Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2072/18.2T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: CONTRATO DE DEPÓSITO BANCÁRIO
CONTRATO DE ABERTURA DE CONTA CORRENTE
DEVERES DO BANCO PARA COM O CLIENTE
MOVIMENTAÇÃO FRAUDULENTA DA CONTA
CULPA
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 799º, NºS 1 E 2 DO C. CIVIL; LEI 25/2008, DE 5/06.
Sumário: I – O Banco, por força do contrato de depósito bancário e do associado contrato de abertura de conta corrente, celebrados com um cliente, assume um fundamental dever de prestação de serviços, com competência técnica, a qual tem subjacente deveres de qualidade e de eficiência [por via dos quais o banqueiro deve assegurar ao cliente, em todas as atividades que exerça, “elevados níveis de competência técnica”], complementado, no que às relações com os clientes diz respeito, com o dever de adoção, por parte do banqueiro, enquanto instituição, de procedimentos de diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados.

II – Assim, enquanto profissional tecnicamente competente, que conhece e domina as regras da ars bancaria, tem, designadamente, uma obrigação de acautelamento de interesses do cliente, que lhe impõe uma continuada promoção e vigilância dos interesses deste.

III – Recai sobre o Banco o ónus da prova de que a movimentação da conta ocorreu por motivo justificado, designadamente porque tinha ordem ou autorização de transferência emanada do cliente, pelo que uma vez não demonstrado este pressuposto o Banco responde perante o cliente.

IV – Sendo que a movimentação fraudulenta por terceiro de um depósito bancário não é oponível ao depositante, que a ela foi alheio, independentemente de culpa do Banco depositário nessa movimentação.

Decisão Texto Integral:








Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

1 – RELATÓRIO

O..., L.da”, com sede na ..., J... e A..., ambos residentes na ..., instauraram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra “BANCO B..., SA”, com sede na ..., pedindo que o Tribunal declare que as transferências bancárias efetuadas a 4 e 6 de Janeiro de 2016, no valor global de €69.200,00, foram ilegitimamente solicitadas por terceiros e que as duas ordens de transferência que as determinaram não foram emitidas em termos idênticos aos das ordens de transferência anteriormente remetidas ao Banco Réu, o que deveria ter suscitado dúvidas aos funcionários que deram cumprimento às referidas ordens de transferência, encontrando-se os mesmos obrigados a confirmar tais ordens junto do cliente.

Para além disso, pretendem os Autores que o Tribunal declare que, por ascenderem a valor superior a €15.000,00, as duas ordens de transferência em causa não poderiam ter sido executadas sem que o ordenante as justificasse, encontrando-se o Banco Réu obrigado a contactá-lo para que fossem cumpridas as obrigações previstas na Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho, e que os riscos da falha do sistema informático correm por conta do Banco Réu.

Mais solicitam os Autores que o Tribunal declare a nulidade da cláusula constante da Declaração de Autorização Genérica que imputa ao cliente a assunção de toda a responsabilidade e de todas as consequências que resultem da utilização não autorizada, abusiva ou fraudulenta do fax ou correio eletrónico, suportando todos os prejuízos decorrentes da execução de instruções que tenham sido falsificadas ou deturpadas ou que não tenham tido origem no titular da conta.

Por último, os Autores requerem ainda que o Banco Réu seja condenado a reconhecer o que foi já mencionado e que os Autores não lhe devem nada, seja a que título for, assim como a proceder ao reembolso da quantia correspondente às duas transferências efetuadas e respetivos juros moratórios contados desde o dia 7 de Janeiro de 2016, acrescidos de 10 pontos percentuais, em montante a liquidar em sede de execução de sentença, e ao pagamento de uma indemnização suplementar por danos patrimoniais, no valor de €17.931,12, das demais quantias a liquidar em sede de execução de sentença e de uma indemnização suplementar por danos de natureza não patrimonial no valor de €8.000,00 relativamente ao Autor J... e no valor de €12.000,00 relativamente à Autora A...

Alegam, em síntese, que, no âmbito do contrato de abertura de conta outorgado com o Banco Réu, subscreveram uma Declaração de Autorização Genérica que lhes permitia solicitar a realização de transferências bancárias nacionais e internacionais a partir do endereço eletrónico ...com.

Sucede, porém, que, nos dias 4 e 6 de Janeiro de 2016, em consequência da utilização fraudulenta do mencionado endereço eletrónico, foi solicitada, por terceiros, a realização de transferências bancárias no valor de €41.700,00 e de €27.500,00, respetivamente.

