Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5/16.0ACPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL
FASE JUDICIAL DO PROCESSO
INQUÉRITO
Data do Acordão: 02/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 32.º DO CPP
Sumário: Quando a lei processual penal prevê o conhecimento da incompetência territorial (artigo 32.º do CPP), refere-se à fase judicial, de instrução e julgamento, e nunca à fase de inquérito.
Decisão Texto Integral:










Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra



1. Relatório
A. interpôs recurso da decisão proferida no processo de instrução n.º 5/16.0ACPRT, do juízo de instrução criminal da Comarca de Viseu (Juiz 2), que indeferiu o requerimento que apresentou pedindo a declaração de nulidade dos atos praticados desde o início do inquérito, e de todo o processado.


1.1. Recurso do arguido (conclusões):

“- O presente recurso tem por objeto a impugnação da decisão do Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu sobre a invocação da nulidade de todo o processado na fase de inquérito, desde a aquisição da notícia do crime, até à dedução da acusação, por violação das regras de competência territorial, a qual foi julgada improcedente;

- A ratio legis da fixação de competência tem subjacente o oferecimento de condições mais favoráveis para a descoberta da verdade material, e a maior proximidade espacial em relação aos meios probatórios, para o apuramento da verdade material e com implicações mais favoráveis às garantias de defesa do arguido;

- Convalidar todos os atos, através de uma abordagem genérica e abstrata, sob o impulso processual do arguido, afigura-se lesivo dos direitos fundamentais e das garantias do processo criminal;

- A dedução da acusação, no caso em apreço, por entidade territorialmente incompetente para o efeito é nula, constitui uma nulidade insanável por violação do princípio da legalidade, da segurança jurídica e do princípio do juiz natural;

- Nos presentes autos não houve transferência de inquérito que permita extrair a fundamentação do artigo 266.0, n.0 2 do CPP, que serve de sustentação à douta decisão de improcedência da suscitada nulidade;

- A decisão do tribunal a quo viola as regas de competência territorial e os direitos defesa do arguido, por ofensa ao exercício do contraditório, Cfr. as disposições da CRP, artigos 20.º, n.º 1 e 5 e 32.º, n.ºs 1 e 9;

- A aplicação do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 33.º do CPP, quanto aos efeitos da declaração de incompetência exige uma avaliação do tribunal competente, tanto em relação ao n.º 1, quanto à validação dos atos, bem como em relação ao n. 0 3, quanto à convalidação das medidas de coação;

- A estatuição prevista na 2a parte do n.º 1 do artigo 33.º do CPP, não foi efetuada, pelo tribunal a quo, nem no seguimento da remessa dos autos ao tribunal competente, nem na decorrência da invocação de nulidade pelo arguido, configurando, nesta parte, uma omissão de pronúncia, com a violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5 e 32.º n.º 1, ambos da CRP, quer no tocante aos atos praticados pelo Mistério Público, quer aos praticados pelo Juiz de Instrução do tribunal declarado territorialmente incompetente.

- O Tribunal competente violou o n.º 3 do artigo 33.º do CPP, de caráter imperativo, sendo que as medidas de coação ou de garantia patrimonial, quaisquer que elas sejam, devem ser validadas ou infirmadas, nos termos das disposições aplicadas, tanto à constituição de arguido, como às condições de aplicação daquelas medidas, nos temos do artigo 58.0, 191.0 e sgs do CPP, sendo que a sua não validação até ao momento constitui uma nulidade insanável;

- Todo o processado deve ser considerado nulo, devido à violação das regras de competência territorial na fase de inquérito, cujos atos conduziram a uma acusação proferida por magistrado territorialmente incompetente - cfr. Art. 1190 al. e) do Cód. Proc. Penal.»


1.2. Na resposta apresentada, o Ministério Público pugna pela manutenção da decisão recorrida.

1.3. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exm. Procuradora da República acompanhou a resposta do Ministério Público, concluindo pelo não provimento do recurso do arguido – parecer que mereceu resposta do arguido, reproduzindo os argumentos do recurso.

2. Questões a decidir no recurso
O objeto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente (v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336).
Assim, a questão a decidir resume-se a aferir da nulidade dos atos de inquérito praticados, por incompetência territorial.

*
3. Fundamentação

Decisão recorrida (transcrição da parte relevante):

Da nulidade do inquérito:

Como anteriormente se disse, o arguido, na sequência da notificação por si recebida para se pronunciar sobre a competência territorial do Juízo de Matosinhos para a apreciação da instrução, veio também, na sua exposição de fls. 323-328, invocar a nulidade dos atos praticados desde o início do inquérito, o mesmo é dizer que, pelas razões que ali sustenta, pretende ver declarado nulo todo o processado.

O Ministério Público discorda.

Cumpre decidir esta questão.

No que concerne à alegada incompetência territorial do Ministério Público, refere o art. 264.º n.º 1 do Código de Processo Penal que é competente para a realização do inquérito o Ministério Público que exercer funções no local onde o crime tiver sido cometido.

A competência territorial deste Juízo de Instrução Criminal para a apreciação da presente instrução foi já decidida por anteriores despachos, entendendo-se pois que o crime foi praticado na área desta comarca de Viseu.

