Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1876/07.6PEAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: PECULATO
FURTO
Data do Acordão: 04/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA -AVEIRO – JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 204º, 397º CP
Sumário: No crime de peculato o funcionário apropria-se ilegitimamente, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 1876/07.6PEAVR que corre termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Aveiro, foi imputada à arguida M… a prática de um crime de peculato, p. e p. pelos artigos 375.º, n.º 1, e 386.º, n.º 1, al. c), ambos do Código Penal.
Durante a audiência de julgamento, no dia 12/2/2009, conforme acta de fls. 496/500, o Meritíssimo Juiz proferiu o seguinte despacho:
Sem prejuízo de uma mais apurada análise do tipo legal de crime imputado à arguida e sem tomar qualquer posição quanto à prova até este momento produzida, à cautela, o Tribunal chama a atenção dos sujeitos processuais de que, porventura, os factos da acusação poderão, eventualmente, integrar um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1, al. e), do Código Penal, em vez do crime que lhe é imputado na acusação.
Por tal razão. E sem prejuízo de uma melhor análise do tipo legal de crime imputado à arguida na acusação, nesta altura, se dá cumprimento ao que dispõe o artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, face a uma eventual alteração da qualificação jurídica para o crime de furto atrás referido.
Na sequência, a ilustre defensora oficiosa da arguida disse necessitar de um prazo de cinco dias para reorganizar a defesa, o que lhe foi concedido, sendo certo que, nesse período, nenhuma prova suplementar apresentou (ver acta de fls. 501 e 502).
Realizado o julgamento, por sentença de 25 de Fevereiro de 2009, foi decidido absolver a arguida do crime de peculato que lhe era imputado e condená-la, como autora de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de sete euros, num total de € 980,00 (novecentos e oitenta euros euros), a que correspondem, subsidiariamente, noventa e três dias de prisão.
****
Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 27/3/2009, o Ministério Público, conforme fls. 520/535, defendendo a revogação da sentença recorrida, e substituição por outra que condene a arguida pela prática do crime de peculato, p. e p. no artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal, ou, subsidiariamente, pelo crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, al. f), do mesmo código, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
1. O Mmo. Juiz a quo deu como provado que ao compartimento onde se guardavam os objectos dos internandos “só tinham acesso as testemunhas C... , G... e E... ” – ponto 4 dos factos provados.
2. E deu, também, como provado que “a arguida, pelo facto da respectiva porta se encontrar aberta, logrou ter acesso ao interior da referida casa-forte e daí retirou aquele aparelho de telemóvel que fez seu” – ponto 5 dos factos provados.
3. Ora, estes dois factos são contraditórios, já que, se apenas determinadas pessoas tinham acesso àquele compartimento, a respectiva porta teria que estar permanentemente fechada, de forma a não poder o interior do mesmo ser “acessível” a nenhum outro funcionário do Centro Educativo. Se a porta poderia estar aberta, qualquer funcionário do Centro – incluindo a arguida – poderia ali entrar.
4. A arguida, como funcionária do Centro Educativo que colaborava com as técnicas de Reinserção Social a quem cabia a guarda dos objectos dos internandos, designadamente partilhando com elas o local de trabalho, podia aceder ao local onde estavam guardados os objectos dos internandos.
5. O ponto 4 dos factos provados, embora constasse do libelo acusatório, não corresponde, na sua totalidade, ao resultado da prova produzida em audiência de julgamento.
6. Decorre, dos depoimentos prestados em audiência de julgamento pela arguida e pelas testemunhas V…, C…, G… e E…, que à sala onde eram guardados os objectos dos internandos poderia aceder a primeira.
7. Desde logo, poderia fazê-lo quando as técnicas de reinserção social necessitavam de aí guardar objectos ou de os retirar, pois deixavam a porta aberta enquanto voltavam aos seus gabinetes para falar com os internandos.
8. Nesses períodos, a sala ficava acessível às demais técnicas de reinserção social, à coordenadora e à arguida que, com elas, partilhava o local de trabalho.
9. Também poderia a referida porta ficar, por um qualquer motivo, aberta, como, aliás, referiu a arguida e foi dado como provado, sendo que, no próprio dia em que se deu por falta do telemóvel, a arguida esteve, com a coordenadora, dentro do compartimento a procurar tal objecto.
10. Vejam-se as passagens 05m.05s. – 05m.29s., do depoimento da testemunha A... , 06m.37. – 07m.29s., 07m.49s. – 08m.19s., 08m. 22s. – 08m. – 38s., 09m.05s. – 09m.09s., 09m.25s., e 14m.20s. – 14m.34s., do depoimento de C... , 03m.13s. - 03m.36s., e 03m.51s. – 04m.16s., do depoimento de G... e 02m.01s. – 03m.21s., do prestado por E... .