Acresce que, por não terem atuado com a atenção que lhes era exigível, os funcionários do Banco Réu efetuaram tais transferências, sendo certo que o teor dos emails através dos quais as mesmas foram solicitadas, por divergir do habitualmente constante dos emails remetidos pela Autora, assim como a circunstância de os mesmos não terem sido precedidos de contactos telefónicos, como sempre sucedera até então, justificariam a existência de dúvidas acerca da proveniência dos pedidos dirigidos ao Banco Réu, motivo pelo qual deveriam os respetivos funcionários ter contactado previamente os Autores, a fim de confirmar esses pedidos.

Assim, sustentando que os riscos da falha do sistema informático utilizado, bem como dos ataques cibernautas que o afetem correm por conta dos Bancos, nos termos do disposto no artigo 796º, n.º 1, do Código Civil, concluem os Autores que o Banco Réu deverá ser condenado a indemnizar todos os danos por si sofridos.

                                                                          *

Devidamente citado, o Réu Banco B..., SA” veio aos autos apresentar a sua contestação, alegando que a Autora “O..., L.da” sempre utilizou a facilidade de proceder ao envio de pedidos e ordens por correio eletrónico, embora não seja verdade que os mesmos fossem sempre antecedidos ou seguidos de contactos telefónicos.

Deste modo, tendo as duas mensagens de correio eletrónico atrás mencionadas sido enviadas a partir do endereço da Autora “O..., L.da” e, portanto, do seu servidor, sustenta o Réu ter agido, por intermédio do seu funcionário, com a diligência normal e exigível ao nível da verificação da ordem recebida.

Por fim, acrescenta ainda o Banco Réu que, tendo o ataque informático identificado pelos Autores afetado o sistema informático por estes utilizado, ao qual o Banco é alheio, o risco de utilizações fraudulentas correrá por conta dos próprios Autores, que não protegeram de forma adequada e eficaz o seu sistema informático e os dados nele contidos.

Nestes termos, conclui o Banco Réu pela improcedência da presente ação declarativa, devendo ser proferida decisão de absolvição do pedido.

                                                                          *

A audiência prévia foi dispensada, tendo sido proferido despacho saneador, bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (cfr. fls. 166 a 170).

Procedeu-se à realização da audiência final, com observância de todas as formalidades legais aplicáveis, conforme resulta das atas respetivas.

Na sentença considerou-se, em suma, que o Banco Réu incumpriu os deveres de cuidado que lhe eram impostos, pelo que, na medida em que se encontravam preenchidos todos os pressupostos de que dependia a responsabilidade civil do Banco Réu (sendo certo que não se verificava  nenhuma conduta culposa dos próprios Autores quanto aos danos invocados), se passou a determinar os danos sofridos em consequência da atuação do Banco Réu e a ponderar o valor da indemnização devida aos Autores, relativamente ao que se concluiu pela fixação do montante de €69.200,00, acrescido dos juros e demais despesas que lhe foram, efetivamente, cobrados pelo Banco Réu no âmbito dos movimentos efetuados através da conta-corrente caucionada, estes a serem determinados em sede de incidente de liquidação, o que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:

«Decisão

Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos já indicados, decido julgar a presente ação parcialmente procedente, condenando o Banco Réu a reconhecer que a Autora O..., L.da não lhe deve qualquer quantia por conta das transferências bancárias executadas nos dias 4 e 6 de Janeiro de 2016, no montante global de €69.200,00 (sessenta e nove mil e duzentos euros), e, em consequência, a restituir à Autora esse montante, bem como os juros e demais despesas e acréscimos sobre o mesmo calculados que foram cobrados à Autora, em montante a determinar em sede de incidente de liquidação, a que acrescem juros de mora calculados à taxa legal desde as datas em que a Autora ficou desembolsada de tais quantias até integral pagamento.

Mais decido julgar improcedentes os restantes pedidos formulados pelos Autores, deles absolvendo o Réu.

Custas a cargo dos Autores e do Banco Réu, na proporção do respectivo decaimento, que fixo em 15% e 85%, respectivamente (cfr. artigo 527º, n.º 1 e 2, do CPC).

Registe e notifique. »

Inconformado com essa sentença, apresentou o Réu recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...                                                                      

               Contra-alegaram os AA., relativamente ao que formularam as seguintes conclusões:

...

               Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

               2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Réu nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº 4, 636º, nº 2 e 639º, todos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº 2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

               - erro na decisão da matéria de facto, quanto ao elenco da matéria de facto dada como “não provada” descrita sob os números “26., 27., 28. e 29.” (relativamente aos aos quais pugna no sentido de que deviam figurar nos pontos de facto “provados”)?;

- incorreto julgamento de direito no que respeita à condenação que teve lugar [mormente porque não houve violação do dever de diligência e cuidado que se lhe impunha – «não praticou qualquer ato ilícito, como não teve qualquer culpa na produção de qualquer dano que a A. tenha sofrido»]?