A investigação, já se sabe, decorreu na 1ª Secção do DIAP da Maia. 

Porém, tal não tem a virtualidade de anular a investigação levada a cabo pelo Ministério Público – se, por hipótese, no decurso do inquérito, os autos tivessem sido remetidos desde logo para Viseu (ou, neste caso, para Lamego), todos os atos anteriormente praticados seriam seguramente aproveitados, sem necessidade de serem repetidos (é o que se extrai do n.º 2 do art. 266.º do CPP).

Na verdade, não se vê, nem o arguido o esclarece, quais foram afinal as diligências que foram realizadas no decurso do inquérito e que porventura agora importasse repetir, pelo que facilmente se conclui que todos os direitos de defesa do arguido foram cabalmente respeitados.

Nesta medida, não serão repetidos quaisquer atos de inquérito, improcedendo a invocada nulidade.”

3.1. Conhecimento do recurso:

Na sequência de inquérito que decorreu pela 1ª seção do DIAP da Maia, Comarca do Porto, foi deduzida acusação, em 9.1.2019, contra o recorrente, imputando-lhe a prática de um crime de introdução fraudulenta no consumo, p. e p. pelos arts. 96º, n.º 1, al. a), e 97º, al. b), do RJIT, e de uma contraordenação p. e p. pelo art. 114º, n.ºs 1 e 5, al. a), do mesmo diploma legal. 

Requereu o arguido a abertura de instrução junto do Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos, tendo-se este tribunal declarado incompetente, remetendo os autos ao Juízo de Instrução Criminal de Vila Real (e posteriormente para Viseu), na sequência do qual o arguido invocou a nulidade dos atos praticados desde o início da fase de inquérito até ao início do debate instrutório, requerimento sobre o qual incidiu o despacho objeto de impugnação.

Vejamos:

Em causa está a consequência da incompetência territorial na fase de inquérito para os atos na mesma praticados.

A regra geral relativa à competência territorial encontra-se fixada no art. 19º, n.º 1, do Código Penal, que declara competente para o conhecimento de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação.

Casos há em que o lugar da consumação não é claro, sendo então aplicável o estatuído no art. 21º, n.º 1, do Código Penal, que dispõe o seguinte: “Se o crime estiver relacionado com áreas diversas e houver dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para determinação da competência territorial, é competente para dele conhecer o tribunal de qualquer das áreas, preferindo o daquela onde primeiro tiver havido notícia do crime”.

Ora, a competência territorial, fixada segundo critérios o mais objetivo possível, é determinada por finalidades racionais de organização e operacionalidade, procurando determinar o tribunal que, em cada caso, esteja em melhores condições de proximidade ou conexão objetiva relativamente a elementos do crime ou ao seu autor (cf. Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, pág. 74). É que, sendo os inquéritos crime procedimentos complexos, encontrando-se o seu curso dependente de investigações que muitas vezes se desenvolvem de modo incerto, pode suceder que apenas muito mais tarde se determine qual o tribunal territorialmente competente para o julgamento – o que sucede com regularidade.

Por outro lado, as normas relativas à competência do tribunal são impostas pelo interesse público, permitindo determinar previamente o tribunal que vai julgar uma causa, efetivando dessa forma o princípio do juiz natural, em cumprimento do comando constitucional ínsito no art. 32º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa.

Existem, assim, mecanismos processuais destinados a sanar dúvidas ou divergências sobre a competência, estabelecendo desde logo o art. 32º, n.º 1, do Código de Processo Penal que a incompetência do tribunal é de conhecimento oficioso, embora limitando temporalmente a invocação da incompetência territorial, no n.º 2 do mesmo preceito.

Por outro lado, o art. 119º, al. e), do Código de Processo Penal comina com a nulidade insanável a violação das regras de competência do tribunal, mas estabelecendo de forma expressa uma exceção: sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32º - a saber, o caso da incompetência territorial, que é aquela que nos ocupa.

No tocante à incompetência territorial, encontra-se sujeita a um regime próprio, fixado no art. 33º do Código de Processo Penal, que estabelece as consequências/efeitos da declaração de incompetência territorial.

Assim, e ao contrário de outras causas de incompetência, a violação das regras da competência territorial tem como único efeito a remessa dos autos ao tribunal territorialmente competente (com a limitação temporal decorrente do art. 32º, n.º 2), não ocasionando qualquer nulidade – art. 33º, n.º 1, do Código de Processo Penal -, subsistindo apenas uma exceção: não serem competentes os tribunais portugueses, caso em que o processo é arquivado (art. 33º, n.º 4).

Assim, os atos praticados anteriormente à remessa do processo para o tribunal territorialmente competente são válidos, declarando o n.º 3 do art. 33º do Código de Processo Penal manterem-se eficazes as medidas de coação ordenadas pelo tribunal declarado incompetente, sem prejuízo da posterior convalidação ou infirmação pelo tribunal competente.