11. Decorre, pois, da prova produzida em audiência de julgamento que, não obstante apenas três pessoas, entre as quais não se contava a arguida, tivessem a chave do espaço onde eram guardados os objectos dos internandos, tal espaço era, para todos os efeitos, acessível a todos os funcionários que desempenhavam as suas funções naquela ala do Centro Educativo, entre os quais a arguida.
12. Ao apropriar-se do telemóvel, quer o tenha feito, como o referiu e foi dado como provado, numa manhã em que a porta do “cofre” estava entreaberta, que tal tenha ocorrido num dos – muitos – momentos em que a porta estava aberta enquanto eram retirados/colocados objectos no respectivo interior pelas três técnicas (ou, mais concretamente, enquanto estas estavam nos seus gabinetes a tratar de tais assuntos), a arguida subtraiu um objecto que lhe era acessível em razão das suas funções.
13. Não actuou perante o telemóvel como um qualquer terceiro.
14. Ela só pôde praticar os factos pelos quais foi condenada – e que assumiu – porque era funcionária administrativa do Centro Educativo.
15. Se fosse uma qualquer outra pessoa, nunca teria acesso ao referido objecto, desde logo porque tudo se passou num Centro Educativo, ao qual ninguém acede, sem a devida autorização.
16. A arguida pôde subtrair o telemóvel, que havia sido guardado em espaço próprio do Centro, pela técnica que acompanhava o internando, seu dono, apenas e tão-só porque, como funcionária do Centro Educativo que trabalhava com as técnicas responsáveis pelos jovens, dando-lhes o necessário apoio administrativo, tinha, normalmente, acesso a tal objecto.
17. Não obstante não lhe coubesse a função de guarda dos objectos dos internandos, tinha naturalmente contacto com tal actividade, no mínimo porque partilhava do espaço onde tal guarda era efectivada, tendo acesso ao mesmo quando, normalmente, era utilizado.
18. Assim, o Tribunal teria de dar como provado que, na sala onde eram guardados os objectos dos internandos, podiam entrar, para além das técnicas de reinserção social, os demais funcionários daquela área do Centro, concretamente a coordenadora e a arguida.
19. A prova destes factos decorre das declarações prestadas pela arguida e pelas testemunhas A... , C... , G... e E... , nos segmentos citados supra, no ponto 10 das Conclusões.
20. Ao analisar os factos que constituem o objecto dos presentes autos, não se afigura possível considerar que a arguida, funcionária de um Centro Educativo, onde estão internados jovens que praticaram factos típicos ilícitos, previstos como crime, a fim de os educar para o direito, ao subtrair um objecto pertencente a um dos internandos e à guarda do Centro, tenha, apenas, atentado contra o património.
21. É quase intuitiva a maior censura que deve ser feita ao comportamento da arguida, censura esta que se funda na maior relevância/amplitude dos bens jurídicos que violou.
22. À arguida só foi possível a apropriação precisamente porque é funcionária daquele Centro e porque, por força das suas funções, acedeu ao local onde o objecto estava guardado.
23. Há, aqui, um acréscimo de ilicitude, de dolo e de culpa, que não se compadece, apenas, com o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de furto – a ilegítima subtracção de coisa móvel alheia com intenção de apropriação.
24. É que a coisa móvel alheia estava à guarda do Estado, num Centro Educativo.
25. E a arguida era funcionária desse Centro educativo e só por este motivo tinha a cesso ao objecto em causa.
26. Estão, pois, também preenchidos os elementos típicos do crime de peculato: a ilegítima subtracção de coisa móvel alheia com intenção de apropriação por parte de um funcionário relativamente ao qual tal coisa era acessível em razão das suas funções.
27. A sentença ora em crise violou o disposto no artigo 375.º, do Código Penal.
28. Deve, pois, a arguida, M... , ser condenada pela prática, em autoria material, do crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal, em pena de prisão, próxima do mínimo legal, suspensa na sua execução.
29. Caso assim não se entenda, isto é, caso se considere que à arguida era vedado o acesso ao local onde eram guardados os objectos dos internandos, ter-se-á que concluir, então, a arguida só teve acesso ao telemóvel porque se introduziu ilegitimamente em espaço vedado, pelo que o furto é qualificado.
30. A arguida transpôs as portas de um Centro Educativo, passando pelo respectivo segurança e sendo devidamente identificada, dentro do Centro acedeu a uma zona restrita, a área técnica e, uma vez neste local, ainda transpôs uma porta para aceder a uma caixa onde estava guardado o telemóvel.
31. Sempre se verificariam, assim, os elementos objectivos e subjectivos do crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, al. f), do Código Penal.
32. Em tal caso, deveria a arguida ser condenada em pena de multa aproximada do ponto médio da moldura penal respectiva e no quantitativo fixado na sentença ora em crise.
