Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3147/19.6T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: PRESUNÇÕES JUDICIAIS
HORAS DE FORMAÇÃO
DIREITO A FÉRIAS RETRIBUÍDAS
ÓNUS DA PROVA
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 334.º, 349.º E 351.º DO CÓDIGO CIVIL, 131.º, N.º 2, E 132.º, N.ºS 1 E 6, DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário: I – Ainda que o legislador haja incluído entre as provas as presunções, a verdade é que estas não constituem prova, nem mesmo indirecta ou circunstancial.

II – A prova por presunções judiciais, que os art.s 349º e 351º do CC permitem, tem como limites o respeito pela factualidade provada e a respectiva correspondência a deduções lógicas e racionalmente fundamentadas naquela.

III – A falta de prova do facto não pode ser colmatada ou suprida por presunção judicial, pois que, se um facto concreto é submetido a discussão probatória e o julgador o não dá como provado, seria contraditório tê-lo como demonstrado com base em simples presunção.

IV – Da conjugação dos artº 131º nº 2 e 132º nºs 1 e 6 do CT resulta que as horas de formação se vencem no final de cada ano a que dizem respeito; mas só se transformam ou constituem em crédito de horas passados dois anos a contar da data do vencimento sem ao que trabalhador sejam ministradas ou asseguradas as horas de formação, sendo a partir da data da sua constituição que se conta o prazo de três anos a que alude o nº 6 do artº 132º do CT.

V – O trabalhador tem apenas de provar que é trabalhador subordinado para exigir a retribuição correspondente ao período de férias, ou seja, a aquisição do direito a férias retribuídas, decorre da qualidade de trabalhador subordinado, competindo ao empregador o ónus da prova de que as mesmas foram gozadas.

VI – Litiga de má-fé aquele que de forma manifesta e inequívoca age conscientemente, de forma manifestamente reprovável e maliciosa ou gravemente negligente, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça e que justifique a reprovação e a censura subjacentes ao juízo de má-fé.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação 3147/19.6T8VIS.C1

Relator: Felizardo Paiva.

Adjuntos: Paula Roberto.

Azevedo Mendes.


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Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

I –  AA, residente na Quinta ..., Lote ..., ..., instaurou a presente acção com processo comum contra:

F..., SA com sede no Parque Industrial ..., Lote ..., ... pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia global de €458.723,26, compreendendo as seguintes verbas:

a) A formação profissional não proporcionada, no valor de €8.099,00;

b) A retribuição das férias não gozadas, no valor de €27.891,34;

c) A compensação por violação do direito a férias, no montante de €46.485,57;

d) A retribuição pela primeira hora de trabalho suplementar nos dias úteis trabalhados nos cinco anos antes da cessação do contrato de trabalho, no montante de €40.322,03;

e) A retribuição pelas quatro horas suplementares subsequentes à primeira nos dias úteis trabalhados nos cinco anos antes da cessação do contrato de trabalho, no montante de €169.188,11;

f) O trabalho suplementar prestado aos sábados, no montante, nos cinco anos antes da cessação do contrato de trabalho, de €49.797,28;

g) Os descansos compensatórios não gozados, no montante de €41.385,89;

h) Os danos morais, no valor de €40.000,00;

i) Os juros à taxa legal sobre todas as importâncias reclamadas, desde o seu vencimento (tratando-se de obrigações com prazo certo) ou desde a citação (as restantes), acrescendo os juros vincendos até integral pagamento, sendo que se encontram vencidos os juros no montante de €35.854,04, requerendo-se a notificação da ré para proceder ao pagamento imediato dos juros já vencidos sob pena de capitalização.

Para fundamentar os seus pedidos alegou, em síntese, tal como consta da sentença impugnada que trabalhou para a Ré, sob a sua direcção e fiscalização desde 01 de Maio de 2001 até 15 de Agosto de 2018, exercendo as funções de vendedor, embora estivesse classificado como chefe de secção, sendo que no exercício das suas funções deslocava-se a vários países. O dia de descanso semanal acordado era o domingo e do descanso complementar o sábado, sendo que o Autor cumpria, em geral e com frequência quase diária, em Portugal o horário com entrada às 08h30, almoçava muitas vezes com clientes entre as 13h00 e as 14h00 e terminava a jornada de trabalho entre as 21h00 e as 22h00 de segunda a sexta feira e pelo menos metade dos sábados, sendo que a maior parte do trabalho era realizado por email ou por telefone. O Autor recebia ao serviço da Ré, mesmo em férias, uma média de 300 emails por dia, dos quais, pelo menos metade exigia uma resposta da sua parte e recebia e fazia pelo menos 50 telefonemas por dia, sendo que nunca concluía a sua jornada de trabalho sem dar resposta a todos os emails que a exigiam. Acresce que, quando estava deslocado no estrangeiro remetia à Ré todos os dias, ao fim da jornada de trabalho, um relatório com as tarefas cumpridas nesse dia e as previstas para o dia seguinte, tendo a Ré conhecimento que o Autor trabalhava nesse regime. Ao serviço da Ré o Autor auferia e retribuição mensal ilíquida de € 4.000,00, acrescida de € 10,52 mensais a título de diuturnidades, nunca tendo recebido retribuição por isenção de horário de trabalho, retribuição de trabalho suplementar ou nocturno e nunca gozou descansos compensatórios do trabalho suplementar prestado. Por outro lado, desde pelo menos 2009 que não lhe é ministrada formação profissional e desde o início da relação laboral nunca gozou integralmente as férias a que tinha direito, nem recebeu qualquer compensação pelas férias não gozadas, pelo que se mostram em dívida pela Ré as quantias peticionadas. Acresce que em consequência do regime de trabalho praticado pelo Autor por imposição da Ré, o mesmo sofreu danos não patrimoniais que devem ser indemnizados pelo montante peticionado.


+

Não se logrando na audiência de partes a composição amigável do litígio, apresentou a ré contestação na qual, tal como consta da sentença recorrida, confirmou a existência do contrato de trabalho, sendo que na vigência do mesmo o Autor violou o seu dever de lealdade e de confidencialidade, o que deu origem a processo crime que se encontra a correr termos contra o Autor. O Autor suspeitando que estava a ser investigado denunciou o contrato por carta entregue em 15-06-2018 a produzir efeitos a partir de 15 de Agosto de 2018, data em que efectivamente cessou a relação laboral, sendo que a Ré lhe pagou todos os créditos vencidos que lhe eram devidos. Com a conduta do Autor, que desviou clientes da Ré para empresa que constituiu com outro sócio, o mesmo causou prejuízos à Ré em montante que poderá ascender a cerca de €855.000,00 cujo ressarcimento a Ré irá peticionar em sede de pedido cível no processo crime a decorrer, pelo que em face de tal situação constituirá um grave abuso reconhecer qualquer crédito ao Autor no âmbito da presente acção. O Autor não agiu de boa fé na vigência da relação laboral, pelo que a pretensão do mesmo na presente acção é nula por violar a lei e ser ofensiva dos bons costumes, actuando o autor em abuso de direito. Alega ainda que o Autor não prestou trabalho suplementar, muito menos a pedido da Ré, sendo que não era necessária a prestação de trabalho extraordinário para o Autor cumprir as funções que desempenhava, pelo que se o mesmo exerceu qualquer função fora do horário de trabalho fê-lo por sua vontade, motivo pelo que nada lhe é devido a esse título, bem como a título de descanso compensatório. No que concerne à formação profissional, alega que existe limitação de reivindicação de cinco anos de formação, mas nenhuma quantia é devida ao Autor a esse título uma vez que o Autor foi várias vezes convocado para formações no local de trabalho, recusando-se o Autor a participar nas mesmas. Por outro lado, o Autor gozou todas as férias a que tinha direito e no fim do contrato foram-lhe pagos todos os créditos relativos a férias vencidas não gozadas. Pugna ainda pela improcedência do pedido de indemnização de danos morais e pede a condenação do Autor como litigante de má fé.

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II – Dispensada a audiência prévia prosseguiram os autos a sua tramitação sem fixação do objecto do litígio e sem enunciação dos temas de prova tendo, a final sido proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:

“Por tudo o exposto e ao abrigo das disposições legais citadas, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência, condena-se a Ré F..., SA a pagar ao Autor AA, a quantia global ilíquida de € 12.048,70 (doze mil e quarenta e oito euros e setenta cêntimos) a título de retribuição de férias não gozadas dos anos de 2009 a 2012 e 2014 a 2016, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data de vencimento de cada uma das referidas retribuições até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se a Ré dos restantes pedidos contra ela formulados pelo Autor.

Julga-se improcedente o pedido de litigância de má fé do Autor”.