               3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

               Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância, em termos de “factos provados”:

...

E o seguinte em termos de factos “não provados”:

               ...

               3.2 – O Réu/recorrente invoca o erro na decisão da matéria de facto, quanto ao elenco da matéria de facto dada como “não provada” descrita sob os números “26., 27., 28. e 29.” (relativamente aos aos quais pugna no sentido de que deviam figurar nos pontos de facto “provados”).

               De referir que, como fundamento para esta sua pretensão, o R./recorrente alega, no essencial, que «(…) a Mma. Juiz decidiu com alguma leveza a questão da forma como terceiros poderão ter chegado ao sistema da Autora, fazendo-se passar pela mesma – qual ordenante – e dando ordens de transferência ao aqui R.

Ou seja, dando-se como provado que um terceiro se fez passar pela A., não cremos que os factos não provados supra não tenham resultado como esclarecidos, sendo absolutamente relevantes para a boa decisão da causa, pois que a apropriação da identidade da A., e respectivas credenciais de acesso à sua conta de correio electrónico, assume um relevo nuclear nestes autos.»

Mais concretamente, e em síntese, que não restando dúvidas que in casu a “fraude” foi operada através «exclusivamente da intromissão no sistema informático da A., e só da A.» [e não de qualquer tipo de utilização de software malicioso (como sejam os “Cavalos de Tróia”) e, bem assim, não se tratou de um caso de “phishing” ou “pharming”], também resultava certo e seguro que, como aliás foi igualmente esclarecido pelo Sr. Perito, «qualquer terceiro que tivesse acesso à possibilidade de remeter e-mails através daquele endereço eletrónico da A., e de receber e-mails naquele mesmo endereço eletrónico, em teoria teria de ter tido acesso às credenciais daquela conta de g-mail», donde, «necessariamente por força da sua falta de cuidado ou diligência na manutenção daquela estrutura». [sublinhados nossos].

               Que dizer?

               Desde logo importa referir que o Réu/recorrente invoca um único depoimento testemunhal em abono desta sua pretensão – o do Perito ..., que sabemos ter sido quem fez a perícia nos autos – mas, salvo o devido respeito, não se vislumbra lastro bastante e suficiente no seu depoimento quanto ao sentido que dele pretende extrair, e/ou não é isso que se retira do dito depoimento, devidamente interpretado.

Senão vejamos.

Está solidamente adquirido nos autos, face à prova documental deles constante, que a queixa apresentada pela Autora O..., L.da deu origem à instauração do Inquérito n.º ..., que correu termos nos Serviços do Ministério Público de Castelo Branco, sendo que, como consignado na “motivação” da sentença recorrida, «Na sequência das diligências de investigação realizadas no âmbito do referido processo de inquérito, a Polícia Judiciária elaborou o relatório cuja cópia se encontra junta a fls. 233 a 239 do Procedimento Cautelar apenso, nos termos do qual concluiu que, efectivamente, os indícios recolhidos apontam no sentido de ter havido um acesso ilegítimo à conta de correio electrónico titulada pela Autora O..., L.da por terceiros que, por essa via, lograram remeter ordens de transferência ao Banco Réu.»

Mas será que se retira da prova produzida, mormente do depoimento do dito Perito ..., que o acesso indevido (por terceiros) à conta de correio eletrónico da A., decorreu de falha de segurança do sistema informático da A. e «necessariamente por força da sua falta de cuidado ou diligência na manutenção daquela estrutura»?

É isto que afinal estava pressuposto nos ditos pontos de facto “não provados” sob “26. e 27.”, com o seguinte teor literal, respetivamente:

«26. A Autora O..., L.da não protegeu de forma adequada e eficaz o seu sistema informático e os dados nele contidos.»;

«27. A utilização indevida dos dados dos Autores ficou a dever-se a uma falha de segurança da sua parte.»

Sucede que, ao invés do que sustenta enfaticamente o R./recorrente nas suas alegações recursivas, designadamente por reporte ao depoimento do dito Perito ..., quanto a nós, não se consegue extrair ou retirar uma tal conclusão desse depoimento, com o grau de certeza e segurança que seria indispensável.

É que, não é pelo facto de ter sido apurado – e nessa medida cabalmente sublinhado pelo dito Perito ...! – que o sistema operativo do sistema informático da A. não se encontrava atualizado, que se podia e devia concluir no sentido de que isso é que foi a causa para o ilícito acesso (por terceiros) à conta de correio eletrónico da A. “O...”.

É certo que resultou inquestionável, designadamente pelo depoimento do dito Perito ..., que o sistema operativo que se encontrava instalado no sistema informático da A. “O...” se encontrava desatualizado, sendo que a forma se evitar a intromissão de terceiros, em síntese, seriam:

a) manter o software atualizado que colmata as falhas detetadas;

b) utilizar palavras-pass mais seguras, com sistema de segunda autenticação.

