-cônjuge do Insolvente deve ser operada na sequência da apreensão dos bens.

Mas em que concretos termos deve ser feita a citação?

Se o que efetivamente está em vista é assegurar que a insolvência não corra sobre os bens comuns sem que o cônjuge seja colocado em condições de salvar a sua meação, mas sempre tendo presente que no processo de insolvência apenas se cuidará do reconhecimento do direito que o cônjuge tenha à separação da sua meação, reconhecimento esse que tem que ter lugar neste processo de insolvência (a partilha, sendo disso caso, será operada em procedimento de inventário da competência do Notário), não tem qualquer sentido na citação aludir-se a que constitui alternativa do citando (para além da faculdade de requerer a separação de bens) “juntar certidão da pendência de outro processo em que aquela separação já tenha sido requerida”.

É que, nos termos que vimos de sublinhar, do que se trata nesta circunstância, é de ver reconhecido esse direito à separação de bens, antes de mais…

Sucede que na citação que foi operada nos autos, se concedeu a dita alternativa.

E tendo vindo a citada ex-cônjuge do insolvente exercitá-la e, na lógica natural correspondente, pedir a suspensão do processo de insolvência, a mesma viu tal ser-lhe indeferido pelo despacho recorrido.

“Quid iuris”?

Desde logo, porque decorre do dito despacho e bem assim do subsequente despacho que indeferiu o pedido de retificação do primeiro, que a Requerente aqui Recorrente se encontra presentemente sem poder ver reconhecido o seu direito a requerer a separação da massa insolvente da sua meação nos bens comuns – desde logo pelo decurso do prazo em que o podia fazer ex vi do art. 141º, nº1, al.b) do C.I.R.E., como igualmente o está face aos “20 dias” da nota de citação! – que estamos confrontados com uma situação objetivamente injusta.

Não obstante, entendemos que não se pode nem deve enquadrar o ocorrido numa nulidade /irregularidade da citação (designadamente no constante do art. 195º do n.C.P.Civil, o que a Requerente aqui Recorrente ainda “ensaia” nas suas alegações recursivas!), na medida em que o ato (citação) existiu e observou as formalidades impostas por lei, simplesmente detetam-se vícios do conteúdo do mesmo.

Ora se assim é, e reconduzidos que estamos a este plano, temos que a interpretação do ato de citação que é feita pela Exma. Juíza a quo, pela situação a que ela conduz, constitui um manifesto erro de julgamento.

Independentemente de o conteúdo da citação operado pela secretaria judicial ter sido frontalmente diverso do que havia sido ordenado pela Exma. Juíza a quo (esta havia ordenado uma citação “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 119º do Código do Registo Predial”!), o que é igualmente certo é que a citação conferiu uma alternativa à citanda para a qual não se encontra qualquer fundamento legal.

Nessa medida, não pode essa citação ser sancionada/tutelada qua tale!

Atente-se que se, dentro do prazo legal, a citada veio insofismavelmente manifestar que queria exercitar o direito que na circunstância estava em causa – o direito à separação de bens – estando-se, como se está, face a um quadro normativo que não prevê expressamente a citação nem o seu teor, acrescendo a doutrina e a jurisprudência se encontrarem algo divididas sobre tais matérias, a Exma. Juíza a quo tinha que fazer da situação uma interpretação em que ficasse salvaguardado o direito da Requerente ora Recorrente.

Mormente se a situação a que se chegou foi fruto de um erro da secretaria, o que, nos termos legais (cf. art. 157º, nº 6 do n.C.P.Civil), não pode prejudicar a parte…

E bem assim porque, quando o cônjuge não exerça o seu direito à separação de meações, os bens comuns permanecem na íntegra na massa ativa da insolvência, satisfazendo, em primeiro lugar, as dívidas comuns e, subsidiariamente, as dívidas próprias do insolvente – opção esta que só a Requerente ora Recorrente pode e deve legitimamente fazer.

Relativamente ao que importa ainda salvaguardar o complementarmente estatuído no que toca a bens em contitularidade ou indivisão, pelo art. 159º do C.I.R.E., a saber: “verificado o direito de restituição ou separação de bens indivisos ou apurada a existência de bens de que o insolvente seja contitular, só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre esses bens”.

Neste quadro, à luz do princípio do dever de gestão processual, consagrado no art. 6º do n.C.P.Civil, de “regularização da instância”, competia à Exma. Juíza a quo, face ao erro da citação feita (no particular da alternativa concedida), desfazer o equívoco a que a Requerente ora Recorrente foi conduzida, mais concretamente providenciando pela regularização da instância, nomeadamente instando-a a esclarecer a sua atual e efetiva posição ou determinando, sem mais, uma nova citação, de teor literal formalmente adequado à interpretação que preconizava na matéria, mas sempre de sentido inequívoco.

Tanto mais que ativa e positivamente o fez no particular dos demais bens apreendidos – como flui do que supra consta do Relatório, com referência ao despacho que acompanhou a admissão deste recurso!    

Nestes termos procedendo o recurso.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – A lei preveniu a hipótese de a insolvência ser decretada apenas quanto a um dos cônjuges, acautelando a possibilidade de o outro cônjuge ir ao processo de insolvência reclamar que a sua meação nos bens comuns seja separada da massa insolvente, separação essa que também pode ser requerida pelo administrador da insolvência ou ordenada pelo juiz [art. 141º nº 1, al. b) e nº 3 do C.I.R.E.].