***

III- Não se conformando com esta decisão dela o autor veio apelar, alegando e concluindo:

1. Ao ter-se provado o conteúdo dos documentos 12 e 14 da contestação, conforme pontos 49 e 56 da matéria de facto provada, deve considerar-se provada a matéria de facto constante dos mesmos;

2. Deve ainda considerar-se provada, face a esses documentos e ao facto constante do ponto 11 dos factos provados, a matéria de facto alegada nos artigos 39 e 40 da petição inicial e 20 da resposta à contestação, que a MM. entendeu não provada;

3. Provando-se que as funções do autor eram sobretudo desempenhadas com recurso ao email e a chamadas telefónicas, terá de se presumir que a utilização destes instrumentos implicava, com essa utilização, prestação de trabalho;

4. A análise daqueles documentos permite concluir que o autor prestou trabalho para além dos seu horário em pelo menos 724 dias entre 2016 e 2018 e, presumivelmente, em igual número de dias nos anos anteriores;

5. Uma vez que a ré, conforme confessado, não dispunha de registo de trabalho suplementar, ou até de trabalho efectivamente prestado, em violação do disposto nos artigos 202.º e 231.º do Código do Trabalho, terá de ser condenada pelo menos no pagamento de duas horas de trabalho suplementar por cada um dos dias em que se mostrou ter o autor trabalhado para além das 18:00, conforme art.º 231.º, 5, do Código do Trabalho;

6. A esse valor terão de ser somados os descansos compensatórios devidos pela prestação de trabalho suplementar em dias de descanso semanal e feriados;

7. Deverá ainda a ré ser condenada a pagar ao autor o crédito por formação profissional que não lhe proporcionou, referente aos anos de 2013 e 2014, uma vez que o prazo de caducidade de três anos por crédito de horas para formação apenas começa a contar após a conversão das horas de formação vencidas e não proporcionadas em crédito de horas para formação, o que apenas se verifica decorridos dois anos sobre o seu vencimento (art.º 132.º, 1 e 6 do Código do Trabalho).

8. Atento o trabalho suplementar prestado, demonstrativo de que o autor não tinha tempo para uma vida normal fora do trabalho, deverá a ré ser condenada no pagamento da indemnização por danos morais reclamada;

9. Deverá ainda ser a ré condenada nas férias, trabalho suplementar e descansos compensatórios referentes aos anos anteriores a 2016 (entre 2013 e 2015, face à limitação probatória imposta pelo art.º 337.º do Código do Trabalho), deduzidos por presunção judicial a partir dos valores obtidos nos anos seguintes.

10. Violou a douta sentença recorrida pelo menos as seguintes normas legais: artigos 132.º, 1 e 6, 202.º e 231.º, todos do Código do Trabalho, e 349.º do Código Civil.

Termos em que deverá ser revogada a douta sentença recorrida, sendo a ré condenada no pagamento ao autor do trabalho suplementar, descansos compensatórios, horas de formação e danos morais, conforme peticionados nos articulados, mesmo que tendo esses créditos de ser previamente liquidados em incidente de liquidação.


+

Contra alegou a ré alegando que o recurso deve ser julgado improcedente:

(…).


+

A ré veio recorrer SUBORDINADAMENTE, rematando a suas alegações com a seguinte síntese conclusiva

A. O presente Recurso de Apelação é interposto da douta sentença de fls., porquanto, no entendimento da Ré/Recorrente, não subsume ao bom Direito a factualidade que se deu como provada, devendo a Recorrente ser absolvida de tudo o peticionado, por a factualidade provada não permitir a sua condenação, por procedência da excepção de abuso de direito e, porque, o Recorrido deveria ter sido condenado como litigante de má-fé.

Com efeito,

Da retribuição de férias não gozadas dos anos de 2009 a 2012 e 2014 a 2016

B. O Tribunal a quo, considerou provado que: “24- O Autor gozava duas semanas de férias em Agosto de cada ano, sendo os restantes dias gozados no Natal e noutras datas.”

C. E ainda que: “69- O Autor marcava os dias de férias a gozar, sendo que por vezes cancelava os dias que marcava e gozava-os noutra altura, tendo gozado pelo menos as férias nos termos constantes dos documentos juntos aos autos em 14-04-2021 com o requerimento com a referência 38542833 que aqui se dão por reproduzidos, de onde consta o gozo de 22 dias úteis em 2013, pelo menos 10 dias úteis em 2014, doze dias úteis em 2015, 14 dias úteis em 2016, 20 dias em 2017.”

58. Ora, afigura-se à Recorrente a existência de contradição ou oposição entre os fundamentos de facto e de direito e a decisão, não se encontrando, com recurso a um raciocínio lógico, o sentido do quanto foi decidido, condenando-se a Recorrente ao pagamento ao Recorrido, a título de retribuição de férias não gozadas, a quantia global ilíquida de € 12.048,70, correspondente a 12 dias de férias por gozar nos anos de 2009 a 2012 e 2014 a 2015 e 8 dias relativamente ao ano de 2016.

D. Considerando o provado em 24. e 69., teríamos necessariamente que considerar que o Recorrido marcava e gozava todas as férias a que tinha direito.

E. Mas, mesmo que assim não fosse, a documentação mobilizada para fundamentar tais factos, designadamente os documentos juntos aos autos em 14-04-2021 com o requerimento com a referência 38542833 (documentação que, de resto, não foi impugnada), e concretamente quanto ao período relativo a 2009 a 2016, não tem o Tribunal a quo qualquer respaldo para apontar como certa a existência de 80 dias de férias por gozar.

F. O documento 6, junto aos autos em 14-04-2021 com o requerimento com a referência 38542833, é designado por “Pedido de Aprovação de Férias”, tem data de 23/03/2016, e contem a assinatura do próprio Autor/Recorrido, resultando desse documento que, à data de 23/03/2016, eram de 38 dias de férias para gozar, facto conhecido e visado pelo próprio Recorrido, que assinou tal documento.

G. De modo que, considerando o vencimento de 22 dias úteis de férias, ocorrido em 1/01/2016, o Recorrido apenas tinha “em atraso” o gozo de 16 dias úteis de férias, naquela data de 23/03/2016 (data do documento), o que resulta do documento 7, que se segue, em que o máximo de dias de férias é de 38 dias.

H. Por sua vez, o documento 9, que trata de novo “Pedido de Aprovação de Férias”, desta feita para o ano de 2017, incluí um número total de dias para gozar de 36, pelo que considerando o vencimento de 22 dias úteis de férias ocorrido em 1 de Janeiro, sempre teríamos que estariam em atraso, em 2017, 14 dias úteis de férias.

I. Donde, face à factualidade provada em 24. e 69. e à própria documentação mobilizada para a dar como provada, entendemos que não haveria como concluir e decidir que entre nos anos de 2009 a 2012 e 2014 a 2015 o Recorrido não gozou 72 dias de férias e 8 dias relativamente ao ano de 2016, condenando a Recorrente ao pagamento de retribuição de férias não gozadas.

Sem prescindir,

J. Atento os factos provados em 69, 74 e 78, mostra-se demonstrado que o Recorrido marcava e alterava as suas próprias férias a seu bel-prazer, havia confiança e responsabilidade da Recorrente nos seus funcionários, e o Recorrido nunca solicitou férias para que pudesse usufruir de mais tempo na companhia do filhos.

Do Abuso de direito

K. O Tribunal a quo deu como provado que: “33- Encontra-se pendente contra o Autor na qualidade de arguido o processo crime com o nº 968/18...., que teve origem nas queixas crime apresentadas pela Ré, nos termos constantes dos documentos nº 2 a 5 juntos com a contestação e que aqui se dão integralmente reproduzidos.

34- Em 31 de Julho de 2009, Autor e Ré celebraram um aditamento ao contrato de trabalho, reforçando a obrigação de guardar lealdade, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia qualquer outra actividade, quer seja concorrente ou não com a actividade da Ré, salvo acordo escrito em contrário, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios, nos termos constantes do documento nº 6 junto com a contestação cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

35- Nos termos do referido aditamento, o Autor expressamente se obrigou “a não divulgar nem utilizar, por qualquer meio, directa ou indirectamente, e a manter sigilo absoluto sobre todos os factos e informações a que tenha tido acesso no exercício das funções acima descritas, durante a vigência do contrato de trabalho aditado e pelo período de cinco (5) anos após a sua cessação, relativas à primeira outorgante e pessoas/entidades com esta relacionadas, nomeadamente as que respeitam à sua organização, métodos, negócio, produtos, características tecnológicas, lançamento de produtos, mercados, clientes, fornecedores contratos, independentemente da forma ou proveniência da informação.”

36- Obrigação a que o Autor expressou o devido conhecimento e de que a quebra da confidencialidade daria direito à Ré a ser indemnizada, bem como constituiria motivo para despedimento com justa causa.

37- A Ré apresentou as queixas crime aludidas no nº 33 por ter apurado factualidade que indiciava a violação de tais deveres e a prática de crime pelo Autor.”

L. Ora, foi apurado pela Recorrente a violação de deveres pelo Recorrido, ainda no decurso da relação laboral, e as queixas-crime que a Recorrente apresentou, foram inclusivamente idóneas a que o Recorrido viesse a ser detido para interrogatório e constituído arguido nas suas instalações (ponto 39. dos factos provados) e ainda que, no âmbito do processo crime aludido no nº 33, se encontram juntos os elementos constantes dos documentos juntos aos presentes autos em 30-10-2020 com o requerimento com a referência 36977069 (fls.824 a 902) e em 14-04-2021 com as referências 38545583, 38545544, 38545517, 38545483, 38545445 e 38542833 (fls. 910 a 989) cujo teor se deu por reproduzido (ponto 42. dos factos provados).

M. Os documentos juntos ao processo de inquérito, e cujo teor se deu por reproduzido nestes autos, relatam todo um esquema engendrado pelo Recorrido, em violação do dever de confidencialidade a que estava adstrito e da obrigação de não concorrência, como corolário do dever de lealdade e princípio geral de boa-fé (além da factualidade idónea a constituí-lo em responsabilidade criminal).

N. Contudo, afigura-se que o raciocínio seguido pelo Tribunal a quo para julgar não provada a excepção de abuso de direito não se mostra correcto, na medida em que não se está tratar nos presentes autos de qualquer medida indemnizatória a que a Recorrente se ache com direito pela violação dos deveres laborais do Recorrido, mas sim, saber se se impõe a paralisação dos Direitos que o recorrido reclama nestes autos.