Sucede que, quando questionado esse Perito ..., a propósito da penetração por terceiro na caixa de correio da A. “O...” ser necessária e unicamente fruto/consequência da desatualização do sistema operativo utilizado pela mesma, a sua resposta, como se extrai do atinente trecho da gravação áudio, foi a seguinte:

...

Neste conspecto, e face a alegações contrapostas, sem que nenhuma delas esteja apoiada em prova certificada e mais consistente e inabalável, designadamente do próprio detentor do sistema operativo em causa, não se evidencia qualquer certeza nessa parte.

Ora se aquelas foram efetivamente a posição e afirmações do Perito, a sua devida interpretação, sempre na concatenação com os demais meios de prova, designadamente com o que se extraiu do depoimento da citada testemunha ..., deve antes, salvo o devido respeito, ser a de que não se logrou obter uma convicção certa e segura no sentido de que o acesso/penetração, por terceiro, da caixa de correio eletrónico utilizada pela A. “O...” Ldª., foi consequência e/ou resultou necessariamente, numa relação de causa-efeito, do factor humano, e com origem no sistema informático utilizado pela A. “O...”.

 Uma tal menor convicção foi também a alcançada na 1ª instância, tal como se retira do que ficou expresso na “motivação” consignada na sentença recorrida a tal respeitante, a saber:

«(…)

O mesmo se diga no que concerne aos factos inseridos no elenco dos factos considerados não provados sob os números 26. a 29..

É certo que, conforme foi salientado pelo Ex.mo Senhor perito em sede de audiência final, o sistema operativo do computador utilizado pelos Autores já se encontrava desactualizado, mesmo por referência à data em que ocorreram os factos.

De qualquer forma, não poderá deixar de se referir também que a testemunha ..., que desempenha a atividade profissional de técnico de informática, assegurou ao Tribunal que, através da verificação que fez ao computador utilizado pelos Autores, constatou que o programa antivírus e o sistema de actualizações automáticas estavam ativos.

Contudo, e independentemente disso, importa salientar novamente que a prova produzida no âmbito dos presentes autos não permitiu determinar, em concreto, a via através da qual foi possível a terceiros aceder à caixa de correio electrónico utilizada pela Autora O..., L.da.

Naturalmente, é sabido, em face das regras da experiência comum, que a evolução registada ao nível do desenvolvimento de programas informáticos tem visado responder à necessidade de tornar mais seguros e invioláveis os sistemas informáticos utilizados nas mais diversas áreas.

Quer isto dizer que, à partida, sistemas mais recentes permitirão uma maior protecção dos dados dos respectivos utilizadores, ainda que, como também é do conhecimento geral, não existam sistemas invioláveis.

No entanto, não resultou provado no âmbito dos presentes autos que o acesso ilegítimo à caixa de correio electrónico da Autora O..., L.da tenha ficado a dever-se ao facto de o respectivo sistema operativo não se encontrar actualizado.

Em consequência, não poderia o Tribunal deixar de considerar não provados os factos indicados sob os números 26. a 29., na medida em que a demonstração de tais factos pressuporia o apuramento da causa que permitiu tal acesso ilegítimo e a imputação da mesma a alguma conduta concretamente adoptada pelos Autores.»

Ora se assim é, não nos parece legítimo falar de “erro de julgamento” relativamente ao que figura como sendo a convicção alcançada pelo Tribunal a quo.

Na verdade, perfilhamos o entendimento de que quando há impugnação da matéria de facto e ao tribunal de recurso é impetrada uma decisão à luz do disposto no art. 662º do n.C.P.Civil, a “Fundamentação”/“Motivação” do tribunal a quo vai ser o objeto precípuo da atenção do tribunal de recurso, pois que o labor deste se orienta para a deteção de qualquer “erro de julgamento” naquela decisão da matéria de facto, em termos da apreciação e valoração da prova produzida (não podendo obviamente limitar-se à análise da coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto operada pelo tribunal a quo).

Sem embargo, «não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento».[2]

E assim o é em atenção ao entendimento de que a efetiva garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto (consignado no art. 662º do n.C.P.Civil), impõe que a Relação, depois de reapreciar as provas apresentadas pelas partes, afirme a sua própria convicção acerca da matéria de facto questionada no recurso, não podendo limitar-se a verificar a consistência lógica e a razoabilidade da que foi expressa pelo tribunal recorrido.

É este, afinal, o verdadeiro sentido e alcance que deve ser dado ao princípio da liberdade de julgamento fixado no dito art. 607º, nº 5 do n.C.P.Civil, o qual vale com idêntica amplitude na 2ª instância.