33. Sempre sem prescindir, teria a sentença ora em crise violado, em tal caso, o disposto no artigo 204.º, n.º 1, al. f), do Código Penal.
****
A arguida não apresentou resposta ao recurso.
O recurso foi, em 11/11/2009, admitido.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, em 3/12/2009, no qual defende que o recurso não merece provimento enquanto pugna pela alteração da matéria de facto e pela subsunção da mesma à figura criminal do peculato, mas deve ser provido na parte em que, subsidiariamente, defende a condenação da arguida como autora de um crime de furto qualificado da al. f), do n.º 1, do artigo 204.º, do Código Penal, havendo, então, que dar cumprimento ao n.º 1, do artigo 358.º, do CPP, face à alteração da qualificação jurídica que isso implica.
Cumpriu-se o artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Em 13/1/2010, foi proferido, a fls. 503, o seguinte despacho:
Face ao teor do recurso interposto pelo Ministério Público (fls. 520/535), e, ainda, do parecer constante de fls. 544/551, por força do disposto no n.º 3, do artigo 358.º, do CPP, dá-se conhecimento à arguida da seguinte, eventual, alteração da qualificação jurídica dos factos dados como provados:
- onde se lê “furto simples, p. e p. pelo n.º 1, do artigo 203.º, do C. Penal”, pode vir a ser lido “furto qualificado, p. e p. pela al. f), do n.º 1, do artigo 204.º, do C. Penal”.
Assim sendo, concede-se, desde já, o prazo de dez dias à arguida, para, querendo, preparar e apresentar defesa, nos termos do artigo 358.º, n.º1, do CPP.
Notifique.
A arguida nada veio trazer aos autos, no aludido prazo.
Colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
****
II. Decisão Recorrida (com relevo para o caso em análise):
“(…)
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. À data dos factos, a arguida desempenhava funções de assistente administrativa principal no Centro Educativo .
2. Nessa mesma altura, o menor F... encontrava-se a cumprir medida tutelar educativa no referido centro educativo.
3. Em virtude de ser proibido aos internandos a posse e utilização de telemóveis, no dia 16 de Julho de 2007 o referido menor ali entregou, a fim de ficar à guarda da dita instituição, um telemóvel marca e modelo Nokia N91, com o IMEI 353633010109784 e respectivo auricular, no valor de cerca de €499,00 (quatrocentos e noventa e nove euros).
4. Nessa decorrência, o referido aparelho de telemóvel, naquele mesmo dia, foi guardado num compartimento designado de "casa-forte", fechado por porta blindada, ao qual só tinham acesso as testemunhas C... , G... e E... , técnicas superiores de reinserção social que ali desempenham funções.
5. Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre o referido dia 16-07-2007 e o dia 27-07-2007, a arguida, pelo facto da respectiva porta se encontrar aberta, logrou ter acesso ao interior da referida "casa-forte" e daí retirou aquele aparelho de telemóvel, que fez seu.
6. A arguida agiu com o propósito alcançado de fazer seu aquele aparelho de telemóvel, como efectivamente fez, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que se encontrava à guarda daquele Centro.
7. Agiu de modo livre, voluntário e consciente, não ignorando que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
8. A arguida confessou os factos supra descritos e mostra-se arrependida.
9. Alguns meses após os factos a arguida levou o telemóvel para aquele Centro, telemóvel esse que entretanto já foi entregue ao respectivo proprietário.
10. A arguida aufere mensalmente cerca de €730.
11. Tem o equivalente ao 12º ano de escolaridade.
12. Vive com marido e dois filhos em casa de renda mensal de cerca de €250.
13. É tida como pessoa bem comportada e trabalhadora.
14. Não tem antecedentes criminais.
*
Não se provou:
- que a arguida tivesse logrado aceder ao interior da referida “casa – forte” de modo não concretamente apurado”.
*
Indicação probatória.