Com efeito,

O. Em audiência de julgamento o Tribunal a quo ouviu em que consistira o esquema engendrado pelo Recorrido e os prejuízos causados à Recorrente, relatos que inclusivamente se mostram reproduzidos na sentença, basta atentar no quanto referiram as testemunha BB, CC e DD, nas partes supra transcritas na motivação.

P. As queixas crime apresentadas foram dadas como reproduzidas e fazem o relato minucioso do modus operandi do Recorrido, em prejuízo da sua entidade patronal, e em próprio benefício, pois que o Recorrido sendo conhecedor dos stocks existentes na Recorrente dos medicamentos que lhe eram solicitados pelo clientes e das respectivas condições comerciais praticadas, respeitantes a preços e prazos de pagamento, divulgou essas mesmas informações pelo menos, às sociedades U..., Lda. e O..., S.A., de modo a que as mesmas se pudessem apresentar junto dos clientes proposta semelhante, estabelecendo depois, o próprio Recorrido, as condições de venda desses produtos pela Recorrente às próprias U..., Lda. e O..., S.A.

Q. A actuação verificada, consubstancia o incumprimento dos deveres laborais a que o Recorrido estava adstrito durante a relação laboral mantida, por causa e para melhor atingir os seus intentos, o Recorrido incorreu ainda em responsabilidade criminal, cuja concreta responsabilidade está a ser apurada em sede própria.

R. Afigura-se a todas as luzes evidente que um trabalhador, como o Recorrido, que beneficiando a máxima confiança da sua entidade Patronal, de forma dolosa, adoptou comportamentos violadores dos seus mais elementares deveres enquanto trabalhador, provocando prejuízos avultados, fere o sentido de Justiça ver-se-lhe reconhecido o direito de receber quaisquer quantias da Recorrente.

S. Abonando ainda em reforço de tal posição se ponderado o histórico da relação contratual desenvolvida entre as partes com mais de 17 anos, por alguém que ocupava um lugar de topo (chefe de secção), a forma como cessou esta mesma relação contratual, por demissão do Recorrido após ter sido constituído arguido por ter praticado crimes contra a sua entidade patronal, e de alguém que nunca reclamou a necessidade de gozar férias, para além das que marcou, alterou e gozou, temos que a conduta do Recorrido é ofensiva dos bons costumes, além de, ao nunca ter reclamado o gozo de férias, gerar expectativas legitimas na Recorrente, pela forma e liberdade com que as marcava, desmarcava e gozava, de que efectivamente nada estaria em falta a esse título.

T. Ora, é óbvio que nem os bons costumes, nem a boa fé consentem que o agente do ilícito venha assim alegar a sua própria torpeza, no sentido de conduta anti-jurídica, para em sede judicial tentar extrair vantagens - no conhecido princípio que concretiza as exigências da boa fé objectiva, "nemo auditur turpitudinem suam allegans" ("ninguém pode ser ouvido a alegar a sua própria torpeza"), princípio este também reconhecido, por exemplo, na jurisdição inglesa de equity, "he who wants equity must come with clean hands", e também conhecido como "tu quoque".

U. O Abuso do direito foi invocado pela Recorrente na sua contestação e é idóneo de actuar e paralisar os eventuais direitos do Recorrido, porquanto o regime da indisponibilidade dos direitos laborais, apenas tem a sua justificação na situação de subordinação jurídica e económica em que o trabalhador se encontra durante a vigência do contrato de trabalho, o que não era o caso porque, o Recorrido, por sua livre iniciativa se demitiu, portanto, sem que a justificação da cessação da relação laboral tivesse qualquer causa com o não exercício ou pagamento dos direitos que o Recorrido reclama nestes autos.

Por último,

Da litigância de má fé

V. O Tribunal a quo decidiu que “perante os factos provados, que a actuação do Autor no âmbito dos presentes autos, não decorre de actuação dolosa ou gravemente negligente do mesmo, pelo que entendemos que não pode considerar-se o mesmo como litigante de má-fé.”

W. Não se aceita que assim seja, porque o Recorrido, com a devida ponderação de quem intenta uma acção mais de dez meses depois de ter cessado o contrato, peticionou créditos e indemnização num valor global de € 458.723,26.

X. Se não se poderá medir a justeza e o mérito de uma concreta acção pela sua sucumbência, certo é que do quanto ao Recorrido peticionava sucumbiu em 97,4%!

Y. Verificou-se ainda que, o quanto o Recorrido alegava para sustentar grande parte do seu pedido era falso, falsidade que resultou do quanto o próprio confessou em depoimento de parte, basta atentar no quanto resultou provado por confissão do próprio Recorrido a matéria que consta dos nºs 43, 44, 46, 47, 51, 53, 54, 55, 57, 59, 60, 61, 62, 64, 65, 66, 67, 71, 76, 77, 79, 80 e 81 da contestação.

Z. Tudo factualidade frontalmente contrária às pretensões do Recorrido de forma alguma permitiria sustentar que não recebeu a formação profissional que peticionou, que não gozou as férias que peticionou, que foi violado o seu direito a férias, que prestou trabalho suplementar, que sofreu danos morais.

AA. Ora, estatui o art. 542° do CPC: “2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

BB. Ou seja, a condenação por litigância de má-fé pressupõe a existência de dolo ou grave negligência e o Recorrido formulou pedidos ilegítimos, em face do quanto confessou e era do seu conhecimento pessoal, senão relativamente a toda a matéria, pelo menos relativamente à formação profissional e danos morais.

CC. Formulou, ainda, pedidos de improcedência patente no que concerne ao crédito por violação do direito a férias, conforme reconheceu o Tribunal a quo.

DD. Sendo que, só nestes 3 pedidos o Recorrido peticionava um valor de € 94.584,57 ( €8.099,00 + €46.485,57 + €40.000,00).

EE. De modo que, se não se poderá identificar uma actuação contrária e como litigante de má -fé, em toda a linha, pelo menos, em parte, e em sede do peticionado e do alegado pelo Recorrido para sustentar os pedidos de formação profissional não proporcionada, danos morais e compensação por violação do direito a férias, o Recorrido actuou com negligência grave tendo deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterando a verdade dos factos, devendo, por isso, ser condenado como litigante de má-fé.

FF. Foram violados por erro de interpretação o disposto nos artigos 237.º, 1, 238.º, n. 1, 245.º, n.º 1, al. a) do Código do Trabalho, 334.º do Código Civil e 542.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.

Em face de todo o exposto, deve a sentença deve ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente de tudo o peticionado e que condene o Recorrido como litigante de má fé.


+

Respondeu o autor ao recurso subordinado, concluindo:

(…)

                                          +

O Exmº PGA emitiu fundamentado parecer no sentido da confirmação da sentença impugnada.


***

IV – A 1ª instância considerou provada a seguinte matéria:

1- O Autor trabalhou para a Ré, inserido na sua organização e sob a direcção, fiscalização e autoridade dos seus legais representantes, desde 1 de Maio de 2001 e até 15 de Agosto de 2018.

2- A Ré é uma sociedade anónima que se dedica ao comércio por grosso de produtos farmacêuticos (CAE 46460), tendo mais de cinquenta trabalhadores ao seu serviço - agora e pelo menos desde 2009.

3- Nos recibos de vencimento do Autor constava a categoria de chefe de secção.

4- Ao serviço da Ré o Autor era responsável pelo departamento comercial e nessa medida fazia gestão de clientes, apresentando-lhes, além do mais, as propostas que eram definidas pela administração.

5- No exercício das suas funções, o Autor também elaborava orçamentos e apresentava propostas negociais de acordo com as margens e critérios definidos pela administração da Ré e por vezes fazia prospecção de novos mercados e angariava clientes.

6- O Autor contactava com os clientes da Ré essencialmente por email e telefone, embora por vezes fazia algumas viagens para ter reuniões com clientes e mostrar a sua presença.

7- No exercício das suas funções o Autor deslocou-se aos seguintes países: Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau, Costa do Marfim, Senegal, Mauritânia, República Democrática do Congo, Gabão, Etiópia, Líbia, Guiné Conakry, Gana, Togo, Benim, embora o fizesse com maior frequência para Angola, sendo que para outros, designadamente Etiópia e Líbia apenas esporadicamente, uma ou duas vezes e não mais que isso.

8- Os dias de descanso semanal do Autor eram o sábado e o domingo.

9- O horário de trabalho do Autor em Portugal era das 8h30 às 12h30 e das 14h00 às 18h00, sendo que por vezes embora esporadicamente almoçava com clientes no intervalo para almoço.

10- O Autor por vezes entrava ao serviço depois das 8h30 e saía antes das 18h00, outras vezes saía depois das 18h00.

11- A maior parte do trabalho do autor era realizado através de email e telefone, através do email ... e do telefone com o número ...68.

12- O Autor ao serviço da Ré recebia em média pelo menos 20 a 30 emails por dia, embora nem todos exigissem resposta do mesmo, sendo que em férias também poderia continuar a receber emails porque estes são colocados em cadeia com conhecimento para todos incluindo o Autor, mas não exigindo resposta do Autor.

13- O Autor por dia recebia em média 20 a 30 telefonemas, no entanto, nestes também estavam incluídos telefonemas pessoais.

14- Quando estava deslocado no estrangeiro ao serviço da Ré o Autor remetia à administração da Ré um relatório com as tarefas cumpridas, sendo que quando estava em Angola procedia ao envio do relatório diariamente e quando estava noutros países remetia o relatório no final da viagem.