Isso também porque o controlo da matéria de facto tem por objeto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada numa audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa perceção própria do material que lhe serve de base (arts. 604º, nº 3 e 607º, nº 5 do n.C.P.Civil).

Sem embargo de que a liberdade de apreciação da prova não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade e, portanto, naturalmente que essa apreciação há-de ser reconduzível a critérios objetivos: a livre convicção do juiz, embora seja uma convicção pessoal, não deve ser uma convicção puramente voluntarista, subjetiva ou emocional – mas antes uma convicção formada para além de toda a dúvida tida por razoável e, portanto, capaz de se impor aos outros.

De qualquer forma, não deve desvalorizar-se a circunstância de essa convicção sobre a realidade ou a não veracidade do facto provir do tribunal mais bem colocado para decidir a questão correspondente: na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também fatores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição; na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reações imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerando em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.  

Daí que – conforme orientação jurisprudencial prevalecente – «o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.»[3]

Dito de outra forma, «só perante tal situação [de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão] é que haverá erro de julgamento; situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estarmos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, [que não compete a este tribunal ad quem sindicar (artº 655º-1 do CPC), e pelas razões já supra] expandidas.»[4]

Em conclusão, mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelos apelantes ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade, pois que, à Relação apenas cabe um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal “a quo” lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou, apontando-se como casos excecionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas – v.g. por distração – determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.

Nesta linha de entendimento, já doutamente se concluiu que «A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.»[5]

Assim, se o julgador de 1ª instância entendeu valorar diferentemente do ora Recorrente tais depoimentos, não pode esta Relação pôr em causa, de ânimo leve, a convicção daquele, livremente formada, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este tribunal ad quem não detém aqui (v.g. a inquirição presencial das testemunhas – os princípios da imediação e oralidade).

Aliás, em consonância com este entendimento se mostra a circunstância de se manter no atual art. 640º, nº 1, al. b) do n.C.P.Civil o dever (melhor, ónus) para o recorrente de concretizar quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa, donde ter ele que ser conjugado com o artº 607º, nº 5 do mesmo n.C.P.Civil – que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – pelo que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deve resultar claramente uma decisão diversa, sendo por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”.

Pelo que tendo sido o já apontado e enunciado o sentido útil e decisivo do depoimento do Perito ... e bem assim da testemunha ..., como sustentar que com base neles outra deveria ter sido a convicção do Tribunal a quo?

De todo não o vislumbramos, termos em que improcede fatalmente a impugnação à decisão sobre a matéria de facto que tinha por objeto os pontos de facto “não provados” sob “26., 27., 28. e 29.”, os quais se mantêm nesses precisos termos e moldes.

Em todo o caso, sempre a impugnação quanto aos pontos de facto “não provados” sob “28. e 29.” improcederia, na medida em que se tratava de factos claramente conclusivos, donde não poder só por esse motivo ser acolhida a pretensão recursiva que os visava.

Está, assim, encontrada a resposta para a impugnação à decisão sobre a matéria de facto.

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação da questão neste particular supra enunciada, esta já directamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, do incorreto julgamento de direito no que respeita à condenação que teve lugar [mormente porque não houve violação do dever de diligência e cuidado que se lhe impunha – «não praticou qualquer ato ilícito, como não teve qualquer culpa na produção de qualquer dano que a A. tenha sofrido»].

Se bem captamos o sentido do alegado pelo Réu/recorrente, este seu fundamento tinha em alguma medida como pressuposto lógico e jurídico necessário – ainda que não exclusivamente! – o erro na decisão da matéria de facto.

Na verdade, no que à decisão da matéria de facto concerne, a prova positiva de uma qualquer conduta culposa dos AA. [como resultaria dos pontos de facto “não provados” sob  “26., 27., 28. e 29.”, a serem revertidos em factos “provados”!] sempre relevaria, pelo menos, enquanto consubstanciando a imputação aos AA. de alguma conduta culposa que pudesse ter concorrido para a produção dos danos invocados.

Ora isso – dada a ausência do dito lastro factual no elenco dos factos “provados” – não é possível em definitivo fazer-se!

Mas será então que é de sancionar, no demais, o enquadramento jurídico feito na sentença, mais concretamente, que «ao providenciar pela concretização das duas transferências solicitadas nos dias 4 e 6 de Janeiro de 2016, o Banco Réu, por intermédio do gerente da sua agência de …., não cumpriu os deveres de diligência e de cuidado que lhe impunham que, antes de executar tais transferências, obtivesse, junto da sociedade Autora, a confirmação das ordens de transferência em causa»?