O tribunal, num juízo crítico de apreciação da prova produzida, formulou a sua convicção, quanto aos factos dados como provados, tendo por base os seguintes elementos:
a) nas declarações da arguida que confessou todos os factos que lhe eram imputados da forma como foram dados como provados, esclarecendo/promenorizando que a porta daquele compartimento denominado “casa-forte” se encontraria entreaberta porquanto na altura em que abriu a porta do seu gabinete ocorreu uma deslocação de ar que determinou que a porta do compartimento em causa (designado de “casa forte”) se abrisse, sendo que nessa altura quando se aprontava para fechar a porta de tal “casa forte” reparou que no seu interior estava o referido telemóvel, objecto esse que levou consigo, fazendo-o seu. Mais referiu que passados uns meses, levou tal objecto para aquela instituição e tudo ali fez para que fosse encontrado por alguém, o que veio a acontecer. Foram ainda tidas em conta as suas declarações quanto á sua situação económica, familiar e habilitações literárias;
b) no depoimento das testemunhas:
- V… (Directora daquele Centro) a qual referiu ter sido contactada por algumas das técnicas superiores a darem-lhe conta do desaparecimento do telemóvel, esclarecendo que só as mencionadas na acusação é que tinham chave do compartimento em causa. Mais disse que em Janeiro de 2008 foi contactada pela arguida que lhe comentou que a PJ tinha ido a sua casa mas que já em Novembro tinha trazido tal telemóvel de volta para aquele Centro mas ninguém o encontrara, sendo que já antes desse contacto o telemóvel já tinha aparecido. Referiu ainda que logo nessa altura a arguida lhe disse que pegou no telemóvel porque a porta daquele compartimento se encontrava aberta;
- C…, G… e E… (na altura técnicas superiores daquele Centro) as quais confirmaram ser elas as detentoras da chave que permitia a abertura da fechadura de uma pequena divisão, tipo despensa, denominada por “casa forte”. Embora as duas últimas testemunhas pouco soubessem esclarecer acerca dos factos em causa por na altura se encontravam de férias, referiram ter tido conhecimento que, por alturas do Natal, o telemóvel foi encontrado por uma outra funcionária dentro daquele Centro. E pela testemunha C… foi referido ter sido ela a receber os pertences do menor em causa (entre o quais o telemóvel) naquele dia 16/07/2007, objecto esse que guardou naquela divisão, tendo detectado o desaparecimento do mesmo quando o ia para buscar a fim de entregar ao menor. Mais disse esta testemunha até ter falado acerca disso com a madrinha do menor, ao que esta lhe disse que tinha sido ela que o havia comprado para o menor pelo preço de €499, telemóvel esse que apareceu naquele Centro em Dezembro de 2007.
- LL, XX, BB, SS (funcionários daquele Centro) os quais teceram as melhores considerações acerca do comportamento e reputação da arguida pessoa que demonstraram conhecer há largos anos;
c) no teor dos seguintes documentos: factura (cópia) de fls. 5, listagem emitia pela Vodafone constante de fls. 21 a 202 e 375; autos de exame directo, juntos a fls. 395 a 397, termo de entrega de fls. 486, bem como no teor do CRC de fls. 595.
*
Quanto ao facto dado como não provado e para além nenhuma das testemunhas ouvidas ter presenciado a apropriação do telemóvel em causa nem muito menos saber de que forma a arguida acedeu ao interior daquele compartimento, tal como já foi mencionado aquando da motivação dos factos provados, pela arguida foi dito que a porta de tal compartimento se encontraria entreaberta porque se abriu com a deslocação de ar ocorrida na altura em que abriu a porta do seu gabinete.
*
Enquadramento jurídico-criminal.
Face à materialidade dada como provada, importa agora proceder ao respectivo enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida.
Vinha a arguida acusada da prática de um crime de peculato, p. e p. pelo artº 375°, nº 1 e 386°, n° 1, alínea c), ambos do Código Penal.
Dispõe o art. 375° nº 1 que "O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de um a oito anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".
São elementos constitutivos do crime de tal crime:
1. a nível objectivo:
a) que o agente seja um funcionário;
b) que o mesmo se aproprie (subtraia), em proveito próprio ou de outra pessoa;
c) de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, pública ou particular;
d) que lhe tenha sido entregue, estiver na sua posse ou lhe for acessível em razão das suas funções; e
e) Que essa apropriação seja ilegítima.
2. a nível subjectivo exige-se que o agente actue com intenção de apropriação desses bens, sabendo que tal actuação é proibida e punida por lei.
O peculato, na sua configuração central, não é mais que a apropriação indébita praticada por funcionário publico ratione officii.
É a apropriação indébita qualificada pelo facto de ser o agente funcionário público, procedendo com abuso do cargo ou infidelidade a este.
O peculato pressupõe assim no agente a preexistência da legítima posse precária, ou em confiança, da res mobilis de que se apropria, ou desvia do fim a que era destinada (Simas Santos, in C.P. Anotado vol.4, pág. 566).
Trata-se de um crime específico impróprio: por um lado o agente terá que ser um funcionário (cujo conceito está mencionado no art. 386º), funcionário esse que, em razão das suas funções, tenha a posse do bem objecto do crime; é esta qualidade do gente (e esta relação do agente com o objecto) que torna a ilicitude do crime de peculato mais grave do que a do furto (…); por um lado, também é a qualidade de funcionário no exercício das suas funções – crime praticado no exercício de funções públicas – que distingue o crime previsto no art. 205º nº 5 (abuso de confiança qualificado) – cfr. (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo III, Coimbra Editora, pag. 692).