15- A Ré tinha conhecimento que o Autor trabalhava essencialmente com recurso a email e a telefone, sendo que muito do trabalho do Autor se traduzia em documentos de que a administração da Ré tinha conhecimento, como por exemplo emails.

16- Os clientes e negócios tratados pelo Autor representavam uma facturação anual para a Ré de valor não concretamente apurado, sendo que uma parte significativa era para o continente africado.

18- Ao serviço da Ré, em 2018 o Autor auferia a retribuição mensal ilíquida de €4.000,00, acrescida de €18,37, também mensais, a título de diuturnidades.

19- O Autor auferiu subsídio de almoço até finais de 2010, data em que a Ré passou a disponibilizar o almoço a todos os seus funcionários.

20- O Autor dispunha ainda de viatura da empresa com gasóleo, seguros, portagens e manutenção pagos pela ré, para uso profissional e pessoal.

21- O Autor não recebia qualquer retribuição por isenção de horário de trabalho, nem lhe foi pago qualquer trabalho suplementar ou nocturno.

22- Depois da saída do Autor, em Agosto de 2018, para colmatar a falta do Autor, a Ré passou um trabalhador do sector das compras para o sector das vendas, distribuindo entre este e pelos restantes trabalhadores que já se encontravam neste sector, os mercados até aí a cargo do Autor.

23- À relação de trabalho entre Autor e Ré é aplicável o CCT entre a GROQUIFAR - Associação de Grossistas de Produtos Químicos e Farmacêuticos e a FETESE - Federação dos Sindicatos da Indústria e Serviços, publicado no BTE, I série, n.º 29, de 8 de Agosto de 2014 e posteriores actualizações, por força, entre outras, da portaria de extensão n.º 369/2015, de 19 de Outubro.

24- O Autor gozava duas semanas de férias em Agosto de cada ano, sendo os restantes dias gozados no Natal e noutras datas.

25- O Autor nos períodos de férias por vezes recebia telefonemas e solicitações de clientes da Ré, aos quais o mesmo respondia.

26- A Ré nunca pagou ao Autor retribuição por trabalho suplementar.

27- O Autor passou anualmente no estrangeiro no desempenho das suas funções em média pelo menos um mês a um mês e meio, sendo que na Ré não era efectuado o registo do trabalho prestado.

28- O Autor gozou os feriados de Natal, Ano Novo, 25 de Abril e Primeiro de Maio. 29- O Autor por vezes saia de casa ainda os seus filhos dormiam e regressava por vezes já eles estavam na cama.

30- Em média por ano o Autor passava em viagens um mês a um mês e meio, embora cada viagem tivesse um período de cerca de quatro a cinco dias, com excepção de uma viagem que fez com a administração em países de África francófona que decorreu durante cerca de 30 dias.

31- A Ré fixa objectivos no início do ano o que faz conjuntamente entre a administração e funcionários, sendo que durante o ano é feito um controlo se tais objectivos estão a ser cumpridos.

32- A Ré, é uma empresa sólida, prestigiada, detida exclusivamente por capitais privados portugueses e detentora de um conhecimento profundo do sector farmacêutico, tendo uma forte cultura de comércio internacional, focada em estabelecer estratégias de internacionalização e tem actualmente fortes relações comerciais regulares com cerca de 20 países em todo o mundo.

33- Encontra-se pendente contra o Autor na qualidade de arguido o proce-sso crime com o nº 968/18...., que teve origem nas queixas crime apresentadas pela Ré, nos termos constantes dos documentos nº 2 a 5 juntos com a contestação e que aqui se dão integralmente reproduzidos.

34- Em 31 de Julho de 2009, Autor e Ré celebraram um aditamento ao contrato de trabalho, reforçando a obrigação de guardar lealdade, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia qualquer outra actividade, quer seja concorrente ou não com a actividade da Ré, salvo acordo escrito em contrário, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios, nos termos constantes do documento nº 6 junto com a contestação cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

35- Nos termos do referido aditamento, o Autor expressamente se obrigou “a não divulgar nem utilizar, por qualquer meio, directa ou indirectamente, e a manter sigilo absoluto sobre todos os factos e informações a que tenha tido acesso no exercício das funções acima descritas, durante a vigência do contrato de trabalho aditado e pelo período de cinco (5) anos após a sua cessação, relativas à primeira outorgante e pessoas/entidades com esta relacionadas, nomeadamente as que respeitam à sua organização, métodos, negócio, produtos, características tecnológicas, lançamento de produtos, mercados, clientes, fornecedores contratos, independentemente da forma ou proveniência da informação.”

36- Obrigação a que o Autor expressou o devido conhecimento e de que a quebra da confidencialidade daria direito à Ré a ser indemnizada, bem como constituiria motivo para despedimento com justa causa.

37- A Ré apresentou as queixas crime aludidas no nº 33 por ter apurado factualidade que indiciava a violação de tais deveres e a prática de crime pelo Autor.

38- O Autor denunciou o contrato de trabalho por carta entregue em 15-06- 2018 a produzir efeitos a partir de 15 de Agosto de 2018, data em que cessou a relação laboral, nos termos constante do documento nº 7 junto com a petição inicial cujo teor aqui se dá por reproduzido.

39- O Autor veio a ser detido para interrogatório e constituído arguido nas instalações da Ré.

40- O Autor apresentou atestados médicos com início em 27-06-2018 e termo a 08-07-2018 com prorrogação de 09-07-2018 a 13-07-2018.

41- No momento da cessação do contrato a Ré pagou ao Autor a quantia ilíquida de € 10.426,90, sendo € 2.000,00 de vencimento, € 8,48 de diuturnidades, € 1.905,73 de créditos de formação, € 836,86 de subsídio de férias, € 2.343,22 de proporcional de mês de férias, € 2.343,22 de proporcional de subsídio de férias e € 989,39 de proporcional de subsídio de Natal, nos termos discriminados no recibo de vencimento junto sob o documento nº 10 junto com a contestação, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

42- No âmbito do processo crime aludido no nº 33 constam os elementos constantes dos documentos juntos aos presentes autos em 30-10-2020 com o requerimento com a referência 36977069 (fls.824 a 902) e em 14-04-2021 com as referências 38545583, 38545544, 38545517, 38545483, 38545445 e 38542833 (fls. 910 a 989) cujo teor aqui se dá por reproduzido.

43- O Autor nunca foi o único responsável pelo departamento, coordenava uma equipa de vendas e reportava à administração.

44- O Autor tinha um horário das 08:30 horas às 12:30 horas e das 14:00 às 18:00 horas, embora por vezes, com maior incidência nos últimos dois anos por ter a guarda partilhada dos filhos, nem sempre entrava às 8h30, chegando a entrar ao serviço às 9 horas e por vezes, durante o horário de trabalho saía para resolver assuntos pessoais e familiares, embora o fizesse com autorização da administração.

45- O horário de funcionamento da Ré é de 2ª a 6ª feira, estando encerrada ao sábado e domingo.

46- Com países africanos mais visitados, as diferenças horárias são poucas, ainda por cima com a hora de Lisboa adiantada, o que sucede em 2 horas em relação a Cabo Verde, 1 hora em relação a São Tomé e Príncipe, o mesmo em relação a Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Guiné Conacri, Senegal, Mauritânia, Gana, Togo.

47- Dos exemplos dados pelo Autor, só mesmo Moçambique e Líbia estão 1 hora adiantados em relação a Portugal continental, 2 horas no caso da Etiópia.

48- Mesmo que recebesse emails ou telefonemas fora do seu horário de trabalho, o Autor não estava obrigado ou compelido pela Ré a dar resposta imediata a tais contactos via email ou a atender os telefonemas fora do horário de trabalho.

49- Entre 2016 e a data de saída do Autor da empresa, o Autor por vezes enviou emails depois das 18horas, nos termos constantes do documento nº 12, junto com a contestação que aqui se dá por reproduzido.

50- No período de 01-03-2018 até ao fim da relação laboral o Autor recebeu os emails que consta do registo de emails constante do documento nº 13 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido, sendo que alguns eram publicidade e alertas de redes sociais não relacionados com as suas funções.

51- Alguns dos emails que o Autor recebia vinham dirigidos a outros departamentos, sendo que eram enviados para o Autor apenas para conhecimento.

52- Em média o Autor recebia menos de 70 emails que exigiam a sua resposta.

53- Alguns emails eram de resposta breve e rápida, outros eram mais morosos.

54- Durante o horário de trabalho o Autor também fazia chamadas pessoais.

55- As chamadas efectuadas para os números ...18; ...62; ...89; ...64; ...07; ...10; ...57; ...86; ...82, com excepção de um desses números eram chamadas pessoais do Autor.

56- O Autor fez as chamadas que constam do documento nº 14 junto com a contestação cujo teor aqui se dá por reproduzido.

57- Com excepção de Angola, onde havia mais clientes, quanto às viagens que fazia a outros países, por regra, o Autor apenas fazia um relatório que entregava à Ré no final da viagem.

58- Ao serviço da Ré o Autor recebeu da mesma as quantias constantes do documento nº 17 junto com a contestação cujo teor aqui se dá por reproduzido, nomeadamente no ano de 2009 a retribuição mensal de €2.810,00 e €10,40 mensais de diuturnidades, no ano de 2010 a retribuição mensal de €2.838,10 e €10,52 mensais de diuturnidades, nos anos de 2011 e 2012 a retribuição mensal de €2.860,10 e €10,52 mensais de diuturnidades, nos anos de 2013 a 2016 a retribuição mensal de € 4.000,00 e €11,40 mensais de diuturnidades e no ano de 2017 a retribuição mensal de € 4.000,00 e €18,08 mensais de diuturnidades, bem como os prémios anuais no valor ali indicado.