Sustenta o R. /recorrente, em síntese, que o que está em causa nos autos é mais propriamente uma questão de cumprimento ou incumprimento do contrato de abertura de conta e de depósito, relativamente ao que a verificação de genuinidade da ordem [ com base contratual] resumir-se-ia à identificação da conta de correio do remetente, sendo que, “in casu”, era pacífico que coincidia com a conta de correio da A., isto é que «A única evidência que resulta dos autos é que o Banco verificou os emails recebidos em Janeiro de 2016 com recurso exactamente aos mesmos critérios com que analisou todos os anteriores. E com isso não violou qualquer dever de cuidado que lhe fosse exigível, por lei ou contrato!»

Que dizer?

Quanto a nós, que havia por parte do Banco ora R./recorrente, por força do contrato de depósito bancário e do associado contrato de abertura de conta corrente, celebrados com a A. “O...”, um fundamental dever de prestação de serviços, com competência técnica, a qual tem subjacente deveres de qualidade e de eficiência [por via dos quais o banqueiro deve assegurar ao cliente, em todas as atividades que exerça, “elevados níveis de competência técnica”], complementado, no que às relações com os clientes diz respeito, com o dever de adoção, por parte do banqueiro, enquanto instituição, de procedimentos de diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados, sendo que quanto ao critério de diligência, também referenciando o banqueiro enquanto instituição, aponta ele para o modelo do banqueiro criterioso e ordenado, no que pode ver-se a «recuperação, com fins bancários, da figura do bonus paterfamilias, prudente, ordenado e dedicado»[6] .

Ora se assim é – e releve-se o juízo antecipatório! – não poderá deixar de se concluir in casu que o Banco ora R./recorrente devendo agir com elevados padrões de diligência e cuidado, de modo a não fazer transferências da conta de depósitos do cliente sem estar seguro de que tais transferências eram queridas e ordenadas por este, não cumpriu com o que se lhe impunha.

Com efeito, releva decisivamente no caso vertente, que no dia 4 e no dia 6 de Janeiro de 2016 o Banco Réu recebeu, por via e-mail, pedidos de transferência das quantias vultuosas, a saber, de €41.700,00 e €52.500,00 (num momento inicial, depois “reduzido” para €27.500,00, após o envio da informação de que as contas tituladas pela A. “O...” não dispunham de saldo suficiente para o efeito), para contas bancárias que não eram tituladas pela A. “O...” nem por nenhum dos beneficiários das transferências anteriormente efetuadas, sem que lhe tivesse sido transmitida qualquer informação adicional acerca das razões que justificariam a realização das mesmas.

Ora, a circunstancialismo relativo ao segundo pedido de transferência revela claramente que o ordenante do primeiro pedido nesse particular (solicitado a 6 de Janeiro de 2016) desconhecia o saldo das contas bancárias da A., o que justificaria só por si a adoção de medidas destinadas a confirmar a legitimidade da ordem transmitida.

Acresce que todos os demais pedidos de transferência que tinham sido transmitidos antes de Janeiro de 2016, continham a indicação de que as transferências solicitadas deveriam ser debitadas da «conta da O... n.º ...» [isto é, a conta à ordem], enquanto os ajuizados continham a indicação de que as quantias a transferir deveriam ser debitadas da «conta ...» [isto é, a conta-corrente caucionada].

À luz deste factualismo, aduziu-se na sentença recorrida – antes de concluir e para efeitos de o fazer, que o Banco ora R./recorrente, por intermédio do gerente da sua agência de …, não cumpriu os deveres de diligência e de cuidado que se lhe impunham! – no sentido de que «verificando-se que, até ao mês de Janeiro de 2016, os emails remetidos pela Autora O..., L.da continham instruções expressas para movimentar a sua conta à ordem, tendo em vista o pagamento de despesas correntes e também o pagamento dos montantes mais avultados a que atrás se fez referência, afigura-se evidente que o recurso ao mesmo meio para transmitir instruções quanto à movimentação da conta-corrente caucionada indiciaria já a existência de alguma irregularidade, tanto mais que, como já foi dito, se encontrava em causa a transferência de quantias avultadas para contas bancárias que, em momento anterior, não tinham beneficiado de qualquer outra transferência solicitada pela Autora.»

Subscrevemos por inteiro uma tal asserção, tanto mais que cumpre assinalar que para além de nas mensagens de 4 e 6 de Janeiro de 2016, relativas àquelas duas ordens de transferência, faltar um algarismo [um 0 (zero)], o grafismo na indicação das contas a serem debitadas era diferente [nas ajuizadas não se encontravam colocados os dois pontos habitualmente constantes].

Ora, todas estas já referidas circunstâncias deveriam impor ao seu recetor, o gerente da agência de …. do Banco ora R./recorrente, um dever de diligência e de cuidado na aferição da legitimidade e genuinidade antes de executar tais transferências, designadamente que obtivesse, junto da Autora, a confirmação das ordens de transferência em causa.