Tecidas estas pequenas considerações acerca do crime de peculato, analisando a matéria de facto apurada, e salvo o muito devido respeito por opinião contrária consideramos que tal factualidade (que, no essencial corresponde à acusação) não é susceptível de preencher, desde logo a nível objectivo, todos os requisitos de tal crime.
Não havendo dúvidas que a arguida era funcionária para efeitos da previsão deste crime (cfr. art. 386º nº 1 b) do Código Penal) e se mostram verificadas as demais situações previstas nas atrás explanadas alíneas b), c) e e), somos de entendimento que não está verificada qualquer situação susceptível de integrar a previsão do mencionado na alínea d).
Com efeito, não ficou provado (nem isso era alegado na acusação) que o telemóvel em causa tivesse sido entregue à arguida ou que estivesse na posse da mesma. E será que tal telemóvel era acessível à arguida em razão das suas funções? Entendemos que não. Salvo o muito devido respeito por opinião contrária, e de uma leitura mais atenta da acusação, era essa mesma acusação a mencionar expressamente que tal telemóvel estava acessível, em razão das respectivas funções, às testemunhas C... , G... e E... , e nessa mesma medida a, implicitamente, afastar essa mesma acessibilidade relativamente à arguida.
É que tal como é referido em anotação ao art. 375º, para afastar a acessibilidade em sentido lato “tendo em conta que a acessibilidade deve derivar das funções do agente, parece que deverá haver uma efectiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objecto, não sendo suficiente, segundo cremos, a mera proximidade material do bem ou a facilidade em conseguir a sua apropriação” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo III, Coimbra Editora, pag. 695).
Quer-se com tudo isto dizer que não se verifica um dos requisitos essenciais para o preenchimento do tipo legal de crime, motivo pelo qual dele deverá a arguida ser absolvida.
Todavia, será que a apurada conduta da arguida não integra um outro tipo legal de crime? Consideramos que sim.
Sendo certo que já na audiência do dia 12/02/2009 o Tribunal já havia chamado a atenção dos sujeitos processuais para a eventualidade dos factos da acusação poderem integrar o crime de furto qualificado p. e p. pelo art. 204º nº 1 e) do Código Penal (cfr. despacho de fls. 499 proferido na respectiva acta), consideramos que pela factualidade apurada, não se tendo logrado demonstrar que o compartimento denominado de “casa forte” estivesse fechado está afastada a possibilidade de preenchimento da situação contemplada na alínea e) do nº 1 do art. 204º do Código Penal, alínea essa que exige que a coisa móvel esteja guardada ou depositada em algo que dotado de dispositivo de segurança e que, por essa mesma situação, ofereça alguma resistência ou dificuldade a quem dela se pretenda apropriar, o que, como já referimos, não se verificava em relação aquele concreto compartimento.
E os apurados factos ainda assim não integrarão o tipo legal de furto simples p. e p. pelo art. 203º nº 1 do Código Penal? Entendemos que sim.
Com efeito, dispõe tal normativo que "Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa."
Apreciando os factos dados como provados, deles flui com clareza que a arguida, com o propósito conseguido, se apropriou do telemóvel em causa, bem sabendo que tal objecto não lhe pertencia e que se encontrava à guarda daquele Centro.
Destarte, a conduta da arguida preenche os elementos materiais e intelectual do tipo legal do crime de furto contidos nos artigos 203º nº 1 do Código Penal (subtracção de coisa móvel alheia, com ilegítima intenção de apropriação para si), punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (de 10 a 360 dias – cfr. art. 47º nº 1 do Código Penal)
Temos, pois que, e dado que não se verificam quaisquer circunstâncias susceptíveis de excluir a ilicitude da sua conduta ou dirimir a sua culpa, como autora material do crime de furto simples, a arguida deve ser punida, tanto mais que quanto a isso não há alteração substancial ou não substancial de factos, pois que os provados representam um "minus" relativamente aos que constavam da acusação (cfr. Ac. do STJ de 28/04/1994, acessível pela internet através do site www.dgsi.pt/ (Acordãos STJ) e também em relação à advertência de possível alteração da qualificação jurídica que havia sido feita na audiência.
*
Da escolha e medida da pena.
Cabendo ao cometido crime de furto simples, em abstracto, prisão de 1 mês a 3 anos ou multa de 10 a 360 dias - cfr. art. 47º nº 1 do Código Penal- (sendo cada dia de multa, consoante a situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, a uma taxa variável entre €1 e €498,80 ou entre €5 e €500 - cfr. art. 47º nº 2 do Código Penal, respectivamente, na redacção anterior e posterior à Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro), decide desde já o tribunal ao abrigo do disposto no art. 70º do Código Penal, e atendendo às circunstâncias concretamente apuradas, designadamente a ausência de antecedentes criminais, optar pela aplicação da pena de multa por esta se mostrar suficiente para promover a recuperação social da delinquente e satisfazer as finalidades da punição do crime, tendo em conta o moderado valor do objecto em causa e o facto de ter sido recuperado.