59- O Autor usava cartão de crédito da empresa, sendo que pelo menos uma vez por ter perdido a mala pagou despesas pessoais, designadamente fatos, o que fez com conhecimento da Ré.

60- O Autor tinha atribuída uma viatura de serviço com a matrícula ..-PC-.. e pela listagem de portagens desta viatura que consta do documento nº 18 junto com a contestação resulta o Autor fazia diversas deslocações alheias ao interesse profissional durante o horário de trabalho.

61- O Autor durante o seu horário de trabalho, a meio do período da manhã ou da tarde, ou antes das 18h00, efectuava viagens a ..., onde reside a sua ex-mulher e ainda companheira EE e o filho de ambos.

62- Sempre em deslocações de carácter estritamente pessoal e sem qualquer benefício para a entidade patronal.

63- A Ré atribuía grande liberdade e confiança ao Autor para a execução das suas funções.

64- Nunca existiu qualquer acordo entre Autor e Ré quanto à isenção de horário de trabalho.

65- O Autor foi por diversas vezes convocado para acções de formação no local de trabalho.

66- Pelo menos alguns dos seus colegas de equipa participaram em formações.

67- O Autor por vezes não compareceu em formações para as quais tinha sido convocado.

68- O Autor recebeu pelo menos a formação profissional constante do documento nº 19 junto com a contestação, sendo durante 1 hora em 2014, 18 horas em 2017 e 5h em 2018.

69- O Autor marcava os dias de férias a gozar, sendo que por vezes cancelava os dias que marcava e gozava-os noutra altura, tendo gozado pelo menos as férias nos termos constantes dos documentos juntos aos autos em 14-04-2021 com o requerimento com a referência 38542833 que aqui se dão por reproduzidos, de onde consta o gozo de 22 dias úteis em 2013, pelo menos 10 dias úteis em 2014, doze dias úteis em 2015, 14 dias úteis em 2016, 20 dias em 2017.

70- Antes da cessação do contrato em 2018, o Autor pediu e gozou 21 dias de férias, sendo que já tinha tirado outros 5 no ano de 2018.

71- O Autor fez as viagens que constam do documento nº 16 junto com a contestação, pelo menos as referentes aos anos de 2016, 2017 e 2018, sendo que os dias que constam de tal documento se referem aos dias que esteve efectivamente nos locais, não incluindo os dias de viagem, sendo que, pelo menos, relativamente ao ano de 2017 fez apenas as viagens ali constantes.

72- No momento da sua contratação o Autor já sabia e aceitou que tinha que fazer deslocações, embora nessa altura essencialmente para Angola, aceitando que tais deslocações faziam parte integrante das suas funções, tendo aceite trabalhar para a Ré nos termos e condições que lhe foram propostos e com a contrapartida acordada entre ambos, incluindo prémios anuais que recebia.

73- O Autor nunca efectuou o registo de ponto, nem tal lhe foi exigido pela Ré.

74- A estrutura de funcionamento da Ré sempre se baseou na confiança e na responsabilidade dos seus funcionários.

75- O trabalho da Ré está organizado para ser efectuado durante o horário de trabalho, sem necessidade de recurso a horas extra, salvo necessidades esporádicas devidamente documentadas.

76- O Autor divorciou-se do primeiro casamento e casou uma segunda vez sendo que também se divorciou deste segundo casamento.

77- O Autor vive em união de facto com a segunda ex-mulher, trabalhando ambos na mesma empresa.

78- O Autor nunca solicitou à Ré qualquer ajustamento de horário ou férias para que pudesse usufruir de mais tempo na companhia dos filhos.

79- O Autor nunca solicitou à Ré qualquer direito para estar com a família ou os filhos.

80- O Autor fez viagens durante o horário de trabalho de ... a ... para resolver assuntos familiares.

81- O Autor nunca passou meses seguidos no estrangeiro, sendo que a viagem que demorou mais tempo, durou três semanas.

82- Por apenso ao processo crime foi proferida em providência cautelar de arresto preventivo instaurado contra a aqui Ré contra a sociedade O..., Unipessoal, Lda a decisão na qual foi julgada procedente a oposição da requerida e revogada a providência cautelar de arresto anteriormente decretada, nos termos constantes do documento nº 1 junto com a resposta, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.


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Factos não provados

Da petição inicial não se provou a demais matéria dos artºs 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 10º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 18º, 22º, 23º, 25º, 27º, 30º, 32º, 33º, 34º, 36º, 39º, 40º, 51º, 54º, 55º, 57º, 58º, 59º e 60º que não consta dos factos provados, sendo que a demais matéria dos artºs 19º, 26, 28, 29º, 35º, 37º, 38º, 41º, 42º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º, 49º, 50º, 52º, 53º e 61º a 65º que não consta dos factos provados é apenas matéria conclusiva ou de direito.

Da contestação da Ré não se provou a demais matéria dos artºs 8º, 9º, 14º, 16º, 17º, 18º, 19º, 21º, 23º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 39º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 45º, 46º, 47º,49º, 50º, 59º, 60º, 61º, 62º, 71º, 75º, 77º, 81º, 89º, 90, 91º, 92º, 93º, 94º, 95º, 97º, 98º, 99º, 106º, 107º, 108º, 109, 111º, 112º, 113º, 115º, 139º, 140º, 143, 144º, 145º, 148º, 149º, 152º, 153º, 156º, 157º, 158º, 159º, 162º, 163º, 174º, 179º, 181º, 182º, 185º e 186º que não consta dos factos provados, sendo que os artºs 1º, 3, 5, 6, 22, 24º, 38º, 48º, 51º, 52º, 53º, 54º, 55º, 56º, 57º, 58º, 63º, 64º, 65º, 66º, 67º, 68º, 69º, 70º, 72º, 73º, 74º, 76º, 82º (demais matéria que não consta dos factos provados), 83º, 84º, 87, 100º, 101º, 102º, 103º, 104º, 105º, 110º, 119º, 120º, 121º, 122º, 124º, 125º, 126º, 127º, 128º, 129º, 130º, 131º, 132º, 133º, 134º, 135º, 136º, 137º, 146º, 147º, 150, 160º, 161º, 164º, 165º, 166º (demais matéria que não consta dos factos provados), 167º, 170, 171º, 172º (demais matéria que não consta dos factos provados), 173º, 175º, 176º, 178º, 183º, 187º, 188º, 189º, 190º, 191º, 192º, 193º, 194º, 195º, 196º, 197º, 198º e 199º contêm apenas matéria de impugnação, conclusiva ou de direito.

Da resposta não se provou a demais matéria que consta do artº 20º, sendo que os artigos 1º a 9º, 11º a 19º e 21º a 25º contém apenas matéria de impugnação, conclusiva ou de direito.


***

V – Como são as conclusões que delimitam o objecto dos recursos[1], as questões a decidir poderão equacionar-se do seguinte modo:

1 Se a matéria de facto deve ser alterada:

2. Se o autor recorrente prestou trabalho suplementar tendo direito aos respectivos descansos compensatórios.

3. Se o autor tem direito a todas as horas de formação peticionadas.

4. Se o autor deve ser indemnizado por danos não patrimoniais.

5. Se o autor tem direito à retribuição por férias não gozadas dos anos de 2009 a 2012 e de 2014 a 2016

6. Se o autor agiu com abuso de direito

7. Se o autor litigou de má fé.

Da alteração da matéria de facto:

Pede o autor que seja dado como provada a matéria dos artigos 39º e 40º da contestação e 20º da resposta que têm a seguinte redacção:

39. Ao serviço da ré nunca o autor recebeu qualquer compensação pelo trabalho suplementar prestado, sendo que trabalhou muito para além do horário fixado até Junho de 2018, todos os dias (uma vez que não faltava), em inúmeros sábados, domingos e feriados, passando ainda entre três a cinco meses por ano no estrangeiro no desempenho das suas funções, período em que, por isso, estava continuamente ao serviço da ré; uma vez que não tem registo do trabalho prestado.

40. Resulta do horário de trabalho acima alegado que o autor trabalhava uma média de 13 horas por dia, das quais cinco são suplementares, e pelo menos dois sábados por mês, pelo 51 semanas por ano, e por isso pelo menos 25 sábados por ano.

20º É falso o alegado em 27.º e seguintes da contestação: o autor nunca deixou de exercer as suas funções ao serviço da ré, muito mais de 8 horas por dias e 40 horas por semana; a sociedade O..., S.A. era uma das melhores clientes da ré, que lhe facturou muitas centenas de milhares de euros em fornecimentos; a administração da ré não inviabilizou nenhuma das vendas promovidas pelo autor, a não ser as duas últimas em que, recebendo o dinheiro das vendas antecipadamente, recusou a entrega dos medicamentos e a devolução do dinheiro. Este procedimento, já agora, originou acção cível, em que houve já sentença, e processo crime por burla”.

Baseia o autor a alteração solicitada no teor dos documentos 12 e 14 juntos com a contestação (cujo teor foi dado como reproduzido nos factos provados 49 e 56) e no teor do facto provado 11 (“A maior parte do trabalho do autor era realizado através de email e telefone, através do email ... e do telefone com o número ...68”).

Decidindo:

O doc 12 foi junto pela ré na contestação para provar serem raros os emails enviados depois do horário de trabalho alegando a ré que, quando o foram, nunca foi por necessidade de resposta imediata que lhe fosse imposta pela empresa.