II – Assim, para concretização desta faculdade/direito, o cônjuge deverá ser citado para requerer a separação de meações, tal como o artigo 740º do n.C.P.Civil dispõe para a execução singular, uma vez que tal direito terá de ser exercido nos prazos previstos nos artigos 141º, 144º e 146º do mesmo C.I.R.E..

III – Tendo sido operada para este efeito, pela secretaria, uma citação conferindo a alternativa entre (i) requerer a separação de bens ou (ii) juntar certidão da pendência de outro processo em que aquela separação já tenha sido requerida, como este segundo termo (da alternativa), não tem qualquer sentido processual em sede de processo de insolvência, importa qualificá-lo como um erro (fruto de vício do conteúdo da citação),  não podendo ser perfilhada uma interpretação da situação que prejudique a citada (ex-cônjuge do insolvente) que, em tempo útil (face à citação feita), veio insofismavelmente manifestar que queria exercitar o direito que na circunstância estava em causa – o direito à separação de bens – ainda que aludindo à pendência de um processo de inventário a correr termos em Cartório Notarial.

IV – Antes, à luz do princípio do dever de gestão processual, consagrado no art. 6º do n.C.P.Civil, de “regularização da instância”, competia à Exma. Juíza a quo, face ao erro da citação feita (no particular da alternativa concedida), desfazer o equívoco a que a ex-cônjuge do insolvente foi conduzida, mais concretamente providenciando pela regularização da instância, nomeadamente instando-a a esclarecer a sua atual e efetiva posição no quadro do art. 141º, nº1, al.b) do C.I.R.E., ou determinando, sem mais, uma nova citação, de teor literal formalmente adequado à interpretação que preconizava na matéria, mas sempre de sentido inequívoco.   

                                                                       *

6 – DISPOSITIVO

            Pelo exposto, na procedência do recurso, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se a sua substituição por outro através do qual, ao abrigo do dever de gestão processual, a Exma. Juíza a quo providencie pela regularização da instância, nomeadamente instando a Requerente ora Recorrente a esclarecer a sua atual e efetiva posição no quadro do art. 141º, nº1, al.b) do C.I.R.E., ou determinando, sem mais, uma nova citação, de teor literal formalmente adequado à interpretação que preconize nessa matéria, mas sempre de sentido inequívoco.

Sem custas.

    Coimbra, 6 de Junho de 2017

           

Luís Cravo ( Relator)

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
   1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
   2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
[2] Doravante designado abreviadamente como “C.I.R.E.” (aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março, e alterado pelo DL nº 200/2004, de 18 de Agosto, que o republicou).
[3] Cf. Parecer datado de 23-06-2014 e homologado a 24-06-214, pelo IRN, no Proc. C.P. 20/20/2014 STJ-CC, disponível in http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2014/34-cc-2014-c-p-20-2014/downloadFile/file/34_C_P_20-2014_STJ-CC.pdf?nocache=1406709561.4.
[4] Quanto à separação de bens propriamente dita, tal como acontece no âmbito do processo executivo, será exercitada mediante o procedimento atualmente previsto no artigo 81º da Lei nº 23/2013, de 5 de Março, isto é, trata-se de procedimento de inventário da competência do Notário (que, aliás, a aqui Recorrente já instaurou e tem pendente no Cartório Notarial de Miranda do Corvo)…  
[5] Apenas desta (liquidação), e não do processo de insolvência!
[6] Neste sentido se pronunciou José Lebre de Freitas, na vigência do CPEREF, “Apreensão, Restituição, Separação e Venda de Bens no Processo de Falência”, Revista da FDUL, Vol. XXXIX, 1995, LEX, p. 379.
[7] No sentido de que, havendo bens comuns do casal, deve, após a sua apreensão, ser o cônjuge do falido citado, nos termos do art. 825.º do CPC, para requerer a separação de meações e ainda que, diversamente do que sucede na ação declarativa, a separação pode também ser ordenada oficiosamente, José Lebre de Freitas, “Apreensão, Separação, Restituição e Venda”, cit., 2013, p. 237. No sentido da inadmissibilidade legal de tal citação, cfr. Acórdão TRC de 02-03-2011, relatado por Moreira do Carmo, disponível in www.dgsi.pt; no sentido da sua obrigatoriedade, Acórdão do TRP de 11-03-2014, relatado pela aqui autora, disponível in www.dgsi.pt., e Acórdão do TRG de 28-01-2016, relatado por Anabela Tenreiro, disponível in https://blook.pt/caselaw/PT/TRG/496578/.
[8] Como já defendia José Alberto dos Reis a propósito da execução singular, Processo de Execução, Vol. I, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 300.
[9] A não ser que se considere encontrar-se o mesmo abrangido pela notificação edital da sentença de declaração da insolvência prevista para os “demais credores e outros interessados” pelo artigo 37.º, n.º 5, do CIRE.
[10] Citámos MARIA JOÃO AREIAS, “Insolvência de pessoa casada num dos regimes de comunhão – sua articulação com o regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges”, in Revista de Direito da Insolvência, nº1, 2017, Almedina, a págs. 106-122.