O que nos parece tanto mais imperioso quanto o dito Banco não podia deixar de saber que a transmissão de ordens de transferência pela via de correio eletrónico era um sistema com manifestas vulnerabilidades – neste sentido o Perito que fez a perícia dos autos doutamente sublinhou que «A entidade recetora (no caso concreto, o Banco...) só deveria aceitar e-mails cuja assinatura digital fosse válida e que fossem assinados digitalmente pelos seus clientes».

Acontece que tal não sucedeu/foi operado, pois que resulta da factualidade apurada que aquele gerente (e os dois caixas, na qualidade de funcionários do Banco) confirmaram a autenticidade das ordens de transferência transmitidas nesses ditos dias 4 e 6 de Janeiro de 2016, apenas através da identificação do endereço de correio eletrónico utilizado para o efeito e da verificação do numero de raiz da conta bancária titulada pela A. “O...”….

Sendo certo que ficou positiva e insofismavelmente apurado nos autos que esses dois pedidos de transferência provinham de «pessoa que se fez passar por representante da Autora» [cf. factos “provados” sob “38.”, “42.” e “46.”], e bem assim que os e-mails que tal operaram «não foram remetidos pela Autora O..., L.da, nem por qualquer pessoa a ela ligada» [cf. facto “provado” sob “50.”]!

 Neste quadro, considerou a 1ª instância – e bem! – que Banco ora R./recorrente nas duas indevidas transferências bancárias efetuadas sobre a conta da A. “O...” [sendo que a segunda transferência se veio a materializar pelo montante de €27.500,00, conforme pedido num momento subsequente] não conseguiu provar, como lhe competia, que efetuara todas as diligências que lhe eram exigíveis, assim o considerando responsável pelas ditas transferências, nos termos do art. 799º do C.Civil, ou seja, não considerou ilidida a presunção de culpa no incumprimento que o referido preceito impõe.

Para o efeito, argumentou-se pela seguinte forma na sentença recorrida:

«(…)

Deste modo, também o Banco Réu agiu com culpa, na medida em que lhe é censurável o facto de não ter adoptado as precauções que, em face das razões atrás indicadas, lhe imporiam a confirmação da proveniência das ordens de transferência que lhe foram transmitidas a partir do endereço de correio electrónico da Autora O..., L.da nos dias 4 e 6 de Janeiro de 2016.

De facto, “a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil” (cfr. artigo 799º, n.º 2, do Código Civil), sendo certo que “incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua” (cfr. artigo 799º, n.º 1, do Código Civil).

Efectivamente, em sede de responsabilidade contratual “o dever jurídico infringido está (…) de tal modo concretizado, individualizado ou personalizado, que se justifica que seja o devedor a pessoa onerada com a alegação e a prova das razões justificativas ou explicativas do não cumprimento”, encontrando-se o devedor “em melhores condições para alegar e provar os factos que tornam inimputável o não cumprimento do que o credor para provar o contrário”(11).

A ser assim, incumbiria ao Banco Réu afastar a presunção de culpa decorrente do preceito legal citado (cfr. artigo 344º, n.º 1, do Código Civil).

Acontece, porém, que, compulsada a matéria de facto considerada provada nestes autos, não constam da mesma quaisquer factos que permitam afastar a mencionada presunção de culpa, razão pela qual não poderá deixar de se considerar o incumprimento imputado ao Banco Réu como culposo.

(11) Cfr. Antunes Varela, in ob. cit., Volume II, pág. 101. 

(…)»

O que tudo serve para dizer que nos parece incontornável a conclusão de que a atuação do Banco ora R./recorrente (na pessoa dos seus já referidos agentes) foi, na circunstância, ilícita [por consubstanciar a violação de dever de cuidado e diligência], para além de claramente culposa!

Aliás, para um caso com algum paralelismo com o ajuizado, já foi sustentado em douto aresto jurisprudencial que «A movimentação fraudulenta por terceiro de um depósito bancário não é oponível ao depositante, que a ela foi alheio, independentemente de culpa do banco depositário nessa movimentação.»[7]

Não assiste, assim, qualquer razão ao R./recorrente quando argumenta nas alegações recursivas que in casu se tratava tão-somente de uma questão de cumprimento ou incumprimento do contrato de abertura de conta e de depósito, no âmbito do que os seus deveres se resumiam à identificação da conta de correio do remetente.

É que tal conflitua ostensivamente com o que já vimos serem os deveres gerais [do “banqueiro”] de atuação conformes com aquilo que é expectável da parte de um profissional tecnicamente competente, que conhece e domina as regras da ars bancaria, no âmbito do que tem, designadamente, uma obrigação de acautelamento de interesses do cliente, que lhe impõe uma continuada promoção e vigilância dos interesses deste. 