A determinação da pena concreta deverá fazer-se tendo em consideração o critério enunciado no art. 71 do Código Penal, em função da culpa do agente em concreto, ponderando as exigências de prevenção e atendendo ainda a todas as circunstâncias que possam depor a favor ou contra a arguida.
O dolo foi intenso, porque directo. O grau de ilicitude é moderado face ao valor do objecto. O grau de censurabilidade é elevado tendo em conta o modo de apropriação e contexto de apropriação desse mesmo objecto, bem como à qualidade profissional da arguida, sendo que o bem foi subtraído do local de trabalho. São grandes as exigências de prevenção geral em matéria de crimes contra a propriedade como se constata pelo elevado número de processos pendentes neste tribunal.
Como circunstâncias que possam ser tidas em seu benefício, há a considerar a confissão dos factos, a ausência de antecedentes criminais, o bom comportamento e consideração de que goza, bem como ao arrependimentos manifestado, comprovado, aliás, pelo facto de ter contribuído para que o objecto fosse recuperado pelo respectivo proprietário.
Em termos de expressão monetária do quantitativo diário da multa atender-se-á à sua situação económica.
Atentos os motivos expostos, considera-se aplicar à arguida uma pena de 140 dias de multa à diária de €7 (taxa diária esta fixada segundo a moldura a que alude o art. 47º nº 2 do Código Penal, na versão anterior à alteração dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, porque mais favorável à arguida - cfr. art. 2º nº 4 do Código Penal e art. 29º nº 4 da Constituição da República Portuguesa).”
****
III. Apreciação do Recurso:
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais para se obter o reexame da matéria que foi sujeita à apreciação da decisão recorrida e não vias jurisdicionais para um novo julgamento.
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), as questões a conhecer são as seguintes:
1 – Saber se há erro de julgamento relativamente aos factos dados como provados sob os pontos 4 e 5.
2 – Saber se a arguida deve ser condenada pelo crime de peculato, p. e p. 375.º, n.º 1, do Código Penal.
3 – Saber se a arguida deve ser condenada pela prática de crime de furto qualificado, p. e p. pela al. f), do n.º 1, do artigo 204.º, do Código Penal
****
1 – Erro de julgamento relativamente aos factos dados como provados sob os pontos 4 e 5:
Relembre-se o teor dos factos em causa:
4. Nessa decorrência, o referido aparelho de telemóvel, naquele mesmo dia, foi guardado num compartimento designado de "casa-forte", fechado por porta blindada, ao qual só tinham acesso as testemunhas C... , G... e E... , técnicas superiores de reinserção social que ali desempenham funções. 5. Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre o referido dia 16-07-2007 e o dia 27-07-2007, a arguida, pelo facto da respectiva porta se encontrar aberta, logrou ter acesso ao interior da referida "casa-forte" e daí retirou aquele aparelho de telemóvel, que fez seu.
Entende o recorrente quedas duas uma: ou apenas as três técnicas de reinserção tinham acesso àquele compartimento, sendo que, assim, a respectiva porta teria que estar permanentemente fechada, de forma a não poder o interior do mesmo ser “acessível” a nenhum outro funcionário do Centro Educativo, ou a porta poderia estar aberta e, assim, qualquer funcionário do Centro poderia entrar no referido compartimento.
As duas realidades não podem, pois, co-existir.Por conseguinte, estaremos, então, perante uma contradição de factos, sendo certo que, por força das declarações da arguida e dos depoimentos das testemunhas A... , C... , G... e E... , o Tribunal teria de dar como provado, para além dos demais factos elencados sob o ponto 4, e contrariamente ao que ali fez constar, que, na sala onde eram guardados os objectos dos internandos, podiam entrar, para além das técnicas de reinserção social, os demais funcionários daquela área do Centro, concretamente a coordenadora e a arguida.