Quanto ao registo de chamadas, o doc. 14 foi pela ré junto com a contestação para comprovar que a grande maioria das chamadas realizadas depois do horário de trabalho eram de carácter pessoal. Mais alegou que se das listagens de chamadas se excluírem os números que podem ser atribuídos a chamadas de carácter exclusivamente pessoal, são absolutamente residuais as chamadas efectuadas fora do horário de trabalho e, mesmo quanto a estas, que fossem efectuadas em benefício da Ré, posto que o Autor actuava essencialmente em benefício próprio e dos demais arguidos no processo crime.

Ora, ainda que dos referidos docs. 12 e 14 possa resultar ter o autor no ano de 2016 e até à data da cessação do contrato de trabalho tenha feito chamadas e enviado emails após as 18 horas, ou seja fora do seu horário de trabalho[2] (v. facto 9), por si só, não implica que tenha prestado trabalho suplementar[3].

É que temos enquadrar esse envio no contexto em que se desenvolvia a relação de trabalho.

O autor gozava de grande autonomia no desempenho das suas funções, estando por demonstrar que os emails e as chamadas não pudessem ser enviados e feitas, respectivamente, dentro do horário de trabalho estipulado contratualmente.

Conforme refere a ré “um telefonema ou um email não passam disso mesmo, qualquer que seja a hora do seu registo”.

Por outro lado, como reiteradamente temos vindo a decidir a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal não pode nem deve constituir um segundo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo

De salientar ainda que na reapreciação factual o tribunal de superior deve controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Mas encontra-se impedido de controlar o processo lógico da convicção no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle, quando foi relevante o funcionamento do princípio da imediação

Daí que só quando os elementos dos autos conduzam inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1.ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas dadas, situação em que estaremos perante erro de julgamento,

No caso, foram ouvidas em sede de audiência de julgamento várias testemunhas sendo que o tribunal a quo entendeu que “da conjugação de tais depoimentos ficaram provados os factos nos termos que ficaram expostos, sendo que não foi feita prova convincente de que o Autor trabalhasse depois do horário de trabalho por determinação da Ré ou por necessidade em face do trabalho que tinha que realizar em beneficio da Ré”.

Em parte alguma do recurso o autor coloca em causa ou questiona a convicção que a 1ªinstância criou no que concerne à prestação de trabalho suplementar por parte do autor.

Por outro lado, o recorrente não impugnou a matéria articulada no artº 10º da pi., dada como não provada, na parte em que se alegou que a jornada de trabalho terminava entre as 21:00 e as 22:00, de segunda a sexta-feira, e pelo menos metade dos sábados.

Por tudo isto, deve a matéria de facto manter-se tal qual como foi decidida, improcedendo o pedido de aditamento da matéria articulada nos artigos 39º e 40º da contestação e 20º da resposta.

2. Do trabalho suplementar e dos descansos compensatórios:

O Autor pediu a condenação da Ré a pagar-lhe as quantias de € 40.322,03 de retribuição pela primeira hora de trabalho suplementar nos dias úteis trabalhados nos cinco anos antes da cessação do contrato de trabalho, €169.188,11 de retribuição pelas quatro horas suplementares subsequentes à primeira nos dias úteis trabalhados nos cinco anos antes da cessação do contrato de trabalho, €49.797,28 de trabalho suplementar prestado aos sábados, no montante, nos cinco anos antes da cessação do contrato de trabalho e €41.385,89 de descansos compensatórios não gozados.

O tribunal perante os factos que considerou provados, concluiu que o Autor não logrou demonstrar a prestação de trabalho suplementar por ordem e determinação da Ré, o que acarreta a improcedência da acção relativamente à retribuição pela prestação desse trabalho, bem como ao descanso compensatório não gozado.

Contrapõe o recorrente que considerando que se:

- provou o teor dos documentos 12 e 14 da contestação, conforme pontos 49 e 56 da matéria de facto provada, documentos que comprovam as chamadas telefónicas efectuadas pelo autor e os emails por ele enviados desde 2016 e até à cessação do contrato de trabalho;

- Provou ainda que tal era do conhecimento da administração da ré, conforme ponto 15 da matéria de facto provada;

- Provou também que as funções do autor consistiam na gestão de clientes, na apresentação de propostas negociais, no contacto com clientes, sobretudo no continente africano, que contactava por email e telefone, sendo responsável com esse trabalho por parte não determinada da facturação da ré, conforme pontos 4, 5, 6 e 16 da matéria de facto provada;

- Provou ainda que o autor tinha no exercício das suas funções grande liberdade e a confiança da administração da ré, conforme ponto 63 da matéria provada;

- Provou também que o autor por vezes saía depois das 18:00, que atendia clientes no seu período de férias e que nunca lhe foi paga qualquer retribuição por trabalho suplementar, conforme factos 10, 25 e 26;

Conclui que, sabendo-se em que dias efectuou o autor telefonemas e enviou emails após as 18:00, tem de se presumir que nos anos de 2016, 2017 e 2018 o autor prestou trabalho suplementar, depois das 18:00 ou em sábados, domingos e feriados, e ainda nos períodos em que era suposto estar em férias, em 259 dias em 2016, 344 dias em 2017 e 121 dias em 2018, num total de 724 dias.

Mas ainda que o crédito do autor não seja calculável por simples operação aritmética, deverá sê-lo em incidente de liquidação.

Decidindo:

Comece por se dizer que matéria de facto se manteve inalterada e que a remissão para o teor dos docs 12 e 14 juntos com a contestação não prova que os telefonemas e os emails efectuados depois da 18 horas devam ser caracterizados como de trabalho suplementar.

Nem tão pouco desses telefonemas e emails se pode presumir que o trabalho, ainda que realizado para além das 18 horas, revista a natureza de suplementar.

Com efeito, as presunções naturais, judiciais ou de facto são aquelas que se fundam nas regras práticas da experiência, nos ensinamentos obtidos através da observação.

Neste tipo de presunções o juiz socorre-se de certo facto e de regras de experiência, para concluir que aquele denuncia a existência de um facto.

Posto que o legislador haja incluído entre as provas as presunções, a verdade é que estas não constituem prova, nem mesmo indirecta ou circunstancial, porque são, apenas, processo mental de investigar, por meio de induções e de deduções, uma verdade provável, revelada por determinadas circunstâncias, ou como tal havida por disposição expressa na lei” - Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, XIV, 376.

As presunções judiciais ou naturais têm por base as lições da experiência ou as regras da vida. O juiz, no seu prudente arbítrio, deduz de certo facto conhecido um facto desconhecido, porque a sua experiência da vida lhe ensina que aquele é normalmente indício deste - Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 249.

Por outro lado, a prova por presunções judiciais, que os art.s 349º e 351º do CC permitem, tem como limites o respeito pela factualidade provada e a respectiva correspondência a deduções lógicas e racionalmente fundamentadas naquela.

E a falta de prova do facto não pode ser colmatada ou suprida por presunção judicial, pois que, se um facto concreto é submetido a discussão probatória e o julgador o não dá como provado, seria contraditório tê-lo como demonstrado com base em simples presunção.

Daí que o autor não tenha direito a qualquer remuneração por trabalho suplementar, ainda que não quantificável, e a descansos compensatórios

Das horas de formação:

Pediu o Autor no âmbito da presente acção a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €8.099,00 a título de formação profissional não proporcionada.

Para o efeito invocou que desde pelo menos 2009 que não lhe é ministrada formação profissional.

O tribunal a quo decidiu que da conjugação entre o nº 6 do artº 131º (o crédito de horas para formação que não seja utilizado cessa passados três anos sobre a sua constituição) e o artº artº 134º ambos do CT (cessando o contrato de trabalho, o trabalhador tem direito a receber a retribuição correspondente ao número mínimo anual de horas de formação que não lhe tenha sido proporcionado ou o crédito de horas para formação de que seja titular à data da cessação), o autor apenas tem direito ao crédito de horas referentes aos três últimos anos pois o crédito de horas para formação referentes aos restantes anos cessou de acordo com o referido no nº 6 do citado artº 132 do CT.

Como no caso no momento da cessação do contrato a Ré pagou ao Autor a quantia de € 1.905,73 a título de créditos de formação, tendo aquele direito à quantia de € 1.900,76 (82h x €23,18), entendeu o tribunal nada ser devido ao autor a este título.

Ao contrário do decidido pelo tribunal, entende o recorrente que a ré deve ser condenada a pagar ao autor o crédito por formação profissional que não lhe proporcionou, referente aos anos de 2013 e 2014, uma vez que o prazo de caducidade de três anos por crédito de horas para formação apenas começa a contar após a conversão das horas de formação vencidas e não proporcionadas em crédito de horas para formação, o que apenas se verifica decorridos dois anos sobre o seu vencimento (art.º 132.º, 1 e 6 do Código do Trabalho).

Decidindo:

Dispõe o nº 2 do artº 131º do CT na redacção anterior à Lei 93/2019 que “2 – O trabalhador tem direito, em cada ano, a um número mínimo de trinta e cinco horas de formação contínua ou, sendo contratado a termo por período igual ou superior a três meses, a um número mínimo de horas proporcional à duração do contrato nesse ano”.

E o artº 132ºdo mesmo Código preceitua “1 – As horas de formação previstas no n.º 2 do artigo anterior, que não sejam asseguradas pelo empregador até ao termo dos dois anos posteriores ao seu vencimento, transformam-se em crédito de horas em igual número para formação por iniciativa do trabalhador. (…) 6 – O crédito de horas para formação que não seja utilizado cessa passados três anos sobre a sua constituição”.