«Não pode, assim, o banco sustentar que efectuou as transferências de boa-‑fé, convicto da sua regularidade, porque as regras da ars bancaria e os interesses do seu cliente não abonam essa asserção: seria fazer reverter em seu benefício a sua própria negligência ou imprudência e falta de competência técnica.»[8]

Nesta mesma linha de entendimento já foi também doutamente sustentado que «Recai sobre o banco o ónus da prova de que a movimentação da conta ocorreu por motivo justificado, designadamente porque tinha ordem ou autorização de transferência emanada do cliente, pelo que, não demonstrado este pressuposto, o banco responde perante o cliente.»[9]

Por outro lado, não assiste sequer qualquer razão ao Banco ora R./recorrente quanto ao que invoca à luz do regime de pagamento e da moeda eletrónica, publicado no Anexo I do Decreto-Lei nº 317/2009, de 30 de outubro (revogado pelo Decreto-Lei nº 91/2018, de 12 de novembro), por ser ele atinente ao “regime de pagamento e da moeda eletrónica”, que não é o caso que nos ocupa.

Consequentemente, não vislumbramos como questionar a decisão no sentido da procedência que teve lugar.

Donde, “brevitatis causa”, improcede fatalmente o presente recurso.

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O banco, por força do contrato de depósito bancário e do associado contrato de abertura de conta corrente, celebrados com um cliente, assume um fundamental dever de prestação de serviços, com competência técnica, a qual tem subjacente deveres de qualidade e de eficiência [por via dos quais o banqueiro deve assegurar ao cliente, em todas as atividades que exerça, “elevados níveis de competência técnica”], complementado, no que às relações com os clientes diz respeito, com o dever de adoção, por parte do banqueiro, enquanto instituição, de procedimentos de diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados.

II – Assim, enquanto profissional tecnicamente competente, que conhece e domina as regras da ars bancaria, tem, designadamente, uma obrigação de acautelamento de interesses do cliente, que lhe impõe uma continuada promoção e vigilância dos interesses deste.

III – Recai sobre o banco o ónus da prova de que a movimentação da conta ocorreu por motivo justificado, designadamente porque tinha ordem ou autorização de transferência emanada do cliente, pelo que, não demonstrado este pressuposto, o banco responde perante o cliente.

IV – Sendo que a movimentação fraudulenta por terceiro de um depósito bancário não é oponível ao depositante, que a ela foi alheio, independentemente de culpa do banco depositário nessa movimentação.

               6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, pela improcedência da apelação, mantendo o dispositivo da sentença recorrida nos seus precisos termos.  

               Custas nesta instância pelo Réu/recorrente.                                                                                                                                                                               Coimbra, 22 de Junho de 2021

        Luís Filipe Cravo

       Fernando Monteiro

        Ana Márcia Vieira


***



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Ana Vieira

[2] Citámos o Ac. do T.R de Coimbra de 17-04-2012, proc. nº 1483/09.9TBTMR.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, que embora tendo sido prolatado na vigência do C.P.Civil, perfilha um entendimento perfeitamente transponível para o atual n.C.P.Civil; no mesmo sentido, veja-se A. ABRANTES GERALDES in “Julgar”, nº 4, Janeiro/Abril 2008, Reforma dos Recursos em Processo Civil, páginas 74 a 76 e o Ac. do S.T.J. de 15-09-2010, proferido no proc. nº 241/05.4TTSNT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj, relativamente ao qual também se invoca a atualidade do entendimento nele perfilhado.
[3] Cf. o acórdão do T.R. de Coimbra de 25/5/2004, proferido no proc. nº 17/04, cujo texto integral está acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[4] Cf. acórdão do T.R. de Coimbra de 25/11/2003, proferido no proc. nº 3858/03, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[5] Assim no acórdão do S.T.J. de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, cujo texto integral pode ser acedido em www.dgsi.pt/jstj.
[6] Neste sentido vide MENEZES CORDEIRO, in “Manual de Direito Bancário”, 5ª ed., 2014, Livª Almedina, a págs. 345/346, autor que, aliás, seguimos de perto nesta parte da exposição, sempre com referência ao disposto nos arts. 73º a 76º da Lei-Quadro bancária que é o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, designado por “RGIC”.
[7] Trata-se do acórdão do STJ de 08.03.2012, proferido no proc. nº 500/08.4TBESP.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[8] Citámos agora o acórdão do STJ de 16.09.2014, proferido no proc. nº 333/09.0TVLSB.L2.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[9] Assim no acórdão do STJ de 18.12.2008, proferido no proc. nº 08B2688, também ele acessível em www.dgsi.pt/jstj.