****
Como é sabido, existem duas formas distintas, assentes em pressupostos diferentes, de impugnar a decisão da matéria de facto: - com fundamento nos “vícios” previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP; e - com base na reapreciação da prova produzida em audiência, nos termos previstos nos artigos 431.º e 412.º, do CPP. Os vícios do art. 410.º, como resulta claro do corpo do n.º 2, hão-se emergir do texto da própria decisão por si ou confrontada com o critério da livre apreciação da prova enunciado no art. 127.º, do CPP. Sendo – porque detectáveis ao simples exame da decisão em confronto com as regaras da experiência comum – de conhecimento oficioso, como decidido pelo acórdão do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR, I-A Série de 28.12.95. Já no recurso com base na reapreciação da prova, o legislador impõe ao recorrente determinados ónus de especificação / fundamentação previstos no art. 412.º, n.º.3 e n.º 4, do CPP: “3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas. 4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em acta, nos termos do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.” Compete, pois, ao recorrente demonstrar os fundamentos do recurso, o mesmo é dizer, não só identificar o erro in operando ou o erro in judicando que aponta à decisão recorrida, mas ainda especificar o conteúdo concreto dos meios de prova capazes de, numa valoração em conformidade com os critérios legais, impor decisão diferente da recorrida. Tal obriga, no caso dos depoimentos prestados oralmente em audiência, à identificação do conteúdo probatório concreto de tais depoimentos (concretas afirmações produzidas) e as passagens da gravação que cotem as invocadas afirmações, capazes de imporem decisão diversa da recorrida, por erro de “audição” (só este, verdadeiramente, pode a gravação comprovar) ou de apreciação em conformidade com os critérios legais em vigor.
Não restam dúvidas de que, revertendo ao caso em apreço, estamos no domínio da impugnação da matéria de facto com base na reapreciação da prova, sendo, igualmente, verdade que o recorrente deu cumprimento ao disposto no artigo 412.º, n.º 3 e n.º 4., do CPP.
Pois bem, a alegada contradição entre o teor dos pontos 4 e 5 dos factos dados como provados não existe.
Nesta matéria, é de acompanhar, na íntegra, a posição expressa pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer de fls. 544/551, onde é referido que a contradição invocada “é meramente aparente, na medida em que os planos em que um e outro se situam são distintos: no primeiro, o tribunal reporta-se ao acesso legítimo, ao acesso facultado às três testemunhas ali referenciadas em virtude das suas funções específicas; no segundo, trata-se de um outro tipo de acesso, o acesso de facto, fortuito, porventura ilegítimo, que a arguida logrou, não por a ele ter direito, mas porque alguém – naturalmente uma daquelas três testemunhas – deixou a porta aberta inadvertidamente.
Se bem repararmos, todos os depoimentos das indicadas testemunhas apontam, quanto à arguida, para um acesso meramente fortuito.
Vejamos, a título de exemplo.
A testemunha Maria Júlio disse:
“(…)dado que a Sra. Dona C… trabalha mesmo com a equipa técnica, portanto há uma relação de confiança e muitas vezes a porta estava aberta quando os jovens, se ia lá buscar alguma coisa para se lhes entregar (…)” – gravação digital: 05m.05s – 05m. 29s.
A testemunha C... disse:
“(…) a porta não era por nós deixada aberta. Agora, se me dissesse, nunca deixavam a porta aberta? Eu mentiria se dissesse que não deixávamos (…)” – gravação digital: 06m.37s. – 07m.29s.
E mais disse.
“(…) sempre trabalhei sem a mínima desconfiança de adultos e o facto dos objectos serem lá colocados e até com aquela segurança e sermos só nós, (…)” – gravação digital: 07m.49s. – 08m.19s.
Por seu turno, e para abreviar, as testemunhas G... e E... disseram, de igual modo, que assim procediam – gravação digital: 03m.13s. – 03m.36s. e 03m.51s. – 04m.16s., a primeira; 02m.01s. – 03m.21s., a segunda.
Assim sendo, é inócuo acrescentar o que quer que seja ao rol dos factos provados, na medida em que, em termos de acessibilidade relevante em causa nos autos, o que interessa não é um acesso fortuito, necessariamente furtivo, mas sim o legítimo e normal.
Daí que nenhuma alteração em matéria de facto se justifique.
****
2 – Do crime de peculato:
O recorrente entende que a conduta da arguida integra a prática de um crime de peculato, p. e p. pelo artigo 371.º, do Código Penal. Saliente-se que tal tipo legal configura uma dupla protecção: por um lado, tutela bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação ou oneração ilegítima de bens alheios; por outro lado, tutela a probidade e fidelidade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração, ou, por outras palavras, a "intangibilidade da legalidade material da administração pública" punindo abusos de cargo ou função. Assim, o peculato integra dois elementos: o crime patrimonial e o abuso duma função pública (ou equiparada; quanto ao conceito de funcionário cf. art. 386°). Para se preencher o presente tipo legal, estes dois elementos terão de se relacionar entre si; assim, há abuso de função pelo facto do agente se apro­priar ou onerar bens de que tem a posse em razão das funções que exerce, violando, com esse comportamento, a relação de fidelidade pré-existente - o agente "viola os limites intrínsecos do exercício da posse que lhe foi confe­rida em razão do seu ofício ou serviço". Quer os bens sejam do Estado quer de particulares, está sempre em causa um direito patrimonial. Esta ideia é o ponto de partida a partir do qual se pode estabelecer a distinção entre o crime de peculato e o de furto e, ainda, entre o crime de peculato e o de abuso de confiança. Assim, pode dizer-se que o crime de peculato é um crime de furto qualificado em razão da qualidade especial do agente ou um crime de abuso de confiança qualificado em razão da qua­lidade de funcionário no exercício de funções públi­cas.