Da conjugação destes preceitos podemos concluir que as horas de formação se vencem no final de cada ano a que dizem respeito; mas só se transformam ou constituem em crédito de horas passados dois anos a contar da data do vencimento sem ao que trabalhador sejam ministradas ou asseguradas as horas de formação.

Assim, as horas de formação que se venceram no final dos anos de 2013 e 2014 só se constituíram em créditos de horas final os anos de 2015 e 2016, pelo que à data da cessação contratual (15.08.2018) ainda não tinham decorrido três anos sob a constituição do crédito de horas relativo aos anos de 2013 e 2014.

Assim é devido ao trabalhador 70 horas de créditos de formação relativos aos referidos anos 2013 e 2014.

Considerando o valor da retribuição do autor nesses anos tem o autor direito à quantia de 1.619,99 € a título de créditos de formação.

Dos danos não patrimoniais:

Escreveu-se a este propósito na sentença impugnada “… no caso em apreço, para além de perante os factos provados não resultar a existência de violação contratual por parte da Ré, também não resulta comprovada qualquer conduta da Ré que tenha causado ao Autor danos de natureza não patrimonial. Efectivamente, não logrou o Autor demonstrar como havia alegado, que esteve impossibilitado de ter uma vida pessoal e familiar normal em face de qualquer conduta da Ré violadora de forma culposa das obrigações decorrentes da relação laboral. Na verdade, apenas ficou provado nos autos que o Autor por vezes saía de casa ainda os seus filhos dormiam e regressava por vezes já eles estavam na cama. Mais se provou que o Autor se divorciou do primeiro casamento e casou uma segunda vez, sendo que também se divorciou deste segundo casamento, mas que vive em união de facto com a segunda ex-mulher, trabalhando ambos na mesma empresa. No entanto, também ficou provado que o Autor nunca solicitou à Ré qualquer ajustamento de horário ou férias para que pudesse usufruir de mais tempo na companhia dos filhos, nem qualquer direito para estar com a família ou os filhos, sendo que o mesmo fez viagens durante o horário de trabalho de ... a ... para resolver assuntos familiares. Ora, perante tais factos não se pode concluir pela existência de quaisquer danos não patrimoniais sofridos pelo Autor causados por uma qualquer conduta culposa da Ré violadora das suas obrigações contratuais, pelo que terá tal pedido necessariamente que improceder”.

Sufragamos inteiramente este enquadramento, nada mais nos oferecendo dizer dada a patente falta de fundamento para que ao autor seja atribuída uma indemnização por danos não patrimoniais que, manifestamente, não ocorreram.

Do direito à retribuição por férias não gozadas dos anos de 2009 a 2012 e de 2014 a 2016

A 1ª instância a abordou esta questão da forma seguinte: “no caso em apreço, resultou comprovado apenas que o Autor gozava duas semanas de férias em Agosto de cada ano, sendo os restantes dias gozados no Natal e noutras datas.

Mais se provou que o Autor marcava os dias de férias a gozar, sendo que por vezes cancelava os dias que marcava e gozava-os noutra altura, tendo gozado pelo menos as férias nos termos constantes dos documentos juntos aos autos em 14-04- 2021 com o requerimento com a referência 38542833 que aqui se dão por reproduzidos, de onde consta o gozo de 22 dias úteis em 2013, pelo menos 10 dias úteis em 2014, 10 dias úteis em 2015, 14 dias úteis em 2016, 20 dias em 2017.Antes da cessação do contrato em 2018, o Autor pediu e gozou 21 dias de férias, sendo que já tinha tirado outros 5 no ano de 2018

Ora, de tais factos resulta que relativamente aos anos de 2013 e 2017 e 2018 o Autor gozou os 22 dias de férias a que tinha direito, sendo que pese embora em 2017 o mesmo tenha gozado apenas 20 dias, em 2018 gozou 26 dias, pelo que terá que se imputar dois dias em 2017, considerando o disposto no artº 240º do CT que permite cumular o gozo de férias de um ano com as vencidas no ano seguinte.

Quanto aos restantes anos de 2009 a 2012, considerando que se provou que o Autor gozava duas semanas em Agosto de cada ano, terá que se considerar que o mesmo nesses anos gozou pelo menos 10 dias úteis de férias.

Assim, nos termos que ficaram expostos incumbia à Ré provar que para além desses dias o Autor gozou os restantes dias de férias, o que a mesma não logrou provar, pelo que se terá que concluir que o Autor não gozou 12 dias úteis de férias em cada um dos anos de 2009 a 2012, 2014 e 2015 e 8 dias úteis de férias em 2016, num total de 80 dias úteis de férias”

Alega a ré que considerando o provado em 24. e 69., ter-se-á necessariamente que considerar que o Recorrido marcava e gozava todas as férias a que tinha direito ou seja entende a recorrente que nada é devido ao autor a título de férias não gozadas.

Os referidos pontos de facto têm a seguinte redacção “24- O Autor gozava duas semanas de férias em Agosto de cada ano, sendo os restantes dias gozados no Natal e noutras datas.”;“69- O Autor marcava os dias de férias a gozar, sendo que por vezes cancelava os dias que marcava e gozava-os noutra altura, tendo gozado pelo menos as férias nos termos constantes dos documentos juntos aos autos em 14-04-2021 com o requerimento com a referência 38542833 que aqui se dão por reproduzidos, de onde consta o gozo de 22 dias úteis em 2013, pelo menos 10 dias úteis em 2014, doze dias úteis em 2015, 14 dias úteis em 2016, 20 dias em 2017”

Decidindo:

O autor tinha em cada ano direito a 22 dias úteis de férias.

O tribunal entendeu que são devidos 80 dias de férias não gozadas (12 dias por cada ano de 2009 a 2012, 2014 e 2015 [12 dias x 6 = 72 dias] + 8 dias do ano de 2016 = 80 dias).

E isto porque se deu como provado (facto 69 não impugnado), que nos anos de 2014 e 2015 o autor gozou pelo menos 10 dias úteis de férias, ficando por gozar em cada um desses anos 12 dias úteis de férias; e que em cada um dos anos de 2009 a 2012 gozou também, pelo menos, 10 dias úteis de férias, restando-lhe gozar em cada um desses anos 12 dias (porque, se bem estamos a ver, considerou que o autor gozou 2 semanas de férias em cada mês Agosto de cada um desses anos [facto 24]).

Sendo assim, também se terá de entender que nesses anos (2009 a 2012) o autor gozou o restante tempo de férias a que tinha direito (12 dias úteis) no Natal e noutras datas conforme expressamente se deu como provado no facto 24.

Ou seja, a conclusão a tirar, é que o autor gozou a totalidade das férias a que tinha direito nos anos de 2009 a 2012.

Esta é a interpretação que, no nosso entender, melhor se coaduna com a matéria de facto provada levando em linha de conta as regras sobre o ónus da prova no que concerne ao gozo de férias[4].

Temos assim que apenas é devido ao autor os seguintes dias de férias não gozadas:12 dias em 2014, 12 dias em 2015 e 8 dias em 2016 (32 dias) no montante total de € 5.470,09.

Do abuso de direito:

No que respeita a eta questão a 1ª instância escreveu o seguinte. “…invocou a Ré na contestação que ao fazer os pedidos nos presentes autos o Autor age em abuso de direito, tendo em conta a sua conduta violadora do princípio da lealdade e não concorrência que se encontra a ser investigada no âmbito de processo crime no qual o Autor é arguido, sendo que aquela conduta causou prejuízos à Ré que poderão ascender a cerca de € 855.000,00 cujo ressarcimento a Ré irá peticionar em sede de pedido cível naquele processo, pelo que perante tal situação será um grave abuso reconhecer qualquer crédito ao Autor no âmbito da presente acção. O Autor na resposta pronunciou-se quanto a tal questão, invocando que a existir qualquer responsabilidade da sua parte no âmbito do processo crime, tal situação não extinguirá os créditos laborais exigíveis nos presentes autos, inexistindo por isso qualquer abuso de direito.

Ora, o artº 334º do Código Civil, que estabelece o conceito de abuso de direito, dispõe que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” Como se vem entendendo, e se refere no Ac. da RP de 02-05-2011, no proc. 475/09.2TTLMG.P1, in www.dgsi.pt “ (..) a figura do abuso do direito visa impedir actuações não razoáveis, imponderadas e, na responsabilidade contratual, exige que as partes, na execução do contrato, se conduzam pelo princípio da boa fé, cumprindo e estimulando o cumprimento por banda da parte contrária. O abuso do direito visa também funcionar como válvula de escape do sistema, de forma que naquelas situações em que a aplicação de uma norma conduza a resultados não razoáveis relativamente aos valores vigentes na ordem jurídica, se possa impedir o seu funcionamento: na verdade, nestes casos, se o legislador tivesse previsto o resultado a que a norma conduziu, ter-se-ia abstido de a editar, dados os clamorosos resultados em que a sua aplicação desaguou. De igual modo, são abarcados também pela figura do abuso do direito aqueles casos em que um sujeito adopta determinada conduta baseada no direito, mas simultaneamente adopta outra conduta, contraditória com a primeira, reveladora de que a invocação e aplicação da lei visou valores não condizentes com os estabelecidos pela ordem jurídica, vulgarmente designado como venire contra factum proprium. (…) Acresce que constituindo o abuso do direito o exercício desproporcionado de um direito subjectivo, que arranca da previsão de uma norma jurídica, mas cujo exercício provoca um resultado não desejado pela ordem jurídica no seu todo, em termos clamorosos e desequilibrados, o abuso desemboca numa situação não prevista pelo legislador, em termos tais que, se a tivesse previsto, não teria editado a norma, como se referiu. Daí que a concepção adoptada entre nós para o abuso seja a objectiva, pelo que se torna desnecessária a invocação e prova da consciência e intenção de exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, embora seja de atender aos elementos subjectivos do comportamento do exercente aquando da formulação do juízo de valor global acerca da existência do abuso.”