Remetido o processo para o tribunal territorialmente competente, este anula os atos que se não teriam praticado se perante ele tivesse corrido o processo, e ordena a repetição dos atos necessários para conhecer da causa (art. 33º, n.º 1, do Código de Processo Penal) – encontrando-se assim a eventual anulação dos atos praticados pelo tribunal incompetente submetida a um critério de justiça material, consentâneo com os princípios da economia processual e do máximo aproveitamento dos atos processuais (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed., pág. 115).

Em suma, foi o que sucedeu nos autos, não ocorrendo com a não anulação dos atos praticados qualquer ato lesivo dos direitos fundamentais do recorrente – que este invoca de forma genérica, mas não fundamenta. Na realidade, não sendo o processo penal um processo de partes, vigorando o princípio acusatório (art. 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), é a acusação, deduzida com base na atividade investigatória levada a cabo pelo Ministério Público na fase de inquérito, que define e fixa o objeto do processo. Caso a investigação não seja suficientemente abrangente em virtude de menor proximidade espacial em relação aos meios probatórios e para o apuramento da verdade, será tal facto refletido no despacho final do inquérito, a proferir pelo Ministério Público, sem que sejam minimamente beliscadas as garantias de defesa do arguido – que surgem em pleno após o trânsito do processo para uma fase judicial, seja de instrução, seja de julgamento.

Trata-se da consequência da opção do nosso sistema processual penal por uma fase de inquérito de natureza inquisitória, dominada por um Ministério Público dotado de amplos poderes de investigação, muitas vezes de forma secreta, e uma fase judicial em que impera a igualdade de armas, e onde é concedido o mais amplo contraditório aos sujeitos processuais – sempre limitado ao objeto do processo enformado pela acusação deduzida.

Não ocorre, pois, na fase de inquérito, e na recolha dos elementos probatórios pelo Ministério Público, qualquer violação das garantias de defesa do arguido.

Invoca o recorrente a incompetência do Ministério Público para deduzir a acusação dos autos, pugnando pela declaração de nulidade insanável, com fundamento na violação dos princípios da legalidade, da segurança e do juiz natural.

Ora, as nulidades insanáveis encontram-se taxativamente previstas no art. 119º do Código de Processo Penal, não constando a pretendida do elenco legal. Para além das nulidades insanáveis, existem nulidades dependentes de arguição, que são as descritas no art. 120º, n.º 2, e as demais referidas na lei (que não constituam nulidades insanáveis).

Porém, nem estas regras são aplicáveis ao Ministério Público, por existir norma especifica quanto à sua competência, nos arts. 264º e 266 do Código de Processo Penal. Assim, e quanto aos atos de inquérito (colocados em causa pelo recorrente), a lei declara a aplicabilidade dos arts. 24º a 30º do Código de Processo Penal (competência por conexão – art. 264º, n.º 5), não sendo aplicáveis aos serviços do Ministério Público as regras da competência do tribunal, e determinando o art. 266º que as questões a propósito suscitadas sejam decididas pela própria hierarquia do Ministério Público (no mesmo sentido, cf. Ac. da Relação de Évora de 25.6.2013, no proc. 1020/11.5BAABF.E1, em www.dgsi.pt).

Por essa razão, quando a lei prevê o conhecimento da incompetência territorial refere-se às fases judiciais, de instrução e julgamento, e nunca à fase de inquérito (art. 32º, n.º 2).

Não se mostrando violada qualquer norma legal, não enferma a acusação deduzida de qualquer nulidade insanável.

Por fim, confunde o recorrente a fase de mera investigação criminal com o julgamento, invocando a violação o princípio do juiz natural com base naquele argumento. Naturalmente sem qualquer razão.

Conforme se referiu, o n.º 9 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa consagra como uma das garantias do processo penal o princípio do juiz natural, que significa uma proibição de designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um determinado caso, com vista a assegurar uma decisão parcial e isenta.

Para o efeito existem as normas relativas à atribuição da competência, sendo a sua aplicação o que garante e assegura o cumprimento daquele princípio constitucional. E que foi feito no caso dos autos, remetendo-se o processo para o tribunal competente, nos termos da lei processual penal, assim se cumprindo o desiderato constitucional mencionado.

As fases judiciais, de exercício da defesa do arguido por excelência, decorreram no tribunal territorialmente competente, não se vislumbrando, repete-se, que por essa razão tenham sido violadas as garantias de defesa e do contraditório (que o arguido exerceu em tribunal não territorialmente competente).

Por último, cumpriu o tribunal competente os comandos legais que lhe eram impostos pelo art. 33º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal: aceitou a competência, e pronunciou-se expressamente sobre a eventual necessidade de repetição de atos (concluindo pela negativa), e marcou debate instrutório, no âmbito do qual se pronunciou sobre as medidas de coação aplicadas ao arguido.

         Pelo exposto, conclui-se que nenhuma censura merece o despacho recorrido.


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4. Decisão

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso, e confirma-se integralmente o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrente, fixando em 4 UC’s a taxa de justiça (arts. 513º, n.º 1, do CPP, e tabela III anexa ao RCP).

Coimbra, 12 de Fevereiro de 2020

Ana Carolina Cardoso (relatora)

João Novais (adjunto)