Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
205/09.9GAOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: PENA DE PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 11/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 58º DO CP ; 379º E 496º DO CPP
Sumário: 1. O tribunal não goza de discricionariedade na aplicação de qualquer pena de substituição. Verificados os respectivos pressupostos, o tribunal deve (está obrigado) a aplicar a pena de substituição adequada ao caso.
2.A pena de trabalho a favor da comunidade não tem a mesma natureza (salvo o de ser também ela uma pena de substituição) nem as mesmas exigências nem obedece às mesmas práticas de reinserção social que a suspensão da execução da pena.
3. O juiz deve de indagar e justificar não só o afastamento da suspensão da execução da pena de prisão, mas também da prestação de trabalho a favor da comunidade.
Decisão Texto Integral: 10

1- No processo comum 205/09 do tribunal de Oliveira do Hospital, J. foi condenado pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152/1 alínea a) e 2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, crime perpetrado na pessoa da esposa M
2- O arguido recorre, concluindo –
1) A pena aplicada de 2 anos e 6 meses de prisão efectiva é desajustada e excessiva face à factualidade provada.
2) A pena de prisão efectiva é a ultima ratio na punição dos crimes, nos termos do art.º 70º do Código Penal;
3) A aplicação da pena efectiva de prisão e a sua não substituição por outra ficou a dever-se ao passado criminal do arguido, mas não teve em conta que este está inserido social e familiarmente e ter trabalho;
4) O tribunal valorou mal os factos, pois apesar da conduta ser reiterada não relevou que as anteriores condutas são dos anos de 2002,2003 e 2006;
5) Pelo que o recorrente não demonstra alheamento às regras jurídicas, aos comandos éticos e sociais e às expectativas comunitárias sobre o cumprimento das normas;
6) Sendo desproporcional a aplicação duma pena de prisão efectiva. Tal pena quebrará a sua actual integração social e os vínculos pessoais e profissionais que o ligam à sociedade;
7) Pelo que foi violado o art.º 70º do Código Penal, pois aí se impõe que o tribunal dê preferência às penas não detentivas quando suficientes para a realização das finalidades da punição que nos termos do art.º 40º são a protecção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente.
8) Devendo, nos termos do art.º 71º do Código Penal, valorar-se todas as circunstâncias atenuantes e agravantes. No caso a pena de prisão não é a única que cumpre com as finalidades da punição.
9) O tribunal deveria ter aplicado no caso uma pena inferior de forma a ser possível substituir a pena de prisão efectiva por uma pena não detentiva.
10) Apesar do arguido ter antecedentes criminais, não se justifica uma pena de prisão tão elevada.
11) Pois o arguido está integrado social e familiarmente, pelo que as necessidades de prevenção especial não são elevadas. Aliás o arguido manifestou no julgamento arrependimento.
12) Assim, deveria ter-se-lhe aplicado uma pena de prisão inferior a um ano, sendo viável a sua substituição por outra de diferente espécie.
13) Designadamente por prestação de trabalho a favor da comunidade, que realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
14) E caso se entendesse que esta pena não acautelaria as finalidades da punição, sempre a pena detentiva poderia ser cumprida em prisão por dias livres.
15) Na medida em que esta pena permitiria o arguido continuar a sua vida e sustentar a família e simultaneamente conhecer o peso da prisão, permitindo a sua socialização.
3- Respondeu o Ministério Público pelo infundado do recurso, no que foi secundado pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!
II –
1- Decisão de facto inserta na sentença –
A) Factos provados –
1) O arguido e a ofendida M. são casados entre si desde o dia 23 de Março de 1996.
2) Desde que se casaram que as suas relações se pautam por desentendimentos constantes, sendo frequentes as discussões e as agressões físicas e psicológicas do arguido para com a sua esposa.
3) Assim, no dia 3 de Maio de 2009, a hora não concretamente apurada, mas situada durante o período da tarde, a ofendida encontrava-se na Quinta …, sita em …, freguesia de … a guardar o rebanho de ovelhas do casal.