No caso concreto, a Ré não logrou provar os factos por si alegados relativamente a tal questão, sem prejuízo do processo crime que se encontra pendente e onde estão a ser apurados os factos que a mesma invoca nas queixas crime ali apresentadas. Na verdade, pese embora se tenha provado que se encontra-se pendente contra o Autor na qualidade de arguido o processo crime com o nº 968/18...., que teve origem nas queixas crime apresentadas pela Ré, nos termos constantes dos documentos nº 2 a 5 juntos com a contestação e que em tal processo crime constam os elementos constantes dos documentos juntos aos presentes autos em 30-10-2020 com o requerimento com a referência 36977069 (fls.824 a 902) e em 14- 04-2021 com as referências 38545583,38545544,38545517,38545483,38545445 e 38542833 (fls. 910 a 989), o certo é que tais factos só por si não permitem concluir pela existência de qualquer conduta do aqui Autor violadora das suas obrigações contratuais factos esses que estão a ser apurados no âmbito daquele processo.´ Acresce que mesmo que se venham a provar os factos ali alegados nas queixas crime, tal situação não extinguiria ou impediria a existência dos créditos salariais do Autor que se mostram provados nos presentes autos, apenas quando muito poderiam dar origem a eventual compensação de créditos caso se viesse a apurar o direito da Ré a qualquer indemnização ou ressarcimento de prejuízos. Assim, o exercício do direito em causa nos presentes autos por parte do Autor, não pode considera-se como integrando uma ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante, ou que exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico do direito em causa, pelo que dos factos provados terá que se concluir que não se mostram demonstrados os competentes factos constitutivos para se poder concluir pela existência de abuso de direito por parte do Autor.

Pelo exposto, terá que improceder a alegada excepção peremptória de existência de abuso de direito por parte do Autor”.

Age com abuso de direito aquele que no seu exercício excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

No caso, entende a recorrente que os direitos peticionados pelo autor devem ficar paralisados dada conduta desleal e criminosa que aquele teve para consigo no âmbito da relação laboral.

Em primeiro lugar, diga-se que se desconhece o desfecho final do processo crime em que o autor é arguido.

Por outro lado, a existir qualquer responsabilidade da parte do autor no âmbito do processo crime, tal situação não extinguirá os créditos laborais peticionados nos presentes autos.

Conforme se refere na sentença, mesmo que se venham a provar os factos alegados nas queixas crime, tal situação não extinguiria ou impediria a existência dos créditos salariais do Autor que se mostram provados nos presentes autos, apenas quando muito poderiam dar origem a eventual compensação de créditos caso se viesse a apurar o direito da Ré a qualquer indemnização ou ressarcimento de prejuízos.

Na verdade, é inconcebível que ocorrendo, por exemplo, um despedimento com justa causa por se ter provado que o trabalhador violou o dever de lealdade ou praticou violência física sobre o seu empregador, o trabalhador ficasse impedido de reclamar do seu empregador o reconhecimento e pagamento de quantias emergente da relação laboral como sejam férias, trabalho suplementar, descansos compensatório ou créditos de formação.

Daí que, aderindo à fundamentação constante da sentença, se decida não se verificar o abuso de direito.

Da litigância de má fé:

Nos termos do artº 542º, nº2, do CPC, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

“a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Como se escreveu no recente acórdão desta Relação de 18/11/2021, proc. 2722/20.0T8VIS.C1, relaciona-se este instituto com a defraudação, dolosa ou com grave negligência, de uma das partes ou de ambas, do objectivo que deve estar subjacente a toda e qualquer acção judicial, qual seja o de ser proferida em tempo útil, tão célere quanto possível, uma decisão dirimente do conflito que seja conforme à verdade e ao direito, estando por isso as partes sujeitas a deveres de cooperação, de probidade e boa-fé, seja em relação às contrapartes, seja em relação ao tribunal.

Como ensina Rodrigues Bastos, “A parte tem o dever de não deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a decisão da causa; de não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão; de não praticar omissão grave do dever de cooperação, tal como ele resulta do disposto nos arts. 266.° e 266º-A. Se intencionalmente, ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, a parte violar qualquer desses deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeito a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má-fé.- Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, 3ª Edição, pp. 221-222.

Por seu turno, ensina Menezes Cordeiro, que “No Direito processual – 1995/96 – valem o dolo e a negligência grave: não a comum. A jurisprudência, ainda que sublinhando o alargamento que a relevância agora dada à negligência (grave) significa, restringe esse alargamento às prevaricações substanciais; nas processuais – art. 456º/2, d) – apenas relevaria o dolo. A própria negligência grave é entendida como “imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesto aos olhos de qualquer um.” - Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa In Agendo, p. 26.

Para a condenação como litigante de má fé, exige-se que o procedimento do litigante evidencie indícios suficientes de uma conduta dolosa ou gravemente negligente, o que requer grande cautela para evitar condenações injustas, designadamente quando “assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-psicológico” como judiciosamente se ponderou no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2003. II – Tal é exigência legal que deflui imediatamente, como corolário, do axioma antropológico da dignidade da pessoa humana proclamado pelo art. 1.º da nossa Lei Fundamental, pois ninguém porá em causa o carácter gravoso e estigmatizante de uma condenação injusta como litigante de má-fé. III – É esta dignidade, proclamada legal, constitucional e supranacionalmente, impeditiva de que a simples impugnação per positionem da versão de uma das partes seja considerada como integrando a “mala fides” sempre que a versão aposta à alegada seja provada, antes se exigindo que ela seja imputável subjectivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira (a faute lourde do direito francês ou a Leichtfertigkeit do direito alemão)[5].

A litigância de má-fé deve deixar incólume o direito das partes de discutirem e interpretarem livremente os factos, pelo que não é suficiente, para que a parte seja irremediavelmente considerada de má fé, uma qualquer divergência ou desarmonia entre os factos, tal como a parte alega, e como, ulteriormente, vêm a ser provados e qualificados.– acórdão da Relação de Coimbra de 13/01/2015, proferido no processo 115/09.0TBCNF.

“A condenação em litigância de má-fé, no âmbito duma actuação substancial, não pode ser perspectivada exclusivamente em função daquilo que a parte consegue ou não provar, antes se impondo a demonstração duma intenção maliciosa, ou, pelo menos, de uma negligência tal que justifique a reprovação e a censura subjacentes ao juízo de má-fé.” – acórdão da Relação de Coimbra de 23/6/2015, proferido no processo 2139/08.5TBCLD.C1.

A litigância de má-fé não se pode confundir com erro grosseiro, com lide meramente temerária ou ousada, com dedução de pretensão ou de oposição cujo decaimento foi determinado por mera fragilidade da sua prova e de não se ter logrado convencer o tribunal da realidade trazida pela parte a julgamento, ou com discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, ou sequer com a defesa convicta e séria de uma posição que não venha a lograr acolhimento judicial.

Por outras palavras, a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça.

No caso, em apreço, pese embora a pretensão do Autor viesse a decair em 97,4% e que alguma factualidade contrária aos seus interesses tenha ficado provada em razão do seu próprio depoimento não se pode esquecer que a litigância de má fé não pode, como se disse, ser perspectivada exclusivamente em função daquilo que a parte consegue ou não provar.

Dos autos não resulta que o autor, embora como se reconhece na sentença, tenha omitido alguns factos, tenha litigado com uma intenção maliciosa, ou, pelo menos, gravemente negligente que justifique a reprovação e a censura subjacentes ao juízo de má-fé.


***

IV - Termos em que se decide:

1 Julgar o recurso independente parcialmente procedente, indo a ré condenada a pagar ao autor a quantia de 1.619,99 € a título de créditos de formação dos anos de 2013 e 2014.

2. Julgar o recurso subordinado parcialmente procedente em função do que se decide:

a) revogar a sentença na parte em que condenou a ré no pagamento ao autor da retribuição relativa férias não gozadas dos anos de 2009 a 2012.

b) condenar ré a pagar ao autor a título de férias não gozadas dos anos 2014, 2015 e 2016, a quantia de € 5.470,09


*

Custas em ambos recurso por ambas as partes da proporção da respectiva sucumbência.

*

Sumário:

(…).


*

Coimbra, 09 de Novembro de 2022

***

(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)

(Luís Miguel Ferreira Azevedo Mendes)




[1] Independente e subordinado.
[2] Artº 226º nº 1 do CT.
[3] Saber se o trabalhador prestou trabalho suplementar, ou seja, se prestou trabalho fora do seu horário ou fora do período normal de trabalho é questão diferente da de saber se é ou não exigível o seu pagamento (nº 5 do artº 268º do CT).
[4] O trabalhador tem apenas de provar que é trabalhador subordinado para exigir a retribuição correspondente ao período de férias, ou seja, a aquisição do direito a férias retribuídas, decorre da qualidade de trabalhador subordinado, competindo ao empregador o ónus da prova de que as mesmas foram gozadas.
[5] Acórdão do STJ, de 28/05/2009, proferido no processo 09B0681.