Resumindo, no crime de peculato o funcionário apropria-se ilegitimamente, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções.
****
No caso vertente, e pelo que acaba de ser dito, a situação descrita na decisão recorrida não configura a prática de um crime de peculato.
Na realidade, quem, em razão das suas funções, tinha a guarda ou a posse dos bens ou o acesso aos mesmos eram apenas as três técnicas de reinserção e não, também, a arguida e/ou quaisquer outros funcionários do Centro Educativo, não obstante poderem materialmente aceder aos mesmos em circunstâncias fortuitas.
Por outras palavras, nas funções da arguida, não se incluía uma especial relação com os objectos guardados na chamada “casa-forte”.
Logo, nesta matéria, nada há que censurar na sentença recorrida.
****
3 – Do crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1., al. f), do Código Penal:
A norma citada dispõe o seguinte:
1 – Quem furtar coisa móvel alheia:
(…)
f) Introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar;
(…)
é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
****
Ao contrário do que diz o recorrente (ponto 30 das Conclusões), é líquido que a entrada da arguida no Centro e o acesso à área técnica nada têm a ver com o furto, visto que a arguida fez isso para ir exercer as suas funções profissionais, não para furtar.
Para que o recurso, nesta parte, proceda, resta saber se a designada “casa-forte” pode caber no conceito de “espaço fechado” aludido na mencionada alínea f). O que diferencia um “espaço fechado” de um espaço aberto é a existência de sinais (ou signos) que toda gente entende como demarcando a propriedade privada e o acesso não livre. Não está em causa, na referida qualificativa, a dificuldade no acesso ao espaço fechado. Não é a especial forma de penetração no espaço fechado (arrombamento, escalamento, etc.) que recorta a qualificação (para estes casos a lei prevê qualificativas específicas – al. e) do art. 204 CP), mas sim a existência de um espaço que, pelas suas características, dá privacidade e segurança aos seus titulares. É a violação dessa privacidade (e segurança que a mesma implica) que o legislador pretende proteger, ao agravar o furto. Daí que a mera existência de portões ou portas (ainda que momentaneamente abertos), num determinado local, seja um signo que toda a gente entende como demarcando o espaço dentro do qual só tem acesso quem estiver autorizado. Consequentemente, uma vez bem delimitado o espaço por qualquer dos meios usuais, normais, portas, portões, gradeamentos, não importa que, na circunstância, estejam abertos, pois isto não significa acesso livre a toda agente, em qualquer circunstância.
Relembre-se o Assento n.º 7/2000, de 19/1/2000, DR n.º 56, Série I-A, de 7 de Março de 2000, onde pode ser lido o seguinte:
A expressão «espaço fechado» que consta da alínea e), do n.º 2, do artigo 204.º, do Código Penal - e também referida na alínea f), do n.º 1, do mesmo preceito – tem, forçosamente, de ser entendida com o sentido de lugar fechado dependente de uma casa, …”.
Daqui decorre, sem margem para dúvidas, que o compartimento designado por “casa-forte”, fechado por porta, para mais, blindada, ao qual só tinham acesso três pessoas, ainda que momentaneamente aberto (ver factos provados 4 e 5), deva ser visto como um “espaço fechado”, para efeitos da incriminação defendida pelo recorrente.
Por consequência, deve, nesta parte, o recurso merecer provimento.
****
Por via do exposto, a moldura penal passa assim – e será de continuar no âmbito da pena de multa, pelas razões expressas na sentença recorrida, as quais não são colocadas em causa pelo recorrente – de 10 a 360 dias para 10 a 600 dias.
Perante tudo o que consta da sentença recorrida, por entendermos que a pena aí aplicada é algo excessiva, para a prática de um furto simples, a medida da pena deve agora sofrer apenas um pequeno ajustamento. Assim, decide-se aplicar a pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 7 (sete) euros, o que perfaz o total de €1120,00 (mil cento e vinte euros), sendo certo que a mesma está contida no limite da culpa e cumpre os requisitos do princípio da proporcionalidade, revelando-se adequada e ajustada.
****
IV. Decisão:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, nos precisos termos acima expostos, e, em consequência, condenar a arguida, enquanto autora material de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 1, al. f), do Código penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 7 (sete) euros, o que perfaz o total de €1120,00 (mil cento e vinte euros).
Sem tributação.
****
(elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)
****
Coimbra, 14 de Abril de 2010
________________________________

(José Eduardo Martins)



________________________________

(Isabel Valongo)