4) O arguido dirigiu-se à referida quinta e porque entendeu que a sua esposa havia posto as ovelhas a pastar muito tarde chamou-a “putazona”, “vaca”, “coirão”, “filha de puta” ao mesmo tempo que lhe disse “vai para a vaca da tua mãe”.
5) A M., por temer que o marido lhe batesse, fugiu para a casa de morada de família, sita na Rua da…, área desta comarca.
6) Contudo, o arguido, na posse de um pau de que entretanto se munira seguiu a esposa até casa e aí chegado agrediu-a fisicamente de forma que em concreto não foi possível apurar.
7) O arguido chamou a patrulha das ocorrências do Posto Territorial de Oliveira do Hospital da GNR local bem como uma ambulância, mas a ofendida não pretendeu receber assistência médica.
8) No dia 17 de Janeiro de 2010, após o jantar, a queixosa, juntamente com o filho menor do casal, foi a casa da vizinha D.
9) Depois pretendeu regressar a casa com o filho e deparou-se com a porta da casa fechada à chave.
10) Solicitou por várias vezes ao arguido, que se encontrava no interior da residência, que lhe abrisse a porta para poderem entrar em casa, mas este não a abriu.
11) Também um vizinho do casal, G, fez o mesmo pedido ao arguido, mas mais uma vez este decidiu não abrir a porta de casa, bem sabendo que a esposa e o filho estavam na rua e que queriam entrar em casa.
12) Por via do comportamento do arguido o referido vizinho teve que solicitar a presença da GNR no local para que providenciasse pela entrada da queixosa e do filho em casa.
13) Nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas de 8) a 12), o arguido chamou a esposa de “vaca”, “porca” e bêbada”, na presença do filho menor.
14) O arguido que actualmente se encontra desempregado pede à queixosa o dinheiro que esta ganha por fazer limpezas domésticas, sendo que ela apenas lho entrega com medo que o marido lhe bata.
15) O arguido bem sabia que a circunstância de praticar os factos descritos na presença do filho menor e no domicílio comum do casal que lhe agravava a responsabilidade criminal em que bem sabia incorrer.
16) O arguido agiu em todas as circunstâncias atrás descritas com o propósito concretizado de humilhar, ofender a honra, o bom nome e sensibilidade da sua esposa, de a molestar fisicamente, bem como de lhe provocar sofrimento físico e psíquico.
17) Agiu sempre voluntária e conscientemente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
18) O arguido trabalha ao dia na construção civil como servente, trabalhando em média 15 dias por mês e auferindo por dia cerca de € 40; o arguido tem um rebanho de ovelhas do qual retira rendimento que em concreto não foi possível apurar; vive com a esposa e um filho menor, sendo que a sua esposa faz limpezas em casas particulares ao dia, cujo número e rendimento não foi possível apurar.
19) O arguido tem o 4º ano de escolaridade.
20) Do Certificado do Registo Criminal do arguido (fls. 139 a 142) consta que:
a) Por sentença transitada em julgado em 5/6/2003 foi condenado no processo comum singular n º 91/02.0GAOHP, deste Tribunal, pela prática em 21/05/03 dum crime de maus tratos a cônjuge, numa pena de 2 (dois) anos de prisão suspensa a sua execução pelo período de três anos;
b) Por sentença transitada em julgado em 5/7/2004 foi o arguido condenado no âmbito do processo comum singular n º 518/02.0GAOHP, deste Tribunal, pela prática em 26/12/02 de um crime de maus tratos a cônjuge, numa pena única que abrangeu em cúmulo jurídico a pena aludida em a) de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa pelo período de 3 (três) anos.
c) Por sentença transitada em julgado em 12/6/2008 foi o arguido condenado no âmbito do processo comum singular n º 116/06.0GAOHP, deste Tribunal, pela prática em 14/4/06 de um crime de maus tratos a cônjuge, numa pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa a sua execução por igual período; *

2- Apreciação –
2.1- O arguido não recorreu da decisão de facto, o que a tê-lo feito se obteria pelos depoimentos prestados um quadro de vivência familiar em que ambos os cônjuges se excedem no consumo de álcool –, a verdadeira causa de tantas desavenças familiares.
O arguido recorre da pena pretendendo uma redução que permitisse o seu cumprimento em prisão por dias livres ou, pelo menos, a sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade.
2.2- O recorrente considera-se a si próprio como social e familiarmente bem integrado. Mas o grande drama é que o arguido quando chega a casa com álcool e depara com a mulher também “tocada pelo vinho”, se descontrola e a agride verbal e por vezes também fisicamente.
O quadro factual provado é uma faceta deste desarranjo familiar «em que o álcool é o mau da fita» e para o qual não vemos melhor remédio que um tratamento de ambos contra o alcoolismo. O arguido não pode, assim, ter-se por familiarmente bem inserido face aos factos provados.
E tem a infelicidade de ter comportamentos como o retratado na decisão de facto na presença do filho menor do casal, o que lhe agrava sensivelmente a penalidade aplicável, pelo que –, perante uma decisão de facto donde não constam circunstâncias que diminuam consideravelmente a ilicitude, a culpa ou a necessidade da pena –, ter-se-á de partir da penalidade de 2 a 5 anos de prisão.
Efectivamente a decisão de facto encontra-se correctamente integrada no tipo de ilícito em causa, cuja penalidade vai de 2 a 5 anos de prisão. Consequentemente torna-se inviável a pretensão duma pena de 1 ano de prisão com cumprimento em prisão por dias livres, quiçá a melhor forma de censura do facto se legalmente fosse possível.
Mas como refere o Ministério Público, a medida da pena aplicável não consente tal pretensão.
2.3- Contudo, o quadro que compõe a decisão de facto não se revela de tal modo grave que não permita uma redução na pena aplicada.
Efectivamente o grosso do retratado «mau comportamento» do arguido queda-se em meras injúrias verbais e na humilhação de não ter aberto a porta de casa à ofendida quando esta chegou já tarde; não vindo explicitado em que termos se deu a agressão física. Qual foi a violência desta? A isto a sentença não responde.
Parece-nos, assim, que com uma pena de prisão que se quede no limiar mínimo da pena aplicável ainda se alcançarão as finalidades de prevenção geral e especial pressupostas na previsão do art.º 40º do Código Penal Diploma a que se reportam os preceitos legais cuja origem se não indique..
Efectivamente, a pena deve ser determinada pelos critérios gerais enunciados no art.º 71º com a limitação do art.º 40º/2 segundo o qual em caso algum a pena poderá ultrapassar a medida da culpa.
Dispõe o art.º 71º que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa e das exigências de prevenção. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que deponham a favor e contra o arguido.
O aqui formulado juízo de culpa parte do facto ilícito perpetrado e a expressão «culpa» utilizada no art.º 71º tem um sentido amplo de todos os elementos que nela se perspectivem, tomados em conta para graduar a censura aí se incluindo a ilicitude, a culpa propriamente dita e a influência da pena sobre o criminoso.
Refere o Prof. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português, 3, pág. 130], que a pena será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade(...). Mas para além da função repressiva medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas de protecção do bem jurídico e de integração do agente na sociedade. Vale dizer que a pena deverá desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem iniciar-se na prática delituosa e deverá ressocializar o delinquente.
O lacunoso quadro factual da sentença não revela a confissão do arguido em boa parte dos factos provados e a sua contrição acompanhada da promessa de emenda. Contudo estas circunstâncias revelaram-se na audiência de julgamento conforme se colhe da audição da prova.
Temos, assim, por mais ajustado ao caso uma pena de prisão que se quede no limite mínimo da penalidade, ou seja, a pena de 2 anos de prisão.
2.4- Como acima já se deixou antever, a nossa convicção é a de que a melhor solução para a recuperação do casal estaria num tratamento de desintoxicação alcoólica de ambos e não na aplicação de penas institucionais a um dos elementos do casal, no caso o arguido.
Este aponta como alternativa à prisão uma pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, aceitando a sua aplicação.
Não tendo surtido efeito a suspensão da execução das anteriores penas de prisão, parece-nos que de momento a prestação de trabalho a favor da comunidade será a forma mais adequada para o arguido interiorizar que não é com os maus tratos ao cônjuge que resolverá o drama do alcoolismo de ambos.
Esta pena parece-nos tanto propícia quanto é certo que o arguido esclareceu encontrar-se desempregado, só dando “dias fora” em parte dos dias do mês.
Considerada como uma das mais importantes medidas de política criminal dos últimos decénios no domínio sancionatório, a prestação de trabalho a favor da comunidade concita elevadas expectativas na progressiva afirmação das medidas não institucionais como fórmulas punitivas indispensáveis à eficácia do sistema penal.
A prestação de trabalho a favor da comunidade evita a execução de penas de prisão de curta duração e promove a assimilação da censura do acto ilícito mediante a prestação dum trabalho socialmente positivo a favor da comunidade, assente na adesão do próprio arguido. Ao mesmo tempo apela a um forte sentido de co-responsabilização social.
Em qualquer circunstância, o tribunal não é livre de aplicar ou não esta pena de substituição ou qualquer outra, pois não detém uma faculdade discricionária.
A lei consagra um poder/dever ou um poder vinculado quanto à verificação do preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação desta pena, tal como sucede com a suspensão da execução da pena.
Consequentemente, uma vez verificados os respectivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de aplicar a pena de substituição, sendo esta a sua verdadeira natureza, que não um modo de execução da pena de prisão.
O tribunal pode não concordar com a suspensão da execução da pena e entender ser caso de aplicar a pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Assim o afirmou o STJ em Ac. de 21/6/2007, referindo que não pode dizer-se que se não estão reunidos os pressupostos para a suspensão da execução da pena também o não estarão os pressupostos para a sua substituição nos termos do art.º 58º do Código Penal. A pena de trabalho a favor da comunidade não tem a mesma natureza (salvo o de ser também ela uma pena de substituição) nem as mesmas exigências nem obedece às mesmas práticas de reinserção social que a suspensão da execução da pena. Por isso nada garante que não podendo as exigências de punição serem satisfeitas com a suspensão da execução da pena, não o possam ser com a prestação de trabalho a favor da comunidade.
Está assim imposto ao juiz o dever de indagar e justificar não só o afastamento da suspensão da execução da pena de prisão, mas também da prestação de trabalho a favor da comunidade.
No caso ainda faremos uma prognose favorável à recuperação do arguido através do cumprimento duma pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, parecendo-nos assaz violento que um quadro de alcoolismo apenas se resolva com a execução duma tão severa pena de prisão.
A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade representará ainda uma forma de reacção penal com potencialidade para nova orientação na vida do arguido, desta vez pautada por regras e valores de são convívio social que o mesmo não tem até agora sabido respeitar, sendo menos estigmatizante e mais enriquecedora do ponto de vista da reintegração social.
Resta tentar a reintegração progressiva de modo a estimular e a possibilitar uma experiência nova no convívio do arguido com outras gentes com melhor formação cívica. Experiência que, por visar fins nobres e generosos, pelos desafios que a sua realização coloca e pelas relações sociais que desperta acabará por ser enriquecedora, criando naturalmente novos horizontes e gerando outras motivações e perspectivas de vida antes ignoradas.
Perante a situação real que se colhe dos autos e da sentença, ao invés duma pena detentiva afigura-se-nos mais ajustada ao tipo de gravidade estoutra medida sancionatória.
O arguido declarou aceitar a sua sujeição a esta pena – cfr. fls.
III –
Decisão –
Termos em que se reduz a pena aplicada para 2 (dois) anos de prisão, substituindo-se a mesma pela de prestação de trabalho a favor da comunidade que se fixa em 480 horas, ou seja, em 60 dias de trabalho diário em regime de trabalho completo face à situação de desemprego do arguido.
A determinação da entidade beneficiária, regime de prestação e demais diligências relativas à execução da pena substitutiva ficam na incumbência do tribunal recorrido que para o efeito se socorrerá dos préstimos dos Serviços de Reinserção Social em consonância com o estabelecido no Dec-Lei nº 375/97 de 24/12.
Sem custas.
Coimbra,